Sempre que nos deparamos com crimes bárbaros cometidos por crianças somos tomados por um sentimento de grande perplexidade. Isso acontece porque, como seres humanos, temos grande dificuldade em acreditar que existam crianças genuinamente más. Crianças costumam ser associadas de forma universal à bondade, à pureza e à ingenuidade.
Reconhecer que a maldade existe de fato é uma realidade com a qual não gostamos de lidar. Quando estamos diante de crianças, essa descrença toma proporções muito maiores. Ficamos estarrecidos com aquilo que desafia a racionalidade humana e foge à compreensão do que consideramos ser uma criança ou uma pessoa normal.
Como exemplo e motivo de reflexão, podemos observar alguns casos de um passado recente:
Em fevereiro de 1993, os garotos Jon Venables e Robert Thompson, ambos com 10 anos de idade, assassinaram brutalmente James Bulger (de apenas 2 anos), perto de Liverpool, Inglaterra. Esse foi um dos crimes que mais chocou a Grã-Bretanha e o mundo no século passado. James foi sequestrado, abusado, torturado e morto com golpes de pedras e ferros na cabeça. Os assassinos tentaram esconder o corpo no fundo de um poço, mas acabaram forjando um desastre de trem e largaram o corpo sobre os trilhos da linha férrea. O bebé foi cortado ao meio. Jon e Robert foram julgados como adultos e condenados à prisão por prazo indeterminado, pela natureza bárbara do crime.
Sob protestos e indignação populares, em 2001, os assassinos foram soltos de forma sigilosa e com novas identidades.
Se a Inglaterra foi dura demais em condenar os dois assassinos com idades tão precoces ou se afrouxou excessivamente ao libertá-los (mesmo sob vigilância policial), ainda é motivo de muitos debates e controvérsias. No entanto, em nosso íntimo, não podemos deixar de fazer algumas indagações:
Como dois indivíduos de apenas 10 anos, deliberadamente, puderam planejar um crime com tamanha crueldade? É possível que eles não tivessem a menor ideia do que estavam fazendo? Será que toda a trama sórdida, requintada de maldade e de total frieza "simplesmente" foi fruto de mentes imaturas e inconsequentes? Ouso dizer que, independentemente da idade dos assassinos, as respostas se resumem ao fato de serem garotos perversos. Vem à tona novamente a velha história do sapo e do escorpião: é a natureza!
Nos Estados Unidos volta e meia a população se defronta com casos que envolvem crianças que matam de forma impiedosa. Em 1998 um pesadelo se abateu sobre Jonesboro, uma pequena cidade no Arkansas. Mitchell Johnson, de 13 anos, e Andrew Golden, de apenas 11, foram responsáveis por um tiroteio em sua escola que matou cinco e feriu gravemente 11 pessoas. Eles chegaram camuflados, fortemente armados e fizeram soar o alarme de incêndio para obrigar estudantes e professores a saírem do edifício. Esconderam-se no bosque em frente e dispararam indiscriminadamente 27 tiros com as armas que tinham roubado da casa do avô de Golden. Além da frieza explícita, Johnson e Golden premeditaram o massacre.
O Brasil, infelizmente, também faz parte desse cruel panorama. É estarrecedor observar que crianças que deveriam estar brincando ou folheando livros nas escolas trafiquem drogas, empunhem armas e apertem gatilhos sem qualquer vestígio de piedade. Lógico que não podemos negar que muitas delas são influenciadas pelo meio social ao redor, no entanto outras crianças possuem uma inclinação voraz e inata ao crime. Assim como adultos psicopatas, crianças com essa natureza são desprovidas de sentimento de culpa ou remorso, características inerentes às pessoas "de bem". São más em suas essências.
Idade penal e idade biológica Em fevereiro de 2007 um crime monstruoso chocou todo o país. O menino João Hélio Fernandes, de apenas 6 anos, foi arrastado até a morte por mais de sete quilómetros pelas ruas da Zona Norte do Rio de Janeiro. O crime ocorreu depois que o carro em que João se encontrava foi assaltado.
