Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
De tudo e de nada, discorrendo com divagações pessoais ou reflexões de autores consagrados. Este deverá ser considerado um ficheiro divagante, sem preconceitos ou falsos pudores, sobre os assuntos mais variados, desmi(s)tificando verdades ou dogmas.
![]() |
Será que todo mundo tem uma alma gêmea? |
Quem nunca ouviu dizer: encontrei minha alma gêmea! O que significa isso? De onde saiu que nós, humanos, individuais, temos ou compartilhamos nossa alma com outro ser? Alma gêmea quer dizer que nasceram juntas?
Na verdade, o mito da alma gêmea foi criado por Platão que em seu livro O Banquete tenta definir o que é o amor. E nessa busca, muitos convidados de uma festa, cada um por vez, faz um elogio ao deus Eros (deus do amor).
No entanto, um dos momentos mais fascinantes do texto é quando toma a palavra o comediógrafo Aristófanes. Ele faz um discurso belo e que se imortalizou como a teoria da alma gêmea.
Aristófanes começa dizendo que no início dos tempos os homens eram seres completos, de duas cabeças, quatro pernas, quatro braços, o que permitia a eles um movimento circular muito rápido para se deslocarem. Porém, considerando-se seres tão bem desenvolvidos, os homens resolveram subir aos céus e lutar contra os deuses, destronando-os e ocupando seus lugares. Todavia, os deuses venceram a batalha e Zeus resolveu castigar os homens por sua rebeldia. Tomou na mão uma espada e cindiu todos os homens, dividindo-os ao meio. Zeus ainda pediu ao deus Apolo que cicatrizasse o ferimento (o umbigo) e virasse a face dos homens para o lado da fenda para que observassem o poder de Zeus.
Dessa forma, os homens caíram na terra novamente e, desesperados, cada um saiu à procura da sua outra metade, sem a qual não viveriam. Tendo assumido a forma que nós temos hoje, os homens procuram sua outra metade, pois a saudade nada mais é do que o sentimento de que algo nos falta, algo que era nosso antes. Por isso, os homens vivem em sociedade, pois desenvolvem o trabalho para buscar, nessa relação amorosa, manter a sua sobrevivência. Dessa forma, o ser que antes era completo homem-homem gerou o casal homossexual masculino; o ser mulher-mulher, o casal homossexual feminino. E o andrógino (parte homem, parte mulher) gerou o casal heterossexual. E a força que une a todos é o que nos protege, já que Zeus prometeu cindir novamente os homens (ficaríamos com uma perna e um braço só!) se não cumpríssemos o que foi designado pela divindade.
Vale notar que Platão vai utilizar uma linguagem poética-imagética para poder refutar essa teoria, mas no fundo, a plasticidade do texto é que ficou na tradição como a obra mais bela que explica sobre o amor. Isso inspirou os movimentos românticos em todas as suas fases na modernidade.
(João Francisco P. Cabral)
![]() |
... no início dos tempos os homens eram seres completos, de duas cabeças, quatro pernas, quatro braços, o que permitia a eles um movimento circular muito rápido para se deslocarem |
Já sabíamos, mas agora é o próprio Francisco, entrevistado pelo Corriere della Sera, a dizê-lo: "Gosto de estar com as pessoas, com os que sofrem. O Papa é um homem que ri, chora, dorme tranquilo e tem amigos como toda a gente. É uma pessoa normal." Por isso, não gosta que façam dele um mito, e cita Freud: "Em toda a idealização há uma agressão.
"Não decide sem ouvir o conselho de muitos, e ouve mesmo, não finge. Mas, claro, "quando se trata de decidir, de assinar, fica só com o seu sentido de responsabilidade". Na entrevista, enfrenta os temas mais delicados. Com uma liberdade e clareza desarmantes. Assim: "Nunca entendi a expressão "valores não negociáveis". Os valores são valores e pronto.
" Sobre a pedofilia: "Os casos de abusos são terríveis, porque deixam feridas profundíssimas. Bento XVI foi muito corajoso e abriu o caminho. E, seguindo esse caminho, a Igreja avançou muito. Talvez mais do que ninguém. As estatísticas sobre o fenómeno da violência contra as crianças são impressionantes, mas mostram também com clareza que a grande maioria dos abusos provém do ambiente familiar e das pessoas próximas. A Igreja Católica é talvez a única instituição pública que se moveu com transparência e responsabilidade. Ninguém mais fez tanto. E, no entanto, a Igreja é a única a ser atacada.
