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HERACLITO

por Thynus, em 04.12.14
 
O último e o mais famoso dos primeiros filósofos jónios foi Heraclito, que viveu no princípio do século V na grande metrópole de Éfeso, onde mais tarde S. Paulo viria a pregar, a residir e a ser perseguido. A cidade, quer no tempo de Heraclito quer no tempo de S. Paulo, era dominada pelo grande templo da deusa da fertilidade, Artemisa. Heraclito denunciou o culto praticado no templo: rezar a estátuas era como sussurrar mexericos a uma casa vazia, e oferecer sacrifícios para nos purificarmos do pecado era como tentar lavar a lama com lama. Visitava o templo de tempos a tempos, mas só para jogar aos dados com as crianças dali — uma companhia muito melhor do que a dos políticos, dizia, recusando-se a desempenhar qualquer papel na política da cidade. Foi também no templo de Artemisa que Heraclito depositou o seu tratado em três tomos sobre filosofia e política, uma obra, hoje perdida, notoriamente difícil — tão enigmática que algumas pessoas a tomaram como um texto de física e outras como um tratado político. («O que dela consigo compreender é excelente», disse Sócrates mais tarde, «o que não consigo compreender pode muito bem ser também excelente; mas só um mergulhador do mar alto poderá chegar- lhe ao fundo.»)
Nesse livro Heraclito falava de uma grande Palavra, ou Logos, sempre subsistente e de acordo com a qual todas as coisas se originam. Escrevia de modo paradoxal, afirmando que o universo é simultaneamente divisível e indivisível, gerado e não gerado, mortal e imortal, Palavra e Eternidade, Pai e Filho, Deus e Justiça. Não admira que toda a gente, como ele se queixava, achasse o seu Logos consideravelmente incompreensível.
Se Xenófanes, com o seu estilo de argumentação, era semelhante aos filósofos profissionais modernos, Heraclito estava muito mais de acordo com a ideia popular moderna do filósofo como guru. Heraclito não tinha senão desprezo pelos seus predecessores filosóficos. Muito estudo, dizia, não nos ensina a ser homens sensatos; caso contrário, teria feito de Hesíodo, Pitágoras e Xenófanes homens sensatos. Heraclito não argumentava, proferia: era um mestre das máximas fecundas de ar profundo e sentido obscuro. O seu estilo délfico era talvez uma imitação do oráculo de Apolo que, nas suas próprias palavras, «nem fala, nem esconde, mas manifesta-se por sinais». Os seguintes adágios contam-se entre os mais bem conhecidos de Heraclito:
O caminho a subir e a descer é um e o mesmo.
A harmonia oculta é melhor do que a manifesta.
A guerra é pai de todos e de todos é soberana; a uns apresenta-os como deuses e a outros como homens; de uns ela faz escravos, de outros homens livres.
Uma alma seca é mais sábia e melhor.
Para as almas, tornar-se água é a morte.
Um ébrio é um homem conduzido por um rapaz.
Os deuses são mortais, os seres humanos imortais, vivendo a sua morte, morrendo a sua vida.
A alma é uma aranha e o corpo é a sua teia.
Heraclito explicava assim a última observação: tal como uma aranha, no meio de uma teia, se dá conta assim que uma mosca quebra um dos seus fios e de longe se precipita como se estivesse em aflição, também a alma humana, se alguma parte do corpo está magoado, se precipita imediatamente para aí, como se não conseguisse suportar a injúria. Mas, se a alma é uma aranha diligente, também é, segundo Heraclito, uma centelha da substância das ígneas estrelas.
Na cosmologia de Heraclito, o fogo desempenha o papel que a água tinha em Tales e o ar em Anaxímenes. O mundo é um fogo sempre ardente: todas as coisas vêm do fogo e vão para o fogo; «todas as coisas se podem trocar pelo fogo, como os bens se trocam por ouro e o ouro por bens». Há um caminho descendente, no qual o fogo se transforma em água e a água em terra, e um caminho ascendente, no qual a terra se transforma em água, a água em ar e o ar em fogo. A morte da terra é tornar-se água, a morte da água é tornar-se ar e a morte do ar é tornar-se fogo. Há um único mundo, o mesmo para todos, e não foi Deus nem o homem que o fizeram; sempre existiu e sempre existirá,
passando, de acordo com ciclos determinados pelo destino, por uma fase de inflamação, que é a guerra, e uma de combustão, que é a paz.
A visão de Heraclito da transmutação dos elementos num fogo sempre ardente conquistou a imaginação dos poetas até aos nossos dias. T. S. Eliot, em Quatro Quartetos, decidiu glosar a afirmação de Heraclito de que a água era a morte da terra:
Há inundação e seca
Por sobre os olhos e na boca,
Águas mortas e mortos areais
Que pela primazia guerreais.
O solo, ressequido e desventrado,
Fica de boca aberta pelo labor anulado
E ri-se sem alegria nesse exercício
— Que é da terra o final exício.
 
