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GENEALOGIA DO FANATISMO

por Thynus, em 28.12.14
 
"Os homens nunca fazem o mal tão plenamente 
e com tanto entusiasmo 
como quando o fazem por convicção religiosa".
(Blaise Pascal)
 
"Deus matou 2.270.365 pessoas e o diabo 10".
(Elias Ramos - 101 CURIOSIDADES sobre a Bíblia Sagrada)
 
Não queremos mais suportar o peso das
“verdades”, continuar sendo suas vítimas ou
seus cúmplices. Sonho com um mundo em
que se morreria por uma vírgula.

(Emil Cioran - Silogismos da Amargura)
 
A intolerância é intrínseca apenas ao monoteísmo: um deus único é, por natureza,
um deus ciumento, que não tolera nenhum outro além dele mesmo.

(Arthur Schopenhauer - A ARTE DE INSULTAR)  
 

O diabo empalidece comparado a quem dispõe de uma verdade, de sua verdade
 
Em si mesma, toda ideia é neutra ou deveria sê-lo; mas o homem a anima, projeta nela suas chamas e suas demências; impura, transformada em crença, insere-se no tempo, toma a forma de acontecimento: a passagem da lógica à epilepsia está consumada... Assim nascem as ideologias, as doutrinas e as farsas sangrentas.
Idólatras por instinto, convertemos em incondicionados os objetos de nossos sonhos e de nossos interesses. A história não passa de um desfile de falsos Absolutos, uma sucessão de templos elevados a pretextos, um aviltamento do espírito ante o Improvável. Mesmo quando se afasta da religião, o homem permanece submetido a ela; esgotando-se em forjar simulacros de deuses, adota-os depois febrilmente: sua necessidade de ficção, de mitologia, triunfa sobre a evidência e o ridículo. Sua capacidade de adorar é responsável por todos os seus crimes: o que ama indevidamente um deus obriga os outros a amá-lo, na espera de exterminá-los se se recusam. Não há intolerância, intransigência ideológica ou proselitismo que não revelem o fundo bestial do entusiasmo. Que perca o homem sua faculdade de indiferença: torna-se um assassino virtual; que transforme sua ideia em deus: as consequências são incalculáveis. Só se mata em nome de um deus ou de seus sucedâneos: os excessos suscitados pela deusa Razão, pela ideia de nação, de classe ou de raça são parentes dos da Inquisição ou da Reforma. As épocas de fervor se distinguem pelas façanhas sanguinárias. Santa Teresa só podia ser contemporânea dos autos de fé e Lutero do massacre dos camponeses. Nas crises místicas, os gemidos das vítimas são paralelos aos gemidos do êxtase... patíbulos, calabouços e masmorras só prosperam à sombra de uma fé – dessa necessidade de crer que infestou o espírito para sempre. O diabo empalidece comparado a quem dispõe de uma verdade, de sua verdade. Somos injustos com os Neros ou com os Tibérios: eles não inventaram o conceito de herético: foram apenas sonhadores degenerados que se divertiam com os massacres. Os verdadeiros criminosos são os que estabelecem uma ortodoxia no plano religioso ou político, os que distinguem entre o fiel e o cismático.
No momento em que nos recusamos a admitir o caráter intercambiável das ideias, o sangue corre... Sob as resoluções firmes ergue-se um punhal; os olhos inflamados pressagiam o crime. Jamais o espírito hesitante, afligido pelo hamletismo, foi pernicioso: o princípio do mal reside na tensão da vontade, na inaptidão para o quietismo, na megalomania prometeica de uma raça que se arrebenta de tanto ideal, que explode sob suas convicções e que, por haver-se comprazido em depreciar a dúvida e a preguiça – vícios mais nobres do que todas as suas virtudes –, embrenhou-se em uma via de perdição, na história, nesta mescla indecente de banalidade e apocalipse... Nela as certezas abundam: suprima-as e suprimirá sobretudo suas consequências: reconstituirá o paraíso. O que é a Queda senão a busca de uma verdade e a certeza de havê-la encontrado, a paixão por um dogma, o estabelecimento de um dogma? Disso resulta o fanatismo – tara capital que dá ao homem o gosto pela eficácia, pela profecia e pelo terror –, lepra lírica que contamina as almas, as submete, as tritura ou as exalta... Só escapam a ela os céticos (ou os preguiçosos e os estetas), porque não propõem nada, porque – verdadeiros benfeitores da humanidade – destroem os preconceitos e analisam o delírio. Sinto-me mais seguro junto de um Pirro do que de um São Paulo, pela razão de que uma sabedoria de boutades é mais doce do que uma santidade desenfreada. Em um espírito ardente encontramos o animal de rapina disfarçado; não poderíamos defender-nos demasiado das garras de um profeta... Quando elevar a voz, seja em nome do céu, da cidade ou de outros pretextos, afaste-se dele: sátiro de nossa solidão, não perdoa que vivamos aquém de suas verdades e de seus arrebatamentos; quer fazer-nos compartilhar de sua histeria, de seu bem, impô-la a nós e desfigurar-nos. Um ser possuído por uma crença e que não procurasse comunicá-la aos outros é um fenômeno estranho à terra, onde a obsessão da salvação torna a vida irrespirável. Olhe à sua volta: por toda parte larvas que pregam: cada instituição traduz uma missão; as prefeituras têm seu absoluto como os templos: a administração, com seus regulamentos – metafísica para uso de macacos... Todos se esforçam por remediar a vida de todos; aspiram a isso até os mendigos, inclusive os incuráveis: as calçadas do mundo e os hospitais transbordam de reformadores. A ânsia de tornar-se fonte de acontecimentos atua sobre cada um como uma desordem mental ou uma maldição intencional. A sociedade é um inferno de salvadores! O que Diógenes buscava com sua lanterna era um indiferente.
Basta-me ouvir alguém falar sinceramente de ideal, de futuro, de filosofia, ouvi-lo dizer “nós” com um tom de segurança, invocar os “outros” e sentir-se seu intérprete, para que o considere meu inimigo. Vejo nele um tirano fracassado, quase um carrasco, tão odioso quanto os tiranos e os carrascos de alta classe. É que toda fé exerce uma forma de terror, ainda mais temível quando os “puros” são seus agentes. Suspeita-se dos espertos, dos velhacos, dos farsantes; no entanto, não poderíamos atribuir-lhes nenhuma das grandes convulsões da história: não acreditando em nada, não vasculham nossos corações, nem nossos pensamentos mais íntimos; abandonam-nos à nossa indolência, ao nosso desespero ou à nossa inutilidade; a humanidade deve a eles os poucos momentos de prosperidade que conheceu: são eles que salvam os povos que os fanáticos torturam e que os “idealistas” arruínam. Sem doutrinas, só possuem caprichos e interesses, vícios complacentes, mil vezes mais suportáveis que os estragos provocados pelo despotismo dos princípios; porque todos os males da vida provêm de uma “concepção da vida”. Um homem político completo deveria aprofundar-se nos sofistas antigos e tomar aulas de canto; e de corrupção...
O fanático é incorruptível: se mata por uma ideia, pode igualmente morrer por ela; nos dois casos, tirano ou mártir, é um monstro. Não existem seres mais perigosos do que os que sofreram por uma crença: os grandes perseguidores se recrutam entre os mártires cuja cabeça não foi cortada. Longe de diminuir o apetite de poder, o sofrimento o exaspera; por isso o espírito sente-se mais à vontade na companhia de um fanfarrão do que na de um mártir; e nada o repugna tanto como este espetáculo onde se morre por uma ideia... Farto do sublime e de carnificinas, sonha com um tédio provinciano em escala universal, com uma História cuja estagnação seria tal que a dúvida representaria um acontecimento e a esperança, uma calamidade...

