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É preciso dizer que Nietzsche mal teve tempo de formular o pensamento do eterno retorno antes que a doença o impedisse para sempre de afiná-lo e desenvolvê-lo como desejaria. No entanto, ele estava absolutamente convencido de que era nessa última doutrina que residia seu mais original aporte, sua verdadeira contribuição à história das ideias.
Contudo, a questão central nos interessa. Ela concerne a todos aqueles que não são mais “crentes”, no sentido que quisermos — a maioria de nós, é preciso que se diga. Se não existem mais além, nem cosmos nem divindade, se os ideais fundadores do humanismo estão comprometidos, como distinguir não apenas o bem do mal, ou, ainda mais profundamente, o que vale a pena ser vivido e o que é medíocre? Para operar essa distinção, não seria necessário elevar os olhos para um céu qualquer e nele procurar um critério que transcendesse este mundo? E se o céu estiver desesperadamente vazio, onde procurar?
É para oferecer uma resposta a essa pergunta que a doutrina do eterno retorno foi inventada por Nietzsche. Para nos fornecer um critério, finalmente terrestre, de seleção do que merece e do que não merece ser vivido. Para aqueles que creem, ela permanecerá letra morta. Mas para os outros, para aqueles que não creem mais, para aqueles que também não pensam que os engajamentos militantes, políticos ou outros bastam, é preciso admitir que a questão é interessante...
Que, por outro lado, ela corresponda à problemática da salvação, não há nenhuma dúvida. Para se convencer disso, basta observar rapidamente o modo como Nietzsche a apresenta, em comparação com as religiões. Ela contém, ele afirma, “mais do que todas as religiões que ensinaram a desprezar a vida como passagem, a cobiçar uma outra vida”, de modo que ela vai se tornar “a religião das almas mais sublimes, mais livres, mais serenas”. Nessa ótica, Nietzsche chega a propor explicitamente que se ponha a “doutrina do eterno retorno no lugar da ‘metafísica’ e da religião”  — como ele colocou a genealogia no lugar da theoria, e o grande estilo no lugar dos ideais da moral. A menos que se suponha que ele empregue termos tão pesados levianamente, o que é pouco provável, devemos nos perguntar por que ele os aplica à sua própria filosofia, e, além disso, ao que ela tem de mais original e de mais forte a seus próprios olhos.
O que ensina, então, o pensamento do eterno retorno? Em que ponto ele retoma, nem que seja por um viés, as questões da sabedoria e da salvação?
Proponho-lhe uma resposta breve, que vamos desenvolver em seguida: se não há mais transcendência, mais ideais, mais fuga possível num além, mesmo depois da morte de Deus, “humanizado” em forma de utopia moral ou política (a “humanidade”, a “pátria”, a “revolução”, a “república”, o “socialismo” etc.), é no seio deste mundo, permanecendo nesta terra e nesta vida, que é preciso aprender a distinguir o que vale ser vivido e o que merece perecer. É aqui e agora que se deve saber separar as formas de vida frustradas, medíocres, reativas e enfraquecidas, das formas de vida intensas, grandiosas, corajosas e ricas em diversidade.
Primeiro ensinamento a guardar, portanto: a salvação, segundo Nietzsche, não poderia ser outra senão decididamente terrestre, enraizada num tecido de forças que constitui a trama da vida. Não se trataria, uma vez mais, de inventar um novo ideal, um ídolo a mais que servisse pela enésima vez a julgar, rejulgar e condenar a existência em nome de um princípio pretensamente superior e exterior a ela.
É o que indica claramente um texto crucial do prólogo de Assim Falou Zaratustra, um dos últimos livros de Nietzsche. Fiel a seu estilo iconoclasta, ele convida o leitor a inverter o sentido da noção de blasfêmia:
Eu vos conjuro, ó meus irmãos, permaneçam fiéis à terra e não creiam naqueles que vos falam de esperança supraterrestre. Voluntariamente ou não, são envenenadores. São contendores da vida, moribundos, intoxicados dos quais a terra está cansada: que pereçam, portanto!
Blasfemar contra Deus era outrora a pior das blasfêmias, mas Deus está morto, e com ele mortos seus blasfemadores. De agora em diante, o crime mais terrível é blasfemar contra a terra e conceder mais apreço às entranhas do insondável do que ao sentido da terra.
