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Toda a concretização do erotismo tem por fim atingir o mais íntimo do ser, no ponto em que o coração nos falta. A passagem do estado normal ao de desejo erótico supõe em nós a dissolução relativa do ser constituído na ordem descontínua. O termo dissolução responde à expressão familiar de vida dissoluta, ligada à atividade erótica. No movimento de dissolução dos seres, a parte masculina tem, em princípio, um papel ativo, enquanto a parte feminina é passiva. É essencialmente a parte passiva, feminina, que é dissolvida enquanto ser constituído. Mas para um parceiro masculino a dissolução da parte passiva só tem um sentido: ela prepara uma fusão onde se misturam dois seres que ao final chegam juntos ao mesmo ponto de dissolução. Toda a concretização erótica tem por princípio uma destruição da estrutura do ser fechado que é, no estado normal, um parceiro do jogo.
A ação decisiva é o desnudamento. A nudez se opõe ao estado fechado, isto é, ao estado de existência descontínua. É um estado de comunicação que revela a busca de uma continuidade possível do ser para além do voltar-se sobre si mesmo. Os corpos se abrem para a continuidade através desses canais secretos que nos dão o sentimento da obscenidade. A obscenidade significa a desordem que perturba um estado dos corpos que estão conformes à posse de si, à posse da individualidade durável e afirmada. Há, ao contrário, desapossamento no jogo dos órgãos que se derramam no renovar da fusão, semelhante ao vaivém das ondas que se penetram e se perdem uma na outra. Esse desapossamento é tão completo que no estado de nudez, que o anuncia, e que é o seu emblema, a maior parte dos seres humanos se esconde, mais ainda se a ação erótica, que acaba de desapossá-los, acompanha a nudez. O desnudar-se, visto nas civilizações onde isso tem um sentido pleno, é, quando não um simulacro, pelo menos uma equivalência sem gravidade da imolação. Na Antiguidade, a destituição (ou a destruição) que funda o erotismo era bastante sensível para justificar uma aproximação do ato de amor e do sacrifício. Quando eu falar do erotismo sagrado, que diz respeito à fusão dos seres com um além da realidade imediata, retomarei o sentido do sacrifício. Mas, desde já, insisto no fato de que o parceiro feminino do erotismo aparecia como a vítima, o masculino como o sacrificador, um e outro, durante a consumação, se perdendo na continuidade estabelecida por um ato inicial de destruição.

(George Bataille - "O Erotismo")

publicado às 10:07


ÁRTEMIS

por Thynus, em 07.12.13

 

Deusa da natureza selvagem, Ártemis era irmã gêmea de Apolo. Nascera, como ele, dos amores de Zeus com Leto, uma mortal. Sua atividade favorita era a caça, e por isso, de manhã até a noite, ela percorria os vales e as florestas num carro puxado por dois cervos. Gostava de viver nos lugares selvagens, longe das cidades e dos homens, tendo como única companhia caçadoras que haviam feito voto de castidade.
Um dia, voltando de uma caçada proveitosa, Artemis se preparava para banhar o corpo cansado nas águas claras de uma fonte. As companheiras tinham acabado de lhe tirar as armas, as sandálias e a túnica, quando de repente apareceu um jovem caçador chamado Actéon. Ele se espantou tanto quanto a deusa e se deteve, fascinado com o espetáculo.
Sem suas armas, Artemis não podia reagir. Com um gesto rápido, tapou a nudez e jogou água na cabeça do caçador, enfeitiçando-o. Imediatamente, surgiram chifres na testa do infeliz; seus pés se transformaram em cascos, e o corpo se cobriu da pelagem de um cervo. Actéon quis gritar, mas sua voz já não era humana. Então fugiu. Seus próprios cães, não reconhecendo o dono, correram atrás dele, fincaram-lhe os dentes e o dilaceraram.
A deusa se mostrou cruel porque não suportou a idéia de ser vista nua por um homem. Mas também sabia ser uma deusa prestativa e oferecer sua proteção, em particular às grávidas. De fato, desde pequena ela se revelara hábil na arte de auxiliar uma mulher a dar à luz. Mal saíra da barriga da mãe, Leto, ajudou-a no parto de Apolo, o irmão gêmeo.

