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A esfinge de Pandora

por Thynus, em 12.12.13

BOCETA - era uma caixinha de madeira onde as mulheres gregas e romanas guardavam suas jóias. Poemas do século XVIII já a usavam como metáfora para a genitália feminina - onde a mulher guarda seus tesouros.
Origem dos Palavrões

 

A moça deslumbrante, pura fatalidade, tem um nome — “Pandora” — ao mesmo
tempo esclarecedor e muito enganador. Significa em grego: aquela que tem todos os
dons — porque, diz Hesíodo, “todos que tinham sua casa no Olimpo lhe concederam
um dom” —, a menos que signifique, como acham alguns, “aquela que foi dada aos
homens por todos os deuses”. Pouco importa, aliás. Fato é que as duas leituras são
boas: Pandora aparentemente tem todas as virtudes possíveis e imagináveis, pelo
menos em termos de sedução (ou de moral, coisa que, como você sabe, é algo bem
diferente). Além disso, foi de fato enviada aos homens pelo conjunto dos olímpicos,
que os querem punir.
(Luc Ferry - A Sabedoria dos Mitos Gregos) 
 
(Pandora) ergue uma estranha “jarra” (que na mitologia logo se
chamará “caixa de Pandora”) dentro da qual Zeus se dera o trabalho de colocar todos
os males, todas as desgraças e todos os sofrimentos que devem se abater sobre a
humanidade. Apenas a esperança fica presa no fundo do funesto recipiente! E isso pode
ser interpretado de duas maneiras. Pode-se primeiro achar que os humanos não
poderão sequer se agarrar a alguma esperança, visto que ela não saiu da caixa. Pode-se
também entender, o que me parece mais adequado, que a eles resta a esperança, o que
está longe de ser uma vantagem concedida por Zeus. De fato, não se engane: a
esperança, para os gregos, não é um bom presente. É inclusive uma desgraça, uma
tensão negativa, pois esperar é continuar carente, é desejar o que não se tem e,
consequentemente, estar de certa maneira insatisfeito e infeliz. Quem espera se curar é
porque está doente, quem espera ser rico é porque é pobre, de forma que a esperança é
mais um mal do que um bem.
(Luc Ferry - A Sabedoria dos Mitos Gregos)
 
... o nascimento a partir
da união sexual do homem com a mulher vai tornar os mortais realmente mortais. Você
se lembra de que, na idade de ouro, eles não morriam por inteiro ou, melhor dizendo,
morriam o menos possível; desapareciam de forma gradual, durante o sono, sem
aflição nem sofrimento e sem nunca pensar na morte. Além disso, depois de
desaparecerem, permaneciam de certa maneira em vida, pois se tornavam daemons,
anjos da guarda encarregados de distribuir aos homens as riquezas, de acordo com o
mérito de cada um. Com o surgimento de Pandora, os mortais se tornam totalmente
mortais, e isso, por um motivo de real profundidade: é que o tempo, tal como o
conhecemos, com sua sequência de males — velhice, doenças, morte —, realmente nasce. 
(Luc Ferry - A Sabedoria dos Mitos Gregos)
 
Como na Bíblia, a saída da idade de ouro vem acompanhada por
uma funesta calamidade: o trabalho. Dali em diante, de fato, será preciso que os
homens ganhem seu pão com o suor do rosto, e isso por pelo menos duas razões. A
primeira, eu já disse: Zeus “tudo escondeu”, ele enterrou no chão os frutos que servem
de alimento ao homem, principalmente os cereais com os quais se fabrica o pão, de
forma que ele vai precisar se esforçar para se alimentar. Mas há também a encantadora
Pandora e, com ela, diz a Teogonia, da qual cito um pequeno trecho, “a raça e as tribos
das mulheres, grande flagelo para os mortais”:
Elas moram com os homens e da pobreza maldita não querem a companhia (mais
claramente, não aguentam a pobreza): precisam mais do que o bastante. É como
nas colmeias, em que as abelhas engordam os zangões e tudo se passa
desfavoravelmente para elas; o dia inteiro, até o pôr do sol, trabalham e fazem
seus favos de cera branca, enquanto eles permanecem no fundo da colmeia. É a
fadiga do outro que eles armazenam em suas panças.