(EMIL CIORAN - BREVIÁRIO DE DECOMPOSIÇÃO)

publicado às 15:44


A NEGATIVA DE PROCRIAR

por Thynus, em 26.12.14
Aquele que, havendo gasto seus apetites, aproxima-se de uma forma limite de desapego, já não quer perpetuar-se; detesta sobreviver em outro, ao qual de resto não teria mais nada a transmitir; a espécie o apavora; é um monstro e os monstros não engendram. O “amor” o cativa ainda: aberração entre seus pensamentos. Busca um pretexto para retomar a condição comum; mas o filho lhe parece inconcebível, como a família, a hereditariedade, as leis da natureza. Sem profissão nem progenitura, cumpre – última hipóstase – seu próprio acabamento. Mas por afastado que esteja da fecundidade, um monstro mais audacioso o supera: o santo, exemplar ao mesmo tempo fascinante e repulsivo, em relação ao qual sempre se está a meio caminho e em uma posição falsa; a sua, pelo menos, é clara: já não há jogo possível, nem diletantismo. Alçado aos cumes dourados de suas repugnâncias, às antípodas da Criação, faz de seu nada uma auréola. A natureza jamais conheceu tamanha calamidade: do ponto de vista da perpetuação, marca um fim absoluto, um desenlace radical. Entristecer-se, como Léon Bloy, porque não somos santos é desejar o desaparecimento da humanidade... em nome da fé! Como parece positivo, ao contrário, o diabo, já que, obrigando-nos a fixar-nos em nossas imperfeições, trabalha involuntariamente, e traindo sua essência – para conservar-nos! Destrua os pecados: a vida murcha bruscamente. As loucuras da procriação desaparecerão um dia, mais por cansaço do que por santidade. O homem se esgotará menos por haver buscado a perfeição do que por haver-se dissipado; parecerá então um santo vazio e estará tão distante da fecundidade da natureza como o está esse modelo de acabamento e de esterilidade.
O homem só engendra se permanece fiel ao destino geral. Se se aproxima da essência do demônio ou do anjo, torna-se estéril ou procria abortos. Para Raskolnikov, para Ivan Karamazov ou Stavroguin, o amor é apenas um pretexto para acelerar sua perdição; e mesmo tal pretexto desvanece-se para Kirilov: já não se mede com os homens, mas com Deus. Quanto ao Idiota ou a Aliocha, o fato de que um imite Jesus e o outro os anjos coloca-os de saída entre os impotentes...
Mas, arrancar-se da cadeia dos seres e recusar a ideia de ascendência ou de posteridade não é, contudo, rivalizar com o santo, cujo orgulho excede toda dimensão terrestre. Na realidade, sob a decisão pela qual se renuncia a tudo, sob a incomensurável façanha desta humildade, oculta-se uma efervescência demoníaca: o ponto inicial, o botão de partida da santidade toma a forma de um desafio lançado ao gênero humano; depois, o santo sobe a escada da perfeição, começa a falar de amor, de Deus, volta-se para os humildes, intriga as massas – e nos irrita. Mas não deixa de nos haver lançado um desafio... O ódio à “espécie” e a seu “gênio” os aparenta aos assassinos, aos dementes, às divindades, e a todos os grandes estéreis. A partir de um certo grau de solidão, seria preciso deixar de amar e de cometer a fascinante desonra da cópula. Quem quer perpetuar-se a todo custo mal se distingue do cão: ainda é natureza; não compreenderá jamais que se possa sofrer o império dos instintos e rebelar-se contra eles, gozar das vantagens da espécie e desprezá-las: um fim de raça – com apetites. Este é o conflito de quem adora e abomina a mulher, extremamente indeciso entre a atração e o nojo que ela inspira. Por isso – não conseguindo renegar totalmente a espécie – resolve esse conflito sonhando, sobre os seios, com o deserto e mesclando um perfume claustral ao odor de suores demasiado concretos. As insinceridades da carne o aproximam dos santos...
Solidão do ódio... Sensação de um deus voltado para a destruição, pisoteando as esferas, babando sobre o céu e sobre as constelações.... de um deus frenético, sujo e malsão; um demiurgo ejaculando, através do espaço, paraísos e latrinas: cosmogonia de delirium tremens; apoteose convulsiva em que o fel coroa os elementos... As criaturas se lançam na direção de um arquétipo de fealdade e suspiram por um ideal de deformidade... Universo da careta, júbilo da toupeira, da hiena e do piolho... Nenhum horizonte mais, salvo para os monstros e para os vermes. Tudo se encaminha para o repulsivo e para o gangrenoso: este globo que supura enquanto que os viventes mostram suas feridas sob os raios do cancro luminoso.

(EMIL CIORAN - BREVIÁRIO DE DECOMPOSIÇÃO)

publicado às 12:40


DEFESA DA CORRUPÇÃO

por Thynus, em 26.12.14
Se se pusesse em um prato da balança o mal que os “puros” espalharam sobre o mundo e no outro o mal proveniente dos homens sem princípios e sem escrúpulos, é o primeiro prato que inclinaria a balança. No espírito que a propõe, toda fórmula de salvação erige uma guilhotina... Os desastres das épocas corrompidas têm menos gravidade do que os flagelos causados pelas épocas ardentes; a lama é mais agradável que o sangue; há mais suavidade no vício que na virtude, mais humanidade na depravação que no rigorismo. O homem que reina e não crê em nada, eis o modelo de um paraíso da decadência, de uma soberana solução da história. Os oportunistas salvaram os povos; os heróis os arruinaram. Devemos sentir-nos contemporâneos, não da Revolução e de Bonaparte, mas de Fouché e de Talleyrand: faltou à versatilidade destes apenas um suplemento de tristeza para que nos sugerissem com seus atos uma Arte de viver.
Às épocas dissolutas cabe o mérito de haver desnudado a essência da vida, de nos haver revelado que tudo não passa de farsa ou amargura, e que nenhum acontecimento merece ser embelezado, já que é necessariamente execrável. A mentira enfeitada das grandes épocas, de tal século, de tal rei, de tal papa... A “verdade” só é vislumbrada nos momentos em que os espíritos, esquecidos do delírio construtivo, deixam-se arrastar pela dissolução das morais, dos ideais e das crenças. Conhecer é ver; não é nem esperar nem empreender.
A estupidez que caracteriza os cumes da história só tem equivalente na inépcia de seus agentes. Se levam até o fim os atos e os pensamentos, é por uma falta de finura. Um espírito liberado tem aversão à tragédia e à apoteose: as desgraças e as palmas o exasperam tanto quanto a banalidade. Ir longe demais é dar seguramente uma prova de mau gosto. O esteta tem horror ao sangue, ao sublime e aos heróis... Só aprecia ainda os farsantes...

(EMIL CIORAN - BREVIÁRIO DE DECOMPOSIÇÃO)

publicado às 12:38


A MULHER E O ABSOLUTO

por Thynus, em 26.12.14
 
“Enquanto Nosso Senhor me falava, e eu contemplava sua maravilhosa beleza, notava a doçura e às vezes a severidade com a qual sua boca tão bela e divina proferia as palavras. Eu tinha um extremo desejo de saber qual era a cor de seus olhos e as proporções de sua estatura, a fim de poder contá-lo: mas nunca mereci ter tal conhecimento. Todo esforço para isso é inteiramente inútil.” (Santa Teresa)
A cor de seus olhos... Impurezas da santidade feminina! Manter até no céu a indiscrição de seu sexo, isto pode consolar e compensar a todos os que – e mais ainda, as que – permaneceram aquém da aventura divina. O primeiro homem, a primeira mulher: eis o fundo permanente da Queda, que nada, nem o gênio nem a santidade, resgatará jamais. Alguma vez se viu um só homem novo, totalmente superior à sua condição? Para o próprio Jesus, a Transfiguração só significou talvez um acontecimento fugaz, uma etapa sem relevância...
Entre Santa Teresa e as outras mulheres só haveria então uma diferença na capacidade de delirar, uma questão de intensidade e direção dos caprichos. O amor – humano ou divino – nivela os seres: amar uma prostituta ou amar a Deus pressupõe o mesmo movimento: nos dois casos, segue-se um impulso de criatura. Só o objeto muda; mas que interesse apresenta este, já que é apenas um pretexto da necessidade de adorar, e que Deus é somente um exutório entre tantos outros?

(CIORAN - BREVIÁRIO DE DECOMPOSIÇÃO)
 
 
 