Gerard Manley Hopkins escreveu um poema intitulado «Que a Natureza é um Fogo Heracliteano», repleto de imagens provenientes de Heraclito:
Milhões atestados, consome-se a grande fogueira da natureza.
Mas extinto o mais formoso e mais querido, a centelha mais sua,
O homem, e o éctipo de fogo deste, a sua presença no espírito, desaparece
ligeiro!
Ambos estão num insondável, tudo está num sombrio enorme
Submergido. Oh! mágoa e indignação! Aparição humana, que refulgiu
Desapareceu, disjungida, uma estrela, a morte invade com o oblívio...
Perante esta situação, Hopkins busca conforto na promessa de uma ressurreição final — uma doutrina cristã, claro, mas uma doutrina que conhece a sua antecipação numa passagem de Heraclito que fala de seres humanos que regressam e se tornam guardiães vigilantes dos vivos e dos mortos. «O fogo», disse Heraclito, «virá e julgará e condenará todas as coisas.»
O aspecto dos ensinamentos de Heraclito que mais impressionou os filósofos no mundo antigo não foi tanto a visão do mundo como uma fogueira, mas antes o corolário segundo o qual tudo no mundo estava num estado de constante mudança e fluxo. Tudo passa, disse Heraclito, e nada permanece; o mundo é como um curso de água corrente. As águas que vemos perante nós, nas margens de um rio, não são as mesmas em dois momentos distintos, e não podemos banhar os nossos pés duas vezes nas mesmas águas. Até aqui, tudo bem; mas Heraclito foi mais longe e afirmou que nem sequer podemos entrar duas vezes no mesmo rio. Isto parece falso, quer seja tomado literalmente, quer seja tomado alegoricamente; mas, como veremos, esta ideia foi extremamente influente na filosofia grega posterior.


(Anthony Kenny - História Concisa da Filosofia Ocidental)
 

publicado às 14:36

“Os velhos mestres repudiam o realismo.”
Otto Maria Carpeaux
 
É urgente sobrevivermos ao ridículo do mundo contemporâneo. E, para sobreviver a ele, devemos desprezá-lo de alguma forma, como dizia o mestre Carpeaux (maior intelectual que já viveu entre nós no Brasil) acerca do realismo. Segundo ele, como cito na abertura deste capítulo, os grandes mestres repudiam o realismo. A verdadeira sabedoria passa, em algum momento, pelo desprezo do mundo a sua volta.
Em mil anos seremos esquecidos. Nossa época não ocupará mais do que um parágrafo nos livros de História no futuro. Passarão da bomba atômica – que verão com bons olhos porque terão recuperado a consciência dos verdadeiros riscos do mundo (sem a bomba atômica a guerra no Japão teria durado, no mínimo, mais um ano e mais gente teria morrido; só os idiotas da paz não entendem isso), ao contrário de nós, que nos afogamos em mimos de gente rica e chique que falam de um mundo melhor enquanto tomam vinho chileno em segurança – para as grandes trevas do final do século XXI, causadas por nossas manias com saúde, luxo, alimentação, sexualidade (aquilo que os picaretas das Ciências Humanas chamam de “gênero”), opções sexuais, democracia, direitos humanos, liberdade e narcisismo. A Idade Média perderá seu título de era das trevas e nós receberemos essa maldição. Lembrarão de nós como mimados, ressentidos e covardes. Rirão de nosso apego ao voto democrático e de nossa fé em manifestações do povo. Ouvirão falar vagamente de nossas redes sociais e de nossa crença em seu potencial revolucionário, como hoje ouvimos falar, com desdém, da crença antiga no poder de se ler o futuro nas entranhas dos animais. Aliás, a própria ideia de revolução será vista como uma forma de animismo. Levarão mais a sério os gregos, romanos e hebreus, porque verão neles povos que buscavam o conhecimento, e não suas próprias imagens no rosto do universo.
Uma agenda para o contemporâneo é um ato de coragem. Sua missão é nos fazer ver quem somos numa época afogada em narcisismo. Assim como quem atravessa o deserto, sem água e comida, alguns de nós, contemporâneos, que não desistimos do fardo animal de nossa consciência, apontaremos o dedo indicador em direção ao horizonte, acreditando que pensar, trabalhar, falar e escrever ainda são as melhores formas de resistir ao nosso abandono na Terra. Continuaremos a retirar o sentido das pedras, como antes de nós faziam nossos patriarcas pré-históricos, porque ele não habita nenhum outro espaço a não ser o das nossas entranhas. Ofereço esta agenda a todos que, como eu, estão fugindo das modas de um mundo viciado em seus ridículos fantasmas de sucesso. Assim como Freud traiu nossa falsa inocência infantil, pretendo trair nossa mediocridade.
 
(Luiz Felipe de Cerqueira e Silva Pondé - A Era do Ressentimento)

publicado às 17:02


A função da filosofia

por Thynus, em 01.12.14
"Se me pedissem para mencionar a data mais importante da História e da Pré-história da raça humana, eu responderia sem a mínima hesitação: o dia 6 de agosto de 1945. A razão é simples. 
Desde o alvorecer da consciência até o dia 6 de agosto de 1945, o homem precisou conviver
 com a perspectiva de sua morte como indivíduo. A partir do dia em que a primeira 
bomba atômica sobrepujou o brilho do Sol em Hiroshima, a humanidade, como um todo, deve conviver com a perspectiva de sua extinção como espécie."
 (Arthur Koestler.)

