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De tudo e de nada, discorrendo com divagações pessoais ou reflexões de autores consagrados. Este deverá ser considerado um ficheiro divagante, sem preconceitos ou falsos pudores, sobre os assuntos mais variados, desmi(s)tificando verdades ou dogmas.
Toda a concretização do erotismo tem por fim atingir o mais íntimo do ser, no ponto em que o coração nos falta. A passagem do estado normal ao de desejo erótico supõe em nós a dissolução relativa do ser constituído na ordem descontínua. O termo dissolução responde à expressão familiar de vida dissoluta, ligada à atividade erótica. No movimento de dissolução dos seres, a parte masculina tem, em princípio, um papel ativo, enquanto a parte feminina é passiva. É essencialmente a parte passiva, feminina, que é dissolvida enquanto ser constituído. Mas para um parceiro masculino a dissolução da parte passiva só tem um sentido: ela prepara uma fusão onde se misturam dois seres que ao final chegam juntos ao mesmo ponto de dissolução. Toda a concretização erótica tem por princípio uma destruição da estrutura do ser fechado que é, no estado normal, um parceiro do jogo.
A ação decisiva é o desnudamento. A nudez se opõe ao estado fechado, isto é, ao estado de existência descontínua. É um estado de comunicação que revela a busca de uma continuidade possível do ser para além do voltar-se sobre si mesmo. Os corpos se abrem para a continuidade através desses canais secretos que nos dão o sentimento da obscenidade. A obscenidade significa a desordem que perturba um estado dos corpos que estão conformes à posse de si, à posse da individualidade durável e afirmada. Há, ao contrário, desapossamento no jogo dos órgãos que se derramam no renovar da fusão, semelhante ao vaivém das ondas que se penetram e se perdem uma na outra. Esse desapossamento é tão completo que no estado de nudez, que o anuncia, e que é o seu emblema, a maior parte dos seres humanos se esconde, mais ainda se a ação erótica, que acaba de desapossá-los, acompanha a nudez. O desnudar-se, visto nas civilizações onde isso tem um sentido pleno, é, quando não um simulacro, pelo menos uma equivalência sem gravidade da imolação. Na Antiguidade, a destituição (ou a destruição) que funda o erotismo era bastante sensível para justificar uma aproximação do ato de amor e do sacrifício. Quando eu falar do erotismo sagrado, que diz respeito à fusão dos seres com um além da realidade imediata, retomarei o sentido do sacrifício. Mas, desde já, insisto no fato de que o parceiro feminino do erotismo aparecia como a vítima, o masculino como o sacrificador, um e outro, durante a consumação, se perdendo na continuidade estabelecida por um ato inicial de destruição.
(George Bataille - "O Erotismo")
Observando do nosso ponto de vista humano a longa perspectiva da humanidade, nós simplesmente a reconhecemos como humana. Se devêssemos reconhecê-la como animal, teríamos de reconhecê-la como anormal. Se decidíssemos observar pelo outro lado do telescópio, como mais de uma vez eu fiz nestas especulações, se decidíssemos projetar a figura humana para frente e para fora de um mundo humano, só poderíamos dizer que um dos animais havia obviamente enlouquecido. Mas observando a coisa pelo lado certo, ou melhor, de dentro para fora, sabemos que se trata de sensatez; e sabemos que os homens primitivos eram sensatos. Nós aclamamos certa fraternidade maçônica sempre que a detectamos: em selvagens, em estrangeiros ou em personagens da história. Por exemplo, tudo o que podemos inferir da lenda primitiva, e tudo o que sabemos da vida na barbárie, justifica certa ideia moral e até mística cujo símbolo mais comum são as roupas. Pois as roupas são muito literalmente vestimentas, e o homem as vestem porque ele é sacerdote. É verdade que até como animal ele neste ponto difere dos animais. A nudez não lhe é natural; não é sua vida, é antes sua morte; até mesmo no sentido vulgar de sua morte causada pelo frio. Mas as roupas são usadas por razões de dignidade, ou decência, ou decoração, em lugares onde não são de modo algum exigidas para o aquecimento. Tem-se às vezes a impressão de que elas são valorizadas como ornamento antes de o serem por sua utilidade. Quase sempre fica a impressão de que elas parecem ter alguma conexão com o decoro. As convenções desse tipo variam muito de acordo com épocas e lugares; e há alguns observadores que não conseguem superar essa reflexão, e para eles parece tratar-se de um argumento suficiente para abandonar todas as convenções à própria sorte. Eles nunca se cansam de repetir, simplesmente maravilhados, que o modo de vestir nas Ilhas Canibais é diferente daquele em Camden Town. Não conseguindo ir além disso, eles se desesperam e abandonam toda a ideia de decência. Poderiam igualmente dizer que, pelo fato de haver chapéus de muitos formatos diferentes, sendo alguns excêntricos, conclui-se que os chapéus não têm importância ou que não existem. Eles provavelmente acrescentariam que não existe isso que se chama de insolação ou calvície progressiva. Em todas as partes os homens perceberam que certas formalidades se faziam necessárias para isolar e proteger certas partes privadas contra o desprezo ou grosseiros mal-entendidos. E a manutenção dessas formalidades, quaisquer que tenham sido, favoreceu a dignidade e o respeito mútuo. O fato de que elas na sua maior parte se referem, de modo mais ou menos remoto, às relações dos sexos ilustra os dois fatos que devem ser colocados logo no início do registro da raça. O primeiro é o fato de que o pecado original é realmente original. Não apenas na teologia, mas também na história, trata-se de algo enraizado nas origens. Independentemente de qualquer outra coisa em que os homens acreditaram, todos eles acreditaram que há algo que afeta a humanidade. Esse senso de pecado tornou impossível ser natural e não vestir roupas, assim como tornou impossível ser natural e não ter leis. Mas acima disso tudo deve-se descobri-lo naquele outro fato, que é pai e mãe de todas as leis uma vez que se funda num pai e numa mãe; aquilo que existe antes de todos os tronos e até mesmo de todos os povos.