Em poucas linhas, Nietzsche define como ninguém o programa que se tornará, no século XX, o de toda filosofia de inspiração “materialista”, quer dizer, de todo pensamento que recusa deliberadamente o “idealismo”, entendido no sentido de uma filosofia que enuncia ideais superiores a esta realidade que é a vida ou a vontade de poder. De imediato, como você vê, a blasfêmia muda de sentido: ainda no século XVII, e até no XVIII, quem fazia publicamente profissão de ateísmo podia ser mandado para a prisão, ou condenado à morte. Hoje, segundo Nietzsche, o inverso deveria ser a regra: blasfemar não é mais dizer que Deus está morto, mas, pelo contrário, é ceder ainda às bobagens metafísicas e religiosas segundo as quais haveria um “além”, ideais superiores, mesmo irreligiosos como o socialismo ou o comunismo, em nome dos quais seria preciso “transformar o mundo”.
É o que ele explica de modo quase límpido num fragmento datado de 1881, no qual, de passagem, ele se diverte parodiando Kant:
Se, em tudo o que você quer fazer, começar perguntando: “Tenho certeza de que desejo fazê-lo infinitas vezes?”, isso se tornará o centro de gravidade mais sólido para você... Eis o ensinamento de minha doutrina: “Viva de forma a ter de desejar reviver — é o dever —, pois, em todo caso, você reviverá! Aquele para quem o esforço é a alegria suprema, que se esforce! Aquele que ama antes de tudo o repouso, que repouse! Aquele que ama antes de tudo se submeter, obedecer e seguir, que obedeça! Mas que saiba para o que dirige sua preferência, e não recue diante de nenhum meio! É a eternidade que está em jogo!” Essa doutrina é suave para aqueles que nela não têm fé. Ela não tem nem inferno nem ameaças. Aquele que não tem fé não sentirá em si senão uma vida fugidia. (A Vontade de Poder , Bianquis, IV, 1.441-1.444. No mesmo sentido, ver também A Gaia Ciência, IV, § 341, assim como as célebres passagens do Zaratustra em que Nietzsche comenta sua fórmula segundo a qual “toda alegria [Lust] quer eternidade”)
Aqui, finalmente a significação da doutrina do eterno retorno aparece com toda a clareza.
Ela não é nem uma descrição do curso do mundo, nem uma “volta aos Antigos”, como por vezes se acreditou tolamente, nem muito menos uma profecia. Ela não é, no fundo, nada além de um critério de avaliação, um princípio de seleção dos momentos de nossas vidas que valem ou não a pena ser vividos. Trata-se, graças a ela, de interrogar nossas existências, a fim de fugir das falsas aparências e das meias medidas, de todas essas covardias que, ainda segundo Nietzsche, nos levariam a desejar esta ou aquela coisa “só uma vez”, como uma concessão, todos esses momentos em que nos abandonamos à facilidade de uma exceção, sem a querer realmente.
Nietzsche nos convida, ao contrário, a viver de tal modo que nem os arrependimentos nem os remorsos tenham mais nenhum espaço, nenhum sentido. Essa é a verdadeira vida. E quem, de fato, poderia querer seriamente que os momentos medíocres, todos os dilaceramentos, todas as culpas inúteis, todas as fraquezas inconfessáveis, as mentiras, as covardias, os jeitinhos consigo mesmo se repetissem eternamente? Mas também, quantos momentos de nossas vidas persistiriam se aplicássemos honestamente, com rigor, o critério do eterno retorno? Alguns momentos de alegria, sem dúvida, de amor, de lucidez, de serenidade, sobretudo...
Você objetará talvez que tudo isso é muito interessante, eventualmente útil, é verdade, mas sem nenhuma relação nem com uma religião, mesmo de um tipo radicalmente novo, nem com uma doutrina da salvação. Que eu possa me exercitar em refletir nos momentos de minha vida, utilizando o critério do eterno retorno? Por que não? Mas como isso pode me salvar dos medos de que falávamos no início deste livro? Que relação tem com a “finitude humana”, com as angústias que ela suscita e das quais as doutrinas da salvação pretendem nos curar?
É a noção de eternidade que pode nos mostrar o caminho. Pois você notará que, mesmo na ausência de Deus, existe eternidade, e, para se chegar a ela, é preciso, afirma estranhamente Nietzsche — estranhamente porque isso parece quase cristão —, ter fé e cultivar o amor.
Ah! Como não me consumiria de desejo de eternidade, de desejo do anel dos anéis, do anel nupcial do Retorno? Ainda não encontrei a mulher de quem eu quisesse filhos, a não ser esta mulher que amo, pois eu te amo, ó eternidade! Pois eu te amo, ó eternidade! (Zaratustra, III, “Os sete selos”)
Concordo que essas formulações poéticas nem sempre facilitam a leitura.
Se você quer compreendê-las e compreender também em que aspecto Nietzsche se reconcilia com as doutrinas da salvação, é importante que você perceba em que ponto ele alcança uma dessas intuições profundas que vimos atuar nas sabedorias antigas: aquela segundo a qual a vida boa é a que consegue viver o instante sem referência nem ao passado nem ao futuro, sem condenação pessoal, com leveza absoluta, com o sentimento perfeito de que não há mais diferença real entre o passado e a eternidade.