Não é muito feminista, concordo, mas a época de Hesíodo não é a nossa. De
qualquer forma, está terminada aquela bela idade de ouro em que os homens podiam
todo dia rejubilar-se com os deuses e se alimentar com toda inocência, sem nunca se
sacrificar às necessidades da dura labuta. Mas o pior, se podemos assim dizer, é que a
mulher, evidentemente, não é um mal absoluto.
 (Luc Ferry - A Sabedoria dos Mitos Gregos)
 
abordamos um dos temas mais profundos da mitologia: se a ordem
cósmica fosse perfeita, caracterizada por um equilíbrio imutável e sem falhas, o
tempo simplesmente pararia, isto é, a vida, o movimento, a história, e não haveria,
inclusive para os deuses, nada mais a se ver nem fazer, ficando claro que o caos
primordial e as forças que ele não para de engendrar de vez em quando não podem
nem devem jamais desaparecer totalmente. E a humanidade, com todos os seus
vícios e, principalmente, com a sucessão infinita de gerações que isso implica, desde
o envio de Pandora e da morte “de verdade” para os homens, é indispensável à vida.
Magnífico paradoxo que se pode formular da seguinte maneira: não há vida sem
morte, não há história sem sucessão de gerações, não há ordem sem desordem, não
há cosmos sem um mínimo de caos.
 (Luc Ferry - A Sabedoria dos Mitos Gregos)

 

Introdução à boceta de Pandora

 

Pois bem, na boceta que Zeus entregara à Pandora, continha sentimentos. Aqui começa a primeira questão que não se define. Querem dizer que havia na caixa sentimentos ruins. Dado que nas primeiras eras da humanidade, considerava-se o sentimento uma coisa tola, algo que faz o guerreiro titubear na batalha.
Daí corriam leis que tratavam de que, “se tu desembainha tua espada, use-a”. Como “estumar” um cão. Homens não choravam. Homens não sentiam nada. Hesitar um instante que fosse significava estar morto. Não somente por outros homens, mas também por todas as feras que viviam soltas, e com fome, pelo planeta, na sua era mais selvagem. Mamutes e dentes-de-sabre. Entre feras, enxames e inescrupulosos vivia o homem. E, a mulher.

Ainda com pelo e andando meio de quatro na selva. Urrando e devorando. A fêmea desta espécie, ao contrário das outras espécies de mamíferos, sentia-se melhor perto do macho. O macho também tinha essa preferência e pagava seu prazer com proteção e provimentos.
A fêmea pagava sua segurança, com prazer e cuidados. Uma simbiose se formava para todo o sempre.
A natureza sempre proveu mais fêmeas que macho e a disputa por machos, entre as fêmeas, passou a ser uma constante.
A fêmea passa a desenvolver artimanhas e a servir o macho cada vez mais, a ponto de deixá-lo dormindo e ir buscar frutas frescas para quando ele acordasse. O macho já acordava satisfeito, com frutas e mel a o seu lado. Depois de comer, mais saciado, uma copulada rápida, saía para onde estivessem os caçadores. A noite chegava. E era à noite que tudo ficava pior.
Poucos param para pensar em uma noite completamente escura (em um céu completamente escuro). Uma floresta completamente fechada. Direito a comer tinha apenas quem sentisse o cheiro ou sentisse vibrações. Não se enxergava, como bem assinalam os antigos, “um palmo à frente do nariz.”. Isso quer dizer que se você por a ponta do polegar na ponta do seu nariz e esticar a mão um palmo, você não verá mais a ponta do seu dedo mínimo. Isto é verdade e pode ser comprovado por quem estiver em uma mata densa, longe das luzes artificiais.