(C L A U D E P O U Z A D O U X - CONTOS E LENDAS DA MITOLOGIA GREGA)

publicado às 09:46


Da nudez e das roupas

por Thynus, em 07.12.13

 

"Então os olhos dos dois foram abertos e ficaram sabendo que estavam nus; 

 

por isso, entrelaçaram folhas de figueira e fizeram para si aventais."

 

(Gênesis 3:7) 

 

 


Observando do nosso ponto de vista humano a longa perspectiva da humanidade, nós simplesmente a reconhecemos como humana. Se devêssemos reconhecê-la como animal, teríamos de reconhecê-la como anormal. Se decidíssemos observar pelo outro lado do telescópio, como mais de uma vez eu fiz nestas especulações, se decidíssemos projetar a figura humana para frente e para fora de um mundo humano, só poderíamos dizer que um dos animais havia obviamente enlouquecido. Mas observando a coisa pelo lado certo, ou melhor, de dentro para fora, sabemos que se trata de sensatez; e sabemos que os homens primitivos eram sensatos. Nós aclamamos certa fraternidade maçônica sempre que a detectamos: em selvagens, em estrangeiros ou em personagens da história. Por exemplo, tudo o que podemos inferir da lenda primitiva, e tudo o que sabemos da vida na barbárie, justifica certa ideia moral e até mística cujo símbolo mais comum são as roupas. Pois as roupas são muito literalmente vestimentas, e o homem as vestem porque ele é sacerdote. É verdade que até como animal ele neste ponto difere dos animais. A nudez não lhe é natural; não é sua vida, é antes sua morte; até mesmo no sentido vulgar de sua morte causada pelo frio. Mas as roupas são usadas por razões de dignidade, ou decência, ou decoração, em lugares onde não são de modo algum exigidas para o aquecimento. Tem-se às vezes a impressão de que elas são valorizadas como ornamento antes de o serem por sua utilidade. Quase sempre fica a impressão de que elas parecem ter alguma conexão com o decoro. As convenções desse tipo variam muito de acordo com épocas e lugares; e há alguns observadores que não conseguem superar essa reflexão, e para eles parece tratar-se de um argumento suficiente para abandonar todas as convenções à própria sorte. Eles nunca se cansam de repetir, simplesmente maravilhados, que o modo de vestir nas Ilhas Canibais é diferente daquele em Camden Town. Não conseguindo ir além disso, eles se desesperam e abandonam toda a ideia de decência. Poderiam igualmente dizer que, pelo fato de haver chapéus de muitos formatos diferentes, sendo alguns excêntricos, conclui-se que os chapéus não têm importância ou que não existem. Eles provavelmente acrescentariam que não existe isso que se chama de insolação ou calvície progressiva. Em todas as partes os homens perceberam que certas formalidades se faziam necessárias para isolar e proteger certas partes privadas contra o desprezo ou grosseiros mal-entendidos. E a manutenção dessas formalidades, quaisquer que tenham sido, favoreceu a dignidade e o respeito mútuo. O fato de que elas na sua maior parte se referem, de modo mais ou menos remoto, às relações dos sexos ilustra os dois fatos que devem ser colocados logo no início do registro da raça. O primeiro é o fato de que o pecado original é realmente original. Não apenas na teologia, mas também na história, trata-se de algo enraizado nas origens. Independentemente de qualquer outra coisa em que os homens acreditaram, todos eles acreditaram que há algo que afeta a humanidade. Esse senso de pecado tornou impossível ser natural e não vestir roupas, assim como tornou impossível ser natural e não ter leis. Mas acima disso tudo deve-se descobri-lo naquele outro fato, que é pai e mãe de todas as leis uma vez que se funda num pai e numa mãe; aquilo que existe antes de todos os tronos e até mesmo de todos os povos.