(Luc Ferry - Aprender a viver)

publicado às 20:34

Anteriormente abordamos o império das grandes corporações que controlam os fluxos econômicos e através deles as demais instâncias da sociedade mundial. A constituição perversa deste império surgiu por causa da falta de uma governança global que se faz cada dia mais urgente. Há problemas globais como os do paz, da alimentação, da água, das mudanças climáticas, das migrações dos povos e outras que, por serem globais, demandam soluções globais. Esta governança é impedida pelo egoismo e o individualismo das grandes potências.

Uma governança global supõe que cada país renuncie um pouco de sua soberania para criar um espaço coletivo e plural onde as soluções para os problemas globais pudessem ser globalmente atendidos. Mas nenhuma potência quer renunciar uma unha sequer de seu poderio, mesmo agravando-se os problemas particularmente aos ligados aos limites físicos da Terra, capaz de atingir negativamente  a todos através dos eventos extremos.
Constata-se que vigora uma cegueira lamentável na maioria dos economistas. Em seus debates – tomemos como exemplo o conhecido programa semanal da Globonews Painel – onde a economia ocupa um lugar privilegiado. No que pude constatar,  ouvi, raríssimos economistas incluir em suas análises os limites de suportabilidade do sistema-vida e do sistema-Terra que põem em cheque a reprodução do capital. Prolongam o enfadonho discurso econômico no velho paradigma como se a Terra fosse um baú de  recursos ilimitados e a economia se medisse pelo PIB e fosse um subcapítulo da matemática e da estatística. Falta pensamento. Não pensam o que sabem. Mal se dão conta de que se não abandonarmos a obsessão do crescimento material ilimitado e em seu lugar não buscarmos a equidade-igualdade social, só pioraremos a situação já ruim.
Queremos abordar um complemento do império perverso das grandes corporações que se revela ainda mais desavergonhado. Trata-se da busca de um Acordo Multilateral de Investimentos. Quase tudo é discutido a portas fechadas. Mas na medida em que é detectado, se retrai, para logo em seguida voltar sob outros nomes. A intenção é criar um livre comércio total e institucionalizado entre os Estados e as grandes corporações. Os termos da questão foram amplamente apresentados por Lori Wallach da diretoria do Public Citizen’s Global Trade Watch no Le Monde Diplomatique Brasil  de novembro de 2013.
Tais corporações visam saciar o seu apetite de acumulação em áreas relativamente pouco atendidas pelos países pobres: infra-estrutura sanitária, seguro-saúde,  escolas professionais, recursos naturais, equipamentos públicos, cultura, direitos autorais e patentes. Os contratos se prevalecem da fragilidade dos Estados e impõem condições leoninas. As corporações, por serem transnacionais, não se sentem submetidas às normas nacionais com respeito à saúde, à proteção ambiental e à legislação fiscal. Quando estimam que por causa de tais limites o lucro futuro esperado não foi alcançado, podem, por processos judiciais, exigir um ressarcimento do Estado (do povo) que pode chegar a bilhões de dólares ou de euros.
Estas corporações consideram a Terra como de ninguém, à semelhança do velho colonialismo. Quem chega primeiro se apropria e extrái o que pode. E conseguem que os tribunais lhes garantam este  direito de adquirir terras, mananciais de águas, lagos e outros bens e seviços da natureza.  Elas, comenta Wallach, “não têm obrigação nenhuma para com os países e podem disparar processos quando e onde lhes convier”(p.5). Exemplo típico e ridículo é o caso do fornecedor  sueco de energia Fattenfall que exige bilhões de euros da Alemanha por sua “virada energética”que prometeu abandonar a energia nuclear  e enquadrar mais severamente as centrais  de carvão. O tema da poluição, da diminuição do aquecimento global e da preservação da biodiversidadae do planeta são letra morta para esses depredadores, em nome do lucro.
A sem-vergonhice comercial chega a tais níveis que os países signatários desse tipo de tratado “se veriam obrigados não só a submeter seus serviços públicos à lógica do mercado  mas tambem a renunciar a qualquer intervenção sobre os prestadores de serviços estrangeiros que cobiçam seus mercados”(p.6). O Estado teria uma parcela mínima de manobra em questão de energia, saúde, educação, água e transporte, exatamente os temas mais cobrados nos protestos de junho de 2013 por milhares de manifestantes  no Brasil.
Estes tratados estavam sendo negociados com os USA e o Canadá, com a ALCA  na América Latina e especialmente entre a Comunidade Européia e os USA.
O que revelam estas estratégias? Uma economia que se autonomizou de tal maneira que somente ela conta, anula a soberania dos países, se apropria da Terra como um todo e a tansforma num imenso empório e mesa de negócios. Tudo vira mercadoria: as pessoas, seus órgãos, a natureza, a cultura, o entretenimento e até a religião e o céu. Nunca se toma em conta a possível reação massiva da sociedade civil que pode, enfurecida e com justiça, se rebelar e pôr tudo a perder.
Graças a Deus que, envergonhados, mas ainda obstinados, os mercadores com seus projetos estão se escondendo atrás de portas fechadas. Mas não desistem. Em qualquer momento podem ressurgir pois são possuídos pela fúria da acumulação que não aceita limites, nem aqueles impostos pela Mãe Terra, pequena, limitada e agora doente.