A mãe e a irmã mais velha de João conseguiram escapar, mas o garoto ficou preso ao cinto de segurança, enquanto os criminosos arrancavam com o carro em alta velocidade. Os bandidos ignoraram todos os apelos feitos por pedestres e motoristas que berravam indicando que havia uma criança presa do lado de fora do carro. Segundo uma testemunha, eles andavam em ziguezague com o veículo tentando se livrar do menino.
Após a prisão dos cinco envolvidos, constatou-se que um deles era menor (16 anos).
Esse crime provocou consternação, revolta e mobilizou toda a sociedade pela sua brutalidade. O Brasil enfurecido protestou contra a violência e o descaso das autoridades. Em ocasiões como essas, o clamor social acaba demandando atitudes por parte dos nossos legisladores, com o intuito claro de dar uma satisfação imediata à sociedade. Não é de hoje que vários projetos são apresentados com o objetivo de mudar as leis que cuidam de menores infratores, mas que ao final caem no esquecimento.
Em resposta a essa comoção, aquilo que estava guardado na gaveta pulou para a ordem do dia.
Entre essas medidas podemos destacar as seguintes:
1. Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 171/1993, de autoria de Benedito Domingues, que visa a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos. Essa proposta está pronta para pauta de votação.
2. Projeto de Lei ns 2847/00, do deputado Darcísio Peron-di (PMDB-RS), que altera o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Seu objetivo é aumentar o tempo máximo de internação de adolescentes que entram em conflito com a lei penal. O prazo, que atualmente é de três anos, passaria para oito anos quando se tratasse dos seguintes crimes: tráfico de drogas e quando houver "grave ameaça ou violência à pessoa" (homicídios e crimes hediondos como sequestro, latrocínio e estupro).
O projeto, que já foi aprovado pela Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados, ainda está em tramitação e divide opiniões. Seu relator foi o deputado Carlos Sampaio (PSDB-SP).
3. Projeto de Lei do Executivo que visa reformular a aplicação de medidas socioeducativas. A principal mudança é a possibilidade de se estabelecer medidas legais específicas para cada menor.
Seja qual for o ângulo que utilizamos para avaliar e discutir o estabelecimento da idade penal em nossa sociedade, sempre nos deparamos com conflitos ideológicos, legais ou mesmo científicos que, na maioria das vezes, emperram a tomada de decisões que poderiam beneficiar toda a sociedade. De fato, o assunto é de extrema complexidade e essas discussões vêm de muito tempo.
Apesar de todo o desenvolvimento racional dos seres humanos, existe até hoje uma grande dificuldade em se estabelecer o momento exato a partir do qual o indivíduo pode ser considerado responsável por suas ações. E, a partir daí, ser legalmente responsabilizado pelo que faz ou deixa de fazer. O desafio para se fixar uma idade mínima para a imputação penal é tão complexo que em todos os países do mundo é motivo de muita polêmica e acaloradas discussões.
Para que tenhamos uma ideia da dimensão do problema, podemos observar as diversas idades mínimas para responsabilidade criminal em diferentes países:
• Austrália e Suíça - 7 anos;
• Equador-12 anos;
• Dinamarca, Finlândia e Noruega - 15 anos;
• Argentina, Chile e Cuba - 16 anos;
• Polónia - 17 anos;
• Colômbia, Luxemburgo e Brasil - 18 anos;
• EUA- em alguns estados, a partir dos 6 anos de idade. Cabe ao juiz decidir se o jovem infrator deverá ser julgado como adulto ou não;
• Inglaterra - desde 1967 não tem idade mínima preestabelecida. Uma criança de 10 anos (ou menos) pode ser julgada como adulto, dependendo da gravidade do crime e de acordo com os costumes do próprio país.
A própria ONU (Organização das Nações Unidas), através de seu órgão destinado à infância e à adolescência (a Unicef), recomenda em seu manual que a maioridade penal se inicie entre 7 e 18 anos. Convenhamos que uma margem de 11 anos (entre a menor e a maior idade penal) demonstra, de forma clara, toda a incerteza ao redor do tema.