(G. K. CHESTERTON - O HOMEM ETERNO)

publicado às 09:26


Religião a mais

por Thynus, em 06.12.13

 

Corre nos meios eclesiásticos a estória que conta que, estando programada uma viagem de Nossa Senhora à terra, ela terá manifestado desejo de descer a Fátima, argumentando que era um lugar onde nunca tinha estado!...
A ironia não estará tanto no pôr em causa as aparições em Fátima como eventualmente na veiculação de uma distância crítica face a um determinado tipo de religiosidade.
Henri Bergson, na obra famosa As Duas Fontes da Moral e da Religião, mostrou a distinção fundamental entre dois tipos de religiosidade. A primeira - a religiosidade estática
- tem a sua base na angústia da morte e no sentimento de abandono perante uma Natureza tantas vezes cruel, e, a partir do instinto de sobrevivência, procura protecção divina para a pequenez humana. A outra - a religiosidade dinâmica
- assenta na intuição do Mistério Último experienciado como amor. Esta exprime a grandeza do ser humano e apoia-se na experiência de homens excepcionais - os místicos. Mas o misticismo autêntico e completo é acção, pois o místico verdadeiro, "através de Deus, por Deus, ama a humanidade inteira com um amor divino".
Não há corte radical entre as duas formas, mas ao mesmo tempo é necessário reconhecer que há vivências mais e menos perfeitas da religião e uma tomada de consciência crescente e de nível mais alto neste domínio. Quando o núcleo da religião é vivido no amor, não só termina a intolerância como se impõe a compreeensão entre os humanos, independentemente da sua confissão religiosa. Foi assim que, também no sufismo, corrente mística do islamismo, houve a visão clara de que, insistindo no aspecto amoroso da religião, se dava a aproximação com Jesus, sem necessidade de abandonar a profissão islâmica. Kamil Hussein escreveu: "Se sentes no profundo de ti mesmo / que isso que te incita ao bem é o teu amor por Deus / e o teu amor pelos homens que Deus ama; / se pensas que o mal consiste em afastar-se dos homens / porque Deus os ama, como te ama a ti, / e que perdes o teu amor a Deus se causas dano àqueles que Ele ama, / isto é, a todos os homens, / tu és discípulo de Jesus, seja qual for a religião que professes".
Há um tremendo equívoco na afirmação corrente "católico não praticante", quando praticante se refere à prática dos rituais religiosos, nomeadamente a missa e a confissão. De facto, como escreveu Nietzsche, "só uma vida como a daquele que morreu na cruz é cristã". Jesus não se interessou com congregar os homens numa determinada confissão religiosa nem os convocou para rituais religiosos. Abriu caminhos para buscar o Mistério Último do mundo e vivê-lo no amor. No Juízo Final não se pergunta se se foi à missa ou a Fátima, mas se se praticou o amor ao irmão mais necessitado: deste-me de comer, de beber, de vestir, foste ver-me ao hospital, na cadeia... Os primeiros cristãos tiveram de defender-se contra a acusação de serem ateus: de facto, não só recusaram o culto oficial romano como não tinham aqueles sinais que aparentemente fazem parte da essência da religião: templos, altares para o sacrifício, imagens de Deus.
Embora ainda hoje os padres católicos tenham a obrigação de rezar o Ofício divino, na perspectiva cristã pode e deve perguntar-se: para quê o culto oficial, em ordem a aplacar a divindade e propiciar a sua benevolência, se Deus se revelou definitivamente como amor? Só quando for vivida adequadamente no templo do mundo a religião verdadeira da justiça e do amor, terá sentido pleno celebrar nos "templos" a alegria gozosa da vida e da fraternidade em Deus. Por isso, enquanto "a prática cristã" a que se referia Nietzsche for anémica, poderá dizer-se com razão que no sentido corrente de ritos e cerimónias até há religião a mais.