Alguns homens, e mulheres, já no período em que perdem os pelos e se mudam para as cavernas e “prendem” (ou detêm) o fogo, passam a desenvolver sentidos mais apurados. Uns aprendem a seguir pegadas, outros a ouvir os sons das florestas, e a dizer o que se aproxima. Não são os mais fortes, mas acabam se unindo com os mais fortes e líderes dos agrupamentos, já humanos, mas um tanto arcaicos. Desprovidos de comunicação eficiente, tinham vida muito curta; como tudo na selva, nada morria doente ou velho. Tudo o que se movia seria devorado vivo. Acredite: se você vivesse na selva, você seria um ser muito estressado e apavorado.
Nesse cenário, as fêmeas eram sempre frágeis e necessitavam de proteção. Então que a fêmea se mostrava chorona, manhosa, fraca, “ganjenta”, mimosa, fresquinha, ficava inventando coisas para distrair o macho.
Os sentimentos eram ruins, por que na visão do homem de então, tornava fraco aquele que mantivesse, ou desenvolvesse, sentimentos. Assim, Zeus entregou à Pandora uma boceta com sentimentos ruins. E advertiu-a para que não abrisse a caixa, por que algo ruim sucederia disso.
E, esta é a segunda questão que não se define. Pois que, sabe-se muito bem que Zeus, sendo capcioso, contava com um dos sentimentos mais aguçados da mulher: a curiosidade.
O que de fato ocorreu. “Roxa” de curiosidade, Pandora abre a boceta e dentro dela saem (escapam?), todos os sentimentos. Mais que depressa Pandora fecha a boceta, prendendo lá dentro apenas um sentimento, que não escapara a tempo: a esperança.
E neste ponto temos a terceira questão que não se define. A esperança é um sentimento ruim. Ou então, a mulher não tem esperança. Já que esses sentimentos seriam para as mulheres.
Esse presente de Zeus era uma vingança contra outro deus: Prometeu. Este roubara o fogo do Olimpo e o entregara aos homens; queria auxiliar no desenvolvimento da tecnologia humana. Atitude com a qual o Senhor do Olimpo não concordava. Fogo para os homens e sentimentos para as mulheres. Sem a esperança.
***
 

A cultura Greco-romana (e um tanto judaica) tem em seus inconscientes essas emanações mitológicas e no decorrer da história a mulher aceita passiva o papel de pertencer a um macho provedor; de segurança e víveres. Evidente que o homem sempre precisou da mulher para o sexo e para os afazeres domésticos. Deveria ser uma troca justa, mas, cada qual passou a acreditar que estava dando mais que o outro na troca. E, a medida que os perigos maiores foram se dissipando, a área de abrangência da mulher foi aumentando, seu medo enfraquece e o homem vai perdendo poderes sobre a mulher.
A disputa é por liberdade, e posse.
 


(O Tom da Retórica)

 

publicado às 14:06


A essência do amor em Platão

por Thynus, em 10.12.13

 

Para Platão (O Banquete) Eros é um daimónion – que significa deus, ...

 

Numa festa, oferecida por um poeta que ganhou um prêmio por sua poesia, conversam cinco amigos e Sócrates. Um deles afirma que todos os deuses recebem hinos e poemas de louvor, mas nenhum foi feito ao melhor dos deuses, Eros, o amor. Propõe-se, então, que cada um faça uma homenagem a Eros dizendo o que é o amor.
Para um deles, o amor é o mais bondoso dos deuses, porque nos leva ao sacrifício pelo ser amado, inspira-nos devotamento e o desejo de fazer o bem. Para o seguinte, é preciso distinguir dois tipos de amor: o amor sexual e grosseiro e o amor espiritual entre as almas, pois o primeiro é breve e logo acaba, enquanto o segundo é eterno. Já o terceiro afirma que os que o antecederam limitaram muito o amor, tomando-o apenas como uma relação entre duas pessoas. O amor, diz ele, é o que ordena, organiza e orienta o mundo, pois é ele que faz os semelhantes se aproximarem e os diferentes se afastarem. O amor é uma força cósmica de ordem e harmonia do universo.
O quarto prefere retornar ao amor entre as pessoas e narra um mito. No princípio, os humanos eram de três tipos: havia o homem duplo, a mulher dupla e o homem-mulher, isto é, o andrógino. Tinham um só corpo, com duas cabeças, quatro braços e quatro pernas. Como se julgavam seres completos, decidiram habitar no céu. Zeus, rei dos deuses, enfureceu-se, tomou de uma espada e os cortou pela metade.
Decaídos, separados e desesperados, os humanos teriam desaparecido se Eros não lhes tive sse dado órgãos sexuais e os ajudasse a procurar a metade perdida. Os que eram homens duplos e mulheres duplas amam os de mesmo sexo, enquanto os que eram andróginos amam a pessoa do sexo oposto. Amar é encontrar a nossa metade e o amor é esse encontro.
Finalmente, o poeta, anfitrião da festa, toma a palavra dizendo: Todos os que me precederam louvaram o amor pelo bem que faz aos humanos, mas nenhum louvou o amor por ele mesmo. É o que farei. O amor, Eros, é o mais belo, o melhor dos deuses. O mais belo, porque sempre jovem e sutil, porque penetra imperceptivelmente nas almas; o melhor, porque odeia a violência e a desfaz onde existir; inspira os artistas e poetas, trazendo a beleza ao mundo.
Resta Sócrates. “Não poderei falar”, diz ele. “Não tenho talento para fazer discursos tão belos.” Os outros, porém, não se conformam e o obrigam a falar. “Está bem”, retruca ele. “Mas falarei do meu jeito.”
Com essa pequena frase, Platão mudará todo o tom do diálogo, pois, “falar do meu jeito” significa: Não vou fazer elogios e louvores às imagens e aparências do amor, não vou emitir mais uma opinião sobre o amor, mas vou buscar a essência do amor, o ser do amor, vou investigar a idéia do amor.
Sócrates também começa com um mito. Quando a deusa Afrodite nasceu, houve uma grande festa para os deuses, mas esqueceram-se de convidar a deusa Penúria (Pênia). Miserável e faminta, Penúria esperou o final da festa, esgueirou-se pelos jardins e comeu os restos, enquanto os demais deuses dormiam. Num canto do jardim, viu Engenho Astuto (Poros) e desejou conceber um filho dele, deitando-se ao seu lado. Desse ato sexual nasceu Eros, o amor. Como sua mãe, Eros está sempre carente, faminto, miserável; como seu pai, Eros é astuto, sabe criar expedientes engenhosos para conseguir o que quer.

