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A grafiteira Kashink, anima os muros de Paris com gangsters a shamans. Do Afeganistão a Nova York, passando por Quito e Paris, seu traço estampa, nas ruas, a possibilidade de um mundo menos macho e menos capitalista
Por Priscilla Frank | Tradução Anna Beatriz Anjos, na Revista Fórum 


Há muitas razões para acompanhar e admirar Banksy, o rei anônimo de arte de rua, que vão desde seu engajamento político à inovadora maneira com que utiliza a internet como espaço de exibição de suas obras. No entanto, ele está longe de ser o único artista a empregar essas ferramentas, mesmo em uma escala massiva.
O jornal norte-americano The Huffington Post fez uma lista com dez artistas de rua tão boas quanto Banksy. Veja:

1. Kashink
Moradora de Paris, a grafiteira Kashink tem como especialidade retratar homens gordos e cabeludos com quatro olhos, que vão desde gangsters a shamans. Nos muros e também fora deles, ela desafia os padrões de gênero: raramente é vista sem seu bigode desenhado por um lápis. “Meu nome, Kashink, é uma palavra onomatopaica”, explicou em uma entrevista ao blogue Global Street Art. “Tirei dos quadrinhos que lia quando era criança. É um som que traz a ideia de ação”.

2. Miss Van
A francesa Miss Van, hoje moradora de Barcelona, é uma das pioneiras da arte de rua. Seus muros icônicos retratam mulheres barrocas vestidas com casacos de pele e pérolas. Quase sempre usando máscaras de animais – “Eyes Wide Shut”-, suas protagonistas femme fatale são igualmente sedutoras e perigosas. “Homens se atraem naturalmente, e mulheres se identificam com ela”, disse Miss Van à revista Juxtapoz sobre sua arte.

3. Clare Rojas
Rojas, artista que vive em São Francisco, transforma em imagens histórias folclóricas, nostálgicas mas subversivas, que desafiam os papeis de gênero enquanto emanam um senso de equilíbrio e calma. Seus trabalhos recentes são mais abstratos, canalizando sua energia criativa em colisões geométricas impressionantes. “Uma vez me disseram que o único jeito de não ter nada na cabeça é focar no corpo”, afirmou Rojas em entrevista ao Huffington Post. “Faço isso correndo, por exemplo. Sentindo minha respiração, meu coração bater, meus pés se mexerem. É assim que me sinto em relação à arte abstrata. É instintivo. Diz respeito muito mais ao ‘sentir’ do que ao ‘intelectualizar’.”

4. Lady Pink
Lady Pink, nascida no Equador e criada em Nova Iorque, começou sua carreira pintando vagões de metrô em 1979, e realizou sua primeira exposição solo aos 21 anos. Durante muito tempo, foi a única mulher grafiteira do cenário e, por um período, foi também uma feminista feroz, sem nem mesmo se dar conta disso. “Defendemos nosso trabalho com unhas e dentes e muita coragem”, ela disse ao Brooklyn Art Museum. “Quando homens te desrespeitam, você precisa ensiná-los uma lição. Senão, eles passarão por cima de você.”

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5. Maya Hayuk

Moradora do Brooklyn, em Nova Iorque, Hayuk é conhecida por utilizar técnicas e elementos da arte ucraniana em suas formas geométricas e psicodélicas. Algo entre delírios planos e uma colcha de retalhos tradicional, os murais de Hayuk são ao mesmo tempo intoxicantes e acolhedores. “Quando eu era criança, meus avós me ensinavam a fazer artesanatos como bordados e pinturas ‘batik’ em ovos, além de recitar poesias”, explicou a artista. “Essa foi, provavelmente, a primeira e mais forte influência na minha vida. Aprendi não apenas a ter mãos firmes e determinação, mas eles me ensinaram também a riqueza do significado de todos esses símbolos geométricos”.

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6. Olek
Polonesa, mas residente em Nova Iorque, Olek trabalha com crochês e constantemente transforma espaços, objetos e pessoas em telas para suas malhas. Combinando o engajamento punk, imagens pop e mensagens políticas, sua peças são esteticamente agradáveis e provocativas à mente. “Para mim, é crucial criar peças que funcionam em dois níveis: o conceitual e o visual”, ela disse ao Huffington Post. “A pessoa que passa pode olhar apenas de forma superficial, mas, intelectualmente, sabemos a história. É assim em todos os meus trabalhos.”

7. Lady Aiko
A japonesa Lady Aiko também vive em Nova Iorque e incorpora em suas representações lúdicas elementos da Por Art, abstracionismo, grafite e arte japonesa. “Acho que, por meio de meu trabalho, represento a energia feminina”, explicou ao The Telegraph. “Se no começo foi difícil, agora gosto do fato de que sou uma mulher em um campo masculino. Posso precisar de um degrau a mais na escada, mas ainda consigo chegar ao mesmo patamar.

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8. Faith47
A estética da sul-africana Faith47 traz espiritualidade e natureza aos ambientes urbanos, reproduzindo na vida real ilustrações dos contos de fadas. “Amo a maneira com que os trabalhos são temporários”, afirmou em entrevista ao portal Senses Lost. “Nada dura para sempre… O vento e o sol desgastam as imagens… É uma faísca que alguém pode ver, e depois se vai.”

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9. Shamsua Hassani
Hassani é uma das primeiras artistas mulheres do Afeganistão. Sua arte incorpora elementos temáticos, como a burca. “Muita gente esquece a tragédia que as mulheres vivem no Afeganistaão”, explicou em entrevista ao portal Street Art Bio. “É por isso que uso meus desenhos como um meio de lembrar as pessoas. Quero dar destaque a esse assunto na sociedade, com ilustrações representando mulheres com burcas em todos os lugares. Tento mostrá-las maiores do que de fato são, e também de forma mais moderna, relacionando-as com felicidade e movimento. Tento fazer com que sejam vistas de outra maneira.”

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10. Alice Mizrahi
Mizrahi, artista que vive em Nova Iorque, cria ilustrações de meninas e mulheres como “arquétipos sagrados”, na tentativa de empoderá-las. Além disso, junto com a grafiteira Toofly, fundou o Younity (http://www.theyounity.com/), um fórum de para artistas de rua mulheres. “Para mim, não há diferença”, disse Mizrahi para o site Street Art NYC, falando sobre seu trabalho nas ruas e em galerias. “Minha arte é minha arte, seja em um muro, em uma tela ou em um pedaço de madeira. Gosto de me expressar, me divertir e explorar. Não gosto de rótulos.”

ALICE-MIZRAHI

(Redação

O Outras Mídias é uma seleção de textos publicados nas mídias livres, que Outras Palavras republica. Suas sugestões podem ser enviada para caue@outraspalavras.net)

publicado às 11:24

Segregar transporte público é sugerir, como outrora, que mulheres são culpadas pela própria sexualidade – e pela dos homens…

No Rio de Janeiro já funciona há 7 anos, no metrô, um vagão exclusivo para mulheres. Desde o meio deste ano, o metrô do DF adotou a mesma medida e um projeto de lei tramita no estado de São Paulo para que o mesmo seja feito. O “vagão rosa”, como é conhecido em alguns lugares, já foi implementado no Japão, Egito, Índia, Irã, Indonésia, Filipinas, México, Malásia e em Dubai. Geralmente funcionam assim: nos horários de pico apenas ou prioritariamente mulheres podem ocupar o espaço do vagão. Isso garantiria, a princípio, que não fossem assediadas nos trens.
O fato de apenas países de cultura sabidamente machista terem implementado esse tipo de política pública não é uma coincidência. Observando um pouco mais de perto a questão, fica claro que além de não resolver nada e reforçar a heteronormatividade e o próprio machismo, os vagões exclusivos ainda fomentam uma outra forma de opressão de gênero. Acompanhem meu raciocínio.

Assédio, em todos os níveis
Quem nunca viveu ou viu uma situação de assédio em transporte público lotado? Em geral os assediadores aproveitam-se da superlotação dos trens para agir. Na cabeça dessas criaturas bizarras, as mulheres são corpos disponíveis, que existem no mundo para agradá-los. Essa é a faceta mais perversa do machismo estrutural, reproduzida e reforçada por homens que muitas vezes, na melhor das intenções, se dizem feministas: a ideia de que eles podem pautar o corpo e o comportamento das mulheres de alguma forma. Esse princípio está por trás de textos machistas do escritor Xico Sá, de versos de Vinicius de Moraes, mas também orienta ações como a de estupradores e assediadores (físicos e verbais) em todos os dias de nossas vidas.
Recentemente a força que esse princípio tem na cultura brasileira ficou evidente, quando os resultados da campanha “Chega de Fiu-Fiu”, do blog ThinkOlga, foram divulgados. Houve muita resistência de diversos homens em aceitar que aquela cantadinha que parece inofensiva acaba limitando a liberdade das mulheres de andarem como quiserem, por onde quiserem, na hora que quiserem. A grande maioria se recusa ainda a entender que nós mulheres não queremos sua opinião sobre como nos vestimos, sobre nossa aparência física, exceto em alguns contextos muito específicos. Quer dizer: novamente, as mulheres existem para os homens, na cabeça de tais espíritos sem luz.
O assédio é frequente, em diversos níveis. Qualquer mulher sabe disso, na pele. Então por que uma medida que (em tese) visa combater o assédio é mal-vista por tantas feministas? As feministas endoidaram de vez?