publicado às 02:06


APOTEOSE DO VAGO

por Thynus, em 26.12.14
 
Poder-se-ia apreender a essência dos povos – mais ainda do que a dos indivíduos – por sua maneira de participar do vago. As evidências em que vivem só revelam seu caráter transitório, suas periferias, suas aparências.
O que um povo pode exprimir só tem um valor histórico: é seu êxito no devir; mas o que não pode exprimir, seu fracasso no eterno, é a sede infrutífera de si mesmo: seu esforço para esgotar-se na expressão, estando marcado pela impotência, ele o encobriu com certas palavras – alusões ao indizível...
Quantas vezes, em nossas peregrinações fora do intelecto, não descansamos nossas preocupações à sombra desses Sehnsucht, yearning, saudade, desses frutos sonoros abertos para corações maduros demais! Levantemos o véu dessas palavras: escondem um mesmo conteúdo? É possível que a mesma significação viva e morra nas ramificações verbais de um tronco do indefinido? Pode-se conceber que povos tão diversos sintam a nostalgia da mesma maneira?
Quem se empenhasse em encontrar a fórmula do mal do longínquo seria vítima de uma arquitetura mal construída. Para remontar-se à origem dessas expressões do vago, deve-se praticar uma regressão afetiva até sua essência, afogar-se no inefável e com os conceitos em farrapos. Uma vez a segurança teórica e o orgulho do inteligível, pode-se tentar compreender tudo, compreender tudo por si mesmo. Chega-se então a gozar no inexprimível, a passar os dias à margem do compreensível e a chafurdar no arrabalde do sublime. Para escapar à esterilidade, é preciso regozijar-se no limiar da razão...
Viver na espera, no que ainda não é, é aceitar o desequilíbrio estimulante que supõe a ideia de porvir. Toda nostalgia é uma superação do presente. Mesmo sob a forma de remorso, assume um caráter dinâmico: quer-se forçar o passado, agir retroativamente, protestar contra o irreversível. A vida só tem conteúdo pela violação do tempo. A obsessão do alhures é a impossibilidade do instante; e esta impossibilidade é a nostalgia mesma.
Que os franceses tenham se recusado a experimentar e sobretudo a cultivar a imperfeição do indefinido, não deixa de ter um tom revelador. Sob forma coletiva, esse mal não existe na França: o cafard não tem qualidade metafísica e o ennui está singularmente dirigido. Os franceses repudiam toda complacência para com o Possível; sua própria língua elimina toda cumplicidade com seus perigos. Há outro povo que se encontre mais à vontade no mundo, para quem o chez soi tenha mais sentido e mais peso, para quem a imanência ofereça mais atrativos?
Para desejar fundamentalmente outra coisa, é preciso estar destituído do espaço e do tempo, e viver em um mínimo de parentesco com o lugar e o momento. O que faz com que a história da França ofereça tão poucas descontinuidades, é esta fidelidade à sua essência que lisonjeia nossa inclinação à perfeição e decepciona a necessidade de inacabado que implica uma visão trágica. A única coisa contagiosa na França é a lucidez, o horror de ser enganado, de ser vítima do que quer que seja. Por isso um francês só aceita a aventura com plena consciência; quer ser enganado; vendam-se os olhos; o heroísmo inconsciente parece-lhe, com toda razão, uma falta de gosto, um sacrifício deselegante.
Mas o equívoco brutal da vida exige que predomine a todo instante o impulso, e não a vontade, de ser cadáver, de ser enganado metafisicamente.
Se os franceses sobrecarregaram de excessiva claridade a nostalgia, se lhe subtraíram certos prestígios íntimos e perigosos, a Sehnsucht, ao contrário, esgota o que há de insolúvel nos conflitos da alma alemã, dilacerada entre a Heimat e o Infinito.
Como poderia encontrar um apaziguamento? De um lado, a vontade de estar mergulhado na indivisão do coração e da terra; do outro, a de absorver sempre o espaço em um desejo insaciável. E como a extensão não oferece limites, e com ela cresce a tendência para novas vadiagens, a meta retrocede à medida que se avança. Daí, o gosto exótico, a paixão pelas viagens, o deleite pela paisagem enquanto paisagem, a falta de forma interior, a profundidade tortuosa, simultaneamente sedutora e repugnante. Não há solução para a tensão entre a Heimat e o Infinito: é estar enraizado e desenraizado ao mesmo tempo, não ter podido encontrar um compromisso entre o lar e o longínquo. O imperialismo, constante funesta em sua última essência, não é a tradução política e vulgarmente concreta da Sehnsucht?
Não seria demais insistir nas consequências históricas de certas aproximações interiores. A nostalgia é uma delas; impede-nos de repousar na existência ou no absoluto; obriga-nos a flutuar no indistinto, a perder nossas bases, a viver a descoberto no tempo.
Estar arrancado da terra, exilado na duração, cortado de suas raízes imediatas, é desejar uma reintegração nas fontes originais anteriores à separação e ao rompimento. A nostalgia é sentir-se eternamente longe de casa; e, fora das proporções luminosas do Tédio, e da postulação contraditória do Infinito e da Heimat, toma a forma de retorno ao finito, ao imediato, a um apelo terrestre e maternal. Do mesmo modo que o espírito, o coração forja utopias: e a mais estranha de todas é a de um universo natal, onde se descansa de si mesmo, um universo travesseiro cósmico de todas as nossas fadigas.
Na aspiração nostálgica não se deseja algo palpável, mas uma espécie de calor abstrato, heterogêneo ao tempo e próximo de um pressentimento paradisíaco. Tudo o que não aceita a existência como tal, avizinha-se da teologia. A nostalgia não é mais do que uma teologia sentimental, onde o Absoluto está construído com os elementos do desejo, onde Deus é o Indeterminado elaborado pela languidez.

(CIORAN - BREVIÁRIO DE DECOMPOSIÇÃO)

publicado às 01:26


EXEGESE DA DECADÊNCIA

por Thynus, em 26.12.14
 
Cada um de nós nasceu com uma dose de pureza, predestinada a ser corrompida pelo comércio com os homens, por esse pecado contra a solidão. Pois cada um de nós faz o impossível para não se ver entregue a si mesmo. O semelhante não é fatalidade, mas tentação de decadência. Incapazes de guardar nossas mãos limpas e nossos corações intactos, nos sujamos ao contato de suores estranhos, chafurdamos sedentos de nojo e entusiastas de pestilência na lama unânime. E quando sonhamos mares convertidos em água benta, é tarde demais para mergulharmos neles, e nossa corrupção demasiado profunda nos impede de afogar-nos ali: o mundo infectou nossa solidão; as marcas dos outros em nós tornam-se indeléveis.
Na escala das criaturas, só o homem pode inspirar um nojo constante. A repugnância que provoca um animal é passageira; não amadurece no pensamento, enquanto que nossos semelhantes inquietam nossas reflexões, infiltram-se no mecanismo de nosso desapego do mundo para nos confirmar em nosso sistema de recusa e de não adesão. Depois de cada conversa, cujo refinamento indica por si só o nível de uma civilização, por que é impossível não sentir saudades do Saara e não invejar as plantas ou os monólogos infinitos da zoologia?
Se com cada palavra obtemos uma vitória sobre o nada, é apenas para melhor sofrer seu domínio. Morremos em proporção às palavras que lançamos em torno de nós... Os que falam não têm segredos. E todos nós falamos; nos traímos, exibimos nosso coração; carrasco do indizível, cada um esforça-se por destruir todos os mistérios, começando pelos seus. E se encontramos os outros, é para aviltar-nos juntos em uma fuga para o vazio, seja no intercâmbio de ideias, nas confissões ou nas intrigas. A curiosidade não só provocou a primeira queda, como as inumeráveis quedas de todos os dias. A vida não é senão esta impaciência de decair, de prostituir as solidões virginais da alma pelo diálogo, negação imemorial e quotidiana do Paraíso. O homem só deveria escutar a si mesmo no êxtase sem fim do Verbo intransmissível, forjar palavras para seus próprios silêncios e acordes audíveis apenas a seus remorsos. Mas ele é o tagarela do universo; fala em nome dos outros; seu eu ama o plural. E o que fala em nome dos outros é sempre um impostor. Políticos, reformadores e todos os que reivindicam um pretexto coletivo são trapaceiros. Só a mentira do artista não é total, pois só inventa a si mesmo. Fora do abandono ao incomunicável, da suspensão no meio de nossos arrebatamentos inconsolados e mudos, a vida é apenas um estrondo sobre uma extensão sem coordenadas, e o universo uma geometria que sofre de epilepsia.
(O plural implícito de “se” e o plural confessado do “nós” constituem o refúgio confortável da existência falsa. Só o poeta assume a responsabilidade do “eu”, só ele fala em seu próprio nome, só ele tem o direito de fazê-lo. A poesia se degrada quando torna-se permeável à profecia ou à doutrina: a “missão” sufoca o canto. a ideia entrava o voo. O lado “generoso” de Shelley torna caduca a maior parte de sua obra: Shakespeare, felizmente, nunca “serviu” para nada.
O triunfo da não autenticidade tem seu acabamento na atividade filosófica, esta complacência no “se”, e na atividade profética [religiosa, moral ou política], esta apoteose do “nós”. A definição é a mentira do espírito abstrato; a fórmula inspirada, a mentira do espírito militante: uma definição encontra-se sempre na origem de um templo; uma fórmula reúne inelutavelmente os fiéis. Assim começam todos os ensinamentos.
Como não se voltar então para a poesia? Ela tem – como a vida – a desculpa de não provar nada.)

(CIORAN - BREVIÁRIO DE DECOMPOSIÇÃO)
Os cálices da Ira de Deus

publicado às 00:52

Num discurso muito duro, Francisco criticou comportamentos que subsistem na Cúria mas que nenhum Papa tinha até agora denunciado tão abertamente.