Como sua mãe, Eros está sempre carente, faminto, miserável; como seu pai, Eros é astuto, sabe criar expedientes engenhosos para conseguir o que quer.

 

Qual o sentido do mito? Nele descobrimos que o amor é carência e astúcia, desejo de saciar a fome e a sede, desejo de preenchimento, desejo de completar-se e de encontrar a plenitude. Amar é desejar o amado como o que nos completa, nos sacia e satisfaz, nos dá plenitude. Amar é desejar fundir-se na plenitude do amado e ser um só com ele.

O que pode completar e dar plenitude a um ser carente? O que é em si mesmo completo e pleno, isto é, o que é perfeito. O amor é desejo de perfeição.
O que é a perfeição? A harmonia, a proporção, a integridade ou inteireza da forma. Desejamos as formas perfeitas. O que é uma forma perfeita? A forma perfeita é a forma acabada, plena, inteiramente realizada, sem falhas, sem faltas, sem defeitos, sem necessidade de transformar-se, isto é, sem necessidade de mudar de forma. A forma perfeita é o que chamamos de beleza. O amor é desejo de beleza.
Onde está a beleza nas coisas corporais? Nos corpos belos, cuja união engendra uma beleza: a imortalidade dos pais através dos filhos. Onde está a beleza nas coisas incorporais? Nas almas belas, cuja beleza está na perfeição de seus pensamentos e ações, isto é, na inteligência.
Que amamos quando amamos corpos belos? O que há de imperecível naquilo que, por natureza, é perecível, isto é, amamos a posteridade ou a descendência. Que amamos quando amamos almas belas? O que há de imperecível na inteligência, isto é, as idéias. O amor pelos corpos belos é uma imagem ou uma sombra do amor pelo imperecível, mas o amor pelas almas belas é o amor por algo que é em si mesmo e por si mesmo imperecível e absolutamente perfeito.
Se o amor é desejo de identificar-se com o amado, de fundir-se nele tornando-se como ele, então a qualidade ou a natureza do ser amado determina se um amor é plenamente verdadeiro ou uma aparência de amor. Amar o perecível é tornar-se perecível também. Amar o mutável é tornar-se mutável também. O perecível e o mutável são sombras, cópias imperfeitas do ser verdadeiro, imperecível e imutável. As formas corporais belas são sombras ou imagens da verdadeira beleza imperecível. Abandonando-as pela verdadeira beleza, amamos não esta ou aquela coisa bela, mas a idéia ou a essência da beleza, o belo em si mesmo, único, real.
As almas belas são belas porque nelas há a presença, ainda que invisível à primeira vista, de algo imperecível: o intelecto, parte imortal de nossa alma. Que ama o intelecto? Um outro intelecto que seja mais belo e mais perfeito do que ele e que, ao ser amado, torna perfeito e belo quem o ama. O que é um intelecto verdadeiramente belo e perfeito? O que ama a beleza perfeita. Onde se encontra a tal beleza? Nas idéias.
O que é a essência ou a idéia do amor? O amor é o desejo da perfeição imperecível das formas belas, daquilo que permanece sempre idêntico a si mesmo, daquilo que pode ser contemplado plenamente pelo intelecto e conhecido plenamente pela inteligência. Sendo amor intelectual pelo inteligível ou pelas idéias, o amor é o desejo de saber: philo sophia, amor da sabedoria. Pelo amor, o intelecto humano participa do inteligível, toma parte no mundo das idéias ou das essências, conhecendo o ser verdadeiro.
A ontologia é, assim, a própria Filosofia e o conhecimento do Ser, isto é, das idéias, é a passagem das opiniões sobre as coisas sensíveis mutáveis rumo ao pensamento sobre as essências imutáveis. Passar do sensível ao inteligível – tarefa da Filosofia – é passar da aparência ao real, do Não-Ser ao Ser.