"A humanidade inteira, se continuar a viver, não será simplesmente porque nasceu, mas porque terá decidido prolongar sua vida. Não mais existe espécie humana. A comunidade que se fez guardiã da bomba atômica está acima do reino natural, porque é responsável por sua vida e por sua morte; a cada dia, a cada minuto, será preciso que consinta em viver. Eis o que experimentamos hoje, na angústia. Nosso mundo é uno. Mas é um mundo dilacerado. Este mundo é uno porque o desenvolvimento da técnica e da produção engendrou um mercado mundial, a economia de um mundo fechado no qual o destino de cada homem depende de fato Econômica, política, moralmente, do de todos os outros.
Política, moralmente, a vida cotidiana de cada homem sofre a ressaca das mais longínquas: na Bolsa de Nova York, uma manifestação em Tóquio, um plano econômico em Moscou, uma revolta na África ou na Ásia. As crises tornaram-se mundiais, as guerras também.
Mas esta interdependência universal não é uma solidariedade universal. Está feita de contradições e conflitos. A universalidade só se exprime concretamente porque, doravante, todas as lutas se desenvolvem em escala planetária: as lutas de classe, as lutas nacionais, as lutas ideológicas.
Nenhum conflito tem caráter regional. Nenhuma responsabilidade tem caráter limitado. Nenhuma liberdade é solitária. De direito, estamos todos implicados na grande contestação do mundo. A história o quis assim. Estamos aí e não podemos fazer de outro modo. A responsabilidade é pessoal, ninguém pode furtar-se a ela."

(Roger Garaudy)

Uma das funções da filosofia é analisar os fundamentos da ciência. O próprio cientista já está na verdade colocando questões propriamente filosóficas quando se pergunta em que consiste o conhecimento cientifico, qual o seu alcance, qual a validade do método que utiliza e qual é sua responsabilidade no que se refere às conseqüências das descobertas. Por isso é importante que o cientista se disponha a filosofar, a fim de investigar os pressupostos e as implicações do seu saber. Além disso, a filosofia busca recuperar a visão de totalidade, perdida diante da multiplicação das ciências particulares e da valorização do mundo dos "especialistas". É a filosofia que, diante do saber e do poder, avalia se estes estão a serviço do homem ou contra ele, isto é, se servem para seu crescimento espiritual ou se o degradam, se contribuem para a liberdade ou para a dominação. O sono da razão desperta monstros (1799), de Francisco de Goya. A razão precisa estar desperta para identificar se os fins da ciência e da técnica estão a serviço da humanização ou da alienação. Assim, é preciso questionar a ideologia do progresso que justifica as ilusões e preconceitos do homem "civilizado" por este se julgar superior a qualquer outro. Não é em nome do progresso que as tribos indígenas têm sido sistematicamente expulsas dos seus territórios? E não seria o caso de perguntar quais são os valores do homem "urbano e civilizado" que é individualista, sofre de solidão e tem sido vítima dos descontroles do progresso, como a poluição ambiental? Diante de tais questões, não há como sustentar a neutralidade da ciência. A bomba atômica não pode ser considerada apenas como resultado do saber sobre a energia atômica, nem como simples técnica de produzir explosão. Trata-se de um saber e de uma técnica que dizem respeito à vida e à morte de seres humanos. Como tal, cabe ao cientista a responsabilidade social de indagar a respeito dos fins a que se destinam suas descobertas. E não é possível alegar isenção, uma vez que a produção científica não se realiza fora de um determinado contexto social e político cujos objetivos a serem alcançados estão claramente definidos. As altas cifras necessárias ao encaminhamento das pesquisas supõem o apoio financeiro das instituições públicas e privadas, que evidentemente subvencionam os trabalhos que mais lhes interessam. Pode-se falar que, por muito tempo, houve uma "indústria da guerra" alimentando a "corrida armamentista" e exigindo o constante desenvolvimento da ciência e tecnologia no campo militar. O papel da filosofia consiste, portanto, em analisar as condições em que se realizam as pesquisas científicas, investigar os fins e as prioridades a que a ciência se propõe, bem como avaliar as conseqüências das técnicas utilizadas. Resta lembrar que, no desempenho desse papel, o filósofo não tem respostas prontas, nem um saber acabado. Não caberia ao filósofo nortear, de forma onipotente, os rumos da ciência. A filosofia deve caminhar ao lado dos cientistas e dos técnicos a fim de que a abordagem específica que ela é capaz de fazer os auxilie a não perder de vista que a ciência e a técnica são apenas meios, e devem estar a serviço da humanidade.

(MARIA LÚCIA DE ARRUDA ARANHA, MARIA HELENA PIRES MARTINS - TEMAS DE
FILOSOFIA)

publicado às 17:01

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