(Anselmo Borges - Janela do (In)Visível)

publicado às 21:23

 

Naquelas épocas tardias que podem se orgulhar do seu humanismo há um tal resíduo de temor supersticioso da "besta selvagem e cruel" que se debilita aquela forma até o louvor daquela época humana, que até a verdade palpável, quase por convenção tácita, permanece por séculos e séculos ignorada, porque se teme dar vida à besta felizmente amansada. Talvez seja audácia de minha parte se deixo transpirar uma tal verdade; possam outras contê-la e embebê-la de tanto "leite do pio pensar" (Provérbio alemão extraído do Guilherme Tell de Schiller), que façam com que volte a jazer em seu túmulo muda e esquecida. Preciso começar a pensar diferentemente e abrir bem os olhos acerca da crueldade, é preciso finalmente aprender a impaciência para não tolerar mais que certos erros passageiros empolados e insolentes das virtudes como, por exemplo. cometeram os filósofos antigos e modernos relativamente à tragédia. Quase tudo aquilo que chamamos "cultura superior" baseia-se na espiritualização no aprofundamento da crueldade — esta é minha tese, a besta selvagem não foi morta, vive, prospera, sobretudo se é divinizada.
A volúpia dolorosa que é a essência da tragédia, nada mais é que crueldade, tudo aquilo que na paixão trágica, e no fundo mesmo no sublime, mesmo nos mais supremos e mais delicados arrepios da metafísica, desperta uma complacência, obtém seu dulçor apenas pelo ingrediente de crueldade que lhe é mesclado. Todos os prazeres que se apossavam com secreta volúpia dos romanos na Arena, dos cristãos na lembrança da cruz, dos espanhóis frente aos toureiros ou corridas de touros, que experimentam os japoneses da modernidade quando se reúnem para ouvir a tragédia, os operários dos subúrbios de Paris que têm a nostalgia das revoluções sangrentas, os wagnerianos que imersos em êxtase degustam Tristão e Isolda — são apenas filtros mágicos da grande Circe que tem o nome de Crueldade.
É preciso emancipar-se desta psicologia oca de uma vez por todas, que se saiba ensinar antes de mais nada que a crueldade começa com o aspecto do sofrimento dos outros, que há tanta superabundância de gozo mesmo no próprio sofrimento e em provocá-lo!
Onde quer que o homem esteja próximo da automortificação (no sentido religioso) ou ainda da mutilação de si mesmo como entre os fenícios e os ascetas, ou em geral da renegação dos sentidos, da contrição, das penitências geradoras de cãibras dos puritanas, das vivissecções da consciência, do sacrifício do intelecto em Pascal, aquilo que secretamente o persuade e o estimula é a sua crueldade, é aquele arrepio perigoso da crueldade exercida contra nós mesmos. Finalmente, considere-se que até o próprio vidente quando obriga seu espírito a conhecer contrariamente à própria inclinação e aos desejos de seu coração — a dizer não, deve querer afirmar, amar, adorar — funciona apenas como artista é transfigurador da crueldade, cada aprofundamento das coisas é por si só uma violência, uma dor que se causa à vontade fundamental do espírito, que incessantemente tende a aparência e à superfície — até na vontade de conhecer há uma gota de crueldade.