(G. K. CHESTERTON - O HOMEM ETERNO)
Qual é o papel do escritor - se tem um papel - na cultura contemporânea? O da formiga ou o do elefante?A formiga "procede incessantemente mordiscando suas fronteiras e, em metade dos casos, ela deixa para trás seus sinais de entusiasmo, atividades laboriosas e rudimentares. "Os elefantes brancos se sentem "obrigados a vagar com a tomada de autoridade, desdenhando qualquer chance de diversão e distração, endurecendo-se em uma arrogância encáustica na espera que a jovem formiga, que aspira a ser elefante, comece a matá-los com um rifle de caça grossa". É claro que os dois modelos – a formiga e o elefante – podem se sobrepor e cruzar, num mesmo escritor e até no mesmo Jonathan Lethem. Mas não há dúvida de que - apesar de alguma aspiração legítima ao elefantismo branco - Lethem nesta coletânea de ensaios - definida como "uma espécie de autobiografia," - mostra uma forte paixão pelo trabalho da formiga, sem nunca esconder um certo fascínio por algum esporádico elefante. Porque os formigas atuam “lá onde latita o refletor da cultura", "podem ser teimosas, chuponas, teimosamente auto-referenciais, empenhadas em fazer arte em uma perda sem preocupar-se com o que venha a acontecer." Há muitas paixões de Jonathan Lethem neste livro: o cinema, a música, a literatura, é claro. E as páginas compõem uma autobiografia intelectual extraordinária que, sem sonhos de elefantismo, é um pouco também a fantasiosa, genial e involuntária biografia de nossa cultura.
Um romance fantástico, magistralmente escrito por Irving Stone, a vida de um gênio como Michelangelo narrada quase ao pormenor, em cada estado de ânimo, em cada triunfo e em cada derrota. Uma leitura emocionante que nos prende a este livro até ao fim e nos faz gostar um homem a quem devemos obras de arte únicas que nos dizem sobre a sua vida e os seus tormentos que se tornarão êxtase para todas as gerações que vindouras.
Irving Stone foi um escritor norte-americano conhecido por seus romances biográficos de personalidades históricas famosas, incluindo Lust for Life, um romance biográfico sobre o vida de Vincent van Gogh, e Agonia e Êxtase, um romance biográfico sobre Michelangelo.
Quando Sylvia Leclercq - psicoterapeuta, ateia, escritora, óbvio alter ego de Julia Kristeva - pega em mãos as obras completas de Teresa de Ávila, dá início a um encontro que irá envolvê-la e perturbá-la totalmente e de forma inesperada. Teresa de Ávila, a freira que viveu entre 1515 e 1582, reformadora da ordem carmelita, a santa do êxtase, revela-se aos olhos de Sylvia como uma mulher doente de amor e desejo, tal como os pacientes que se estendem no seu sofá . Página por página, descobrimos os prós e contras psicanalísticos do seu tormento e do seu êxtase, imortalizado pelo célebre grupo mármoreo de Bernini. Sylvia se deixa levar por Teresa, faz-se transportar a Espanha, se introduz nas dobras de sua escrita, capaz de restituir, por trás da humildade ostentada, uma revolucionária auto- consciência e uma inédita capacidade de elaboração de seu transtorno . A reconstrução do universo mental e do mal-estar físico e psicológico da santa torna-se para Julia Kristeva ponto de partida para uma reflexão mais profunda sobre a nossa necessidade atual de acreditar. Teresa tinha derramado na escrita a sua própria experiência para sublimar a posse do Outro, do Amado, incorporando-o dentro de si mesma até usufrui-lo em cada parte do seu corpo. Da mesma forma, Kristeva adota a forma de romance para restaurar a sensação daquela experiência, propondo-a como uma obra-prima do erotismo, espiritualidade, auto-consciência.