(Marilena Chauí - "Convite à filosofia")

Em O banquete, Platão define o amor como a junção de duas partes que se completam, constituindo um ser andrógino que, em seu caminhar giratório, perpetua a existência humana.

 

publicado às 16:39


Diotima e o amor

por Thynus, em 09.12.13

 

 

Filho de Póros, o Expediente astuto, e de Pênia, a Penúria, Eros “nesta
condição ficou”, narra Diotima. Esquálido, descalço, sem lar e sem teto,
pedinte e endurecido, Eros transita num mundo de privação e despojamento,
onde o pariu sua mãe Pênia, carente de beleza, “desejo de grávida”. Nem
mortal nem imortal, Eros no mesmo dia germina e vive, desfalece e morre
para renascer a seguir. Insidioso e alerta, corajoso e decidido, Eros, como
seu pai Póros, é “caçador terrível”, cuja astúcia maior consiste em converter
em amante o amado, fazendo-o desejar o seu desejo (Marilena Chauí)
 
Platão é o criador da forma filosófica do simpósio. Utilizando esse recurso do diálogo, organizou tanto a vida social de sua Academia como a interpretação de suas preocupações fundamentais, quase sempre relacionadas à sugestiva figura de Sócrates, que conduz a célebre discussão à mesa de Agaton em que Fedro, o primeiro orador de O banquete, empreende a tarefa de fazer o elogio de Eros, o que, depois de cerradas discussões sobre os apetites e funções do amor desde a perspectiva de Pausânias - que distingue eras vil e eros nobre -, dará ocasião ao sofista para expor sua doutrina mediante o relato de sua suposta conversação com Diotima, uma sacerdotisa de Mantinéia, real ou inventada como um recurso retórico, de quem só sabemos que celebrou um sacrifício aos deuses por meio do qual afastou a peste de Atenas durante dez anos.
A ela Sócrates atribuiu a semente de uma concepção de amor que foi transformada em corrente didática que supera o costume espartano e ateniense da pederastia ou da amizade masculina inspiradas ou sancionadas por Eros, proveniente da vida nos acampamentos guerreiros da época migratória das tribos.
Ao menos como ideal ético vinculado ao signo criador do "eu", que só pode ser efetivamente superado ao se relacionar com um "você", o discurso de Diotima completa as sugestões apresentadas pelas intervenções dos demais convivas sobre a função amorosa, as quais, em seu conjunto, oferecem aspectos cambiantes e complementares daquilo que, em síntese, se reuniria no "ideal platônico". A rica e aprazível leitura de O banquete permite concluir que o eros nasce, com efeito, do anseio metafísico do homem por uma totalidade do ser, definitivamente inexeqüível à natureza dos indivíduos. Tal desejo inato converte-o em simples fragmento evocativo do mito das metades, exposto inicialmente por Aristófanes e descrito no Prólogo, que suspira por voltar a se unir com sua parte correspondente durante todo o tempo em que leva uma existência isolada e ao desamparo. Dessa maneira, a reunião afortunada torna-se a meta do eros e o instrumento mais eficaz para formar a personalidade e empreender o processo de aperfeiçoamento com o qual o homem haverá de restaurar o sentimento de plenitude harmoniosa que fora perdido ao ser quebrantado em sua unidade pelos deuses.
Platão elege o discurso idealista do jovem Agaton como fundamento para a incorporação da reflexão dialética do mestre Sócrates, caracterizado por sua busca da verdade, inseparável da beleza e, neste caso, apoiado nas sábias palavras de Diotima para finalizar satisfatoriamente sua célebre intervenção. Agaton personifica Eros como potência divina que necessita adquirir qualidades humanas; é jovem, refinado e demonstra tamanha leveza que, ao possuir todas as virtudes, torna-se o melhor dos deuses. Habita somente lugares floridos e perfumados. Seu reino é o da vontade e dele derivam a justiça, a sabedoria, a prudência e a valentia. É, além disso, um grande poeta, e ensina os outros a sê-lo. Suaviza o portento olímpico com a beleza perfeita e ainda ensina suas faculdades à maioria dos imortais.