Enganaram-se os bispos e cardeais da Cúria que nesta segunda-feira entraram na ornamentada Sala Clementina esperando ouvir as tradicionais felicitações natalícias. No discurso aos dirigentes do governo central da Santa Sé, o Papa Francisco denunciou, uma por uma, 15 doenças que afligem a hierarquia da Igreja, do carreirismo, à ganância e ao “terrorismo da má-língua”.
Francisco denunciou com uma severidade inédita as tramas e os métodos daquela que é, desde Março de 2013, a sua “corte”, numa intervenção temperada com palavras de incentivo e até algum bom humor. Mas quem assistiu ao discurso, que o correspondente da AFP descreveu como “um banho de água fria”, diz que na sala se viram muitos rostos fechados e tensos. A atmosfera contrastou com a informalidade da audiência seguinte, quando familiares e funcionários do Vaticano encheram o auditório Paulo VI e ouviram o Papa elogiar os homens e mulheres “invisíveis” que garantem o funcionamento da cidade e da sua administração.
Uma forma de agir que já se tornou habitual no Papa argentino – que no dia do seu aniversário almoçou com os trabalhadores da residência de Santa Marta e mandou distribuir 400 sacos-cama pelos sem-abrigo de Roma –, mas que promete ressoar muito tempo pelos corredores do Palácio Apostólico, tal a dureza das palavras proferidas. Andrea Tornielli, vaticanista do La Stampa, sublinha que em nenhum momento Francisco referiu nomes e fez questão de dizer que os pecados que trazia listados “são um perigo natural para cada cristão, cada cúria, cada comunidade”. “No entanto, identificou-os claramente como estando presentes no ambiente que o rodeia há 21 meses”, escreveu o jornalista, numa alusão às notícias sobre o clima de conspiração e à oposição cada vez mais audível de alguns sectores do Vaticano às reformas que pôs em marcha na Cúria.
Em vésperas de Natal, o Papa convidou os cardeais a fazerem um “verdadeiro exame de consciência”, pedindo perdão a Deus, “Ele que nasceu na pobreza numa caverna em Belém para ensinar a humildade” e foi acolhido “não pelos eleitos”, mas pelos “pobres e simples”. Ao contrário, afirmou, a Igreja de hoje padece de “infidelidades” ao evangelho e está ameaçada por doenças que é urgente “tratar”.
Numa lista exaustiva, Francisco fez o diagnóstico de 15 enfermidades, descreveu sintomas e apresentou remédios, de uma forma “tão lúcida e conhecedora do assunto em causa que voltou a abalar o estereótipo de um latino-americano que não está habituado às ‘complexidades’ de Roma e da Europa, o argumento que os seus críticos tentaram usar para o neutralizar”, escreve o site Vatican Insider.
Criticou os que ficam demasiado presos à burocracia, os que recusando abandonar as suas tarefas “se esquecem que o mais importante é sentar-se aos pés de Jesus”, ou aqueles que, pelo cargo que atingiram se julgam essenciais e a quem convidou a visitarem os cemitérios “onde estão tantas pessoas que se consideravam indispensáveis”. Foi mais duro, quando denunciou o “Alzheimer espiritual” dos que se afastaram de Deus e “vivem dependentes das suas paixões, caprichos ou obsessões”, ou quando criticou os que se tornaram “vítimas do carreirismo e do oportunismo”, os que protegem os interesses de um círculo fechado e os que “tentam preencher o seu vazio existencial arrebanhando bens materiais”.
Denunciou uma vez mais a cultura da má-língua, mas com palavras duríssimas para um Papa: trata-se, afirmou, da  “doença dos cobardes”, dos “semeadores da discórdia” e “assassinos a sangue-frio” da reputação dos seus irmãos. “Tende cuidado com o terrorismo da má-língua”, afirmou, antes de exortar os presentes a trabalharem pela unidade da Igreja.
Para temperar o duro sermão, Papa terminou com uma nota de bom humor – recordou ter lido algures que “os padres são como os aviões, só são notícia quando caem” – e pediu a todos que mantenham no seu ministério uma boa dose de “auto-ironia e sentido das limitações”. Mas, no final ouviu-se apenas um aplauso tépido e o ambiente continuou pesado mesmo quando Francisco saudou um a um os cardeais para, por fim, lhes desejar Feliz natal.

(Ana Fonseca Pereira)
 
 
O discurso integral proferido pelo Papa à Cúria Romana em 22 de dezembro de 2014:


“Tu estás acima dos querubins, tu que transformaste a miserável condição do mundo quando te fizeste como nós” (Santo Agostinho).
 

Amados irmãos,

Ao final do Advento, encontramo-nos para as tradicionais saudações. Dentro de alguns dias teremos a alegria de celebrar o Natal do Senhor; o evento de Deus que se faz homem para salvar os homens; a manifestação do amor de Deus que não se limita a dar-nos algo ou a enviar-nos uma mensagem ou alguns mensageiros, doa-se-nos a si mesmo; o mistério de Deus que toma sobre si a nossa condição humana e os nossos pecados para revelar-nos a sua Vida divina, a sua graça imensa e o seu perdão gratuito. É o encontro com Deus que nasce na pobreza da gruta de Belém para ensinar-nos a potência da humildade. Na realidade, o Natal é também a festa da luz que não é acolhida pela gente “eleita”, mas pela gente pobre e simples que esperava a salvação do Senhor.
Em primeiro lugar, gostaria de desejar a todos vós – cooperadores, irmãos e irmãs, Representantes pontifícios disseminados pelo mundo – e a todos os vossos entes queridos um santo Natal e um feliz Ano Novo. Desejo agradecer-vos cordialmente, pelo vosso compromisso quotidiano ao serviço da Santa Sé, da Igreja Católica, das Igrejas particulares e do Sucessor de Pedro.
Como somos pessoas e não números ou somente denominações, lembro de maneira especial os que, durante este ano, terminaram o seu serviço por terem chegado ao limite de idade ou por terem assumido outras funções ou ainda porque foram chamados à Casa do Pai. Também a todos eles e aos seus familiares dirijo o meu pensamento e gratidão.
Desejo juntamente convosco erguer ao Senhor vivo e sentido agradecimento pelo ano que está a nos deixar, pelos acontecimentos vividos e por todo o bem que Ele quis generosamente realizar mediante o serviço da Santa Sé, pedindo-lhe humildemente perdão pelas faltas cometidas “por pensamentos, palavras, obras e omissões”.
E partindo precisamente deste pedido de perdão, desejaria que este nosso encontro e as reflexões que partilharei convosco se tornassem, para todos nós, apoio e estímulo a um verdadeiro exame de consciência a fim de preparar o nosso coração ao Santo Natal.
Pensando neste nosso encontro veio-me à mente a imagem da Igreja como Corpo místico de Jesus Cristo. É uma expressão que, como explicou o Papa Pio XII “brota e como que germina do que é frequentemente exposto na Sagrada Escritura e nos Santos Padres”. A este respeito, São Paulo escreveu: “Porque, como o corpo é um todo tendo muitos membros e todos os membros do corpo, embora muitos, formam um só corpo, assim também é Cristo” (1 Cor 12,12).
Neste sentido, o Concílio Vaticano II lembra-nos que “na edificação do Corpo de Cristo há diversidade de membros e de funções. Um só é o Espírito que, para utilidade da Igreja, distribui os seus vários dons segundo as suas riquezas e as necessidades dos ministérios (cf. 1 Cor 12,1-11)”. Por isto “Cristo e a Igreja formam o «Cristo total» - Christus totus -. A Igreja é una com Cristo».
É belo pensar na Cúria Romana como sendo um pequeno modelo da Igreja, ou seja, um “Corpo” que procura séria e quotidianamente ser mais vivo, mais sadio, mais harmonioso e mais unido em si mesmo e com Cristo.
Na realidade, a Cúria Romana é um corpo complexo, composto de muitos Dicastérios, Conselhos, Departamentos, Tribunais, Comissões e de numerosos elementos que não têm todos a mesma tarefa, mas são coordenados para um funcionamento eficaz, edificante, disciplinado e exemplar, não obstante as diversidades culturais, linguísticas e nacionais dos seus membros.
Em todo o caso, sendo a Cúria um corpo dinâmico, ela não pode viver sem alimentar-se e sem cuidar de si. De facto, a Cúria – como a Igreja – não pode viver sem ter uma ralação vital, pessoal, autêntica e sólida com Cristo. Um membro da Cúria que não se alimenta quotidianamente com aquele Alimento tornar-se-á um burocrata (um formalista, um funcionalista, um mero empregado): um ramo que seca e pouco a pouco morre e é lançado fora. A oração diária, a participação assídua nos Sacramentos, de modo especial, da Eucaristia e da reconciliação, o contacto quotidiano com a palavra de Deus e a espiritualidade traduzida em caridade vivida são o alimento vital para cada um de nós. Que todos nós tenhamos bem claro que sem Ele nada poderemos fazer (cf Jo 15, 8).
Consequentemente, a relação viva com Deus alimenta e fortalece também a comunhão com os outros, ou seja, quanto mais estivermos intimamente unidos a Deus tanto mais estaremos unidos entre nós porque o Espírito de Deus une e o espírito do maligno divide.
A Cúria está chamada a melhorar-se, a melhorar-se sempre e a crescer em comunhão, santidade e sabedoria a fim de realizar plenamente a sua missão. No entanto, ela, como todo corpo, como todo corpo humano, está exposta também às doenças, ao mau funcionamento, à enfermidade. E aqui gostaria de mencionar algumas destas prováveis doenças, doenças curiais. São doenças mais costumeiras na nossa vida de Cúria. São doenças e tentações que enfraquecem o nosso serviço ao Senhor. Penso que nos ajudará o “catálogo” das doenças – nas pegadas dos Padres do deserto, que faziam aqueles catálogos – dos quais falamos hoje: ajudar-nos-á na nossa preparação ao Sacramento da Reconciliação, que será um passo importante de todos nós em preparação do Natal.