"Família: hoje, "é difícil formar uma família". "Os jovens já não se casam. Há muitas famílias separadas, cujo projecto de vida comum fracassou. Os filhos sofrem muito. E nós temos de dar uma resposta. Mas, para isso, é preciso reflectir muito e em profundidade. E é à luz dessa reflexão profunda que se poderá enfrentar de modo sério as situações particulares, também a dos divorciados." Casamento homossexual: "O casamento é entre um homem e uma mulher. Os Estados laicos querem justificar a união civil para regular diversas situações de convivência, impulsionados pela necessidade de regular aspectos económicos entre as pessoas. É preciso considerar cada caso e avaliá-los na sua diversidade." Quanto à Humanae Vitae, diz que Paulo VI "teve a coragem de ir contra a maioria, defender a disciplina moral, aplicar um freio cultural, opor-se ao neomalthusianismo presente e futuro. O problema não é mudar a doutrina, mas ir fundo e certificar-se de que a pastoral tem em conta as situações de cada pessoa e o que essa pessoa pode fazer.
"Sobre as mulheres: "Podem e devem estar mais presentes nos lugares de decisão da Igreja. Mas a isto eu chamaria uma promoção de tipo funcional." Só com isto não se avança muito, sendo necessário aprofundar teologicamente a questão, o que está a ser feito, também com "muitas mulheres peritas". Não o aborrece absolutamente nada que o acusem de marxista. "Nunca adoptei a ideologia marxista, pois é falsa." Esclarece que o Evangelho condena o culto da riqueza e que a pobreza nos afasta da idolatria, lembrando que Zaqueu deu metade dos bens aos pobres. Sobre a globalização: "Salvou muitas pessoas da miséria, mas condenou muitas outras a morrer de fome, porque com este sistema económico torna-se selectiva. A globalização em que a Igreja pensa não se parece com uma esfera, na qual cada ponto é equidistante do centro e na qual, portanto, se perde a particularidade dos povos, mas é um poliedro, com as suas diversas faces, em que cada povo conserva a sua própria cultura, língua, religião, identidade. A actual globalização "esférica" económica, e sobretudo financeira, produz um pensamento único, um pensamento débil. E no seu centro não está a pessoa humana, mas o dinheiro.
"O final da vida: "Não sou um especialista em bioética e temo equivocar-me. A doutrina tradicional da Igreja diz que ninguém está obrigado a usar métodos extraordinários quando está na sua fase terminal. Pastoralmente, nestes casos, eu sempre aconselhei os cuidados paliativos. Em casos mais específicos, se for necessário, convém recorrer ao conselho dos especialistas.
" Francisco: apenas um homem, normal. "Essa é a sua grandeza", dizia há tempos Fernando Alves.
(Anselmo Borges)
"(...) no início dos tempos os homens eram seres completos, de duas cabeças, quatro pernas, quatro braços, o que permitia a eles um movimento circular muito rápido para se deslocarem." É EM O Banquete QUE PLATÃO EXPÕE A VISÃO SOCRÁTICA DO AMOR. LEMBRAMOS DESSE MARAVILHOSO DIÁLOGO — O PRIMEIRO QUE EU MESMO DESCOBRI NA ADOLESCÊNCIA —, SOBRETUDO O CÉLEBRE DISCURSO DE ARISTÓFANES. O POETA EXPLICA QUE, ANTES, ÉRAMOS FORMADOS APENAS DE UM CORPO DUPLO. OS MACHOS TINHAM DOIS SEXOS MASCULINOS, AS FÊMEAS, DOIS SEXOS FEMININOS, E OS ANDRÓGINOS, UM SEXO DE CADA GÊNERO. INFELIZMENTE, ZEUS DECIDIU CORTAR EM DOIS NOSSOS DISTANTES ANCESTRAIS. DESDE ENTÃO, PROCURAMOS INCESSANTEMENTE NOSSA METADE, QUE, QUALQUER QUE SEJA NOSSO SEXO, PODE SER HOMEM OU MULHER, SEGUNDO A NATUREZA DE NOSSA DUPLA ORIGEM.
PARA ARISTÓFANES, ESSA BUSCA É JUSTAMENTE O QUE CHAMAMOS DE AMOR. O AMOR É O DESEJO DE ENCONTRAR NOSSA UNIDADE ORIGINAL PERDIDA. E ELE OFERECE A MAIOR FELICIDADE QUANDO NOS PERMITE reencontrar nossa metade e restaurar nossa plena natureza.
(...) O AMOR SE TORNA ASSIM UMA VERDADEIRA BUSCA DO GRAAL: ENCONTRAR A ALMA GÊMEA E UNIR-SE NOVAMENTE A ELA PARA SEMPRE. TALVEZ ARISTÓFANES POSSA SER CONSIDERADO O VERDADEIRO INSPIRADOR DO AMOR ROMÂNTICO, TAL COMO SE DESENVOLVERÁ BEM MAIS TARDE NO OCIDENTE. CONTUDO, PARA ALÉM DO ASPECTO MÍSTICO DA NARRATIVA, ESSE AMOR EXISTE MESMO? INFELIZMENTE, A EXPERIÊNCIA DA MAIORIA MOSTRA QUE NÃO! OU, PELO MENOS, É COISA RARÍSSIMA. O AMOR ABSOLUTO E ETERNO, A UNIDADE TOTAL ENTRE DOIS SERES, PARECE PROVIR ANTES DE UM FANTASMA FUSIONAL PARA O QUAL, PRIMEIRAMENTE A PSICANÁLISE E, EM seguida, as outras ciências do psiquismo, puderam encontrar diferentes explicações.
