(Onde exploramos as ideias gregas sobre o atomismo) Os átomos são entidades perfeitas. São o todo, criadores de tudo. Somos feitos deles, matéria e semelhança. E voltaremos a eles no futuro. Do pó ao pó, do átomo ao átomo... Além de átomos e células, somos feitos de palavras. Porém, além das palavras, o Reino do inexprimível. As palavras nada são além de grafia e som em obscura semântica. Os idiomas são feudos. Além da palavra, o abismo silencioso do Nada. A sabedoria é ágrafa. Entre as palavras e os fatos, o vácuo da incompreensão. Os cientistas dizem que somos feitos de átomos, mas um passarinho me diz que somos feitos de histórias. Eduardo GaleanoTais perguntas não são novas. Na Parte I, encontramos alguns dos filósofos pré-socráticos, os primeiros a buscar explicações racionais sobre o comportamento da Natureza. Vimos como Tales e seus sucessores da escola iônica sugeriram, na infância da filosofia ocidental em torno de 600 a.C., uma teoria unificada da Natureza em que tudo o que existe é manifestação de um único princípio material e das suas transformações, representando uma realidade sempre em fluxo.(Estou apenas considerando noções de unificação da cultura ocidental. Existem vários princípios de unificação na tradição religiosa e mística do Oriente, do budismo ao hinduísmo e ao taoísmo, e estes podem ter influenciado a cultura grega; em particular, o pensamento de alguns pensadores pré-socráticos.) Para os iônicos, o tempo era a essência da realidade. Por outro lado, Parmênides e seus discípulos sugeriram que a essência da Natureza deve ser encontrada no que é permanente e não no que é transiente; que o que é não pode mudar, pois, caso mude, torna-se no que não é. A verdade, concluíram, não pode ser efêmera. O “Ser” é atemporal, impérvio à passagem do tempo. Em menos de cem anos, filosofias do ser e do devir foram propostas com o mesmo objetivo: encontrar o caminho que desvendará os segredos da Natureza. Como escolher entre os dois? A solução do impasse foi encontrada dois séculos mais tarde, nas ideias brilhantes de Leucipo e de seu prolífico discípulo, Demócrito. Em vez de considerar ser e devir como dois aspectos irreconciliáveis da Natureza, o par propôs que fossem, na verdade, dois lados da mesma moeda. Para tal, Leucipo e Demócrito conjecturaram que tudo é feito de pequenas entidades indivisíveis de matéria, os famosos átomos (em grego, “átomo” significa “o que não pode ser cortado”).(A ideia dos átomos não é exclusiva do Ocidente. Na Índia, filósofos budistas, jainistas e hinduístas escreveram sobre o atomismo. Os jainistas, em particular, e ainda antes dos gregos, consideraram uma versão do atomismo estritamente materialista, em que cada átomo tinha um sabor, um cheiro, uma cor e dois estados — sutil (capaz de se infiltrar nos menores espaços) e denso (maior). Os átomos tinham até uma propriedade semelhante a cargas elétricas opostas, que criava uma atração que levava a ligações entre átomos diferentes. Não sabemos se essas ideias influenciaram os filósofos da Grécia. Porém, Diógenes Laércio, um historiador que viveu no século III d.C., relata que Demócrito esteve na Índia e que se encontrou com os “gimnosofistas” (ascetas radicais que desprezam a comida e a roupa como interferências ao pensamento puro). Os átomos são imutáveis, “o que é” — representam, portanto, o ser. Movem-se no Vazio, “o que não é”, um meio completamente destituído de matéria. Para os atomistas, tanto átomos quanto o vazio são igualmente fundamentais na descrição da Natureza. Parmênides, por outro lado, argumentaria que o vazio não pode existir, já que, na sua filosofia, “o-que-não-é” não pode ser: assim que alguém proclama que “o vazio existe”, está declarando a existência do vazio; se o vazio existe, não pode não ser. Os atomistas pouco ligavam para esse excesso de idealismo, declarando que tudo faz sentido se supusermos a realidade dos átomos e do vazio. Como em um jogo de Lego, através das suas várias combinações e rearranjos, os átomos podem assumir formas de vários tipos, explicando, assim, a diversidade material que vemos na Natureza. Com isso, as transformações do mundo são devidas ao rearranjo dos átomos: o ser e o devir são unificados, no que podemos considerar mais uma teoria unificada da Natureza. Ao mesmo tempo que as coisas podem mudar, elas mantêm sua identidade, oculta em uma essência imutável. Assim, a água que flui nos rios transforma-se em nuvens e retorna ao solo como chuva; as sementes que viram árvores reaparecem nelas e, após um tempo, transformam-se em árvores mais uma vez. Mundos decaem e, dos seus restos, novos mundos emergem. A dança dos átomos anima a coreografia da Natureza. Demócrito foi além, propondo que os cinco sentidos fossem resultado da colisão de átomos (de luz, sabor...) com os órgãos sensoriais: “[...] por convenção cor, por convenção doce, por convenção amargo; na realidade, apenas átomos e o vazio.”