Os problemas da política dos vagões exclusivos
Para o azar de quem nos odeia, nós feministas ainda não perdemos de vez o bom senso. Vejam só: ao propor a separação de homens e mulheres como solução para o assédio, a política dos vagões exclusivos pressupõe três coisas – e é nessas três coisas que reside a opressão de gênero da questão.
Em primeiro lugar, os vagões exclusivos culpabilizam as mulheres pelo próprio assédio. A questão é abordada como se elas fossem o problema da coisa toda. Essa pressuposição fica clara na ideia de que as mulheres devem ser separadas da “população normal” (ou seja: homens; vejam lá Simone de Beauvoir com seu Segundo Sexo). Separar as mulheres – que são em geral as vítimas da agressão – significa dar liberdade aos algozes.
Quer dizer, os homens que assediam podem continuar assediando em outros espaços, sem que isso tenha nenhum tipo de punição. São comuns os relatos de recusa da segurança do metrô – e das polícias civil e militar – em tomar providências em casos de assédio. Muito comuns. Não é preciso ser nenhum gênio para encontrá-los no bom e velho Google (fica a dica).
Ao mesmo tempo as mulheres, que sofrem as agressões, são confinadas a um espaço limitado. Quer dizer: além dos assédios que limitam nossa liberdade, as políticas públicas que deveriam combatê-los fazem o mesmo. Não faz o menor sentido, não tem a menor lógica. Para sermos livres precisamos ser menos livres – é isso, mesmo?
Esse tipo de inversão cruel e bizarra acontece em várias outras situações de culpabilização das mulheres. Nas sociedades de cultura machista como a nossa, as mulheres são culpadas pela própria sexualidade – e pela sexualidade dos homens também. Assim, quando sofrem agressões, a solução é limitar, fiscalizar e controlar o corpo e as atitudes delas. Jamais o comportamento dos homens.
Daqui derivamos mais uma pressuposição problemática das políticas de vagões exclusivos: a de que seria natural dos homens não se controlarem sexualmente. Essa pressuposição é problemática em todos os níveis possíveis. Pra começo de conversa, porque trata o assédio e o estupro como se fossem parte do sexo, como se estivessem relacionados a desejo sexual e não a uma opressão e a uma questão de poder (três textos excelentes sobre isso, se você ainda não leu: no Biscate Social Club, na revista Fórum e no Bidê Brasil).
Além desse problemão, a proposta de segregar vagões nos diz que o fato de alguém “ser homem” (o que quer que isso queira dizer – falo brevemente disso em seguida) faz com que necessariamente vá assediar e estuprar mulheres. Não preciso dizer o quão irreal é essa suposição, certo? Há muitos homens que não estupram e um bom tanto que não assediam, nem o farão ao longo de sua vida. Só não arrisco dizer que são maioria ou minoria porque, de fato, não há dados estatística e sociologicamente confiáveis sobre isso (lembrando que ser condenado criminalmente por algo não significa que a pessoa realmente fez, nem que quem não foi condenado deixou de fazer).
Ainda mais fora da realidade do que isso, é a terceira suposição implícita nas políticas de vagões exclusivos para mulheres: a de que homens necessariamente têm desejo sexual por mulheres, e vice-versa. Chamamos essa pressuposição de “heteronormatividade”, e ela aparece também em vários outros contextos em nossa sociedade.
Separar as mulheres dos homens no transporte público, além de tudo que já mencionei, ainda reforça essa ideia retrógrada e surreal de que a heterossexualidade e heteroafetividade são o “normal”, o “natural”, e de que relacionamentos gays e lésbicos são exceção, aberração, etc. Ou seja, no fim das contas, políticas como essa do vagão exclusivo estão muito mais para Marco Feliciano do que para Simone de Beauvoir. Sacaram?
Ao criar esse vagões, assumimos que não haverá “desejo sexual” (ainda supondo que seja essa a questão do assédio – que, sabemos, não é) entre mulheres. Nem entre homens. Fingimos que também não existem vários tipos de assédio contra outras minorias no transporte público e no resto da sociedade brasileira (quem lembra de um adolescente que foi jogado de um trem por skinheads que encasquetaram que ele era gay, há uns anos atrás, em São Paulo?). Não vou nem me atrever a tocar na questão dos estupros corretivos a gays e lésbicas.
Dentro dessas minorias outras, talvez a que mais de ferre com essa separação dos vagões sejam os homens e mulheres trans*. Além dessas três suposições problemáticas das políticas de vagões exclusivos, então, temos mais um problema grave que elas alimentam: como definir quem é mulher e quem não é? Quem tem esse poder?
Na semana passada, uma mulher foi expulsa do vagão exclusivo no metrô do DF porque os seguranças do metrô “decidiram” que ela não era mulher. A definição dessa categoria – “mulher” – não é nada simples, e filósofas, antropólogas e militantes feministas de diversas áreas e profissões debatem exaustivamente a questão há décadas. Certamente na legislação dos vagões não há uma definição sequer sobre o que qualifica alguém de “mulher” e portanto dá acesso ao tal vagão exclusivo.
A classificação acaba sendo feita arbitrariamente pela aparência, portanto. Mas é a aparência que define se alguém é ou não é mulher? Definitivamente, não. O que define o gênero das pessoas é a identidade que cada um constrói para si com o passar dos anos. Dar aos seguranças do metrô o poder de definir quem é mulher, é retirar de cada um a possibilidade de viver sua identidade e sua expressão de gênero. É uma forma de dominação das mais abusivas e cruéis.
Sem nem entrar na discussão de que a identidade de gênero não precisa ser binária (homem ou mulher), e nem fixa para a vida toda, já temos bastante motivo ver que os vagões exclusivos são uma violência contra quaisquer pessoas que não sejam homens cissexuais, de aparência e comportamento lidos como suficientemente “masculinos”.
O vagão exclusivo para mulheres é, portanto, um retrocesso para as relações e opressões de gênero de todos os tipos, já tão consolidadas na cultura brasileira. Tudo o que não precisamos agora, enquanto tramitam o estatuto do nascituro e outros absurdos no Congresso, é de retrocesso.

(Marília Moschkovich)

publicado às 22:00

Nosso combate não implica negação absoluta dos padrões dominantes. Significa que podemos desprezá-los e reivindicar nossa luta e liberdade  
Não é segredo para vocês que sou feminista. Nem que tenho várias amigas que também são feministas (e outras que agem e pensam como feministas mas não reivindicam para si o rótulo). No dia-a-dia e na militância papeamos, agimos, refletimos para tentar desconstruir um sistema que está colocado em nossa cultura há muitos séculos: o machismo.
No entanto, nenhuma de nós é um ser humano isolado. Todas as feministas — como as mulheres não-feministas e os homens — foram educadas dentro desse sistema. A própria identidade de “mulher” que muitas vezes nos une (e que configura o sujeito político de nossa causa) está baseada no reconhecimento de masculinidades e feminilidades que são o bojo desse sistema.
Embora nenhum dos símbolos masculinos e femininos da nossa cultura seja capaz de definir sozinho a identidade de mulher (incluindo corpo, aqui, como elemento cultural), são suas combinações que o fazem ao longo dos anos de vida. Quer dizer, é por meio dessas referências de masculino, feminino e das relações complexas entre elas que eu me construo enquanto ser humano nesta sociedade, neste tempo histórico, nesta cultura. Daí a dizer que ser mulher, não ser homem (ou ser homem e não ser mulher) é parte da subjetividade de cada um. Vivemos e vemos o mundo segundo essa maneira de existir, na maior parte das vezes.
Na prática, isso significa que, enquanto sujeito-mulher, inevitavelmente me apego a definições e pedaços do sistema que cotidianamente procuro combater. Difícil, hein?
Por essas e outras, podemos encontrar milhares de contradições entre a luta política e diversas práticas cotidianas de militantes feministas — e me parece que isso funciona para outras causas como o anti-capitalismo de qualquer tipo, ou o racismo, e daí em diante. Compreender que a depilação dos corpos que se pretendem femininos é uma violência machista não significa imediatamente passar a se sentir bem com os pelos (e nem significa passar a se sentir mal com essa prática, no nível individual). Ao mesmo tempo, o fato de individualmente não me incomodar com a depilação e me incomodar com pelos não faz com que, por eu ser feminista, a depilação possa ser uma bandeira feminista (neste contexto, nesta cultura, neste tempo histórico, etecétera).
O salto alto é outro bom exemplo. Não é preciso ser muito original nem muito feminista pra perceber que o salto alto limita a possibilidade de movimento das mulheres, reforça a função decorativa que nos foi destinada cultural e historicamente e fragiliza nossos corpos. Essa informação não me fará necessariamente parar de usar salto alto, nem parar de gostar de estar mais alta, e nem meu uso do salto o transformará numa prática feminista. O ponto é justamente que o fato de ser feminista não garante que eu aja de maneira totalmente feminista o tempo inteiro. Isso seria impossível, tendo sido formada num esquema de pensamento machista e vivendo esse sistema todos os dias.
Onde está o feminismo, então?
O feminismo está no alívio em relação ao suposto dever de usar saltos. Está na compreensão progressiva, ao longo dos anos e de muitos conflitos e reflexões, de que não sou menos mulher quando uso salto alto. De que eu posso escolher usar salto alto. De que, caso não use, não devo ser desrespeitada por isso. Acima de tudo, o feminismo está na ideia (tributária dessas autocríticas e críticas todas) de que preciso ser tratada como um ser humano digno, independentemente de minhas escolhas no nível individual, independente de quão exacerbada, dentro ou fora dos padrões, possa ser essa minha “feminilidade”, essa “expressão” da minha identidade de gênero.
A diferença entre escolher olhar o mundo de maneira feminista — mesmo sem ser militante da causa, mesmo sem estar organizada em grupos ou instituições — e simplesmente reproduzir o machismo, reforçando-o, é precisamente essa: a consciência sobre a contradição, a abertura para a autocrítica, a convivência diária com o conflito e a reflexão. Pode ser um caminho deveras duro, mas certamente não mata — só nos faz mais fortes.