SÓCRATES TAMBÉM NÃO CRÊ NO MITO DE ARISTÓFANES, MAS ELE RETÉM SEU ASPECTO ESSENCIAL: O AMOR É MESMO O DESEJO DE ALGO QUE NOS FALTA. É O MOTIVO PELO QUAL O AMOR NÃO PODE SER DIVINO: OS DEUSES NÃO SENTEM FALTA ALGUMA! “O QUE NÃO TEMOS, O QUE NÃO SOMOS, AQUILO DE QUE SENTIMOS FALTA: SÃO ESSES OS OBJETOS DO DESEJO DO AMOR”, EXPLICA SÓCRATES ( O Banquete, 200E). PARTINDO DESSA CONSTATAÇÃO, O FILÓSOFO VAI FALAR DO AMOR, EVOCANDO OUTRO MITO, O DE EROS. E, COISA BASTANTE RARA, QUE VALE SUBLINHAR, ELE PRETENDE TER RECEBIDO ESSE ENSINAMENTO DE UMA MULHER: DIOTIMA. ESSA MULHER DE MANTINEIA LHE ENSINOU QUE O AMOR, NÃO PODENDO SER UM DEUS, FEZ-SE UM daimon, UM MEDIADOR ENTRE OS DEUSES E OS HOMENS. SEMPRE INSATISFEITO, SEMPRE EM MOVIMENTO, SEMPRE EM BUSCA DE SEU OBJETO, SEMPRE MENDIGANDO, EROS LEVA OS HOMENS A DESEJAREM COISAS TÃO DIVERSAS COMO A RIQUEZA, A SAÚDE, AS HONRARIAS, OS PRAZERES DOS SENTIDOS ETC. MAS, EM ÚLTIMA INSTÂNCIA, O QUE ELES DESEJAM ACIMA DE TUDO É A IMORTALIDADE. É O MOTIVO PELO QUAL ELES FAZEM FILHOS E CRIAM OBRAS, QUER DE ARTE, QUER DO ESPÍRITO. APESAR DE TUDO ISSO, CADA UM SABE NO FUNDO DE SI MESMO QUE A MORTE PERMANECE UMA REALIDADE INCONTORNÁVEL, E QUE NEM O AMOR DE NOSSOS FILHOS NEM O DE NOSSAS OBRAS jamais nos levará a uma felicidade durável.
(Frédéric Lenoir - Sócrates, Jesus, Buda)
“Na verdade, Erixímaco, disse Aristófanes, é de outro modo que tenho a intenção de falar, diferente do teu e do de Pausânias. Com efeito, parece-me os homens absolutamente não terem percebido o poder do amor, que se o percebessem, os maiores templos e altares lhe preparariam, e os maiores sacrifícios lhe fariam, não como agora que nada disso há em sua honra, quando mais que tudo deve haver. É ele com efeito o deus mais amigo do homem, protetor e médico desses males, de cuja cura dependeria sem dúvida a maior felicidade para o gênero humano. Tentarei eu portanto iniciar-vos em seu poder, e vós o ensinareis aos outros. Mas é preciso primeiro aprenderdes a natureza humana e as suas vicissitudes. Com efeito, nossa natureza outrora não era a mesma que a de agora, mas diferente. Em primeiro lugar, três eram os gêneros da humanidade, não dois como agora, o masculino e o feminino, mas também havia a mais um terceiro, comum a estes dois, do qual resta agora um nome, desaparecida a coisa; andrógino era então um gênero distinto, tanto na forma como no nome comum aos dois, ao masculino e ao feminino, enquanto agora nada mais é que um nome posto em desonra. Depois, inteiriça era a forma de cada homem, com o dorso redondo, os flancos em círculo; quatro mãos ele tinha, e as pernas o mesmo tanto das mãos, dois rostos sobre um pescoço torneado, semelhantes em tudo; mas a cabeça sobre os dois rostos opostos um ao outro era uma só, e quatro orelhas, dois sexos, e tudo o mais como desses exemplos se poderia supor. E quanto ao seu andar, era também ereto como agora, em qualquer das duas direções que quisesse; mas quando se lançavam a uma rápida corrida, como os que cambalhotando e virando as pernas para cima fazem uma roda, do mesmo modo, apoiando-se nos seus oito membros de então, rapidamente eles se locomoviam em círculo. Eis por que eram três os gêneros, e tal a sua constituição, porque o masculino de início era descendente do sol, o feminino da terra, e o que tinha de ambos era da lua, pois também a lua tem de ambos; e eram assim circulares, tanto eles próprios como a sua locomoção, por terem semelhantes genitores. Eram por conseguinte de uma força e de um vigor terríveis, e uma grande presunção eles tinham; mas voltaram-se contra os deuses, e o que diz Homero de Efialtes e de Otes é a eles que se refere, a tentativa de fazer uma escalada ao céu, para investir contra os deuses. Zeus então e os demais deuses puseram-se a deliberar sobre o que se devia fazer com eles, e embaraçavam-se; não podiam nem matá-los e, após fulminá-los como aos gigantes, fazer desaparecer-lhes a raça - pois as honras e os templos que lhes vinham dos homens desapareceriam — nem permitir-lhes que continuassem na impiedade. Depois de laboriosa reflexão, diz Zeus: “Acho que tenho um meio de fazer com que os homens possam existir, mas parem com a intemperança, tornados mais fracos. Agora com efeito, continuou, eu os cortarei a cada um em dois, e ao