(FRIEDRICH WILHELM NIETZSCHE - ALÉM DO BEM E DO MAL OU PRELÚDIO DE UMA FILOSOFIA DO FUTURO)

publicado às 21:02


O Êxtase da Influência

por Thynus, em 05.12.13

 


Qual é o papel do escritor - se tem um papel - na cultura contemporânea? O da formiga ou o do elefante?A formiga "procede incessantemente mordiscando suas fronteiras  e, em metade dos casos, ela deixa para trás seus sinais de entusiasmo, atividades laboriosas e rudimentares. "Os elefantes brancos se sentem "obrigados a vagar com a tomada de autoridade, desdenhando qualquer chance de diversão e distração, endurecendo-se em uma arrogância encáustica na espera que a jovem formiga, que aspira a ser elefante, comece a matá-los com um rifle de caça grossa". É claro que os dois modelos – a formiga e o elefante – podem se sobrepor e cruzar, num mesmo escritor e até no mesmo Jonathan Lethem. Mas não há dúvida de que - apesar de alguma aspiração legítima ao elefantismo branco - Lethem nesta coletânea de ensaios - definida como "uma espécie de autobiografia," - mostra uma forte paixão pelo trabalho da formiga, sem nunca esconder um certo fascínio por algum esporádico elefante. Porque os formigas atuam “lá onde latita o refletor da cultura", "podem ser teimosas, chuponas, teimosamente auto-referenciais, empenhadas em fazer arte em uma perda sem preocupar-se com o que venha a acontecer." Há muitas paixões de Jonathan Lethem neste livro: o cinema, a música, a literatura, é claro. E as páginas compõem uma autobiografia intelectual extraordinária que, sem sonhos de elefantismo, é um pouco também a fantasiosa, genial e involuntária biografia de nossa cultura.

publicado às 08:46


Lugares de desejo e êxtase

por Thynus, em 04.12.13

 

 