(Marília Moschkovich)

Marília Moschkovich (@MariliaMoscou) é socióloga, militante feminista, jornalista iniciante e escritora; às segundas-feiras contribui com o Outras Palavras na coluna Mulher Alternativa. Seu blog pessoal é www.mariliamoscou.com.br/blog.

publicado às 21:59

Vasta sequência de dados revela: desde pré-história, domínio machista está associado à especialização cultural dos homens no exercício da força bruta

A masculinidade, como todas as identidades, é social e historicamente construída em cada sociedade. Em quase todas, entretanto, há uma especialização masculina na violência.
Partilhamos de uma herança ocidental que traz nos étimos da própria língua os traços arcaicos, mas presentes, de formas de pensamento de longa duração. O radical latino que identifica o masculino, vir, é o mesmo que formará a palavra virtude, definindo a própria noção de virtude como algo masculino e, portanto, guerreiro. A violência viril é um emblema da masculinidade que nasce com as primeiras civilizações e permanece como essência do próprio conceito de civilização, uma civitas apenas de homens, mesmo quando concebida na forma republicana ilustrada moderna[1], onde mesmo o direito de voto feminino foi mais que tardio.
Tal situação nem sempre ocorreu. Mesmo que a ideia de um matriarcado historicamente anterior ao advento das civilizações patriarcais não seja algo demonstrável de forma generalizada, inúmeros autores admitem que “os namoros, dos quais dizem que Zeus teria cultivado com Metis, Themis, Eurinome, Demeter, Leto, Hera, Semele, Alkmena, etc., não são apenas expressões de antigas relações sexuais patriarcais, mas também ressonância de uma vitória de grande amplitude, que, no espaço do Mediterrâneo, tribos patriarcais haviam conquistado sobre tribos organizadas por matriarcado”[2]. A literatura antropológica também é rica de relatos de sociedades indígenas mais igualitárias e com papéis sexuais de gênero muito diversificados[3].
Apesar de referências antigas às deusas mães e a existência de descendências predominantemente matrilineares em certas culturas, o domínio patriarcal sobre a narrativa da história foi universal, atingindo até a pré-história.
O debate arqueológico também foi um campo no qual se construiu uma visão idealizada da supremacia masculina a partir da força física e da prática da caça da megafauna, praticada por homens, quando outros estudos vêm apontando, pelo contrário, o papel central da mulher e da sociabilidade feminina ligada ao parto assistido e à presença crescente do hormônio oxitocina, e à ideia da cooperatividade como padrão cultural bem sucedido na história da humanidade[4]. A “revolução criativa” de cerca de 40 mil anos atrás foi o resultado de uma sociotropia baseada no interacionismo cooperativo que levou aos utensílios complexos, à imagística e à arquitetura e não uma suposta “corrida armamentista do Paleolítico superior” de machos caçadores.
Foi o guerreiro masculino, entretanto, que despontou como o grande agente da história das civilizações. Briseida, como cativa de guerra de Aquiles, no relato da Ilíada, de Homero, é um exemplo prototípico do papel de prendas sexuais, de botim humano, que as mulheres foram submetidas ao longo de boa parte da história da humanidade[5]. Uma formulação explícita dessa ideia se encontra em Adolf Hitler, que escreveu em Mein Kampf que “as mulheres (…) assim também as massas gostam mais dos que mandam do que dos que pedem”.
Essa condição de uma atribuição guerreira ao homem e de pilhagem para a predação sexual à mulher acompanhou as sociedades humanas das primeiras civilizações ao século XX. Na segunda guerra mundial, a violência sexual contra mulheres alcançou dimensões quase sistemáticas, especialmente na vingança contra a população alemã desencadeada pelos exércitos vitoriosos, especialmente o soviético no front oriental[6]. No final do século XX, o uso do estupro como arma de guerra continuou a ocorrer em massa, da ex-Iugoslávia ao Congo.
Os homens são responsáveis, mesmo em “tempos de paz”, por 90% de todos os assassinatos cometidos na atualidade no mundo e por praticamente 100% dos estupros. Isso não deve, entretanto, nos levar a aceitar a tese do senso-comum de que o homem é naturalmente (“biologicamente”) mais propenso à violência do que a mulher. No artigo “Why Are Men So Violent?”[7], por exemplo, Jesse J. Prinz argumenta contra os que vêm determinações biológicas na maior propensão masculina à violência refutando a tese do “macho guerreiro” por natureza. As formações sociais surgidas após o Neolítico tenderam a reforçar o poder patriarcal e as condições históricas das representações da masculinidade como violência reforçaram as formas materiais da desigualdade no trabalho, na reprodução e na família.
A menor incidência feminina nos crimes violentos não impediu que muitas mulheres também cometessem assassinatos, mas no panorama europeu do final do século XIX, poucas eram as condenadas por esses crimes, especialmente se fossem mulheres de classes sociais mais abastadas. A tendência dos tribunais naquela época, sobretudo na França, sempre foi de absolvição dos crimes passionais femininos, sob o argumento da maior fragilidade emocional e mental feminina e sua maior suscetibilidade aos rompantes de passionalidade.
Os homens tinham o direito público à expressão da violência, não só como soldados nas guerras, mas por meio da ritualização masculina da ofensa à honra e sua reparação por meio do desafio ao duelo. Às mulheres, vetado seu espaço no teatro masculino da violência “honrada” em conflitos bélicos ou em duelos pessoais, restava um uso de violência por meios espetaculares emblemáticos, como os ataques com ácido sulfúrico, conhecido como vitríolo, que fez da mulher “vitriólica” uma expressão particular de uma violência vista como especificamente feminina: a da “criminosa passional”. Com a emoção excessiva, a mulher era vista sempre como uma histérica em potencial, e na visão médica oficial, a “superficialidade, infantilismo, imprevisibilidade e sugestionabilidade” eram as características femininas[8]. Isso, que também era chamado de “caráter mercurial”, opunha-se ao ideal de masculinidade do absoluto “sangue frio” diante do risco, da dor e da morte. Nesse aspecto, o duelo foi um emblema dessa identidade masculina e proibido às mulheres. Ao resenhar três livros sobre o assunto em “The Duel in the History of Masculinity” W. Scott Haine resume o enfoque historiográfico europeu sobre o tema[9].
A noção de “código de honra” com origem medieval evoluiu na época moderna para contemplar a burguesia em um novo padrão de conduta e num novo ideal de masculinidade que buscava disciplinar três atividades correlatas ligadas à agressividade e à competitividade que definiam o modelo de comportamento ético masculino: a guerra, o duelo e o esporte.
O código de honra masculino que regeu os duelos era um código costumeiro que subsistiu mesmo diante da proibição formal dos duelos, feita na França por Richelieu, assim como em outros países nos quais o estado moderno absolutista buscou um monopólio da violência.
Com a publicação de um novo código dos duelos na França em 1836 pelo conde de Chatauvillard, o Essai sur le duel, estabeleceu-se a primazia do duelo por esgrima até o “primeiro sangue”, o que fazia ser mínimo o número de mortes. Na Inglaterra, após 1850 também declinou a moda dos duelos. Mas na França ela se manteve numa média de 200 por ano subindo quando havia crises políticas como o caso Dreyfus. Na Alemanha, um padrão mais aristocrático militar prevaleceu fazendo da pistola a arma por excelência dos duelos, o que causava falecimentos em ao menos um quinto deles. Havia menos duelos na Alemanha, mas com resultados muito mais mortíferos. Até mesmo uma figura como o líder socialista F. Lassalle envolveu-se em um duelo, morrendo por isso em 1864. Embora formalmente proibido, até mesmo o chanceler Bismarck desafiou em 1865 o político e cientista Virchow a um duelo que não se realizou.
Na Itália moderna e contemporânea os duelos teriam perdurado mais tempo do que em qualquer outro país europeu e o próprio Mussolini teria participado ao menos de cinco quando jovem[10]. O modelo de identidade hipermasculina da Itália teria, dessa forma, muito a ver com a exaltação da violência agonística ritualizada.
No Brasil, o duelo sempre foi proibido, mas mesmo assim realizado. Como escreve J. R. M. Remedi, “em razão da proibição vigente desde os tempos coloniais das práticas de duelos, era considerado um crime lesa-majestade, ou seja, contra a honra do próprio imperador”, mas, “apesar de proibido pela lei brasileira, os duelos eram mais frequentes que imaginamos e, raramente, produziam condenações maiores aos praticantes”[11]. O caso mais célebre talvez seja o que envolveu o general Bento Gonçalves que, em 1844, considerando-se insultado desafiou seu camarada de armas, o coronel Onofre Pires, ambos líderes da revolução Farroupilha, e este último, ferido, acabou morrendo após alguns dias.
Esse duelo é emblemático, pois ambos os contendores eram primos-irmãos e amigos e camaradas de armas havia trinta anos. Bento, general dos Farrapos, começou a ser questionado pela facção liderada por David Canabarro, à qual se passou Onofre Pires. Após intrigas e acusações, Bento escreve uma carta pedindo confirmação das acusações e Onofre escreve outra confirmando, o que leva Bento a desafiá-lo ao duelo de espadas. Na manhã de 27 de fevereiro de 1844, vão a cavalo para um local onde lutam e, mesmo sendo mais jovem que Bento em 11 anos e de imensa estatura, Onofre é ferido no antebraço direito. O duelo acaba, o próprio Bento o socorre, mas a ferida gangrena e ele morre em poucos dias. Esse duelo, que foi tema de vasta literatura[12] e é encenado até hoje em comemorações de tradições gaúchas, sintetiza a tragédia da violência por honra que irrompe entre homens que se amavam como irmãos, mas chegam a se ferir de morte duelando.
A honra era ferida por palavras proferidas em público sem que tivesse havido posteriores desculpas também públicas, o que trazia ao ofendido, caso não buscasse uma reparação, a pior das vergonhas. A ofensa podia ser também a uma mulher, por palavras ou atos, o que levaria imediatamente aos seus parentes diretos a necessidade de restaurá-la por meio do sangue. Nesse caso, a escolha das armas cabia ao ofendido, sendo tradicional também no Brasil a opção entre a espada e a pistola. No caso gaúcho, especialmente na cultura da fronteira, uma modalidade de duelo comum era com o uso de facas.
Da mesma forma que no código francês de 1836, também no Brasil eram “frequentes os relatos dos duelos cavalheirescos em que os tiros são disparados para o alto, sem intenção de ferir o oponente. Tal situação se dava devido ao entendimento de que bastava entre homens de honra colocar-se de peito aberto frente a uma pistola para provar a sua coragem e resolução. Assim como muitos duelos acabavam nos primeiros ferimentos que vertessem sangue, quase sempre com a enunciação da conhecida sentença: um gota de sangue de um homem honrado é suficiente para retirar as nódoas da ofensa”.[13]
O estado mental da violência é assemelhado às vezes ao da fúria e, na busca dessa condição, os homens usaram, muitas vezes em condições de monopólio de gênero, drogas psicoativas capazes de alterar a consciência e aumentar a predisposição para a violência. A mais comum dessas drogas sempre foi o álcool, proibido ou censurado para as mulheres em muitas sociedades.
No livro Selvagens bebedeiras, João Azevedo Fernandes mostra como o uso das bebidas alcoólicas para fins de agonismo masculino, ou seja, de disputa e combate, foi uma característica marcante das sociedades ameríndias, servindo para a construção do “ethos guerreiro”.
Esse beber viril continuou a existir na cultura masculina dos bares, em que a quantidade de bebida ingerida equivalia à suposta masculinidade que se buscava demonstrar. Como escreve Jack London, em suas Memórias alcoólicas, “quando moço, graças à taverna escapei às limitações da influência feminina e me lancei no vasto e livre mundo dos homens” (p.14).
No Brasil, a cultura da aguardente foi fundamental para o desempenho da mão de obra escrava, especialmente no âmbito da mineração. Mais tarde, a vida urbana nacional também conheceu um uso de bebidas que eram servidas em estabelecimentos específicos, de frequência majoritariamente masculina.
O beber como “macho” toma também uma forma de duelo, em que se disputa a capacidade de ingerir maiores quantidades em menor tempo. O ambiente do bar se constitui como o espaço de socialização prioritário do trabalhador masculino, em contraposição ao ambiente doméstico governado pelos princípios femininos da vida familiar.
Em contraposição a essa vida pública masculina nos espaços da alcoolização, emergiu desde o século XIX um discurso médico, de matriz eugenista, que condenava as bebidas alcoólicas sob o argumento de que elas comprometem a masculinidade tanto organicamente, por provocarem impotência, atrofia dos testículos e até mesmo a morte, como do ponto de vista moral, por afastarem os homens da família e do trabalho[14].
O declínio da prática dos duelos no mundo ocidental foi acompanhado da institucionalização cada vez maior dos esportes como arena das disputas masculinas, onde a própria esgrima e as artes marciais em geral assumiram cada vez mais a condição de uma prática esportiva do que de uma luta. Por essa razão, a participação feminina nos esportes foi muito limitada até o final do século XX. Mesmo em maratonas, mulheres não eram admitidas até os anos de 1970. A elevação do duelo esportivo à condição emblemática da disputa viril ritualizada com violência atenuada pode se verificar numa pesquisa da ocorrência da palavra “duelo” num programa de busca na Internet, em que praticamente todas as menções vão tratar de esportes.
O exercício da violência como prerrogativa masculina extravasou a esfera direta do conflito militar para investir toda a representação da masculinidade com os seus atributos: códigos de honra como “códigos de cavalheiros” na ritualização da agressividade e no seu direcionamento a formas atenuadas de disputa, tanto no âmbito dos esportes, como nos duelos e nas práticas de ingestão alcoólicas, todas codificadas como exercícios de masculinidade. A virilidade assim se constitui como um conjunto de hábitos e símbolos, como vícios da violência codificada e protocolada em que o lutar, o jogar, o beber, o brigar são socialmente moldados como representações do duelo, de forma a inscrever a diferença dos sexos num teatro social em que o protagonismo da violência literal e simbólica é estabelecida como a virtude por excelência dos homens, mesmo que estes cenários venham sendo, nas últimas décadas, alterados pela emergência dos movimentos feministas e de igualdade de direitos que conquistaram para as mulheres espaços crescentes na vida pública, nos esportes, no consumo alcoólico e mesmo nas atividades militares.