mesmo tempo eles serão mais fracos e também mais úteis para nós, pelo fato de se terem tomado mais numerosos; e andarão eretos, sobre duas pernas. Se ainda pensarem em arrogância e não quiserem acomodar-se, de novo, disse ele, eu os cortarei em dois, e assim sobre uma só perna eles andarão, saltitando.” Logo que o disse pôs-se a contar os homens em dois, como os que cortam as sorvas para a conserva, ou como os que cortam ovos com cabelo; a cada um que cortava mandava Apolo voltar-lhe o rosto e a banda do pescoço para o lado do corte, a fim de que, contemplando a própria mutilação, fosse mais moderado o homem, e quanto ao mais ele também mandava curar. Apolo torcia-lhes o rosto, e repuxando a pele de todos os lados para o que agora se chama o ventre, como as bolsas que se entrouxam, ele fazia uma só abertura e ligava-a firmemente no meio do ventre, que é o que chamam umbigo. As outras pregas, numerosas, ele se pôs a polir, e a articular os peitos, com um instrumento semelhante ao dos sapateiros quando estão polindo na forma as pregas dos sapatos; umas poucas ele deixou, as que estão à volta do próprio ventre e do umbigo, para lembrança da antiga condição. Por conseguinte, desde que a nossa natureza se mutilou em duas, ansiava cada um por sua própria metade e a ela se unia, e envolvendo-se com as mãos e enlaçando-se um ao outro, no ardor de se confundirem, morriam de fome e de inércia em geral, por nada quererem fazer longe um do outro. E sempre que morria uma das metades e a outra ficava, a que ficava procurava outra e com ela se enlaçava, quer se encontrasse com a metade do todo que era mulher - o que agora chamamos mulher — quer com a de um homem; e assim iam-se destruindo. Tomado de compaixão, Zeus consegue outro expediente, e lhes muda o sexo para a frente - pois até então eles o tinham para fora, e geravam e reproduziam não um no outro, mas na terra, como as cigarras; pondo assim o sexo na frente deles fez com que através dele se processasse a geração um no outro, o macho na fêmea, pelo seguinte, para que no enlace, se fosse um homem a encontrar uma mulher, que ao mesmo tempo gerassem e se fosse constituindo a raça, mas se fosse um homem com um homem, que pelo menos houvesse saciedade em seu convívio e pudessem repousar, voltar ao trabalho e ocupar-se do resto da vida. E então de há tanto tempo que o amor de um pelo outro está implantado nos homens, restaurador da nossa antiga natureza, em sua tentativa de fazer um só de dois e de curar a natureza humana. Cada um de nós portanto é uma téssera complementar de um homem, porque cortado como os linguados, de um só em dois; e procura então cada um o seu próprio complemento. Por conseguinte, todos os homens que são um corte do tipo comum, o que então se chamava andrógino, gostam de mulheres, e a maioria dos adultérios provém deste tipo, assim como também todas as mulheres que gostam de homens e são adúlteras, é deste tipo que provêm. Todas as mulheres que são o corte de uma mulher não dirige muito sua atenção aos homens, mas antes estão voltadas para as mulheres e as amiguinhas provêm deste tipo. E todos os que são corte de um macho perseguem o macho, e enquanto são crianças, como cortículos do macho, gostam dos homens e se comprazem em deitar-se com os homens e a eles se enlaçar, e são estes os melhores meninos e adolescentes, os de natural mais corajoso. Dizem alguns, é verdade, que eles são despudorados, mas estão mentindo; pois não é por despudor que fazem isso, mas por audácia, coragem e masculinidade, porque acolhem o que lhes é semelhante. Uma prova disso é que, uma vez amadurecidos, são os únicos que chegam a ser homens para a política, os que são desse tipo. E quando se tornam homens, são os jovens que eles amam, e a casamentos e procriação naturalmente eles não lhes dão atenção, embora por lei a isso sejam forçados, mas se contentam em passar a vida um com o outro, solteiros. Assim é que, em geral, tal tipo torna-se amante e amigo do amante, porque está sempre acolhendo o que lhe é aparentado. Quando então se encontra com aquele mesmo que é a sua própria metade, tanto o amante do jovem como qualquer outro, então extraordinárias são as emoções que sentem, de amizade, intimidade e amor, a ponto de não quererem por assim dizer separar-se um