1. A doença do sentir-se “imortal”, “imune” ou até mesmo “indispensável” pondo de lado os controles necessários e habituais. Uma Cúria que não faz autocrítica, que não se actualiza, que não procura melhorar é um corpo enfermo. Uma visita ordinária aos cemitérios poderia ajudar-nos a ver os nomes de tantas pessoas, algumas das quais pensassem talvez que eram imortais, imunes e indispensáveis! É a doença do rico insensato do Evangelho que pensava viver eternamente (cf Lc 12, 13-21) e também daqueles que se transformam em senhores e se sentem superiores a todos e não ao serviço de todos. Esta doença deriva muitas vezes da patologia do poder, do “complexo dos Eleitos”, do narcisismo que fixa apaixonadamente a sua imagem e não vê a imagem de Deus impressa na face dos outros, principalmente dos mais fracos e necessitados. O antídoto para esta epidemia é a graça de nos sentirmos pecadores e de dizer com todo o coração «Somos servos inúteis. Fizemos o que devíamos fazer» (Lc 17, 10).

2. Outra doença: a doença do “martalismo” (que vem de Marta), da excessiva operosidade: ou seja, daqueles que mergulham no trabalho, descuidando, inevitavelmente, “a melhor parte”: sentar-se aos pés de Jesus (cf Lc 10,38-42). Por isto Jesus chamou os seus discípulos a “descansar um pouco’” (cf Mc 6,31) porque descuidar do descanso necessário leva ao estresse e à agitação. O tempo do descanso, para quem levou a termo a sua missão, é necessário, obrigatório e deve ser lavado a sério: no passar um pouco de tempo com os familiares e no respeitar as férias como momentos de recarga espiritual e física; é necessário aprender o que ensina Coelet que «para tudo há um tempo» (3,1-15).

3. Há ainda a doença do “empedernimento” mental e espiritual, ou seja, daqueles que possuem um coração de pedra e são de “dura cerviz” (At 7,51-60); daqueles que, com o passar do tempo, perdem a serenidade interior, a vivacidade a audácia e escondem-se atrás das folhas de papel, tornando-se “máquinas de práticas” e não “homens de Deus” (cf Hb 3,12). É perigoso perder a sensibilidade humana necessária que nos faz chorar com os que choram e alegrar-se com os que se alegram! É a doença dos que perdem “os sentimentos de Jesus ” (cf Fl 2,5-11) porque o seu coração, com o passar do tempo, endurece e torna-se incapaz de amar incondicionalmente ao Pai e o próximo (cf Mt 22,34-40). Ser cristão, com efeito, significa ter os mesmos sentimentos de Jesus Cristo» (Fl 2,5), sentimentos de humildade e de doação, de desapego e de generosidade.

4. A doença da planificação excessiva e do funcionalismo. Quando o apóstolo planifica tudo minuciosamente e pensa que, fazendo uma perfeita planificação, as coisas efectivamente progridem, tornando-se, assim, um contabilista  ou um comercialista. Preparar tudo bem é necessário, mas sem jamais cair na tentação de querer encerrar e pilotar a liberdade do Espírito Santo, que é sempre maior, mais generosa do que toda a planificação humana (cf Jo 3,8). Cai-se nesta doença porque «é sempre mais fácil e cómodo adaptar-se às próprias posições estáticas e imutadas. Na realidade, a Igreja mostra-se fiel ao Espírito Santo na medida em que não tem a pretensão de regulamentá-lo e de domesticá-lo… - domesticar o Espírito Santo! - … Ele é frescor, fantasia, novidade».

5. A doença da má coordenação. Quando os membros perdem a comunhão entre si e o corpo perde a sua funcionalidade harmoniosa e a sua temperança, tornando-se uma orquestra que produz barulho, porque os seus membros não cooperam e não vivem o espírito de comunhão e de equipe. Quando o pé diz ao braço: “não preciso de ti”, ou a mão à cabeça: “quem manda sou eu”, causando, assim, mal-estar ou escândalo.

6. Há também a doença do “alzheimer espiritual”: ou seja, o esquecimento da “história da salvação”, da história pessoal com o Senhor, do «primeiro amor» (Ap 2,4). Trata-se de uma perda progressiva das faculdades espirituais que num intervalo mais ou menos longo de tempo causa graves deficiências à pessoa, tornando-a incapaz de exercer algumas atividades autónomas, vivendo num estado de absoluta dependência das próprias visões, tantas vezes imaginárias. É o que vemos naqueles que perderam a memória do seu encontro com o Senhor; naqueles que não têm o sentido deuteronómico da vida; naqueles que dependem completamente do seu presente, das suas paixões, caprichos e manias; naqueles que constroem em torno de si barreiras e hábitos, tornando-se, sempre mais escravos dos ídolos que esculpiram com as suas próprias mãos.

7. A doença da rivalidade e da vanglória. Quando a aparência, as cores das vestes e as insígnias de honra se tornam o objectivo primordial da vida, esquecendo as palavras de São Paulo: «Nada façais por espírito de partido ou vanglória, mas que a humildade vos ensine a considerar os outros superiores a vós mesmos. Cada qual tenha em vista não os seus próprios interesses , e sim os dos outros» (Fl 2,1-4). É a doença que nos leva a ser homens e mulheres falsos, e a vivermos um falso “misticismo” e um falso “quietismo”. O mesmo São Paulo os define «inimigos da Cruz de Cristo» porque se envaidecem da própria ignomínia e só têm prazer no que é terreno» (Fl 3,19).

8. A doença da esquizofrenia existencial. É a doença dos que vivem uma vida dupla, fruto da hipocrisia típica do medíocre e do vazio espiritual progressivo que formaturas ou títulos académicos não podem preencher. Uma doença que atinge frequentemente aquele que, abandonando o serviço pastoral, se limitam aos afazeres burocráticos, perdendo, assim, o contacto com a realidade, com as pessoas concretas. Criam, assim, um seu mundo paralelo, onde colocam à parte tudo o que ensinam severamente aos outros e começam a viver uma vida oculta e muitas vezes dissoluta. A conversão é por demais urgente e indispensável para esta gravíssima doença (cf Lc 15,11-32).

9. A doença das bisbilhotices, das murmurações e do mexerico. Já falei muitas vezes desta doença, mas nunca é suficiente. É uma doença grave, que começa simplesmente, quem sabe, para trocar duas palavras e se apodera da pessoa, transformando-a em “semeadora de cizânia” (como satanás), e em tantos casos “homicida a sangue frio” da fama dos seus colegas e confrades. É a doença das pessoas cobardes que, não tendo a coragem de falar directamente, falam pelas costas. São Paulo nos adverte: «Fazei todas as coisas sem murmurações nem críticas a fim de serdes irrepreensíveis e inocentes» (Fl 2,14-18). Irmãos, guardemo-nos do terrorismo das maledicências!

10. A doença de divinizar os chefes: é a dos que cortejam os Superiores, esperando obter a benevolência deles. São vítimas do carreirismo e do oportunismo, honrando as pessoas e não a Deus (cf Mt 23,8-12). São pessoas que vivem o serviço, pensando exclusivamente no que devem obter e não no que devem dar. Pessoas mesquinhas, infelizes e inspiradas só pelo seu próprio egoísmo (cf Gal 5,16-25). Esta doença poderia atingir também os Superiores, quando cortejam alguns seus colaboradores para obter a sua submissão, lealdade e dependência psicológica, mas o resultado final é uma verdadeira cumplicidade.

11. A doença da indiferença para com os outros. Quando alguém pensa somente em si mesmo e perde a sinceridade e o calor das relações humanas. Quando o mais especializado não coloca o seu conhecimento ao serviço dos colegas menos especialistas. Quando se chega ao conhecimento de algo e o esconde para si, ao invés de partilhar positivamente com os outros. Quando, por ciúme ou por astúcia, se sente alegria ao ver o outro cair, ao invés de erguê-lo e encorajá-lo.