Henrique Carneiro é historiador, bacharel, mestre e doutor em História Social pela USP. Professor na cadeira de História Moderna no Departamento de História da USP (Universidade de São Paulo), é também pesquisador do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (NEIP). Publicou seis livros e diversos artigos para jornais e revistas acadêmicas (ver aqui). Sua linha de pesquisa atual aborda a história da alimentação, das drogas e das bebidas alcoólicas. Seus textos publicados em Outras Palavras estão publicados aqui

publicado às 13:47


Das máquinas de consolo

por Thynus, em 18.09.14
Ela dadeira, dando sempre até a morte. A cuidadeira, carinhosa, trepadeira. Já a programação do macho é outra: ele não se move muito 
Ela precisava de carinho, mas ele continuava com seu auto-centramento habitual, falando das suas misérias, das injustiças da vida, das esperanças remotas mas ainda existentes — que lhe aqueciam nos dias mais frios. E aquele dia era um dos mais frios de São Paulo. Ela se retorcia toda, se enroscava pela mesa, pelas patas da mesa, colocava a bunda mais próxima ainda da ponta da cadeira, para poder fazer carinho naquele cara. Ela queria que ele fizesse aquele gesto, porque ela estava carente, desolada, queria que ele se retorcesse e passasse delicadamente a mão no meio dos seus olhos, entre suas sobrancelhas, que insistisse nesse pequeno gesto até que aquela coisa ruim dentro dela se dissipasse, mas isso não seria possível sem um pedido explícito, que poderia vir talvez com algum tom de reclamação, seguido de um mal estar, que originaria uma briga e causaria uma sensação de frustração completa e cansaço. Então ela o acariciava sem pedir nada em troca.
Eram os gestos de amor programados nela desde criancinha. Ela foi educada para acariciar seu homem, abraçá-lo, lambê-lo, lhe fazer cafuné, passar a mão na sua testa, nos seus lábios, nas suas armaduras. Ela sabe o poder que tem quando lhe esfrega as têmporas e consola sua dor. Ela fica convocando com a mão aquele lugar onde ele se entrega, reconhece coisas que não conseguiria reconhecer em um ambiente mais hostil, mais gelado. Esse lugar poderia ser o restaurante, onde todo mundo senta e come, mas as mãos milagrosas das cuidadeiras são capazes de transformar qualquer lugar em outro lugar mais afável.
A cena clássica da programação de gênero. A mulher consoladora, ouvinte, companheira, a que dá carinho, a que se dobra pra se encaixar na posição do macho, da que destrambelha o caminhar, o sentar na cadeira, modifica suas posturas corporais para encontrar a face, o peito, o pé do seu macho, que além de ter nascido para ser amado, precisa mais que tudo, de consolo ininterrupto, e não foi educado pelas mídias, pelo cinema, pela literatura, pela História, pela família a ser recíproco nisso. Ela dadeira, dando sempre até a morte. A cuidadeira, carinhosa, trepadeira, a máquina de consolo.
A programação do macho é outra. Estão acostumados com uma cultura geral que lhes diz que precisam de cuidados especiais porque são eles que sofrem, eles que habitam os domínios do demasiado, são eles que chegam da guerra, eles chegam da aventura, eles chegam das confusões do mundo, e ali está a figura da mãe, da avó, da mulher, da parceira, que vai lhe abrir os braços e acariciar. Ele não se move muito, não se destrambelha tanto, não se atira em contorcionismo para alcançar o rosto dela, o pulso dela, o pescoço dela, a sobrancelha dela de forma gratuita. Esses gestos só são produzidos na intimidade do lar, da cama, do sexo. Daí se sobrepõe nesse desejo toda uma outra produção semiótica, comportamental, que a industria pornográfica sabe bem como conduzir. O macho na cama, do pau duro e grande, o comedor, fodedor, o que tem os buracos do seu corpo parcialmente fechados, o que não pode fazer certos gestos na cama, pois isso o faria bicha, brocha ou pior que tudo, mulherzinha.
Ela continua precisando de carinho enquanto pensa tudo isso, mas já se consola sozinha, não vai pedir mais, não vai reclamar mais, não vai colocar a mão dele em sua nuca e torcer os dedos dele para lhe ensinar a acariciar, imaginando que se soltar a mão, ele vai continuar lhe fazendo carinho por mais algum tempo, sem parar. Ela já sabe que não vai ter isso nem do pai, nem do filho, nem do marido, nem do amante, nem do irmão. A máquina de produção de cuidado caiu para lado do gênero dela, ela tem que fazer nos outros os carinhos que gostaria ela própria de receber.
O cuidado, o carinho, a carícia poderiam ser tratados como elemento fundamental da sociedade. Os trabalhos voltados para o cuidado deveriam ser os mais valorizados; mas ao contrário disso o que vemos é um consolo químico, farmacêutico, cada vez mais atrelado ao processo industrial, que se afasta radicalmente do chazinho carinhoso das mãos prontas para acarinhar. O carinho perde para o ansiolítico, o consolo é um comprimido, o cuidado se compra nas salas de massagem. E no casal hétero-normal, é ela que tá lá, bunda estreita na cadeira, lhe dando a carícia.
Saí do restaurante pensando que os homens poderiam aprender a ser mais carinhosos, fazer carinho, acariciar, consolar e cuidar.

( Fabiane M. Borges)

publicado às 13:45


Propriedade privada: não entre

por Thynus, em 17.09.14
Questão fundamental dos relacionamentos deveria ser amor; mas crença na “fidelidade” interrompe fluxos, suscita fantasmas e impede viver criativo
“É pena que você pense
Que eu sou seu escravo
Dizendo que eu sou seu marido
E não posso partir
Como as pedras imóveis na praia
Eu fico ao seu lado sem saber
Dos amores que a vida me trouxe
E eu não pude viver…”
Raul Seixas

Por que a traição nos afeta tanto? A simples possibilidade da infidelidade em um relacionamento deixa alguns desesperados que nem crianças. Outros parecem não se importar, porque criaram uma defesa que os torna mais frios e também menos abertos à entrega amorosa. De qualquer forma, quando algo que cheire a infidelidade acontece, é uma avalanche, porque sempre há uma dor muito profunda em jogo.
Esta é uma questão que até hoje causa um grande desgaste nas relações, mas também tem sido fruto de debates importantes sobre o modelo monogâmico de família. Muitas pessoas já se arriscam a viver diferente.
Na Comunidade Osho Rachana, experimentamos novas formas de nos relacionar. Os casais, por exemplo, escolheram viver em casas separadas, mesmo com filhos. Não estou dizendo que a fidelidade não seja uma questão forte ainda. Mas buscamos em nossos trabalhos emocionais compreender melhor as causas do desespero.
Como Sartre e Simone de Beauvoir, poderíamos aceitar que nosso amado realizasse seus desejos e simplesmente dizer: “Eu te amo meu amor, portanto, se você sentiu atração por outra pessoa, tudo bem… Você vai ficar mais completa/o e assim a gente vai poder se amar mais”. Mas sabemos que este papo é balela na maior parte das situações.
A realidade da maioria dos mortais é bem menos libertária ou poética e o que acontece é que um parceiro tenta dominar o outro e fazer “contratos” reais, verbais ou até mesmo acordos silenciosos para evitar esta possibilidade. Apenas esquecemos que estes contratos vão também destruindo o amor.
Segundo o terapeuta corporal Prem Milan destaca em seu livro Por que você mente e eu acredito?, é um grande equívoco nos comportarmos como se tivéssemos várias torneiras que pudéssemos abrir ou fechar. “Eu fecho aqui para o João, aqui para a Maria, ali para a Francisca e mantenho aberta só para o Antônio. Esse é um erro, uma vez que a torneira da energia é uma só. Você não pode interromper seu fluxo para uns e abrir para outros. Quando você corta a possibilidade de exercer ou sentir atração fora do relacionamento, tem início um processo de perda da sensualidade. Para atender às expectativas inconscientes do outro, você passa a se vestir mal, a engordar e não se cuidar direito.”
Para não atrair outras pessoas, acabamos ficando não atraentes para nosso parceiro também. “Já não existe criatividade na relação, o sexo já não possui aquele fogo do início, não há mais espaço para o inusitado. Isso porque grande parte da energia dos dois está sendo reprimida em nome de um pacto de fidelidade que não é natural”, afirma Milan.
É claro que não existe uma fórmula de comportamentos ideais nem um manual de instruções. Tudo depende dos limites, dos sentimentos e das escolhas de cada um. Mas uma coisa é certa, conclui Milan: sempre que dizemos que aquela pessoa é nossa propriedade, o amor começa a morrer. E ele deixa claro que não defende que não existe fidelidade. “Quando se está amando profundamente, a gente só quer saber do toque da pessoa amada, só quer para si aquela energia. Mas essa é uma fidelidade que brota naturalmente, não fruto da repressão de seus impulsos e instintos. Nada garante que o desejo de ser fiel vá durar para sempre.”
Forçar a barra no quesito fidelidade tem causado grande dano aos relacionamentos, pois o amor nunca foi posse. O amor é liberdade. “A confiança no amor, mais do que na pessoa amada, é algo fundamental a ser resgatado. Sem ela, o medo do julgamento, do abandono e da rejeição estarão muito presentes, tornando quase impossível a entrega”, conclui Milan. Na sua visão, não olhar mais profundamente para esta questão implica em amar superficialmente, sem viver a verdadeira beleza do amor, sem viver o êxtase sexual, aquele momento em que nos perdemos em explosões orgásticas e que só acontece se estivermos confiando.