publicado às 12:42


Qualquer coisinha, tenho fome

por Thynus, em 06.01.14


Não sei se há humilhação maior do que ter de estender a mão suja, que salta de um corpo e uma roupa também sujos, pedindo, com o corpo inclinado e o olhar perdido e suplicante: "Qualquer coisinha, tenho fome." Se é uma criança, com uma mãozinha pequenina, um velho, um deficiente, suplicando "por caridade, por caridade", parte-se-me a alma. Sinto-me muito envergonhado por mim e pela sociedade, e dou, numa indizível atrapalhação, pois precisaria de dizer-Ihes que não é por caridade, mas por dever. E desaparecer.
Dar generosamente. Nem a mão deveria aparecer, para não ser vista. Um grande amigo que já morreu - porque é que os amigos morrem?! - repetia constantemente: a mão que dá esconde-se. A partir daí, perguntei-me sempre: será por isso que não vemos Deus? Porque dá - Deus é Dar, o Dar Originário, Criador -, escondendo-se?
Eu sei que é uma vergonha que se dê e se receba por esmola aquilo a que se tem direito, de tal modo que há mesmo quem pense e argumente que o exercício da caridade é um modo de desacelerar a transformação social que deveria conduzir a uma sociedade justa. Ouve-se isso, por vezes injustamente e de modo irresponsável, também por ocasião das campanhas do "banco alimentar".
É evidente que é uma exigência empenharmo-nos todos, com energia e lucidez, pela justiça no mundo, mediante a transformação das estruturas sociais. Mas também é evidente que seria intolerável, a pretexto de agudizar as contradições para acelerar a revolução, não dar de comer à criança esfomeada, não ajudar o pobre na sua necessidade imediata.
Confrontada pelos jornalistas, Madre Teresa de Calcutá argumentou que é urgente que os poderosos discutam nos Fóruns Internacionais os problemas da organização da justiça no mundo e a distribuição da riqueza, mas, enquanto se alcançam ou não acordos eficazes, as missionárias da caridade dedicar-se-ão a recolher das ruas, um a um, os moribundos e os enfermos que já ninguém ampara nem cuida.
Na sua exortação "A Alegria do Evangelho", o Papa Francisco denuncia o mero assistencialismo: "Os planos de assistência, que acorrem a determinadas emergências, deveriam considerar-se apenas como respostas provisórias. Enquanto não forem radicalmente solucionados os problemas dos pobres, renunciando à autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando as causas estruturais da desigualdade social, não se resolverão os problemas do mundo e, em definitivo, problema algum. A desigualdade é a raiz dos males sociais". Mas não deixa de sublinhar que se deve entender o pedido de Jesus aos discípulos, no Evangelho segundo São Marcos: "dai-lhes vós mesmos de comer", como envolvendo "tanto a cooperação para resolver as causas estruturais da pobreza e promover o desenvolvimento integral dos pobres como os gestos mais simples e diários de solidariedade para com as misérias muito concretas que encontramos".
Também Bertolt Brecht, o famoso dramaturgo marxista que se fazia acompanhar da Bíblia, escreveu estes admiráveis versos sobre a necessidade de não desvincular a justiça da caridade nem esta daquela: "Contaram-me que em Nova Iorque,/na esquina da Rua Vinte e Seis com a Broadway,/nos meses de inverno, há um homem todas as noites/ /que, suplicando aos transeuntes,/procura um refúgio para os desamparados que ali se reúnem./ /Não é assim que se muda o mundo,/as relações entre os seres humanos não se tornam melhores./Não é este o modo de encurtar a era da exploração./No entanto, alguns seres humanos têm cama por uma noite./Durante toda uma noite estão resguardados do vento/e a neve que lhes estava destinada cai na rua.//Não abandones o livro que to diz, homem./ Alguns seres humanos têm cama por uma noite,/durante toda uma noite estão resguardados do vento/e a neve que lhes estava destinada cai na rua./Mas não é assim que se muda o mundo,/as relações entre os seres humanos não se tornam melhores./Não é este o modo de encurtar a era da exploração."