12. A doença da cara fúnebre. Quer dizer, das pessoas grosseiras e sisudas que pensam que, para ser sérias, é necessário assumir as feições de melancolia, de severidade e tratar os outros – principalmente os que consideram inferiores – com rigidez, dureza e arrogância. Na realidade, a severidade teatral e o pessimismo estéril são muitas vezes sintomas de medo e de insegurança. O apóstolo deve esforçar-se por ser uma pessoa amável, serena e alegre que transmite alegria por toda parte onde quer que se encontre. Um coração repleto de Deus é um coração feliz que irradia e contagia de alegria todos os que estão à sua volta: é o que se vê imediatamente! Não percamos, portanto, aquele espírito jovial, cheio de humor, e até autoirónico, que nos torna pessoas amáveis, mesmo nas situações difíceis. Quanto bem nos faz uma boa dose de sadio humorismo! Far-nos-á muito bem recitar muitas vezes a oração de São Tomás Moro: rezo-a todos os dias; me faz bem.

13. A doença de acumular: quando o apóstolo procura preencher um vazio existencial no seu coração, acumulando bens materiais, não por necessidade, mas só para sentir-se seguro. Na realidade, nada de material poderemos levar connosco, porque “a mortalha não tem bolsos” e todos os nossos tesouros terrenos – mesmo que sejam presentes – jamais poderão preencher aquele vazio; pelo contrário, torná-lo-ão cada vez mais exigente e mais profundo. A estas pessoas o Senhor repete: «Dizes: sou rico, faço bons negócios, de nada necessito – e não sabes que és infeliz, miserável, pobre, cego e nu ... Reanima, pois, o teu zelo e arrepende-te» (Ap 3,17-19). A acumulação só pesa e freia inexoravelmente o caminho! E penso numa anedota: um tempo, os jesuítas espanhóis descreviam que a Companhia de Jesus era como a “cavalaria leve da Igreja”. Lembro-me da mudança de um jovem jesuíta que, enquanto carregava num caminhão os seus muitos bens: bagagens, livros, objectos e presentes, ouvi um velho jesuíta, que estava a observá-lo, dizer com um sorriso sábio: e esta seria a “cavalaria leve da Igreja?”. As nossas mudanças são um sinal desta doença.

14. A doença dos círculos fechados onde a pertença ao grupinho se torna mais forte do que a pertença ao Corpo  e, em algumas situações, ao próprio Cristo. Também esta doença começa sempre por boas intenções, mas com o passar do tempo, escraviza os membros, tornando-se um câncer que ameaça a harmonia do Corpo e causa tanto mal – escândalos – especialmente aos nossos irmãos menores. A autodestruição ou o “tiro amigo” dos camaradas é o perigo mais sorrateiro. É o mal que atinge a partir de dentro; e, como diz Cristo, «todo o reino dividido contra si mesmo será destruído» (Lc 11,17).

15. E a última: a doença do proveito mundano, dos exibicionismos, quando o apóstolo transforma o seu serviço em poder e o seu poder em mercadoria para obter dividendos humanos ou mais poder; é a doença das pessoas que procuram insaciavelmente multiplicar poderes e, com esta finalidade, são capazes de caluniar, de difamar e de desacreditar os outros, até mesmo nos jornais e nas revistas. Naturalmente para se exibirem e se demonstrarem mais capazes do que os outros. Também esta doença faz muito mal ao Corpo porque leva as pessoas a justificar o uso de todo o meio, contanto que atinja o seu objectivo, muitas vezes em nome da justiça e da transparência! E vem-me aqui à mente a lembrança de um sacerdote que chamava os jornalistas para lhes contar – e inventar – coisas privadas e reservadas dos seus confrades e paroquianos. Para ele a única coisa importante era ver-se nas primeiras páginas, porque assim se sentia “potente e convincente”, causando tanto mal aos outros e à Igreja. Pobrezinho!

Irmãos, estas doenças e tais tentações são naturalmente um perigo para todo cristão e para toda a Cúria, Comunidade, Congregação, Paróquia, Movimento eclesial e podem atingir quer em nível individual quer comunitário.
É necessário esclarecer que só o Espírito Santo - a alma do Corpo Místico de Cristo, como afirma o Credo Niceno-Constantinopolitano: «Creio... no Espírito Santo, Senhor e que dá vida» - pode curar todas as enfermidades. É o Espírito Santo que sustenta todo o esforço sincero de purificação e toda boa vontade de conversão. É Ele que nos faz compreender que todo o membro participa da santificação do Corpo ou do seu enfraquecimento. É Ele o promotor da harmonia: “Ipse harmonia est”, diz São Basílio. Santo Agostinho diz-nos: «Enquanto uma parte aderir ao corpo, a sua cura não é desesperada; mas o que foi cortado não pode nem curar-se nem sarar».
O restabelecimento é também fruto da consciência da doença e da decisão pessoal e comunitária de tratar-se, suportando pacientemente e com perseverança a terapia.
Somos chamados, portanto – neste tempo de Natal e por todo o tempo do nosso serviço e da nossa existência - a viver «pela prática sincera da caridade, crescendo em todos os sentidos, naquele que é a Cabeça, Cristo. É por Ele que todo o Corpo – coordenado e unido por conexões que estão ao seu dispor, trabalhando cada um conforme a actividade que lhe é própria – efectua esse crescimento , visando à sua plena edificação na caridade» (Ef 4,15-16).
Amados irmãos!
Certa vez li que os sacerdotes são como aviões: só fazem notícia quando caem, mas há tantos que voam. Muitos criticam e poucos rezam por eles. É uma frase muito simpática, mas também muito verdadeira, porque delineia a importância e a delicadeza do nosso serviço sacerdotal e quanto mal poderia causar um só sacerdote que “cai”, a todo o Corpo da Igreja.
Portanto, para não cair nestes dias em que nos preparamos à Confissão, peçamos à Virgem Maria, Mãe de Deus e Mãe da Igreja, que cure as feridas do pecado que cada um de nós tem no seu coração e que ampare a Igreja e a Cúria a fim de que sejam sadias e saneadoras; santas e santificadoras para a glória do seu Filho e para a nossa salvação e do mundo inteiro. Peçamos a Ela que nos faça amar a Igreja como a amou Cristo, seu Filho e nosso Senhor, e que tenhamos a coragem de nos reconhecermos pecadores e necessitados da sua misericórdia e que não tenhamos medo de abandonar a nossa mão entre as suas mãos maternais.
 
Os melhores votos de um santo Natal a todos vós, às vossas famílias e aos vossos colaboradores. E, por favor, não vos esqueçais de rezar por mim! Obrigado de coração!

publicado às 21:01


Descartes e lobos gigantes

por Thynus, em 21.12.14
[Pois, se os animais] pensam como nós
pensamos, eles teriam uma alma imortal
como nós; tal é duvidoso, porque não existe
nenhuma razão para acreditar isso de alguns
animais sem que se acredite isso de todos, e
muitos deles são demasiado imperfeitos para
que tal seja credível, como as ostras, as esponjas
etc.
 
(René Descartes, Carta ao marquês de Newcastle,
in Descartes, Oeuvres et Lettres apud. Silva, MPT,
Uma introdução à teoria de Tom Regan e a estratégia
para a sua abordagem)

 

“Não há diferenças fundamentais entre o homem e os animais nas suas faculdades mentais. Os animais, como os homens, demonstram sentir prazer, dor, felicidade e sofrimento.”
(Charles Darwin)

 

 Parece que só o ser humano é capaz de se mostrar realmente diabólico.
(...) "Os animais devoram, às vezes, um dos seus ainda vivo. Eles nos
parecem então cruéis. Mas basta refletir para compreender que não é ao mal enquanto
mal que eles visam, e que a crueldade deles só se deve, é claro, à indiferença que sentem
quanto ao sofrimento do outro. E no momento em que eles parecem matar “por prazer”,
eles só estão, na verdade, exercendo do melhor modo um instinto que os guia e os
mantém na guia, por assim dizer. (...) O que nos parece tão cruel está ligado ao reino da
indiferença total de que esses seres de natureza, os animais, dão prova nas relações do
predador com sua presa, e não a uma vontade consciente de fazer o mal.

Mas o ser humano não é indiferente. Ele faz o mal e sabe que o faz e, às vezes, ele se
compraz com isso. É claro que, diferentemente do animal, acontece de ele fazer do mal
um objetivo consciente. 

Ora, tudo parece indicar que essa tortura gratuita está em excesso em relação a toda
lógica natural.