( Katia Marko)

Katia Marko é jornalista, terapeuta bioenergética e uma pessoa em busca de si mesma.    Mantém o site: http://www.engenhocomarte.com.br

publicado às 13:57


Fêmea: Levar um fora

por Thynus, em 17.09.14
Ela não sabia, mas talvez precisasse ou quisesse afundar um pouco. Entrega e tristeza: duas obras de transformação, duas companheiras   
Muito bacana saber que você pode
ser jogada nessa altura da vida para o espaço
embora caindo na Terra abra um terrível rombo
e o viva um pouco como um abismo sem fundo”
Lygia Clark, em carta a Hélio Oiticida
 “Post coïtum animal triste”… Esse filme ( França, 1997) realmente me marcou. A mulher se apaixonou por um desses viajantes bons amantes, cheios de boas intenções, que faz projeto solidário na África. Todo bonito, inteligente, encaracolado. Ela já com a vida a tope, sustentando autores nobres com sua linha editorial. Lia muito, escrevia texto, crítica no jornal, filhos adolescentes, casamento tradicional, tudo encaixado como deveria ser para uma mulher de meia idade, reconhecida na cidade e no mundo todo. Não digo rica, mas abastada, respeitada, admirada, solicitada, ocupada, a vida em riste, a vida em comida boa, em cultura fina, sucesso, sucessagem! Champanhe!
Foi numa dessas crises de um dos seus autores que apareceu o rapaz galante bom amante, que a enlouqueceu. Ela ficou animada, tarada, trepou, pirou, não quis saber de mais nada. Eu amo você!!! Eu amo você!!
Tantos filmes sobre amor no mundo e esse me deixa assim, em estado de suspensão. Porque ela virou um animal, ela se entregou de um jeito que nem ela sabia ser possível. Ela desejou aquilo pra dentro da sua vida. Era poesia, metafísica, era pathos, paixão, buraco no chão, era mais real do que uma ostra, ela queria aquilo com toda a força.
Seu marido e seus dois filhos tiveram que assistir às cenas de sua decadência. Ela sucumbiu quando o moço lhe deu um fora. Foi para a África, seguir a vida. Ela se deprimiu. Sua casa virou um enxame de ratos, seu trabalho: trapo, sua comida: verme, sua estabilidade: lixo, sua dignidade: raspa. Ela não tinha mais nada. Os amigos, os chegados, todos preocupados, querendo tirá-la do buraco onde se enfiou, mas nada conseguia combater aquela anarquia instaurada nas pupilas encharcadas, nas axilas fedorentas, nas gargalhadas exageradas. Seu sofrimento era grande, enorme, destamanhado. Ela sofria.
Como uma mulher de meia idade cai desse jeito no fosso da gravidade? A Terra puxava-a para baixo 49 vezes mais forte do que qualquer outro ser na superfície. Ela teve essa sensação de abismo sem fundo, como diz Lygia Clark.
Mas a coisa de ter meio século. Qualquer uma já teria aprendido a medir o passo, a não pisar em falso, a suportar o tranco, se segurar no barranco, não pisar na beira da cacimba, não perder o salto na esquina. Qualquer uma com seu status, já teria aprendido a dizer não pra todo esse alarde, esse chamarisco, essa conversa pra boi dormir. Não era porque não tinha experiência que se entregou desse jeito. Não era. Era outra coisa.
Sofrer assim uma falta, uma foda, uma felicidade. Não comportar nenhum excesso, desaguar por completo, um sentimento que vinha com sentido, como sina, senha, saída. Precisava descarrilhar para rearranjar alguma outra forma de vida, por ter a outra já esgotada? Um sofrimento que dá inveja de tão presente, tão centro de tudo, tão astro, tão fogo. Ela não sabia mas no fundo talvez precisasse, ou quisesse afundar um pouco, sofrer por amor era um jeito de poder sentir a vida mais presente e o sofrimento também é transformação.
Não é piegas, talvez seja piegas, mas sofrimento muda as coisas. Depois de um sofrimento bem curtido na água salgada, no cheiro ruim, na comida podre, na taquicardia, na respiração apertada, no suor frio, na vontade de nada, depois de se passar por tudo isso, algo se transforma e a tristeza, companheira das horas difíceis, parte. Intermitente, mas não mais tão presente.
Quero me deter só um pouco nessas duas coisas: a entrega, a tristeza.
Duas forças de resistência.
Duas obras de transformação.
Duas companheiras.
Porque da entrega sabe-se que é dada à vida, mas que pode matar, como qualquer imersão, salto das alturas.
Porque com a tristeza se pode acessar dados que os outros estados de humor não dão. Mais rente ao chão, dentro do chão, mais perto da desintegração, mais perto da morte, mas é também ponto de resgate.
Levar um fora tem dessas coisas. Dessas companhias…
E por falar de saltos e abismos, no final do filme tem essa cena belíssima, feita em Lesbos, na ilha de Safo. Segundo algumas lendas, há uma montanha em Lesbos onde diz-se que Safo se suicidou. Os amantes, os apaixonados não correspondidos, os que levam um fora, têm naquela rocha uma espécie de desafio. Se atirar de um lugar tão alto e sobreviver nas águas lá embaixo quer dizer que se atingiu o ponto de mutação. Algo se transforma. No filme, ela se atira sozinha de cima da rocha e sobrevive. Foi feito o rito de renovação. Ela sobreviveu a Safo, algo tão importante para as mulheres, e para qualquer pessoa.
E depois, o que não diz no filme, ela talvez tenha tido essa sensação que Lygia Clark teve, ao falar sobre uma paixão não correspondida que viveu na França: “Muito bacana saber que você pode ser jogada nessa altura da vida para o espaço embora caindo na Terra abra um terrível rombo e o viva um pouco como um abismo sem fundo. Foi graças a isso tudo que pude recomeçar a trabalhar, pois tive uma enorme e profunda necessidade de expressão”.

publicado às 13:55

“Ela queria fugir da Europa, fazer o caminho oposto do resto da civilização. Incivilizar. Involuir. Precarizar. Tornar-se outra coisa” 
“Há um ditado cigano que diz ‘Vivemos porque
caminhamos’, e outro que se refere à importância
de sua função: 
‘Enquanto o cigano nômade
continuar caminhando, o eixo da terra continuará
girando’”.
Valeria Sanchez – “Devir Cigano” 2006
Zigarina é uma italiana que se apaixona em Paris por um músico que precisa voltar para a Transilvânia, por não ter conseguido o visto de permanência na França. Ela parte com uma amiga dois meses depois, atrás dele. Ela o encontra, mas ele não a quer mais. Ela não diz que está grávida. Tudo indica que não quer uma situação de negociação em relação a isso, pois o que importa é a reciprocidade da sua paixão. Daí começa sua saga de ritos de despossessão, já que declara que está com o coração possuído.