do outro nem por um pequeno momento. E os que continuam um com o outro pela vida afora são estes, os quais nem saberiam dizer o que querem que lhes venha da parte de um ao outro. A ninguém com efeito pareceria que se trata de união sexual, e que é porventura em vista disso que um gosta da companhia do outro assim com tanto interesse; ao contrário, que uma coisa quer a alma de cada um, é evidente, a qual coisa ela não pode dizer, mas adivinha o que quer e o indica por enigmas. Se diante deles, deitados no mesmo leito, surgisse Hefesto e com seus instrumentos lhes perguntasse: Que é que quereis, ó homens, ter um do outro?, e se, diante do seu embaraço, de novo lhes perguntasse: Porventura é isso que desejais, ficardes no mesmo lugar o mais possível um para o outro, de modo que nem de noite nem de dia vos separeis um do outro? Pois se é isso que desejais, quero fundir-vos e forjar-vos numa mesma pessoa, de modo que de dois vos tomeis um só e, enquanto viverdes, como uma só pessoa, possais viver ambos em comum, e depois que morrerdes, lá no Hades, em vez de dois ser um só, mortos os dois numa morte comum; mas vede se é isso o vosso amor, e se vos contentais se conseguirdes isso. Depois de ouvir essas palavras, sabemos que nem um só diria que não, ou demonstraria querer outra coisa, mas simplesmente pensaria ter ouvido o que há muito estava desejando, sim, unir-se e confundir-se com o amado e de dois ficarem um só. O motivo disso é que nossa antiga natureza era assim e nós éramos um todo; é portanto ao desejo e procura do todo que se dá o nome de amor. Anteriormente, como estou dizendo, nós éramos um só, e agora é que, por causa da nossa injustiça, fomos separados pelo deus, e como o foram os árcades pelos lacedemônios; é de temer então, se não formos moderados para com os deuses, que de novo sejamos fendidos em dois, e perambulemos tais quais os que nas estelas estão talhados de perfil, serrados na linha do nariz, como os ossos que se fendem. Pois bem, em vista dessas eventualidades todo homem deve a todos exortar à piedade para com os deuses, a fim de que evitemos uma e alcancemos a outra, na medida em que o Amor nos dirige e comanda. Que ninguém em sua ação se lhe oponha - e se opõe todo aquele que aos deuses se torna odioso - pois amigos do deus e com ele reconciliados descobriremos e conseguiremos o nosso próprio amado, o que agora poucos fazem. E que não me suspeite Erixímaco, fazendo comédia de meu discurso, que é a Pausânias e Agatão que me estou referindo talvez também estes se encontrem no número desses e são ambos de natureza máscula mas eu no entanto estou dizendo a respeito de todos, homens e mulheres, que é assim que nossa raça se tornaria feliz, se plenamente realizássemos o amor, e o seu próprio amado cada um encontrasse, tornado à sua primitiva natureza. E se isso é o melhor, é forçoso que dos casos atuais o que mais se lhe avizinha é o melhor, e é este o conseguir um bem amado de natureza conforme ao seu gosto; e se disso fôssemos glorificar o deus responsável, merecidamente glorificaríamos o Amor, que agora nos é de máxima utilidade, levando-nos ao que nos é familiar, e que para o futuro nos dá as maiores esperanças, se formos piedosos para com os deuses, de restabelecer-nos em nossa primitiva natureza e, depois de nos curar, fazer-nos bem aventurados e felizes.
Eis, Erixímaco, disse ele, o meu discurso sobre o Amor, diferente do teu. Conforme eu te pedi, não faças comédia dele, a fim de que possamos ouvir também os restantes, que dirá cada um deles, ou antes cada um dos dois; pois restam Agatão e Sócrates."
(Platão - O Banquete)
Os perigos da possessividade
A grande deusa anatólia da terra, Cibele, criadora de todos os reinos da natureza, teve um filho a quem chamou Átis. Desde o momento em que ele nasceu, a deusa ficou extasiada com sua beleza e graça, e não havia nada que não fizesse para deixá-lo feliz. À medida que ele foi crescendo, o amor de Cibele aprofundou-se em todos os níveis e, quando Átis chegou à idade adulta, ela tomou posse também dessa virilidade e se tornou sua amante. Além disso, fez dele sacerdote de seu culto e o prendeu a um juramento de fidelidade absoluta. E assim viviam os dois, fechados num mundo paradisíaco, onde nada podia macular a perfeição desse laço.