(...) O homem tortura seus semelhantes sem nenhum objetivo  além do da própria tortura. 
Por que milicianos sérvios obrigam — como se lê nos relatórios de crimes de guerra
 cometidos nos Bálcãs — um infeliz avô croata a comer o fígado de seu neto ainda vivo?
 Por que os hútus cortam os membros dos recém-nascidos tútsis 
para se divertirem, apenas para nivelarem suas caixas de cerveja?" 
(Luc Ferry - Aprender a Viver)
 
Somos partes do Cosmos. Isso quer dizer que o vento venta, a maré mareia, o sapo sapeia e tudo está mais ou menos de boa. Quando o vento venta, ele venta em harmonia com o Cosmos. Da mesma maneira a maré, o sapo, o tsunami, qualquer outra coisa. Quem é que pode comprometer? Quem é que pode comprometer o todo? O gato que vive de acordo com a sua natureza de gato? Certamente não. Como diz Hans Jonas, filósofo, verdadeiro patrono do pensamento ecologista do século vinte e vinte um, “uma ostra não coloca em risco universo!” O que ele quis dizer com isso? Que a ostra ostreia, o gato gateia, o vento venta... Então quem é que compromete, quem é que pode comprometer, quem é que pode viver em desarmonia com o todo? Quem é que pode viver errado? Só pode viver errado quem decide, quem delibera, quem escolhe: nós! Existe para nós um lugar, uma atividade, uma função, uma finalidade, um papel. O que Aristóteles chamava de “lugar natural”. Nesse lugar natural, a especificidade da nossa natureza entra em harmonia com o todo, contribuindo da melhor forma possível para o todo. A vida será boa, quando estivermos no lugar certo fazendo a coisa certa. A vida será catastrófica, quando estivermos no lugar errado fazendo a coisa errada.
(Prof. Clóvis Barros Filho)   
O grande filósofo e matemático francês René Descartes (1596-1650) teria desconsiderado todo esse papo de “como é se sentir como” quando se trata de lobos gigantes, ou qualquer outro animal, pois acreditava que animais não tinham consciência. Segundo sua linha de pensamento, eles se assemelhavam mais a máquinas complexas. Descartes defendia isso por dois motivos principais. Primeiro, ele acreditava que a consciência exigia a existência de uma alma, uma substância não física, e apenas pessoas tinham almas. Na verdade, dizer que pessoas “têm” alma não é exatamente correto. Descartes pensava que pessoas eram almas. Em outras palavras, para o filósofo, você não é
seu corpo, e sim uma substância imaterial casualmente conectada a seu corpo. Então, quando Sansa olha para Sandor Clegane e vê este homem imenso e muito perigoso com metade do rosto queimado, ela está vendo apenas o corpo do Cão, e não o Cão em si. O que faz deste o corpo dele é o fato de que quando a alma de Sandor Clegane, se você chamar assim, decidiu matar Mycah, o filho do carniceiro, com uma espada, o corpo do Cão cometeu o assassinato. E o mesmo é verdade no outro sentido. Quando Gregor empurrou o rosto do irmão no carvão em chamas quando eles eram crianças, a alma que era Sandor sentiu a dor, e não outra alma qualquer.
Então, as pessoas têm almas, e a consciência se dá apenas em almas. Como animais não têm almas, logo não têm consciência. O segundo motivo pelo qual Descartes negava a existência de consciência nos animais era a crença de que o comportamento animal podia ser totalmente explicado em termos físicos. Isso indicaria uma diferença entre nós e os outros animais, porque nosso comportamento, segundo Descartes, não poderia ser explicado em termos puramente físicos.
Para ilustrar essa diferença, Descartes se concentrou na linguagem. Quando o corvo do senhor comandante Mormont diz “milho” ou “neve”, Descartes diria que este era um acontecimento mecânico, sem qualquer compreensão da parte do pássaro. Mas, quando o comandante emite esses mesmos sons, eles têm significado para o comandante. Além disso, o processo pelo qual pegamos nossos pensamentos (que têm significado) e os transformamos em palavras que comunicam esses significados não pode ser explicado em quaisquer termos mecanicistas — pelo menos é o que Descartes alegava.
Independentemente de Descartes estar ou não certo em relação a isso, a estratégia da argumentação foi instrutiva. Ao defender a existência de algo que não pode ser percebido, como a alma ou os deuses de Westeros, é possível argumentar que  sem isso, falta esclarecer algo. Quando se trata de animais, Descartes pensava que as explicações físicas eram o bastante, então não havia necessidade de postular mais. Com pessoas, por sua vez, a explicação física não era suficiente para dar conta da linguagem, do significado e do pensamento. Portanto, era preciso algo mais. E, de acordo com Descartes, este algo deveria ser consciente, e não físico: a alma.
Existem muitas dificuldades nessa posição. Primeiro, porque muitos animais têm linguagens sofisticadas (vide os primatas mais evoluídos, bem como golfinhos e baleias). Dessa forma, eles também têm alma? Talvez essas linguagens não tenham significado para eles e não sejam usadas para transmitir pensamentos. Se for verdade, Descartes poderia aceitar o fato de estes animais terem um tipo de linguagem, defendendo que a diferença importante entre nós e eles ainda se mantém. Ainda assim, existem grandes problemas com a visão dele.
A ciência cognitiva e a neurociência têm vários relatos sobre a linguagem e sua relação com o pensamento. Descartes estava certo ao dizer que nenhum modelo mecanicista simples poderia explicar a linguagem, mas as explicações físicas disponíveis para nós são muito mais complexas do que as existentes na época de Descartes, que viveu durante a primeira metade do século XVII. Então, se as explicações físicas não conseguiam esclarecer por completo o comportamento humano, provavelmente não é devido à relação entre pensamento e linguagem. Precisaríamos de outro motivo para diferenciar as pessoas dos outros animais e negar a consciência aos últimos com base nesse tipo de argumento.
O segundo problema para Descartes é que, considerando nossos conhecimentos sobre os animais (primatas e mamíferos mais evoluídos pelo menos, que em Westeros certamente incluiriam os lobos gigantes) em termos de anatomia, fisiologia e origem biológica, negar a consciência aos animais parece, na melhor das hipóteses, duvidoso. Na verdade, os motivos que utilizamos para considerar outras pessoas conscientes são basicamente os mesmos que aplicamos aos animais. Para ilustrar isso, pense em Jon Snow e em Fantasma. Jon sabe que tem consciência, assim como cada indivíduo. Ele supõe que seus amigos (e nem tão amigos) da Patrulha da Noite também tenham consciência, mas isso é algo que ele deduz e não sabe diretamente, como acontece em seu próprio caso. Por que Jon faz essa dedução? Por que cada um de nós faz deduções semelhantes todos os dias?
Bom, primeiro existe a evidência em termos de comportamento, tanto verbal quanto não verbal. Os irmãos da Patrulha da Noite se comportam basicamente como Jon. Você fala com eles, eles parecem entender e respondem de acordo com o que foi dito. Eles alegam sentir frio e se movem em direção ao fogo. Quando esfaqueados, gritam de dor. Fantasma se comporta de modo parecido, respondendo aos comandos de Jon, tentando se aquecer etc. Quando atacado pela águia de Orell, Fantasma mostrou um comportamento similar ao de Jon em termos de dor. Então, se as evidências comportamentais nos convencem que outras pessoas têm consciência, o mesmo tipo de evidência deve ser convincente quando aplicada aos animais.
Em segundo lugar, a fisiologia animal é bem parecida com a nossa. Seria absurdo pensar que cérebros e sistemas nervosos feitos (sejam pelos deuses ou de um jeito biologicamente natural) para registrar dor fariam isso em nós, mas não em seres biologicamente semelhantes. (Voltaire comentou: “Não inquines à natureza tão impertinente contradição.” Em seu Dicionário filosófico, verbete “Irracionais”, editado por Ridendo Castigat Mores.) Imagine pensar o seguinte sobre outro ser humano: “Bom, eu sei que o cérebro e o sistema nervoso dele são iguais aos meus, e sei que ele divide uma história biológica comigo em termos de evolução e reprodução, mas aposto que ele não tem experiências conscientes.” Por que isso é menos absurdo quando analisamos um animal aparentemente perceptivo e alerta como um lobo gigante?
Lobos gigantes e animais em geral podem perceber o ambiente ao redor. Podem sentir cheiro de comida e ouvir predadores, além de utilizar os outros sentidos. Como tudo isso é possível sem consciência? Descartes (sei que estou exagerando aqui; se ele estivesse vivo, minha próxima ideia seria cortar alguns dedos dele) tinha uma resposta para isso. Para ele, a percepção tinha três níveis. O primeiro e mais baixo era uma questão puramente mecânica, na qual as informações do ambiente pressionavam fisicamente os órgãos dos sentidos. No segundo nível, haveria uma noção consciente da experiência. E, no nível mais alto, haveria a capacidade de raciocinar e fazer julgamentos sobre a experiência. Descartes pensava que animais funcionavam totalmente no primeiro nível, desprovidos de consciência. Os dois níveis mais altos não existiriam neles, visto que não têm alma.
Às vezes, nós também percebemos o ambiente ao redor sem consciência. Na sala de aula onde trabalho, costumo andar de um lado para outro na frente da sala, perto da mesa. E, embora eu não esteja prestando atenção à mesa, não estando conscientemente atento ao objeto, navego ao redor dela com facilidade. Meus sentidos detectam a mesa, mas não há qualquer noção consciente associada a isso. Um exemplo mais familiar que os filósofos gostam de discutir é o motorista de longa distância. Isso acontece com todo mundo: você está dirigindo numa estrada há várias horas e, de repente, vê que já está perto de seu destino e não tem noção de ter passado por muitas paisagens familiares. Talvez você estivesse ouvindo música ou o audiobook de House e a filosofia, mas não estava prestando nem um pouco de atenção à estrada. (Compare isso com a experiência de dirigir com tráfego pesado durante uma tempestade, quando sua consciência está totalmente presente e focada.) Mas você não bateu em ninguém e nem saiu do caminho, portanto ainda consegue perceber o ambiente ao redor.
 