(Anselmo Borges)

publicado às 12:24


OSÍRIS, ÍSIS E HÓRUS

por Thynus, em 04.01.14

O filho divino traz a esperança eterna

 

Esta lenda do antigo Egito fala-nos do filho como imagem de esperança e renovação, que nos dá coragem para superar obstáculos e conquistar o caminho para a serenidade e a alegria. Osíris, Ísis e Hórus têm sido comparados por alguns estudiosos à Trindade cristã, por causa do filho divino que redime o sofrimento e elimina o mal. Em termos psicológicos, essa família divina tem muito a nos dizer sobre o sentimento de esperança e significação que vivenciamos através de nossos filhos.

 

 

 

Osíris foi o filho primogênito do Pai Terra e da Mãe Céu. O jovem deus tinha belas feições e era imensamente mais alto do que os seres humanos. Desposou sua irmã, Ísis, a deusa da Lua. Juntos, os dois ensinaram o povo do Egito a fazer instrumentos agrícolas e a produzir pão, vinho e cerveja. Ísis ensinou as mulheres a moer o milho, fiar o linho e tecer. Osíris construiu os primeiros templos e esculpiu as primeiras imagens divinas, dando assim aos seres humanos ensinamentos sobre os deuses. Era chamado “O Bondoso”, porque era inimigo da violência e somente pela gentileza dava a conhecer sua vontade. Mas Osíris não tardou a ser vítima de uma trama de seu malévolo irmão caçula, Set, que invejava seu poder. Set era bruto e selvagem; arrancara-se prematuramente do ventre da mãe e estava decidido a dominar o mundo, no lugar de Osíris. Convidou o irmão para um banquete e lá o assassinou, trancafiando o corpo num caixão que atirou no Nilo.
Ao saber que Osíris tinha sido assassinado, Ísis ficou desolada. Cortou os cabelos, rasgou as roupas e partiu imediatamente à procura do caixão. Ele fora levado para o mar e transportado pelas ondas para Biblos, onde tinha ido repousar ao pé de uma tamargueira. A árvore cresceu com uma velocidade tão espantosa que o caixão ficou inteiramente encerrado em seu tronco. Enquanto isso, o rei de Biblos tinha dado a ordem de que a árvore fosse cortada para servir de escora do teto de seu palácio. Ao ser cumprida essa ordem, desprendeu-se da árvore maravilhosa um aroma tão requintado, que sua reputação chegou aos ouvidos de Ísis, e ela compreendeu prontamente o que isso significava. Sem perda de tempo, Ísis partiu para Biblos, retirou o caixão do tronco da árvore e o levou de volta ao Egito. Mas Set, sabendo o que o esperava, encontrou o caixão no charco em que Ísis o escondera, abriu-o e retalhou o corpo do irmão em quatorze pedaços, espalhando-os por toda parte.
Ísis não desanimou. Procurou os preciosos pedaços do marido e os encontrou a todos — com exceção do falo, que fora engolido por um caranguejo do Nilo. Com sua poderosa magia, a deusa reconstituiu o corpo de Osíris, juntando todos os fragmentos e fazendo um novo falo de barro. Em seguida, praticou os ritos de embalsamamento que restituiriam ao deus assassinado a vida eterna. Enquanto Osíris dormia, à espera do renascimento, Ísis deitou-se com ele e concebeu o filho divino, Hórus, que ao nascer foi comparado a um falcão cujos olhos brilhavam à luz do Sol e da Lua.
Ressuscitado e desde então protegido contra a ameaça de morte, Osíris poderia ter retomado o governo do mundo. Mas havia se entristecido com o poder do mal que tinha conhecido na Terra e retirou-se para o mundo das sombras, onde passou a acolher calorosamente as almas dos justos e a reinar sobre os mortos.
Coube a Hórus, filho de Osíris, vingar o ato de selvageria que resultara na morte e desmembramento de seu pai. Hórus foi criado no isolamento, pois sua mãe temia as maquinações de Set. Era extremamente fraco ao nascer, e só escapou dos perigos que o ameaçavam com a ajuda dos poderes mágicos da mãe. Foi mordido por feras selvagens, picado por escorpiões, queimado e afligido por dores nas entranhas, tudo por obra de Set. Mesmo assim, apesar desses sofrimentos, cresceu forte, e Osíris lhe aparecia com frequência e o instruía no uso das armas, para que ele logo pudesse declarar guerra a Set, reivindicar sua herança e vingar o pai.
Ao chegar à idade adulta, Hórus iniciou uma longa guerra para derrotar seus inimigos e conseguiu destruir muitos deles. Mas Set não poderia ser vencido apenas pelas armas, pois era astuto demais. Para pôr fim ao interminável derramamento de sangue, os outros deuses reuniram-se num tribunal e convocaram os dois adversários. Set alegou que Hórus era ilegítimo, pois tinha sido concebido depois do assassinato de Osíris, mas Hórus conseguiu fazer valer a legitimidade de seu nascimento. Os deuses condenaram o usurpador, devolveram a herança de Hórus e o declararam rei do Egito.
Hórus reinou pacificamente sobre o céu e a terra e, ao lado do pai e da mãe, foi adorado por toda parte. Em meio às tarefas de governo, fazia visitas frequentes ao pai no reino das trevas, conduzindo os mortos à presença de Osíris, “O Bondoso”, e presidindo a pesagem das almas.