Mas era impossível manter Átis afastado do mundo para sempre, e um de seus maiores prazeres era perambular pelos montes. Um dia, quando descansava sob a copa de um enorme pinheiro, Átis ergueu os olhos e avistou uma bela ninfa; imediatamente, apaixonou-se e deitou-se com ela. Porém, não se podia esconder nada de Cibele, e quando ela soube que seu filho-amante fora infiel, teve um terrível acesso de ciúmes. Fez Átis entrar num transe delirante e, em sua loucura, ele se castrou, para garantir que nunca mais tornasse a quebrar seu juramento de fidelidade. Ao se recobrar do delírio, estava mortalmente ferido, e sangrou até a morte nos braços de Cibele, sob o mesmo pinheiro em cuja sombra se havia deitado com sua ninfa. Entretanto, como Átis era um deus, sua morte não foi definitiva: a cada primavera o jovem renasce para sua mãe e passa com ela o tempo rico e fecundo do verão; e a cada inverno, quando o Sol chega a seu ponto mais distante, ele torna a morrer, e a deusa da terra chora até que finalmente chegue a primavera seguinte.
COMENTÁRIO: O incesto entre Cibele e Átis não precisa ser interpretado literalmente. O laço intenso entre mãe e filho constrói-se a partir de muitos sentimentos — sensuais, afetivos e espirituais —, e não é incomum nem patológico a mãe olhar seu bebê recém-nascido e considerá-lo belo. Tampouco é incomum ou patológico que o laço entre mãe e filho tenha repercussões mais tarde, quando o rapaz ou a moça buscam nos braços da pessoa amada certas qualidades e respostas afetivas semelhantes às experimentadas no começo da vida. A maioria dos relacionamentos amorosos tem componentes de proteção e dependência; a questão, no final das contas, é se também há espaço na relação para a igualdade e a distinção entre os parceiros. A tragédia desse mito está no desejo de Cibele de deter a posse absoluta do amado. Embora isso também não seja incomum, tanto nos relacionamentos adultos quanto na relação mãefilho, as consequências psicológicas podem ser profundamente destrutivas, quando a possessividade não é reconhecida e refreada.
Cibele não permite que Átis seja um parceiro em igualdade de condições. Quer prendê-lo unicamente a si, como alguém profundamente dependente e incapaz de ter vida própria longe dela. Podemos ver ecos desse padrão em todo relacionamento em que um dos parceiros — homem ou mulher — ressente-se dos amigos e interesses independentes do outro. Pode haver ciúme da dedicação do parceiro ao trabalho ou a atividades criativas, e pode até haver ressentimento quando o parceiro se recolhe a seus próprios pensamentos. Isso não é relacionamento, mas posse. Tal possessividade absoluta provém, invariavelmente, da profunda insegurança que faz o indivíduo se sentir ameaçado por qualquer sinal de separação nesse vínculo. E essa insegurança profunda pode evocar sentimentos intensamente destrutivos — especialmente quando a pessoa insegura, como Cibele, não tem mais nada na vida além do amado.
A vingança de Cibele pela infidelidade de Átis — infidelidade que é, em essência, uma tentativa dele de criar uma identidade masculina independente — consiste em levá-lo à autocastração. Essa é uma imagem assustadora e brutal, que, felizmente, costuma se restringir ao mundo dos mitos. Mas há níveis mais sutis de autocastração que podem ocorrer na vida cotidiana. Quando alguém procura minar a independência do parceiro pela chantagem emocional, esse homem ou mulher tenta, na verdade, castrar a potência do parceiro na vida; e quando o parceiro compactua com isso, por medo de perder o relacionamento, a autocastração de Átis concretiza-se no plano psicológico.
A loucura de Átis pode ser vislumbrada na confusão afetiva que a manipulação psicológica é capaz de criar, ao ser imposta a qualquer indivíduo que não tenha consciência ou maturidade afetiva suficientes para perceber o que está acontecendo. Impor sentimentos de culpa, criticar, negar-se ao outro em termos afetivos e sexuais, num jogo de poder, e isolar o parceiro, mediante uma interferência sutil em suas amizades e interesses externos: tudo isso são métodos pelos quais as Cibeles de hoje, homens ou mulheres, levam seus parceiros a um estado de insegurança e dúvida a seu próprio respeito.
Paixão intensa e insegurança são uma mistura nociva, pois dela brota o tipo de amor possessivo que é claramente ilustrado por esse mito sombrio. Talvez a insegurança tenha que existir dos dois lados, pois, de outro modo, Átis se libertaria e buscaria uma vida nova. Cibele tem o poder de enlouquecê-lo porque o rapaz tem uma necessidade absoluta dela; Átis ainda é um bebê no plano psicológico, não suportando separar-se da mãe. A dependência que sente é a de um filho em relação aos pais. Quando levamos esses sentimentos intensos de dependência para as relações adultas, estamos abrindo as portas para enormes sofrimentos. A menos que saibamos lidar com a separação, não conseguimos resistir às tentativas de manipulação e aprisionamento de outra pessoa, nem conseguimos nos abster de manipular e aprisionar os outros, para mantê-los junto de nós. Presos nessa rede, não conseguimos viver plenamente a vida e temos de abrir mão do poder de moldar nosso destino, por medo de ficarmos sós. Nem Cibele nem Átis suportam o desafio humano fundamental da existência afetiva independente. Por isso, não podem se tornar amantes que realmente respeitam e valorizam a alteridade do outro; condenam-se a um estado psicológico de fusão, que resulta numa repetição cíclica de traição, mágoa, confusão e autodestrutividade. Esse mito nos ensina que não é apenas a paixão que desencadeia a tragédia, mas a mistura doentia de paixão e incapacidade de existir como um ser humano separado.