Chamo esses ritos de performances, porque uma resolução estética é dada para uma tensão interna, biográfica. Ou seja, existe uma tensão que é desobstruída pelo improviso performático. Essas performances são feitas por ela na busca de dar vazão à dor que sentia diante da impossibilidade do amor.
Performance 1 – Ela vai para a rua durante as comemorações da festa de Herodes, o que mandou cortar a cabeça de João Batista. Ela atravessa a procissão festiva na contramão, atirando-se nos braços das pessoas, gritando e chorando, a louca da festa pagã. Milhares de pessoas nas ruas e ela tão sozinha. A imagem da solidão povoada, da estranheza absoluta, ela própria João Batista, com a cabeça pedente entre ombros desconhecidos.
Performance 2 – Ela vai para uma festa e dança bêbada quebrando pratos. Erotizada, tira a parte de cima do vestido e dança como uma estrangeira dança, com suas botas de couro e vestido negro. Toda europeia, quebra os pratos com vontade, dando sentido para o gesto tradicional do país, o despedaçamento dos vidros. Ela se quebra prato, ela estilhaço e barulho. Sensual e quebradeira. Os pratos que levam a cabeça de João Batista, a sua cabeça, tornando-se cacos. Ela é a mais pagã das pagãs, e a que mais tem fé.
Peformance 3 – Ela abandona sua melhor amiga numa fronteira, parte com uma menina de rua, entra em um devir nômade, decai a uma situação de miséria e dificuldade. Uma criança mendicante — era a sua própria condição. Vira criança e não tem mais nada. A criança diz: Acorde, Acorde. Ela responde: Por favor, não me olhe desse jeito, e tapa os olhos da menina. Zigarina menina, perdida, num pais estrangeiro, mendiga.
Performance 4 – Ela sai de um carro aos gritos, escandalosa e louca, corre para dentro de uma floresta outonal até cair no chão, se abraça no chão e tenta se tapar com folhas secas e barro, tenta se colocar na terra, dentro da terra. Se exaure e por fim desmaia. Ela desfragmentada, querendo o consolo da terra fria, tenta algum pacto. Escandalosa e zonza, Zigarina folhas secas. A Terra como o fim e o princípio, enterrar-se, morrer-se de si. Quer ser outra coisa, quer ser floresta nua, quer se enterrar no chão. A Terra amante e mãe, ela criança e mendiga.
Performance 5 – Vai a uma igreja ortodoxa cristã e faz um rito com velas e leite. É banhada de cima a baixo enquanto passa pelo exorcismo litúrgico e sincrético. Ela está disposta a passar por aquilo, e acredita nos que estão conduzindo o rito. Ela crente, afeita a qualquer fanatismo. Qualquer fanatismo que tire a obsessão do seu peito. É intensa e urgente, ela tem pressa, fanática e demente, ela se entrega, discreta. O mercenário que a levou, não paga pelo rito de cura, ela também acredita nele.
Performance 6 – Ela parte com o mercenário enquanto sua barriga cresce e ela encontra nele um novo amor.
Zigarina, Zigarina, dolorida e linda. Capaz de qualquer coisa. Ela está fodida e mal paga, está arrasada, por isso quer cortar a cabeça, quebrar pratos, virar menina de rua, se enterrar na terra debaixo das folhas secas, fanatizar. A barriga crescendo fruto de um amor tão infeliz parece criar um trato entre ela e a Terra daquele homem. Ela queria viver o multiculturalismo a transmusicalidade, a industrialização ainda precária, a não tão premente tecnologia da Transilvânia? Ela queria fugir da Europa, fazer o caminho oposto do resto da civilização. Incivilizar. Involuir. Precarizar. Tornar-se outra coisa. Ela estava de luto pelo fim do amor, pelo fim das matas, pelo fim das águas, pelo fim da Terra.
Me impressionam esses ritos performáticos irrefletidos e escandalosos de Zigarina, as manifestações da dor e o processo de expurgação da paixão que lhe possuía, que lhe endemoninhava. Algo de fora tinha se atravancado no meio do peito dela, algo maior que o corpo, que não cabia no corpo, muito menos no meio do peito e por isso produzia tanto sintoma, tanto sufoco, tanta dor no estômago.
O verbo é corpo, o signo é carne. Do que é feita uma memória? Quantas atualizações de memórias ela produzia com esses gestos atávicos, com essas sucessivas manifestações do incômodo que o encosto lhe produzia? Ela sofria por ela mesma e por todos os rejeitados. Tudo virava seu corpo, sua carne. Ela extravasava as dores dela no mundo, e as próprias dores do mundo no mundo, enquanto fazia esse trabalho, se tornava cada vez mais cigana.
O olho preto desenhado na mão. As saias cada vez mais compridas, as cores cada vez mais vibrantes. Uma cigana solta, sem eira nem beira, sem passado cigano, sem tradição ou compromisso, sem tenda, bando ou caravana. Uma nômade dolorida e mal educada, que assombrava com seu comportamento as tradições das pequenas cidades por onde passava. Uma cigana em processo produzindo uma dobra de mundo, única, incontrolável. Seria o ar da Transilvânia que promovia nela essa ciganeira toda? Seria a música a qual ficou exposta enquanto atravessava o país em busca de Milan, que ativava uma cigana escondida nela desde algum passado indeterminado, feito de imigrações, prisões, refúgios, diásporas?
Virar cigana, na contramão da história, sendo que os ciganos se adaptam a passos largos às regras dos gadjés (brancos). Já não podem nomadizar como antes, sempre foi difícil, mas agora tem o sistema de controle acirrado em cima deles, filhos na escola – eficaz forma de domesticação, sedentarização e implantação dos valores e cultura de um pais. Redes de internet, cada um com seu laptop, trabalhos, compromissos. Tecno-ciganos. Sedentarizados por força de uma modernidade que imprime outras formas de nomadismo no mundo, bem diferente das tradições ciganas para as quais, na maioria dos casos, “sonhar” significa “ver”. Quando o nomadismo pode significar traição ao território, as leituras de mãos, a adivinhação, as roupas alegres tudo isso fica meio pobre, meio superstição, visto como coisa de gente atrasada. Como ser cigano na contemporaneidade? Como devir cigano em tempos em que o nomadismo em tendas é visto como um maneirismo idiossincrático e fora de moda? Em tempos em que o nomadismo é esquadrinhado por projetos específicos e sempre a serviço de algum objetivo outro do que o próprio modo de vida dos ciganos?
Identificação, serialização, ordenação, manutenção, controle, pacificação, modificação das formas de organização, representação, encaixe nos sistemas de Direito, tudo isso vem junto com a relação com o Estado, como o sabem bem os povos indígenas, que ao mesmo tempo em que aos poucos ampliam seu poder de negociação e barganha, por outro lado se embranquecem nesse processo, adquirindo por exemplo, os modos de fazer política dos brancos. De modo que pergunto: como devir cigano em meio a todo esse processo civilizatório fominha?
Zigarina traz uma alternativa charmosa para essa questão, que nem de longe responde ao dilema dos povos ciganos, mas serve de suporte afetivo e conceitual. “Devir cigana”. Aciona em si o imaginário produzido por esse povo pelas terras do mundo, em toda sua estrutura mítica, do destino atrelado à sorte e ao azar, à alegria e à dor, à visão lúcida dos sonhos, da música, dança, trabalhos manuais, nomadismo. Zigarina performatiza tudo isso, inventa uma cigana em si, e libera a ciganería de todos.
Performatizar o desespero até o ponto de encontrar a medida certa, e no caso de Zigarina a medida certa não tinha nada a ver com seu passado franco-italiano classe média, mas sim com uma desmedida, uma improbabilidade. Grávida, sofrida, escandalosa, embrutecida, estrangeira, cigana, habitante das bordas.
Esse devir cigana, essas ritualizações do seu processo doloroso, essas manifestações performáticas do luto, reconfiguraram Zigarina. Comportamento redistribuído – seus gestos ganharam dimensões mais espaçosas, suas roupas largas lhe deram mais liberdade, ganhou apetite pela estrada, tornou sua desterritorialização seu ambiente natural. Sem terra, sem teto, sem direitos, cigana, toda politicamente incorreta: não corre atras do reconhecimento da paternidade, fuma e bebe grávida, sai a viajar com um completo desconhecido. Desaparece para o mundo de onde veio.
O mercenário é um super-macho rude, grosso, mas cuidadoso, que lhe convida a experimentar seu modo de vida, enquanto cuida daquela barriga que era de outro, não dele. Ele aceita mãe e filho, não sem performatizar também, convocando um grupo de músicos para tocar só pra ele quando a criança nasce. Dança e quebra as garrafas vazias na própria cabeça, o sangue escorre, a música cessa. Uma bodyart. Ele se envolve com Zigarina que está nessa situação limite, em processo de despossessão, ele se encanta por seu modo de ser, e especificamente, de sofrer. Imagino-o pensando: Zigarina, Zigarina, dolorida e linda. Uma cigana em processo não poderia abdicar da dor, de vivê-la, expressá-la, mantê-la próxima.
Talvez esse devir cigana esteja ligado a uma imanência atemporal, que cumpra uma função importante, que é a de não deixar morrer o tônus do cigano no mundo. Como se o devir cigano transcendesse a essência cigana, e fosse uma espécie de gosma invisível que se acessa com determinados gestos e ideias. Os ciganos também podem tornarem-se ciganos. Zigarina tornou-se cigana. Cigano aqui como povo, cultura, mas além disso, como percepção da vida, como perspectiva particular, cuja força se atualiza em diferentes formas de existência, para cumprir seu destino: fazer caminhar, produzir nomadismo, só com esse perpétuo movimento é que o eixo da terra continua girando. No final das contas, foi esse o trabalho de Zigarina, manter o eixo da terra em movimento.