 

 

COMENTÁRIO: Filho algum é capaz de redimir a vida dos pais. Mas há uma espécie de esperança no futuro, e de confiança na bondade e inocência inatas da infância, que pode fazer uma vida enfadonha ou sem sentido valer a pena, e que dá sentido aos sofrimentos do passado. O mito de Osíris, Ísis e Hórus mostra-nos o cerne mais profundo do que nos leva a procurar construir uma família. Não é apenas pela continuidade da vida biológica; é também porque o nascimento de um filho pressagia um novo começo e a possibilidade de que se curem as dores passadas. É tanto a continuidade do espírito quanto a do corpo que buscamos em nossos filhos.
A família de Osíris é arquetípica e, sendo assim, reflete padrões que existem em todas as famílias. A dedicação de Ísis é um tema importante. A despeito dos obstáculos que Set lhe coloca no caminho, ela está decidida a encontrar e curar o corpo profanado do marido. Esse traço de lealdade absoluta é um dos aspectos de redenção da lenda e, na vida cotidiana, pode ser expresso por qualquer indivíduo que se disponha a apoiar o parceiro, mesmo diante do fracasso e da aparente derrota mundana. A mulher ou o marido que são leais e incentivadores quando o parceiro fica desempregado ou atravessa um período de depressão ou doença pode ser vislumbrado na dedicação de Ísis. É nesses traços humanos que podemos experimentar o tema mais profundo e arquetípico de redenção apresentado nesse mito.

 

Outro elemento importante da história é a concepção de Hórus, que ocorre quando as coisas estão em seu pior momento. Ísis concebe seu filho divino quando Osíris está adormecido, à espera da ressurreição. O que isso pode significar, em termos da vida familiar comum? Talvez nos diga algo sobre os momentos em que mais desejamos ter filhos, pois estes com frequência trazem uma fonte de esperança quando as circunstâncias são mais difíceis. Nem sempre são o sucesso e a alegria mundanos que nos inspiram a construir uma família; às vezes, a árdua luta pela vida nos leva a procurar firmar pé no futuro e dar um propósito a nossa existência.
A infância de Hórus é precária e ele passa por muitas vicissitudes antes de chegar à plenitude de suas forças. Também isso pode nos dizer algo sobre uma norma da vida, pois, muitas vezes, é de um começo frágil e vulnerável que nascem nossos esforços mais vigorosos e criativos. Ísis consegue proteger seu filho de Set. Assim como precisamos proteger nossos filhos vulneráveis, é preciso protegermos em nós o que há de mais vulnerável e indefinido, para que amadureça. Hórus entende que deve redimir o sofrimento do pai; o próprio Osíris já não deseja permanecer na Terra para prosseguir na luta. Em certo momento, talvez precisemos confiar a nossos filhos a lida com o futuro, pois, ao envelhecer, talvez já não tenhamos disposição ou coragem de batalhar com a vida. Vemos aí alguns ecos de outras histórias míticas: a inveja que Teseu sente de Hipólito, por exemplo, reflete sua impossibilidade de confiar em que seu filho tome as rédeas e tenha sua vez de viver. Osíris, por outro lado, enfrenta seu desafio com sucesso.
A resolução do conflito não surge por nenhuma vitória individual, mas porque os deuses em conjunto decidem que Hórus merece ter sua herança restaurada. No fim, também nós talvez tenhamos que deixar a vida concluir o que deixamos inacabado e confiar que o que entendemos por Deus, ou por espírito interior, realizará o que tentamos alcançar. Se o que buscamos for lícito e justo, como acontece com Hórus, talvez o mal não seja derrotado para sempre, mas será possível torná-lo impotente para destruir o que existe de bom. Na família, confiar em que o tempo e a retidão haverão de nos conduzir ao equilíbrio e à serenidade pode nos ajudar a aceitar situações que não podemos modificar, a perdoar aqueles que julgamos que nos ofenderam e a preservar nossa confiança no futuro.