Cada palavra representa uma ponte entre mundos diferentes e, muitas vezes, é ilusório pensar em falar sobre a mesma coisa, só porque se usa a mesma palavra. Certamente você conhece a palavra êxtase, em primeiro lugar através do jargão juvenil, em especial, com o nome de uma droga chamada precisamente êxtase (ecstasy). Mas essa palavra vem de muito longe e nasceu mesmo na experiência religiosa dos místicos: significa sair fora de si. O significado que é comunicado ao associar a palavra êxtase a uma droga é, portanto, essencialmente, esse mesmo. Mas o que pode haver de comum entre a experiência de uma droga e a experiência de um místico? Enquanto isso, quero que você reflita sobre os muitos significados que damos à expressão "fora de si" na linguagem comum: significa enlouquecer, estar "fora da mente", "fora da cabeça", “perder a cabeça”. Enlouquece-se e perde-se a cabeça no sentido de idiotizar-se, mas também no sentido de se deixar preencher por um sentimento: fica-se louco de alegria, de dor, de amor, e sabemos também que entre o "idiotizar-se” e o inamorar-se há muitos pontos de contato. Portanto, utiliza-se a mesma expressão para coisas opostas umas às outras, mas também se descobre que há uma certa semelhança entre estas coisas . Assim como pode haver alguma semelhança entre o velho e o novo significado de êxtase. De acordo com o dicionário, êxtase é “estado supremo do conhecimento", o estado da alma arrebatada na contemplação de Deus. Talvez você tenha aprendido, através da história da arte (se não me ocorre de lembrar em que outra ocasião pode ter ouvido falar disso) que Santa Teresa de Ávila, foi uma santa 'especializada' em êxtase: há uma famosa escultura de Bernini, que é precisamente o êxtase de Santa Teresa, e talvez tendo em conta essa escultura já poderá imaginar o que é o êxtase. A mesma Teresa diz que no êxtase se sente a presença de Deus "não com olhos da cabeça nem com os olhos do coração": não com os sentidos nem com  a emoção, mas simplesmente se sente "assim sem necessidade de qualquer artifício, mostram-se como dois amigos o seu amor mútuo.  Aqui embaixo duas pessoas que tenham o intelecto acordado e se conheçam muito bem, entendem-se entre elas apenas com o olhar, mesmo sem palavras nem sinais. Algo semelhante acontece aqui: os dois amantes, a alma e Deus, se olham fixos um no outro, embora não possamos saber como. Assim como no Cântico dos Cânticos o Noivo fala para a Noiva, assim eu acho que é e eu ouvi o que acontece aqui. Veja que há uma referência a uma passagem bíblica que é o protótipo de uma metáfora – mas é mesmo uma verdadeira metáfora? – que estabelece um paralelo do conhecimento entre o noivo e a noiva, entre a alma e Deus. Veja então que há uma relação entre coisas que são vivenciadas por todos nós e coisas que foram sentidas apenas por pessoas excepcionais e em situações excepcionais: estas pessoas podem nos ajudar a entender melhor a nós mesmos e a nossa experiência, e eu quero que você perceba que nós ainda podemos nos comunicar com essas pessoas através dos livros que nos deixaram; dos livros irei falar depois. Há uma outra pessoa, o Mestre Eckart, que escreveu, mesmo antes de Teresa, em 1300, e que explica de forma semelhante como se pode chegar a sentir-se todo uno com Deus: "E como já foi dito do estar vazio e da nudez: quanto mais a  alma é livre e desprovida de qualquer coisa criada, vazia de tudo o que não é Deus, tanto mais puramente se agarra a Deus e está em Deus, una com Deus e vê Deus face a face, não na imagem ou como um objeto. Igualmente eu digo da semelhança e do ardor do amor: quanto mais uma pessoa é semelhante à outra, muito mais rápida e impetuosamente corre atrás dela e tanto mais doce e deliciosa é a sua corrida; quanto mais se afasta de si mesmo tornando-se cada vez mais diferente de si mesmo... tanto mais se torna semelhante àquele que tende e para o qual se apressa". A 'nudez', despir-se de si mesmo, sentir-se abandonado e vazio é outro tema recorrente na mística e nos contemplativos, nos profetas, desde os tempos bíblicos, quando a experiência do deserto, representava, também no sentido físico, um passo importante para encontrar Deus. As palavras citadas não são outra coisa do que a descrição de como nos perdemos, perdemos a cabeça, de que falámos anteriormente. O "perder a cabeça ", o desejo de perdê-la, por isso não é um desejo insano, se porventura foi possível que pessoas tidas como mais atraentes e santas, construiram a própria santidade exatamente sobre a capacidade de perder-se e encontrar-se  encontrando ao mesmo tempo a adesão a uma realidade que vai além do individual. Se hoje a capacidade de se perder não é mais apreciada é porque a necessidade humana de se sentir parte da criação, esta necessidade que normalmente se exprimia e se expressa em formas religiosas, não encontra mais resposta na vida social e, especialmente, os jovens que estão entrando no mundo com novos olhos, acabam se perdendo através de atalhos químicos que não admitem retorno, o que torna difícil o encontrar-se. Falei sobre estas coisas, então para convidar-vos a reconhecer melhor os vossos sentimentos, as vossas necessidades mais profundas, sem vergonha, porque só a partir da aceitação e do reconhecimento, é possível encontrar uma estrada positiva.

 

 

 

(O êxtase de Santa Teresa - BERNINI)

publicado às 17:19


Agonia e Êxtase

por Thynus, em 04.12.13
"Os meus alinhamentos não estão bem desenhados, pensou o rapaz de treze anos, imerso em grande concentração." A cabeça está fora das proporções com a testa que supera a boca e o queixo. Não seria melhor usar um fio de prumo?". Assim começa a biografia ficcional de Michelangelo, a história de sua vida torturada, tempestuosa, marcada pelo sofrimento e humilhação, mas também por grandes triunfos. Seu amor por Vittoria Colonna, a sua paixão pelo mármore, o tormento em frente ao bloco disforme, o êxtase pela vida dada àquele mesmo bloco disforme. O David, a Pietá, Moisés, a Capela dos Medici, o teto da Capela Sistina e o Juízo Final, a Basílica de São Pedro, a Pietà Rondanin.