A postura adotada por Sócrates é intermediária, situando Eros entre o belo e o feio, entre o imperfeito e a perfeição absoluta, entre o mortal e o imortal, entre a sabedoria e a ignorância; portanto não pode ele ser um deus, pois não participa da bem-aventurança característica das entidades celestes. Eros é antes um grande demônio ou um "furor" que age como intérprete entre os homens e os deuses. É ele que preenche o abismo entre o terrestre e o divino e mantém unido o universo. Descendente da riqueza e da pobreza, seu atributo característico é a dualidade; e pode florescer, morrer e ressuscitar em uma só jornada, já que sua índole consiste em ocupar e se espalhar. Sem saber nada, acredita saber tudo: intui, adivinha, suspeita e também desvirtua a realidade, apesar de ser, em sua essência, o condutor perfeito até a verdade.
Nesse ponto, a sábia Diotima explica a busca pela beleza como um aspecto da aspiração do homem pela felicidade. O sofista se vale da recriação dessa sacerdotisa de Mantinéia - única mulher a quem reconhece sapiência e, inclusive, considera sua mestra - para expor seu ideal erótico como um princípio entre a filosofia e a religião, já que, segundo recordou o sofista, era difícil para ele falar por si mesmo daquilo que não conhecia. Desse modo, refere-se à felicidade como uma ânsia inerente à natureza humana e, portanto, deve ser canalizada e modelada de maneira criativa e com toda a consciência. Para Diotima, a relação de eros harmoniza a difícil situação entre o pensamento e a vida, uma vez que engloba tanto a referência como a expectativa de um bem perfeito.
Em sua insuperável obra Paidéia, Werner Jaeger, com grande perspicácia, observou que, graças à referência de Diotima,
o eros se converte, de um simples caso específico de vontade, na expressão mais visível e mais convincente daquilo que constitui o ponto fundamental de toda a ética platônica, a saber: que o homem não pode nunca desejar aquilo que não considere seu bem. Segundo Platão, o fato de a linguagem, apesar de tudo, não denominar de eros ou erân toda manifestação da vontade, mas reservar esse substantivo e esse verbo para designar certos anseios, encontra certo paralelo em outras palavras como poiesis, "poesia", que, mesmo significando simplesmente "criação", foi sendo progressivamente destinada, através do uso, para designar apenas um determinado tipo de atividade criadora.
Não só por sua revolucionária originalidade, mas pelo fato inusitado dessa interpretação ter sido atribuída a uma mulher singular, consideramos importante transcrever um fragmento daquele discurso que, perante este breve desfile que mostra a situação da  mulher no mundo em diferentes épocas e concepções, nos permite completar uma idéia da feminilidade como sendo inseparável do princípio criador de eros que, em nossa época de tribulação, recobra uma vigorosa atualidade se consideramos que, somente mediante uma profunda modificação da consciência do bem e de nossa missão unificadora no mundo, nós, mulheres, podemos participar da reconquista indispensável da harmonia entre o pensamento, a vida e o sentido purificador da arte como caminho a ser trilhado na busca da verdade e do belo.
Diotima, aquela que iniciou Sócrates nos mistérios do amor
[...] pois bem, se tens a convicção de que o amor, por natureza, versa sobre aquilo com que concordamos tantas vezes, não te espantes. Neste caso, pela mesma razão, a natureza mortal busca, dentro do possível, existir sempre e tornar-se imortal; e somente pode consegui-lo por meio da procriação, pois deixa sempre um novo ser no lugar do velho. Mas nem sequer durante esse período, no qual se diz que vive cada um dos viventes, e que é idêntico a si mesmo, o ser humano reúne sempre as mesmas qualidades; assim, por exemplo, diz-se que um indivíduo, desde sua primeira infância até a velhice, é a mesma pessoa. Porém, embora se diga que é a mesma pessoa, esse indivíduo jamais reúne as mesmas coisas dentro de si mesmo, senão que está permanentemente se renovando em aparência e, ao mesmo tempo, se destruindo, em seu cabelo, em sua carne, em seus ossos, em seu sangue e na totalidade de seu corpo.