 

 

(Liz Greene, Juliet Sharman-Burke - Uma Viagem através dos Mitos)

 

publicado às 19:35

 

Vanitas vanitatum, et omnia vanitas.
ECL. CAP. I. VERS. B.

 

 

Sendo o têrmo da vida limitada, não tem limite a nossa vaidade; porque dura mais, do que nós mesmos e se introduz nos aparatos últimos da morte. Que maior prova, do que a fábrica de um elevado mausoléu? No silêncio de uma urna depositam os homens as suas memórias, para com a fé dos mármores fazerem seus nomes imortais, querem que a suntuosidade do túmulo sirva de inspirar veneração, como se fôssem relíquias as suas cinzas, e que corra por conta dos jaspes a continuação do respeito. Que frívolo cuidado! Êsse triste resto daquilo que foi homem, já parece um ídolo colocado em um breve, mas soberbo domicílio, que a vaidade edificou para habitação de uma cinza fria, • e desta declara a inscrição o nome e a grandeza. A vaidade até se estende a enriquecer de adornos o mesmo pobre horror da sepultura.
Vivemos com vaidade, e com vaidade morremos; arrancando os últimos suspiros, estamos dispondo a nossa pompa fúnebre, como se em hora tão fatal o morrer não bastasse para ocupação: nessa hora, em que estamos para deixar o mundo, ou em que o mundo está para nos deixar, e entramos a compor, e a ordenar o nosso acompanhamento, e assistência funeral; e com vanglória antecipada nos pomos a antever aquela cerimônia, a que chamam as nações últimas honras, devendo antes chamá-la vaidades últimas. Queremos, que em cada um de nós se entregue à terra com solenidade, e fausto, outra infeliz porção de terra: tributo inexorável! A vaidade no meio da agonia nos faz saborear a ostentação de um luxo, que nos é posterior, e nos faz sensíveis as atenções, que hão-de dirigir-se à nossa insensibilidade. Transportamos para o tempo da vida aquela vaidade, de que não podemos ser capazes depois da morte: nisto é piedosa conosco a vaidade; porque em instantes cheios de dôr e de amargura, não nos desampara; antes nas disposições de uma pompa fúnebre, dá ao nosso cuidado uma aplicação, ainda que triste, e faz com que divertido, e empregado o nosso pensamento chegue a contemplar vistosa a nossa mesma morte, e luzida a nossa mesma sombra.
De tôdas as paixões, quem mais se esconde, é a vaidade: e se esconde de tal forma, que a si mesma se oculta, e ignora: ainda as ações mais pias nascem muitas vêzes de uma vaidade mística, que quem a tem, não a conhece nem distingue: a satisfação própria, que a alma recebe, é como um espêlho em que nos vemos superiores aos mais homens pelo bem que obramos, e nisso consiste a vaidade de obrar o bem.