publicado às 13:52


Fêmea: A habitante dos abismos

por Thynus, em 17.09.14
Apesar do nariz empinado levá-la pro alto (as festas mais badaladas, as classes menos operárias, o champanhe de graça com fartos comentários sobre cinema e bolsa de valores), não era raro voltar ao lugar de origem 
Mãe pobre e alcoólatra, pai abandonado, toda sem eira nem beira, a não ser a irreverência, a inteligência e o nariz empinado. Era uma esponja para tudo que era liberdade, os saraus das madrugadas, as drogas uma a uma, gostava de alucinar, de dançar, ia a todas as festas. Aprendeu a se virar desde cedo, ora sendo namorada, ora vendendo salada, ora pousando de rica na esquina, porque dizia que se você se finge de rica, a vida acredita e dá crédito. Sempre colocava suas credenciais em tudo que fazia, era uma espécie de picho. Suas iniciais na cidade, como quem diz, és minha!
Também era companheira, emprestava o ouvido para as histórias mais tristes, dormia junto com os solitários, com as vazias, fazia massagem, falava asneira. Criou uma rede interdependente, com quem contava nos dias de seca, sem dinheiro, sem abrigo, quando bêbada perdia a hora, o celular, a entrada, a dignidade, quando toda sua pobreza pesava. Era frequentadora dos abismos. Apesar do nariz empinado lhe levar pro alto, para as festas mais badaladas, para as classes menos operárias, pro champanhe de graça com fartos comentários sobre cinema e bolsa de valores, não era raro voltar ao lugar de origem, o abismo. Naquele lugar ficava mais atenta ao eco do mundo, se irmanava com os desvalidos, com as que não tinham força pra conseguir com aquilo tudo que era prometido na televisão. Ela sabia que era feita para viver como larva, toda sua condição existencial a levava nesse sentido. O lugar onde a gravidade puxa mais forte. E assim, rente ao chão por vezes chorava. Não sofria só por si mesma e seus companheiros fodidos, mas também pelas plantinhas que já não existiam na volta do poço sem fundo, não havia mais árvore para acolher sua dor, a beira do abismo era um cemitério de árvores. A fumaça sufocava o grande buraco junto com o barulho da fábrica. Não havia consolo ali, apesar de saber que era dali que tinha brotado, como um pasto mil vezes ruminado e por fim expelido pelo reto de algum bode desalmado. Era difícil fazer poesia ali.
Quando cansada de sentir a dor do mundo, fincava a metade do rosto no chão, liberava um olho para dentro do abismo. Empurrava mais um pouco para dentro o nariz para ver se vinha algum sopro arejado, que lhe desse ideia de como voltar a frequentar aquele outro estado, que não lhe era natural, mas lhe era agradável. Do falar e comer bem, do não passar necessidade, do se divertir à vontade sem preocupação. Do estar com a vida segura, assegurada, asseada, de ser limpa, reconhecida, socialmente acolhida. Para sustentar tudo isso precisava de muito trabalho, tinha que fazer networking, terminar a faculdade, criar identidade, esquecer o abismo e todas essas sombras funestas que lhe puxavam pra baixo, tinha que ler auto-ajuda no banheiro, sem contar o segredo, emprestar os olhos para as seduções mais inesperadas, fazer caras e bocas, não emitir opinião de fato, lidar com tato contornando as situações. Precisava ser atrevida, empoderada, bonita, sempre bonita. Pesava-lhe ter que ser bonita, não deixar cair os olhos, aproveitar a juventude, não mostrar seu lado pobre, atrofiado. Precisava inventar a roupa, ser discreta, só as vezes piriguete. Fazer conchavos, prestar serviços, abrir conta no banco, fingir que não é empréstimo, pagar algo de vez em quando, sustentar no salto a falta de saldo, sumir na hora certa, fazer as escolhas certas, estar no lugar certo na hora certa, e claro fazia tudo errado. Essa mais valia lhe doía. Os ombros caíam, não aceitava o pacto, não cumpria os contratos, só queria que fosse normal ouvir todas aquelas baboseiras sobre sua classe social. Ela não era fiel a nada, mas a cidadezinha miserável lá dos cantos do Brasil profundo, não saía de dentro dela. Ela tentava ser garota de Ipanema, não ter cara de sufoco. Tinha ambições, as mais delicadas do mundo. Queria viajar por vários países, dar uma casa para sua mãe já velha de tanta cachaça, ser professora, plantar uma floresta. 
Tinha uma genialidade, a de levar sementes nos bolsos. Era sua forma de contribuir com o mundo. Não frequentava com muita assiduidade nenhum partido, coletivo ou redes sociais, não fazia parte das organizações horizontais, ela só gostava de gozar, ia nas festas para conhecer gente. Mas seu ativismo particular era plantar sementes. Onde ia plantava uma árvore ou trocava-as de lugar. Roubava dos jardins dos ricos pra plantar na rua. Preferia as encruzilhadas, os canteiros de obras, em volta das sinaleiras, os rachados das calçadas. Plantava trepadeira nos prédios dos amigos. Eles só notavam quando o mato tomava conta de alguma de suas janelas, se enganchava nas grades. Ela contava histórias, dizia de cada uma das plantas – conhecimentos da sua avó. O único problema é que não cabia no esquadrinhamento do Estado sobre sua condição, nem dos grupos, nem dos Direitos. Não se emprestava para esses nomes de cima – impostos, ou pelas lutas ativistas, todas lhe prendendo em um cercado. Nem acadêmica de verdade era, apesar de ter conseguido passar numa faculdade pública de pedagogia, onde ia a contragosto fazer provas pra ter um futuro posto. Não seria uma professora militante, nem uma política atuante. Seu lugar não tinha lugar. Será que alguém entendia sua falta de lugar?

Outro diria, ela poderia ser ecologista, parteira, diretora de ong, mãe maravilhosa, mulher exemplar. Quem lhe via dos abismos, enxergava toda sua potência, mas ela não cabia nas coisas. Nem era por causa de ego grande, era por causa da sua falta de cabimento. Não gostava de como os grupos classe média sabiam tão bem como resolver o problema da sua classe. Ela disfarçava, não era todo mundo que notava que de dentro do seu sorriso bem retinho e branco, rugia uma mal educada, que não aceitava nenhuma imposição. Seu feminismo não dependia de agremiação. Se utilizava das suas conquistas, mas odiava reunião. Ela era abre-alas, quando não estava perdida nas quedas, sabia como lhe abrirem passagem. Seu feminismo pungente, aguerrido, atrevido e inconsciente veio da avó. Ela sim era pajé, ecologista, parteira e sabia das coisas, cabia em tudo, a avó tinha cabimento. Mas foi a avó que lhe expulsou. Aqui não é lugar para ti. Vai tentar outra vida numa cidade grande que tu tem talento. E depois morreu. 
Quando lembrava da avó, se enchia de orgulho. Avó feminista, sábia, também sofrida, muito vivida. Avó generosa, casa cheia de gente, de remédios, de ajuda. Dona Ajuda, não era atoa seu nome. Como avó tão generosa pôde parir uma filha no álcool? Uma despinguelada egoísta como sua mãe? Isso não sabia, a mãe também não falava quando foi que seu caminho entortou. Mas quando sucumbia às drogas, bebia muito, levantava o copo e saudava a mãe. Dizia no meio da noite:  — Mãe, eu te entendo, eu te puxei, foi eu que te desvirtuei, e se apresentava: a indesejada. Mas fazia isso com aquele cansaço sarcástico, que cansa da própria reclamação, que ri de si mesmo, faz tudo parecer à toa. A indesejada (risos).
Talvez tenha sido como indesejada que aprendeu a punir, a envenenar. Muito discretamente, mas envenenava. Sabia que antes de dormir a pessoa lhe veria como assombração, aprendeu a colocar medo, sem nem gritar. Era fina a neta da bruxa. Um humor fino, quase que não se notava o quanto tripudiava sobre os esnobes e imbecis. Dava corda para que se enforcassem, até se tornar cúmplice de alguma confissão. Pegava a pessoa na mão. Às vezes não gostava dessas maldades, e dizia que abdicaria desse poder de beber a alma dos outros. Mas era como uma religião, se parasse com essa mania, morreria, era sangue pra vampiro, era alimento. Em troca a cara de compreensão, enquanto por dentro rangia seus dentes e dizia, vou te levar para dar uma volta no abismo, para ver como ali está árido e sem sombra. Era com esse mesmo espírito que virava beija-flor e implantava uma folhinha de arruda no bolso de alguém.
No fundo tudo isso era amor. Seu veneno gerava fotossíntese. Era planta. Ela só queria fazer com que o cheiro do abismo tivesse espaço naquele mundo blindado. Não queria mais se referir a sua classe social. Era odioso como classe social colocava um muro em torno de si e de seus colegas de abismo. Como TUDO virava classe social. Ela perdia o nome quando pensava em classe social, perdia a pose, a posse de qualquer experiência metafísica, de qualquer transcendência. Virava refém, sem referência. Como se toda sua vivência não fosse contabilizada, devido a lente que lhe enxergava: POBRE.
Dona Ajuda não lhe ajudava mais, estava desintegrada dentro da terra fazia tempo. Era só na memória que vivia de novo uma infância sem limites, mesmo na casa de pau a pique, com o zunido dos mosquitos, com o canto das cigarras, com o cheiro da mata que agora já não existia, com o mundaréu de crianças correndo, cor de café com leite, com as secas e enchentes. Não, nem pensar em voltar, não tinha pra onde, já tinha virado fazenda de outro a terrinha da Dona Ajuda. Ela tinha que manter o otimismo, de quem além de tudo, precisa fazer o mundo florescer, ajudar as pessoas a sorrir, e saber que era exceção, não classe social. 
Sobre ser exceção, sabia que era devido ao seu nariz. Desde pequena seu nariz foi o centro das atenções. Que nariz bonito – nariz arrebitado, e a avó dizia: e fareja muito bem! E farejava mesmo, era assim que tinha subido de posto, que conseguia frequentar as rodas dos que têm a geladeira cheia, onde nunca ninguém fica desnutrido. Era assim que tinha conseguido ser amante dos homens e mulheres mais interessantes que conhecia. Eles não resistiam ao seu nariz, nariz de sorte, nariz de quem nasceu pra lua. E seu nariz continuava exibido ao longo do tempo, motivo de lisonjas. Ser exceção não lhe deixava culpada, lhe deixava com o cu na mão. Percebia que tinha um apreço desmedido pelo seu próprio nariz, que parava em cada espelho para vê-lo, e vê-lo de novo. Cada ano que passava percebia que seu nariz tinha uma pequena queda para os lados, temia que por fim se tornasse uma bola de gude. Essa paranoia lhe amedrontava, já que a achava simplória, sem sentido. Mas não podia evitar. Seu nariz foi tão reiterado, que se tornou uma divindade. Se pegava rezando para o seu nariz:

Nariz amado
nunca me desampare
dependerei de você a vida toda,
me ajude a enfrentar toda essa bagunça
não pare de me guiar.

Oh faro divino
me mantenha atenta aos teus sinais,
prometo te obedecer e respeitar
me perdoe os desperdícios
prometo que não vou mais cheirar pó.