(Liz Greene, Juliet Sharman-Burke - Uma Viagem através dos Mitos)
1. A exposição do cardeal-teólogo Walter Kasper na semana passada aos cardeais, reunidos em Roma para darem início à reflexão sobre a família no mundo actual e a pastoral familiar, foi publicamente aplaudida pelo Papa Francisco.
A intervenção não veio a público. Mas o cardeal já tinha expressado claramente o seu pensamento, concretamente sobre a admissão à comunhão dos divorciados que voltam a casar. Já em Dezembro tinha dito ao semanário Die Zeit que os divorciados recasados "terão em breve acesso novamente aos sacramentos". E, na véspera do debate no consistório dos cardeais, afirmou, aliás na linha de Francisco, que repete constantemente "Deus não se cansa de perdoar": "Todo o pecado pode ser perdoado. Também o divórcio. Esse é o ponto de partida. Alguém pode cair num buraco negro de que Deus o pode tirar." E insistiu: "O Papa convida-nos a ir às periferias, aos subúrbios da existência humana, para sermos como o bom samaritano que ajuda e não como o sacerdote e o levita do Evangelho que têm respostas preparadas para tudo. A Igreja deve ser o hospital de campanha que cura todas as feridas." A doutrina "não é uma lagoa estancada. É uma viagem, um ponto de partida, não de chegada, e a tarefa da Igreja é ir ao encontro das pessoas". Não se pode "defraudar as expectativas, especialmente no referente à família".
Está, pois, aberto o caminho para a admissão à comunhão dos divorciados que se voltam a casar. A resposta definitiva virá dentro de dois anos, no Sínodo de 2015.
2. Nem todos estão de acordo. O cardeal G. Müller, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, por exemplo, declarou: permitir "o acesso dos divorciados à Eucaristia causaria confusão nos fiéis quanto à doutrina da Igreja".
Então, há quem proponha como solução sobretudo a avaliação das condições de validade dos casamentos e a aceleração da declaração de nulidade. Ora, certamente é urgente acelerar e agilizar os processos de nulidade, mas pensar que essa é a via pura e simples de solução é perigosíssimo. Em primeiro lugar, porque daria azo a facilmente desqualificar a liberdade e a responsabilidade dos casais. Depois, porque o que acontece normalmente é que as pessoas partem de boa-fé e vontade para o ideal de um casamento estável, fiel e feliz, mas, depois, a vida é o que é, e por culpa de um ou do outro, por culpa dos dois ou por culpa de nenhum, a vida em comum já não é mais suportável, de tal modo que, em certas circunstâncias, o divórcio não só é legítimo mas necessário. A identidade humana é narrativa e o tempo tudo corrói. O grande Pascal disse-o de modo inexcedível nos Pensamentos: "O tempo cura as dores e as querelas, pois mudamos: já não somos a mesma pessoa. Ele já não ama esta pessoa que amava há dez anos. É isso: ela já não é a mesma, e ele também não. Ele era jovem, ela também; ela agora é totalmente diferente (tout autre). Talvez ele ainda a amasse, se ela fosse como era." E não terão o direito a recomeçar a vida e outro amor, na dignidade livre e na liberdade com dignidade?
3. Olhei para a imagem daqueles 150 cardeais em Roma e perguntei a mim mesmo: vão ser estes homens, só homens, solteiros e alguns com idade avançada, que, por mais dignos e competentes que sejam, vão, sozinhos, decidir da família do futuro, da moral sexual e da pastoral familiar? E aplaudi com as duas mãos a pergunta que organizações cristãs de todo o mundo fizeram ao Papa e ao G8 cardinalício: "Que seria um "Sínodo da Família" sem incluir aqueles que vivem numa família?" Evidentemente, um Sínodo autêntico sobre a família requer a participação de mulheres e homens comprometidos, vindos de todas as partes.
P. S. Depois dos descaminhos da imprensa no ensaio de nomes, o Papa Francisco nomeou finalmente o novo bispo do Porto: António Francisco dos Santos, até agora bispo de Aveiro. Homem simples, humilde e sábio, vem como pastor para uma diocese tão importante quanto difícil. Também se chama Francisco, e, neste caso, o nome não é mera coincidência.
(Anselmo Borges)
O povo brasileiro ainda não acabou de nascer. Vindos de 60 países diferentes, aqui estão se mesclando representantes destes povos num processo aberto, todos contribuindo na gestação de um povo novo que um dia acabará de nascer.
O que herdamos da Colônia foi um Estado altamente seletivo, uma elite excludente e uma imensa massa de destituídos e descendentes de escravos. O cientista político Luiz Gonzaga de Souza Lima na sua original interpretação do Brasil nos diz que nascemos como Empresa Tranacionalizada, condenada a ser até hoje fornecedora de produtos in natura para o mercado mundial (cf. A refundação do Brasil, 2011).