Não podemos esquecer que a necessidade de adotarmos uma idade penal mínima tem como base a ideia - universalmente aceita - de que crianças não possuem discernimento sobre o certo e o errado. Além do mais, elas ainda não desenvolveram controle adequado sobre seus impulsos. Dessa forma, crianças não podem ser culpabilizadas por suas atitudes ilícitas. Por outro lado, existe também unanimidade em responsabilizar adultos sadios por seus crimes.
O dilema surge exatamente "no meio do caminho", entre a criança sem discernimento e o adulto responsável: a adolescência. O porquê da dificuldade em se estabelecer a tal idade penal mínima me parece clara: a transição da criança inconsequente (sem discernimento) e o adulto responsável (ciente de seus atos) é um processo contínuo, que faz parte do desenvolvimento psíquico. Assim, é impossível se estabelecer uma idade padronizada para todos, uma vez que as pessoas amadurecem e se desenvolvem de forma e em tempos distintos.
O Brasil, como outras inúmeras nações, adota os 18 anos como maioridade penal. Ou seja, idade em que, diante da lei, um jovem passa a responder inteiramente por seus atos, como um cidadão adulto. Entre 12 e 17 anos, o jovem infrator não poderá ser encaminhado a um sistema penitenciário comum, mas sim deverá receber tratamento diferenciado daquele do adulto. As penalidades a eles imputadas são chamadas de medidas socioeducativas. Já as crianças (até 12 anos) são inimputáveis, ou seja, não podem ser julgadas ou punidas pelo Estado.
A maioridade penal hoje estabelecida se deve ao fato de que alguns pesquisadores e muitos legistas abraçam a tese de que durante a adolescência o cérebro está sujeito a intensas transformações biofísicas. Dessa forma, os comportamentos impulsivo, imediatista e explosivo dos adolescentes são explicados, em parte, pela imaturidade biológica de seus cérebros, o que impede que tenham um comportamento plenamente adequado. Embasada nesse pressuposto, a própria psiquiatria ainda hoje não pode firmar o diagnóstico de psicopatia antes dos 18 anos idade.
Por outro lado, pesquisadores que estudam especificamente personalidades infantojuvenis postulam que algumas pessoas demonstram de maneira indubitável possuírem uma estrutura de personalidade problemática ainda precocemente. Hoje em dia um jovem (criança ou adolescente) que apresenta características como insensibilidade, mentiras recorrentes, transgressões às regras sociais, agressões, crueldade etc. recebe o diagnóstico de Transtorno da Conduta (antes conhecido como Delinquência).
Por ser um transtorno infinitamente mais grave do que meras rebeldias ou traquinagens juvenis e que, na sua forma mais severa, se assemelha em muito às características psicopáticas, vários estudiosos defendem a possibilidade de se estabelecer o diagnóstico de psicopatia antes mesmo dos 18 anos.
Corroborando tal hipótese, cientistas de diversos países (EUA, Inglaterra, Canadá, Austrália etc.) vêm testando uma versão adaptada do PCL-R (checklist de psicopatia) para jovens. A aplicação do checklist em crianças e adolescentes com comportamentos frios e transgressores revelou que eles apresentam critérios de psicopatia semelhantes aos dos adultos, inclusive com os mesmos riscos elevados de reincidência criminal.
De acordo com esse ponto de vista podemos afirmar que alguns indivíduos menores de 18 anos, independentemente da maturidade biológica de seus cérebros, já possuem uma personalidade disfuncional. O comportamento e o temperamento desses jovens funcionam como os de pessoas plenamente desenvolvidas, que sabem perfeitamente distinguir o certo do errado e que compreendem o caráter ilícito dos seus atos. Dessa forma, já deveriam ser responsabilizados e penalizados pelos seus comportamentos transgressores com o mesmo rigor das leis aplicadas aos adultos. Sem incorrer em qualquer erro, podemos afirmar que esses jovens (crianças ou adolescentes) são os responsáveis por grande parte dos crimes brutais, que despertam nossos sentimentos de perplexidade e de repulsa frente às suas ações.