Cada dia uma oração, mas sabia ser nociva sua idiossincrasia. Tinha outros atributos, a inteligência, a criatividade, a indulgência, a humanidade. Mas seu nariz parecia ser o grande patrono. Inclusive desconfiava que quando caía, era pelo fedor. Queda livre.
Um faro rico numa condição difícil de habitar o mundo. Um faro farto, com bom gosto e dado a excessos. Se não fosse intransigente, já teria os presentes que queria da vida. Mas era especialista em perder cavalos encilhados que passavam no seu rincão. Desperdiçava oportunidades como quem não tinha nada a perder. E não tinha, a não ser seu mais alto talento – o faro.
Pesava-lhe ter perdido a etnia, ter virado índia urbana, não tinha lastro, nem família, nem casa, nem lugar para voltar. Não tinha feito as perguntas certas para Dona Ajuda. Quem sou eu? Qual nossa etnia? A Avó não lhe ensinou a língua que sabia, nem disse de onde sabia tanto. Aquelas músicas bonitas, aquelas rezas – solilóquios. A mãe demente, entregue à cirrose, mesmo que soubesse algo de antes já teria esquecido, como esqueceu o que veio depois. Restava-lhe sempre ir, ir adiante, no rastro de uma vida brilhante. Ela e seu nariz de faro aguçado. O mundo fica pequeno de vez em quando. Se fosse mais superficial talvez se contentasse em ir à praia aos domingos, receber elogios por um trabalho bem feito, sustentar um apartamento na periferia e se contentar com a vida. Mas sua inadaptação era maior que tudo, e disso sentia orgulho. Não caibo e pronto!! Mas não queria passar desapercebida.
Aroeira, Ipê-amarelo, pitanga, chimbuva, urucum, sapuva, dedaleiro, gabiroba, guapuruvu, goiabeira, cambucá, araçá, maçaranduba, pau-viola, pau-ferro, pau-pólvora!!!! Era isso que contava! Quantas árvores ainda plantaria? Sua plantação diária, era o único sentido para toda aquela zonzeira. Essas sementes amigas, que viviam enroladas em sua mala, uma única mala de rodinhas. Eram elas que lhe faziam acordar a todo pique! Ela contra toda a indústria, contra todo consumo, contra toda hierarquia, contra toda mais valia, contra toda classe social, contra todas corporações, ela beija-flor com sua língua bifurcada, polinizando a cidade grande com sálvia e cipó-de-são-joão. Sua única herança, a melhor de todas.
Não era difícil encontrá-la fazendo amor com as árvores. Subia a Floresta da Tijuca, se embrenhava por alguma trilha, tirava a roupa devagar, balançava seus seios nos troncos lenhosos das jabuticabeiras, dos jambeiros, das jaqueiras, ela e os macacos pregos, e ali esfregava seu grelo até descascar a árvore, até imprimir seu cheiro nela, até virar jaca. Trepadeira. Gostava de abraçar as raízes das árvores, fazê-las de travesseiro, esse era o verdadeiro sono – o verde, sua cor. Não haveria de perder sua guerrilha solitária, determinada, de fecundar os solos, de fazer enxertos.
Nos dias de cidade ardida, de repente gritava na rua sozinha. Talvez até pudesse ser louca pra uns tantos, o que não importava, só o grito dizia da ligação que tinha com aquelas terras, bem antes do descobrimento. Quando via a cidade de cima, tão bonita, conseguia sentir o cheiro do passado, o som da batida dos pés dos antepassados, um cheiro que inundava suas narinas. Concentrava no cheiro, era esse seu recreio sua mais fina liturgia. O cheiro trazia som de fogo, enzima no fogo, chá de folhas da pintobeira. Os pés grudavam bem no chão a ponto de afundar. Ela raiz, mais velha do que todo esse carnaval. Sentia uma enorme gratidão dentro do peito, a ponto de vazar pelos poros, pelas narinas, pelos olhos, pelos ouvidos, pela buceta. Vazava, como se fosse cachoeira.
Essa esquizocenia já era alvo de algum escárnio. Eles diziam, a louca. Era louca, a indesejada. Era tão louca que não precisava de nenhum aparato para ouvir os rios enterrados. Índia urbana, sem cocar e sem chocalho. Sem nome. Era só índia sem etnia, neta da velha Ajuda, que não tinha pai nem mãe. Mas quando sentia o cheiro de esgoto dos rios enterrados, que passavam por baixo da cidade, por baixo das suas narinas, voltava ao abismo, em um segundo.
Era transladada a Ajudinha. Vivia em vertigem com tantos altos e baixos. Alguém tinha falado para ir a um psiquiatra, que seu quadro era transtorno bipolar. Ela pensou, mas preferia viver o zigzag, para ver mais coisas, ter mais perspectiva. Dos abismos extraía o sumo da sua condição. Ouvido rente ao chão. As pisadas dos infectados, dos que têm a vida contada em dias, dos corações partidos, dos que têm sangue contaminado, das enforcadas, das ultrajadas, dos injustiçados, roubados, violentadas, sequestradas de sua alegria, das que têm suas terras roubadas, dos desaparecidos políticos, dos inferiorizados, dos assalariados miseráveis, com cara amarela de fome que tem que servir madame. Dos alcoolizados. Dessas misérias, cada uma maior que todas. Isso tudo tinha nuance. Só a a classe social não tinha nuance. Era um óculos embutido na percepção das gentes. Ela, beija-flor, sentia a imundície do abismo que agora era esgoto, que agora era rio trancado de baixo do asfalto, que agora era negro morto no tráfico, que agora era índio morto no Mato Grosso, que agora era mulher escravizada na Baixada, que agora era árvore decapitada para virar cama farta de gente rica.
Madeira rara. Seu paradoxo. E de novo em um segundo sentiu o cheiro do homem da cama farta de madeira que não passa fome, o cheiro da testosterona daquela pele amarela de sol, homem bem educado, incapaz de grosseria. Nunca o tinha visto virar gelo, mas sabia que toda educação é geleira. Mesmo assim tinha cheiro, cheiro de madeira rara, em um segundo o cheiro do homem lhe levava para seu apartamento de seis quartos. Rica por um dia, ou mais dias, dominar seu faro, fazer um contrato. Óleo de coco no corpo, pegava o celular, umas mudas de planta e caminhava em direção ao asfalto. Ela não era fiel a nada.

Fabiane M. Borges é psicóloga ensaísta e artista, desenvolve pesquisa sobre arte urbana, performance, movimentos sociais, esquizoanálise, saúde mental. Dedicou sua tese de doutorado a assuntos relativos à cultura espacial, satélites, foguetes, comunicação e programas de apropriação orbital (open source) a partir do ponto de vista de pequenas e médias empresas e hacklabs (faça você mesmo e cultura maker). Faz atendimento terapêutico e tem uma empresa de consultoria com Adriana Veloso (Cosmos Consultoria). Publicou os livros: Domínios do Demasiado (Ed. Hucitec. SP. 2010), Breviário de Pornografia Esquizotrans (Ed. Ex.Libris), Ideias Perigozas (Ed. Des. centro. 2010), Peixe Morto (Org. Ed. Imotirô. 2011). Mantém o site: http://catahistorias.wordpress.com

publicado às 13:50


RAZÃO X REVELAÇÃO

por Thynus, em 16.09.14
A Filosofia começa dizendo não às crenças e aos preconceitos do senso comum
e, portanto, começa dizendo que não sabemos o que imaginávamos saber; por
isso, o patrono da Filosofia, o grego Sócrates, afirmava que a primeira e
fundamental verdade filosófica é dizer: “Sei que nada sei”. Para o discípulo de
Sócrates, o filósofo grego Platão, a Filosofia começa com a admiração; já o
discípulo de Platão, o filósofo Aristóteles, acreditava que a Filosofia começa com
o espanto.
Admiração e espanto significam: tomamos distância do nosso mundo costumeiro,
através de nosso pensamento, olhando-o como se nunca o tivéssemos visto antes,
como se não tivéssemos tido família, amigos, professores, livros e outros meios
de comunicação que nos tivessem dito o que o mundo é; como se estivéssemos
acabando de nascer para o mundo e para nós mesmos e precisássemos perguntar
o que é, por que é e como é o mundo, e precisássemos perguntar também o que
somos, por que somos e como somos.
(Marilena Chaui - "Convite à filosofia")

Então, como sabemos alguma coisa, se de fato sabemos que não sabemos nada?
Durante a Idade Média, essa questão se resumia a saber se a revelação divina superava a razão como fonte de conhecimento humano ou vice-versa.
Um homem cai num poço profundo e mergulha 30 metros antes de conseguir agarrar uma magra raiz que detém sua queda. Sua mão vai perdendo a força e, desesperado, ele grita:
-Tem alguém aí em cima?
Ele olha para cima e vê um círculo de céu. De repente, as nuvens se abrem e um raio de luz brilha sobre ele. Uma voz profunda ecoa:
- Eu, o Senhor, estou aqui. Solte a raiz e eu salvo você.
O homem pensa mais um minuto e grita:
-Tem mais alguém aí em cima?
Estar pendurado por uma raiz tem a tendência de fazer a balança pesar para o lado da razão.

No século XVII, René Descartes preferiu a razão em vez da fonte divina de conhecimento. Isso passou a ser conhecido como colocar Descartes antes da fonte (em inglês, putting Descartes before the source, trocadilho de putting the cart before the horse, ou o carro na frente dos bois).
Descartes provavelmente preferia nunca ter dito "Cogito ergo sum" ("Penso, logo existo"), porque é só isso que todo mundo lembra a seu respeito - isso e o fato de que ele disse isso sentado dentro de um forno de pão. Como se não bastasse, seu "cogito" é constantemente mal interpretado como se quisesse dizer que Descartes acreditava que pensar era uma característica essencial do ser humano. Bom, na verdade, ele realmente acreditava nisso, mas isso não tem absolutamente nada a ver com cogito, ergo sum. Descartes chegou ao cogito por meio de um experimento sem dúvida radical para descobrir se havia alguma coisa de que pudesse ter certeza; ou seja, alguma coisa de que ele não pudesse duvidar. Ele começou duvidando da existência do mundo exterior. Isso é fácil. Talvez ele estivesse sonhando ou delirando. Aí, tentou duvidar da própria existência. Mas, por mais que duvidasse, continuava esbarrando no fato de que era um duvidador. Tinha de ser ele mesmo! Não podia duvidar do próprio duvidar. Podia ter se poupado de muita interpretação errada se tivesse dito apenas "Dubito ergo sum".
Todo juiz criminal norte-americano pede ao júri para imitar o processo cartesiano de busca da certeza, questionando a afirmação da culpa do réu dentro de um padrão quase tão elevado quanto o de Descartes. A questão para o júri não é idêntica à de Descartes; o juiz não pergunta se existe qualquer dúvida sobre a culpa do réu, mas apenas se existe uma dúvida razoável. Porém, mesmo esse padrão mais baixo exige que o júri realize um experimento mental semelhante - e quase tão radical quanto - ao de Descartes.
Um réu estava sendo julgado por assassinato. Havia fortes provas que indicavam sua culpa, mas não havia cadáver. Em seu discurso final, o advogado de defesa recorreu a um truque.
- Senhoras e senhores do júri - disse ele. -Tenho uma surpresa para todos vocês: dentro de um minuto, a pessoa que se presume morta entrará neste tribunal.
E olhou para a porta do tribunal.Todos os membros do júri, perplexos, olharam ansiosamente. Passou-se um minuto. Nada aconteceu. Por fim, o advogado disse:
- Na verdade, inventei essa história do morto entrar. Mas os senhores todos olharam para a porta com expectativa. Portanto, coloco aos senhores que neste caso existe uma dúvida razoável sobre o assassinato e devo insistir que dêem um veredicto de "inocente".
O júri se retirou para deliberar. Poucos minutos depois, voltou e pronunciou o veredicto de "culpado".
- Como puderam fazer isso? - gritou o advogado. - Os senhores deviam ter alguma dúvida. Eu vi quando todos olharam para a porta.
O porta-voz do júri replicou:
-Ah,nós olhamos, mas seu cliente não.

(THOMAS CATHCART, DANIEL KLEIN - PLATÃO E UM ORNITORRINCO ENTRAM NUM BAR ...)

publicado às 13:46



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