Mas apesar deste constrangimento histórico-social, no meio desta massa enorme maduraram lentamente lideranças e movimentos que propiciaram o surgimento de todo tipo de comunidades, associações, grupos de ação e de reflexão que vão das quebradeiras de côco do Maranhão, aos povos da floresta do Acre, dos sem-terra do sul e do nordeste, das comunidades de base, aos sindicatos do ABC paulista.
Do exercício democrático no interior destes movimentos nasceram cidadãos ativos; da articulação entre eles, cada um mantendo sua autonomia, está nascendo uma energia geradora do povo brasileiro que lentamente chega à consciência de sua história e projeta um futuro diferente e melhor para todos.
Nenhum processo desta magnitude se faz sem aliados, sem a ligação orgânica daqueles que manejam um saber especializado com os movimentos sociais comprometidos. É aqui que a universidade é desafiada a alargar o seu horizonte. Importa que os mestres e alunos frequentem a escola viva do povo, como praticava Paulo Freire, e permitir que gente do povo possa entrar nas salas de aula e escutar os professores na matérias relevantes para eles como eu mesmo fazia nos meus cursos na UERJ do Rio de Janeiro.
Essa visão supõe a criação de uma aliança entre a inteligência acadêmica com a miséria popular. Todas as universidades, especialmente após a reforma de seu estatuto por Humboldt em 1809 em Berlim que permitiu as ciências modernas ganharem sua cidadania acadêmica ao lado da reflexão humanística que criou outrora a universidade, se tornaram o lugar clássico da problematização da cultura, da vida, do homem, de seu destino e de Deus. As duas culturas – a humanística e a científica – mais e mais se intercomunicam no sentido de pensar o todo, o destino do próprio projeto científico-técnico face àss intervenções que faz na natureza e sua responsabilidade pelo futuro comum da nação e da Terra. Tal desafio exige um novo modo de pensar que não segue uma lógica do simples e linear mas do complexo e do dialógico.
As universidades são urgidas a buscar um enraizamento orgânico nas periferias, nas bases populares e nos setores ligados diretamente à produção. Aqui pode se estabelecer uma fecunda troca de saberes, entre o saber popular, de experiências feito, e o saber acadêmico, constituído pelo espírito crítico; dessa aliança surgirão seguramente novas temáticas teóricas nascidas do confronto com a anti-realidade popular e da valorização da riqueza incomensurável do povo na sua capacidade de encontrar, sozinho, saídas para os seus problemas. Aqui se dá a troca de saberes, uns completando os outros, no estilo proposto pelo prêmio Nobel de Química (1977) Ilya Prigorine (cf.A nova aliança, UNB 1984).
Deste casamento, se acelera a gênese de um povo; permite um novo tipo de cidadania, baseada na con-cidadania dos representantes da sociedade civil e acadêmica e das bases populares que tomam iniciativas por si mesmos e submetem o Estado a um controle democrático, cobrando-lhe os serviços básicos especialmente para as grande populações periféricas.
Nestas iniciativas populares, com suas várias frentes (casa, saúde, educação, direitos humanos, transporte coletivo etc), os movimentos sociais sentem necessidade de um saber profissional. É onde a universidade pode e deve entrar, socializando o saber, oferencendo encaminhamentos para soluções originais e abrindo perspectivas às vezes insuspeitadas por quem é condenado a lutar só para sobreviver.
Deste ir-e-vir fecundo entre pensamento universitário e saber popular pode surgir o bioregionalismo com um desenvolvimento adequado àquele ecossistema e à cultura local. A partir desta prática, a universidade pública resgatará seu caráter público, será realmente a servidora da sociedade. E a universidade privada realizará sua função social, já que em grande parte é refém dos interesses privados das classes proprietárias e feita chocadeira de sua reprodução social.
Esse processo dinâmico e contraditório só prosperará se estiver imbuído de um grande sonho: de ser um povo novo, autônomo livre e orgulhoso de sua terra. O antropólogo Roberto da Matta bem enfatizou que o povo brasileiro criou um patrimônio realmente invejável: “toda essa nossa capacidade de sintetizar, relacionar, reconciliar, criando com isso zonas e valores ligados à alegria, ao futuro e à esperança” (Porque o brasil é Brasil, 1986,121).
Apesar de todas tribulações históricas, apesar de ter sido considerado, tantas vezes, jeca-tatu e joão-ninguém, o povo brasileiro nunca perdeu sua auto- estima e o encantamento do mundo. É um povo de grandes sonhos, de esperanças inarredáveis e utopias generosas, um povo que se sente tão imbuído pelas energias divinas que estima ser Deus brasileiro.
Talvez seja esta visão encantada do mundo, uma das maiores contribuições que nós brasileiro podemos dar à cultura mundial emergente, tão pouco mágica e tão pouco sensível ao jogo, ao humor e à convivência dos contrários.
(Leonardo Boff)