 

 

Um romance fantástico, magistralmente escrito por Irving Stone, a vida de um gênio como Michelangelo narrada quase ao pormenor, em cada estado de ânimo, em cada triunfo e em cada derrota. Uma leitura emocionante que nos prende a este livro até ao fim e nos faz gostar um homem a quem devemos obras de arte únicas que nos dizem sobre a sua vida e os seus tormentos que se tornarão êxtase para todas as gerações que vindouras.


Irving Stone foi um escritor norte-americano conhecido por seus romances biográficos de personalidades históricas famosas, incluindo Lust for Life, um romance biográfico sobre o vida de Vincent van Gogh, e Agonia e Êxtase, um romance biográfico sobre Michelangelo.

publicado às 12:03

 

Quando Sylvia Leclercq - psicoterapeuta, ateia, escritora, óbvio alter ego de Julia Kristeva - pega em mãos as obras completas de Teresa de Ávila, dá início a um encontro que irá envolvê-la e perturbá-la totalmente e de forma inesperada. Teresa de Ávila, a freira que viveu entre 1515 e 1582, reformadora da ordem carmelita, a santa do êxtase, revela-se aos olhos de Sylvia como uma mulher doente de amor e desejo, tal como os pacientes que se estendem no seu sofá . Página por página, descobrimos os prós e contras psicanalísticos do seu tormento e do seu êxtase, imortalizado pelo célebre  grupo mármoreo de Bernini. Sylvia se deixa levar por Teresa, faz-se transportar a Espanha, se introduz nas dobras de sua escrita, capaz de restituir, por trás da humildade ostentada, uma revolucionária auto- consciência e uma inédita capacidade de elaboração de seu transtorno . A reconstrução do universo mental e do mal-estar físico e psicológico da santa torna-se para Julia Kristeva ponto de partida para uma reflexão mais profunda sobre a nossa necessidade atual de acreditar. Teresa tinha derramado na escrita a sua própria experiência para sublimar a posse do Outro, do Amado, incorporando-o dentro de si mesma até usufrui-lo em cada parte do seu corpo. Da mesma forma, Kristeva adota a forma de romance para restaurar a sensação daquela experiência, propondo-a como uma obra-prima do erotismo, espiritualidade, auto-consciência.

publicado às 17:38

 

"Eu vi então que ele tinha uma longa lança de ouro, cuja ponta parecia de fogo e senti como se ele a enterrasse várias vezes em meu coração, transpassando-a até minhas entranhas! Quando a retirava, parecia também arranca-las, e me deixava esbraseada do grande amor de Deus. A dor era tão grande que me fazia gemer e, no entanto, a doçura dessa dor excessiva era tal que eu não podia querer livrar-me dela... A dor não é corporal, mas espiritual, se bem que o corpo tenha sua parte e mesmo uma larga parte. É uma carícia de amor tão doce que acontece então entre a alma e Deus que eu peço a Ele, em sua bondade, que a faça sentir aquele que pensa que estou mentindo".

 