Não há maior injúria, que o desprezo; e é porque o desprêzo todo se dirige, e ofende a vaidade; por isso a perda da honra aflige mais que a da fortuna; não porque esta deixe de ter um objeto mais certo, e mais visível, mas porque aquela tôda se compõe de vaidade, que é em nós a parte mais sensível. Poucas vêzes se expõe a honra por amor da vida, e quase sempre se sacrifica a vida por amor da honra. Com a honra, que adquire, se consola o que perde a vida; porém o que perde a honra, não lhe serve de alívio a vida, que conserva: como se os homens mais nascessem para terem honra, que para terem vida, ou fossem formados menos para existirem no ser, que para durarem na vaidade. Justo fôra, que amassem com excesso a honra, se esta não fôsse quase sempre um desvario, que se sustenta na estimação dos homens, e só vive da opinião dêles.
O não fazer caso do que é vão, também pode nascer de uma excessiva vaidade, e a êste grau de vaidade não chega aquela, que é medíocre, e ordinária; e desta sorte o excesso no vício da vaidade vem a produzir a aparência de uma virtude, que é a de não ser vaidoso: e com efeito assim como o excesso na virtude parece vício, também o excesso no vício vem de algum modo a parecer virtude. Na maior parte dos homens se acham os mesmos gêneros de vaidade, e quase todos se desvanecem dos mesmos acidentes, de que estão, ou se imaginam revestidos: porém alguns há, em quem a vaidade é misteriosa, e esquisita; porque consiste em desprezar a mesma vaidade, e em não fazer caso dos motivos, em que se funda a vaidade dos outros.
Trazem os homens entre si uma contínua guerra de vaidade; e conhecendo todos a vaidade alheia, nenhum conhece a sua: a vaidade é um instrumento, que tira dos nossos olhos os defeitos próprios, e faz com que apenas os vejamos em uma distância imensa, ao mesmo tempo que expõem à nossa vista os defeitos dos outros ainda mais perto, e maiores do que são. A nossa vaidade é a que nos faz ser insuportável a vaidade dos mais; por isso quem não tivesse vaidade, não lhe importaria nunca, que os outros a tivessem.

(MATIAS AIRES - REFLEXÕES SOBRE A VAIDADE DOS HOMENS)

publicado às 19:59

O homem selvagem, quando acabou de comer, está em paz com toda a natureza, e é amigo de todos os seus semelhantes. Se, algumas vezes, tem de disputar seu alimento, não chega nunca ao extremo sem ter antes comparado a dificuldade de vencer com a de encontrar noutro lugar sua subsistência; e, como o orgulho não se mistura ao combate, ele termina por alguns socos. O vencedor come o vencido vai procurar fortuna noutra parte, e tudo está pacificado. Mas, no homem da sociedade, é tudo bem diferente; trata-se, primeiramente, de prover ao necessário, depois, ao supérfluo. Em seguida, vêm as delícias, depois as imensas riquezas, e depois súditos e escravos. Não há um momento de descanso. O que há de mais original é que, quanto menos as necessidades são naturais e prementes, tanto mais as paixões aumentam, e o que é pior, o poder de as satisfazer. De sorte que, após longas prosperidades, depois de haver devorado muitos tesouros e desolado muitos homens, meu herói acabará por tudo arruinar, até que seja o único senhor do universo. Tal é, abreviadamente, o quadro moral, senão da vida humana, pelo menos das pretensões secretas do coração de todo homem civilizado.

 

Comparai, sem preconceitos, o estado do homem civilizado com o do homem selvagem, e investigai, se o puderdes, como além da sua maldade, suas necessidades e suas misérias, o primeiro abriu novas portas à miséria e à morte. Se considerardes os sofrimentos do espírito que nos consomem, as paixões violentas que nos esgotam e nos desolam, os trabalhos excessivos de que os pobres estão sobrecarregados, a moleza ainda mais perigosa à qual os ricos se abandonam, uns morrendo de necessidades e outros de excessos; se pensardes nas monstruosas misturas de alimentos, na sua perniciosa condimentação, nos alimentos corrompidos, nas drogas falsificadas, nas velhacarias dos que as vendem, nos erros daqueles que as administram, no veneno do vasilhame no qual são preparadas; se prestardes atenção nas moléstias epidêmicas oriundas da falta de ar entre multidões de seres humanos reunidos, nas que ocasionam a nossa maneira delicada do viver, as passagens alternadas de nossas casas para o ar livre, o uso de roupas vestidas ou despidas sem precauções, e todos os cuidados que a nossa sensualidade excessiva transformou em hábitos necessários, e cuja negligência ou privação nos custa imediatamente a vida ou a saúde; se puserdes em linha de conta os incêndios e os tremores de terra que, consumindo ou derrubando cidades inteiras, fazem morrer os habitantes aos milhares; em uma palavra, se reunirdes os perigos que todas essas causas acumulam continuamente sobre nossas cabeças, sentireis como a natureza nos faz pagar caro o desprezo que temos dado às suas lições.


(Jean Jaques Rousseau - Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens)

publicado às 16:39

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