(Demócrito, Fragmento 32c, mencionado em Graham, Texts of Early Greek Philosophy, p. 597) Através de sua vasta obra, Demócrito criou uma ontologia extremamente fértil, baseada exclusivamente em uma descrição material da realidade. Mesmo assim, foi sábio o suficiente para caucionar contra a ilusão de um conhecimento total: “Na realidade, nada sabemos; pois a verdade esconde-se nas profundezas.”(Demócrito, Fragmento 40, mencionado em Graham, Texts of Early Greek Philosophy, p. 597) Por volta de 300 a.C., Epicuro retomou as ideias atomistas com força renovada, refinando os ensinamentos de seus antecessores. Sugeriu que átomos fossem absolutamente indivisíveis e que uma enorme variedade de formas fossem derivadas de suas combinações (semelhantes às moléculas modernas, também formadas de átomos): “Ademais, as partículas sólidas e indivisíveis de matéria, que compõem corpos variados e às quais esses corpos revertem, existem em número inconcebível para nossas mentes.”(Epicuro, Letter to Herodotus l, pp. 85-7, ) Mais surpreendente ainda é sua noção de múltiplos universos, ou kosmoi, aglomerados de matéria separados espacialmente: “[...] o número de mundos, alguns semelhantes ao nosso e outros distintos, é também infinito.” É possível argumentar que os mundos (kosmoi) de Epicuro são apenas outros planetas; uma leitura mais cuidadosa, entretanto, mostra que ele considera um universo fechado — ou ao menos o que hoje chamaríamos de galáxia, separado do resto por um vazio espacial: “Um mundo (kosmos) é uma porção circunscrita do universo que contém estrelas, terra e todas as outras coisas visíveis, separado do infinito e terminando em uma porção exterior que pode tanto girar quanto estar em repouso, podendo ser redonda, triangular ou ter qualquer outra forma.”(Epicurus Letter to Pythocles l, pp. 32-4, ) A noção de universos-ilha, e possivelmente até do multiverso, é bem mais antiga do que se supõe. Mesmo que os átomos dos gregos sejam muito diferentes dos seus herdeiros de hoje, a descrição da matéria como constituída de blocos indivisíveis (o que chamamos de partículas elementares) continua sendo o conceito-chave da física do muito pequeno. Apesar de seu triunfo atual, a ideia atomista passou por muitos altos e baixos no decorrer da história do conhecimento, quase que desaparecendo durante a Idade Média. A situação começou a mudar de fato apenas durante a Renascença, quando alguns dos textos essenciais dos atomistas — em particular, o poema Da natureza das coisas, do poeta romano Lucrécio — foram resgatados das estantes empoeiradas de monastérios e de coleções privadas nos confins da Europa. Como reconta Steven Greenblatt em seu excelente A virada, devemos a ressurgência do atomismo e do materialismo ao intrépido caçador de manuscritos do século XV Poggio Bracciolini, que encontrou uma cópia do manuscrito de Lucrécio em meio a pilhas de papiros esquecidos em um monastério na Alemanha. Apesar da amnésia generalizada, alguns mantiveram vivas as ideias dos atomistas, mesmo discretamente. Não tanto como seguidores da tradição dialética dos gregos, mas como praticantes, que tentaram revelar os segredos da matéria através de incontáveis destilações, filtragens e misturas. Nenhum relato das várias tentativas de desvendar os mistérios da Natureza no decorrer da história seria completo sem uma discussão da alquimia, de seu papel crucial no desenvolvimento da ciência e da sua influência marcante em alguns dos seus patriarcas mais celebrados, como Robert Boyle e Isaac Newton. A alquimia representa uma ponte entre o velho e o novo, uma implementação de crenças filosóficas e espirituais na prática científica. Seus conceitos centrais — de que a purificação da matéria e do espírito eram inseparáveis e que as mesmas regras e leis funcionavam no céu e na Terra — inspiraram algumas das mentes mais criativas da história (e, inevitavelmente, uma longa lista de charlatões) a estudar a natureza e a composição da matéria e das suas transformações. Ao tentarem expandir o conhecimento das propriedades fundamentais da matéria e da nossa relação com o cosmos, os físicos modernos continuam uma trilha aberta pelos alquimistas de séculos atrás. (Gleiser, Marcelo - A ilha do conhecimento: os limites da ciência e a busca por sentido)
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