No meu entender, o que importa destacar é que os jovens que cometem tais tipos de delitos o fazem em função da sua natureza fria e cruel. Como se não bastasse, eles são favorecidos por uma legislação específica que atenua as suas punições, propiciando de forma "quase irresponsável" a liberdade precoce e a reincidência criminal.
Pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o tempo máximo permitido em internações na Fundação Casa (ex-Febem) é de três anos, mesmo que o crime cometido tenha sido de natureza cruel. Acrescenta-se a isso o fato de que, após ter cumprido as medidas socioeducativas, seus antecedentes criminais não ficam registrados. Se eles reincidirem após os 18 anos, são considerados réus primários. Isso implica dizer que suas fichas criminais voltam a ficar limpas, como se nunca tivessem cometido nenhum delito.
Não se pode contestar que o ECA trouxe avanços no combate à prostituição, ao trabalho infantil e à violência contra crianças. Mas sua parte punitiva se mostra excessivamente complacente com menores que cometem crimes graves. Geralmente são jovens que apresentam um perfil francamente psicopático. A lei que se aplica aos jovens que podem e devem ser recuperados é a mesma que beneficia aqueles que praticam delitos graves.
O caso abaixo exemplifica de forma bem clara a deficiência dessas leis:
Em 1999 Rogério da Silva Ribeiro matou o estudante de jornalismo Rodrigo Damus, de 20 anos, três dias antes de completar 18 anos. Rogério planejou o assalto e o executou com a cumplicidade de mais três indivíduos (todos maiores de idade). Motivo: obter dinheiro para realizar sua festa de aniversário. Os três estão presos após terem sido condenados a penas de 22 anos. Já Rogério, como ainda era menor de idade no dia do crime, foi punido com medidas socioeducativas. Após um ano e oito meses de internação na Febem (hoje Fundação Casa), Rogério foi solto.
O documentário Pro Dia Nascer Feliz, do cineasta João Jardim, lançado em 2006, mostra claramente a frieza e o sentimento de impunidade entre os jovens infratores no Brasil. Numa das cenas, uma jovem de 16 anos conta que assassinou uma colega porque esta a expulsou de uma festa. A menor matou a vítima com uma facada no corredor da escola apenas por vingança, sem qualquer vestígio de medo e de arrependimento. Ela sabia, assim como a maioria dos infratores graves menores, que sua pena seria no máximo de três anos de internação. Quando questionada sobre seu ato, limitou-se a dizer: "Porque não dá nada sendo de menor. Três anos passam rápido!".
Qual a melhor solução? Por tudo o que foi exposto, não há dúvidas de que estamos diante de um grande dilema. O que fazer quando criminosos perversos nesse país são menores de idade? Que medidas podem ser tomadas para que a sociedade não fique à mercê de jovens de natureza tão ruim?
Reduzir a maioridade penal? Criar novas leis?
A resposta a essas questões deve surgir de uma séria discussão que envolva não só as ciências naturais e o direito, mas também as demais ciências humanas, a sociedade civil como um todo e os verdadeiros representantes do Estado. Essa união social pode levar muitos anos para gerar frutos no dia-a-dia de cada um de nós e pode-se ainda chegar à conclusão de que não há possibilidade de se criar um critério rígido e padronizado para se determinar a idade penal mínima.
No entanto, é fundamental destacar que a redução da maioridade penal pouco vem contribuir para a diminuição da violência ocasionada por jovens perigosos, que são maus na sua essência. A meu ver, devemos avaliar a personalidade do infrator, a sua capacidade de entendimento dos seus atos, os seus sentimentos e a gravidade do crime cometido. Isso levaria a se considerar cada caso com sua justa individualização, tornando possível distinguir, de forma eficaz, os jovens que precisam e podem ser reeducados daqueles que são refratários a qualquer tipo de medida socioeducativa. Estes últimos, irrefreáveis e incompatíveis com o convívio social, devem ser rigorosamente punidos como adultos. Caso contrário, só iremos amargar cada vez mais a infeliz certeza de que eles não vão parar nunca.
(Ana Beatriz Barbosa Silva - Mentes Perigosas, O Psicopata Mora ao Lado)