(William Irwin & Henry Jacoby - A guerra dos tronos e a filosofia)
Os animais são seres inteligentes e sensíveis, capazes de compreender as nossas ações sobre eles
 

publicado às 19:25

Para os biólogos, sexo é o processo que dá origem a um novo ser vivo contendo uma mistura dos genes herdados de cada um de seus pais. Mas para a maioria das pessoas a palavra “sexo” está associada ao mecanismo comportamental de deposição de espermatozoides no interior da fêmea, permitindo que o óvulo seja fecundado. Nossa fascinação pelo sexo está mais relacionada com o prazer que ele envolve do que com a formação de um ovo contendo genes de ambos os pais. A análise de fósseis australianos permitiu aos cientistas mapear quando a cópula (sexo no sentido corriqueiro da palavra) surgiu na face da Terra.
Apesar de todos os vertebrados (peixes, anfíbios, répteis, aves e mamíferos) praticarem a reprodução sexuada, grande parte de nossos parentes distantes não se dedica ao sexo no seu sentido corriqueiro. Muitos peixes liberam seus ovos diretamente na água e os machos espalham os espermatozoides nas proximidades. A fertilização ocorre ao sabor das ondas. No caso das galinhas, a fecundação é interna, com o galo depositando os espermatozoides no interior da cloaca. Após a fertilização, os ovos são postos e os pintos se desenvolvem fora da mãe. Nos vertebrados, existe uma enorme diversidade de soluções para o problema da fertilização e posterior desenvolvimento dos filhotes. Tartarugas abandonam os ovos na praia, pássaros chocam no ninho, alguns peixes chegam a colocar os ovos fertilizados na boca dos machos, que, para poderem cuidar dos futuros filhotes, abrem mão de se alimentar. Entre os mamíferos, sobreviveu uma única versão desses comportamentos. A fertilização é sempre interna e o desenvolvimento dos filhotes ocorre no interior da mãe. No parto o filhote emerge formado do abdômen da mãe. A questão é saber quando, ao longo da evolução dos vertebrados, a solução utilizada pelos mamíferos surgiu pela primeira vez.
Quem já teve um aquário sabe que existem peixes nos quais a fertilização é interna e os ovos se desenvolvem no interior das fêmeas. São os peixes vivíparos. Eu me lembro da felicidade de observar a barriga dos meus pequenos lebistes crescer e de ver os filhotes emergirem das mães.
Este ano, um grupo de paleontólogos australianos e ingleses reexaminou fósseis de peixes que viveram há 380 milhões de anos (os primeiros mamíferos surgiram há 120 milhões de anos e o Homo sapiens menos de 1 milhão de anos atrás) e descobriu no interior deles pequenos filhotes totalmente formados. De início pensou-se que os pequenos peixes estivessem no estômago porque houvessem sido ingeridos como alimento. Mas nos filhotes foi possível identificar uma característica em tudo semelhante aos peixes dentro dos quais eles estavam: ambos pertenciam à espécie placodermas, peixes com placas ósseas que recobrem seu exterior como se fosse uma forte armadura. Além disso, um exame microscópico dos filhotes concluiu que as placas não haviam sido atacadas pelo ácido presente no estômago do animal. Tudo isso sugeria que os peixinhos eram filhotes se desenvolvendo no interior da mãe. O resultado mais importante, porém, foi que os cientistas descobriram nesses peixes os rudimentos de um pênis, uma barbatana modificada para permitir a cópula.
É com base em tais descobertas que os cientistas concluíram que o ato sexual e o desenvolvimento interno dos filhotes tenham surgido nos vertebrados há mais de 380 milhões de anos.
 
Mais informações: “Devonian arthrodire embryos and the origin of internal fertilization in vertebrates”. Nature, vol. 457, p. 1224, 2009.

(Fernando Reinach - A Longa Marcha dos Grilos Canibais)

publicado às 16:28

Ouvir o zumbido de um pernilongo pode ser sinal de que logo mais nosso sangue vai ser sugado e, se tivermos muito azar, que seremos infectados pelo parasita da malária ou pelos vírus da febre amarela e da dengue. Não é sem razão que o zumbido de pernilongos costuma despertar nos humanos uma fúria assassina só saciada quando os vemos esmagados.
Cientistas que têm dedicado a vida a estudar o zumbido dos pernilongos descobriram recentemente que casais de pernilongos organizam seus encontros amorosos utilizando o zumbido que tanto nos irrita.
O Aedes aegypti, responsável pela epidemia de dengue, produz seus zumbidos vibrando as asas durante o voo. Há anos se descobriu que os machos emitem um zumbido de seiscentos hertz (frequência de seiscentas vibrações por segundo), um som mais agudo que o emitido pelas fêmeas, que “cantam” a quatrocentos hertz. Sabe-se ainda que, nesses mosquitos, o órgão capaz de captar o som é também capaz de diferenciar os zumbidos dos machos e das fêmeas; e ainda havia a suspeita de que os mosquitos “conversavam” utilizando seus respectivos zumbidos como “linguagem”. A novidade é que agora isso tudo foi demonstrado em uma série de experimentos muito elegantes.
Para a realização do experimento, os pesquisadores capturaram os mosquitos vivos e colaram seus abdomens a pequenos alfinetes, de modo que eles ainda pudessem bater as asas e pensar que estivessem voando, quando na verdade estavam presos pelo alfinete. Também foram utilizados um microfone, um osciloscópio (equipamento que mede a frequência do som emitido), um gravador e um alto-falante capaz de reproduzir o zumbido em diferentes frequências.
Primeiro, ao aproximarem os mosquitos do microfone, os cientistas confirmaram que os machos cantam a seiscentos hertz e as fêmeas, a quatrocentos hertz. Depois, mantendo o macho próximo ao microfone, eles traziam as fêmeas para perto dele, como se ambos tivessem se encontrado por acaso em um de seus voos. O que se observou é que, quando a distância entre o macho e a fêmea era menor que dois centímetros, imediatamente a frequência do zumbido emitido por eles se alterava e os pernilongos passavam a cantar, em uníssono, a 1200 hertz (bem mais agudo). Se essa distância, porém, era aumentada, em poucos segundos eles voltavam a emitir seu zumbido original. O interessante é que essa sincronia em uma frequência mais alta só ocorre em interações de pernilongos do sexo oposto. Quando o encontro se dá entre dois machos ou duas fêmeas, nenhum deles modifica seu canto. A fim de confirmar Aque a identificação do sexo oposto se dava pelo som, os cientistas usaram alto-falantes para simular um pernilongo macho ou fêmea. Se o alto-falante que zumbia a seiscentos hertz era levado para próximo de uma fêmea que estava zumbindo a quatrocentos hertz, ela imediatamente mudava seu canto para 1200 hertz. Esse resultado só confirmou que no escuro a identificação do sexo oposto se dá tão só através do som emitido.
Os cientistas acreditam que o fato de os pernilongos de diferentes sexos emitirem sons de diferentes frequências, combinado com a descoberta de que os sexos ajustam sua frequência quando se encontram com o sexo oposto, sugere fortemente que os mosquitos utilizam esse mecanismo para identificar potenciais parceiros sexuais e se acasalar no escuro.
Assim, a partir de hoje, quando os pernilongos estiverem zumbindo no meu ouvido, vou me transformar em um voyeur auditivo, imaginando toda essa dança amorosa dos bichinhos. Talvez isso aplaque um pouco minha vontade de esmagar os autores dos zumbidos.
 

Mais informações: “The harmonic convergence in the love songs of the dengue vector mosquito”. Science, vol. 323, p. 1077, 2009.

(Fernando Reinach - A Longa Marcha dos Grilos Canibais)

publicado às 16:06

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