Êxtase, do grego, significa "sair de si".  O estado de êxtase é um estado especial de consciência. Êxtase místico é a sublimação do êxtase erótico. Sublimar significa dirigir a carga libidinal para um objecto espiritual. O estado de êxtase místico é o mesmo estado fisiológico do orgasmo, mas sublimado. Algumas condições patológicas também podem desencadear o êxtase místico. O amamentamento, o acto sexual e o parto são processos regulados pelo mesmo coquetel de hormônios e, se vividos de forma consciente e em condições ideais, constituem uma experiência extática de profunda transformação. Hoje em dia tornou-se fácil analisar as múltiplas funções dos estados de êxtase. Uma função óbvia é a de ampliar o amor em certos períodos críticos. O “cocktail orgasmogénico" de base produzido pelo nosso corpo sempre inclui hormônios como  a ocitocina e as endorfinas , e pode ser considerado um verdadeiro e próprio  "coquetel de hormónios do amor": amor pelo recém-nascido no período perinatal, amor pelo bebê durante a amamentação, amor pelo parceiro durante a relação sexual.
A “dádiva” do coquetel orgasmogénico também pode ser explicada como um mecanismo biológico de "recompensa". Sempre que nós, mamíferos, descendentes de ancestrais comuns com as macacas, fazemos algo necessário para a sobrevivência da espécie, somos recompensados por sensações agradáveis. Assim sobrevive a nossa espécie e assim funciona a evolução. Como então o êxtase e orgasmo podem ser da mesma origem, se um pertence à "necessidade" intelectual e o outro, por sua vez, à necessidade sexual?
Os seres humanos não são assexuais. A castidade, concebida como exercício de renúncia voluntária da sexualidade, sempre foi apontada pela Igreja como o valor máximo. As mulheres e os homens nos mosteiros tinham obrigação absoluta de castidade, na crença absurda de que era possível põr o corpo entre parêntesis e dar o máximo de espaço ao espírito. O velho dualismo maniqueísta entre o corpo e a alma produziu o delírio trágico da necessidade de lutar contra a carne que levava perigosamente para o pecado. Mas aqueles homens e mulheres não conseguiam facilmente apagar o fogo dos impulsos eróticos. Então, havia quem escolhia o caminho da duplicidade (
com a masturbação, o homossexualismo ou a pedofilia, por exemplo). E pouquíssimos conseguiam apagar essa “energia malífica” por meio da sublimação. Nem sempre foi fácil conter em zonas tranquilas sexualidade sublimada. A sexualidade reprimida por vezes converte-se em depressão (e, neste caso, é reduzida a testosterona) e em outros casos, converte-se em exaltação (e nesta situação é a dopamina que assume o comando.
O êxtase do orgasmo é um parente próximo do êxtase místico, em que se "sai de si" para "encontra-se" numa alteridade misteriosa em que se vislumbram os traços do conhecimento de Deus que, acredita-se, será pleno após a morte. Se lermos as páginas escritas pelos grandes místicos que experimentaram o êxtase, percebemos que estamos no meio de uma linguagem de amor e paixão. Lembramo-nos do êxtase de Santa Teresa, de Bernini – de facto, a expressão da santa pode evocar-nos a imagem de uma pessoa ao sentir um íntimo e forte prazer. De resto a santa escreve em suas memórias que, ao provar o êxtase, aparece-lhe um anjo que afunda a ponta brilhante de uma flecha nas suas entranhas, provocando nela, ao mesmo tempo, dor e imenso prazer. A relflexão sobre o êxtase místico surpreendentemente coincide com a reflexão sobre o amor e o desejo sexual que culmina no apagamento do eu no tu. No orgasmo está o elemento transformante, do sair de si ("vir-se")  e da dissolução que se manifesta  juntamente com o desejo de que não haja retorno . É a mesma coisa para o êxtase religioso em que há uma mesma “ascensão” do corpo, que ocorre numa relação sexual completa.
Então, entendemos que a sexualidade humana não pode ser abolida por qualquer convicção ou qualquer pensamento. Entendemos que o sexo não conicide necessariamente com o amor, embora geralmente o acompanhe. Entendemos que tanto o amor como o sexo, necessariamente, têm a ver com os estados de espírito em geral. Portanto, tudo pode acontecer: amor sem sexo, sexo sem amor, amor e sexo intimamente ligados. Não há dúvida de que apaixonar-se não significa necessariamente desejo sexual. Os nossos primeiros cortejamentos na infância e adolescência, certamente não implicam propósitos sexuais. Até mesmo muitos adultos, especialmente mulheres, podem provar evidências de experimentar sentimentos profundos e ser objecto de sentimentos semelhantes por parte de outros, sem impulsos sexuais . A verdade é que a intimidade pode ser assustadora e não nos sentimos de vivê-la com simplicidade. Muitas vocações religiosas têm esta razão única e exclusiva: o medo da intimidade compartilhada. Este medo está presente e persiste mesmo em casais ligados pelo vínculo do matrimónio.

 

publicado às 12:14



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