E isto não ocorre somente no corpo, mas também na alma, cujos hábitos, costumes, opiniões, desejos, prazeres, sofrimentos e temores, todas e cada uma dessas coisas, jamais permanecem as mesmas em cada um dos indivíduos, senão que umas nascem e outras perecem. Mas ainda muito mais estranho do que isto é o fato de os conhecimentos não somente nascerem de uma forma e perecerem de outra dentro de nós - de tal sorte que não somos idênticos a nós mesmos nem sequer nos conhecimentos que adquirimos -, mas sim que também acontece o mesmo a cada um deles. Com efeito, o que se chama "repassar" só ocorre porque um determinado conhecimento pode nos abandonar, pois o esquecimento é o espaço de um conhecimento, e o repasse, ao criar dentro de nós uma nova lembrança em troca daquela que perdemos, conserva o conhecimento, de modo que pareça ser o mesmo de antes. É dessa forma que se conserva todo o mortal, não por ser completamente e sempre idêntico a si mesmo, como ocorre com os seres divinos, mas pelo fato de que o ser que se foi ou que envelheceu deixa após si um outro ser novo, similar àquilo que ele era. Por esse meio, Sócrates, o mortal participa da imortalidade, tanto em seu corpo como em tudo o mais; o imortal, por sua vez, participa da imortalidade por um outro processo bastante diferente. Não te admires, pois, se todo ser preza, por natureza, aquilo que é um renovo de si mesmo, porque é a imortalidade a razão pela qual todo ser é acompanhado por essa solicitude e por esse amor.
Tome por certo, Sócrates, que assim é se desejas lançar um olhar sobre a ambição dos homens, a não ser que tenhas em mente uma idéia daquilo que te disse, ficarias assombrado de sua insensatez ao pensar em que terrível estado os lança o amor para se tornarem célebres e deixarem no futuro uma fama imortal. Para alcançar esse objetivo estão dispostos a correr todos os perigos, mais ainda do que o fariam por seus filhos, a gastar dinheiro, a suportar qualquer fadiga e a sacrificar a própria vida. Pois então acreditas que Alceste se deixaria morrer por causa de Admeto, ou Aquiles para vingar Pátroclo, ou mesmo vosso Codro para salvaguardar a dignidade real de seus filhos, se não estivessem convencidos de que permaneceria após eles essa recordação imortal de suas virtudes, tal como a celebramos agora? Nem mesmo pela hipótese mais remota. É para imortalizar sua virtude, segundo creio, e para conseguir tal renome, que todos concentram seus esforços, e com tão maior afinco quanto melhores forem, porque aquilo que mais amam é justamente o perdurável.
Assim, pois, os que são fecundos no corpo se dirigem especialmente às mulheres, sendo esta a maneira pela qual se manifestam suas inclinações amorosas, porque, segundo crêem, garantem para si, através da procriação de filhos, imortalidade, memória de si mesmos e felicidade para todo o tempo futuro. Por outro lado, existem aqueles que são fecundos na alma... pois existem homens que concebem nas almas, mais ainda que nos corpos, aquilo que pertence ã alma conceber e dar à luz. E o que é que lhe pertence? A sabedoria moral e as demais virtudes, aquelas de que são progenitores precisamente todos os poetas e todos os artífices de quem se diz que são inventores. Todavia, a maior e mais bela forma de sabedoria moral é, de longe, o ordenamento das cidades e das comunidades, cujo nome é moderação e justiça. Assim, quando alguém se encontra prenhe dessas virtudes em sua alma desde menino, inspirado como se está pela divindade, ao chegar à idade conveniente deseja parir e procriar, e também ele, segundo creio, se dedica a buscar em torno de si a beleza por meio da qual possa engendrar, pois no feio jamais o fará. Sente, desse modo, maior apego aos corpos belos do que aos feios, em razão mesma de seu estado de prenhez; e quando neles encontra também uma alma bela, nobre e bem-dotada, mostra extraordinária afeição pelo conjunto e prontamente encontra ante esse ser humano uma profusão de razões a propósito da virtude e de como deve ser o homem bom, as coisas a que deve se aplicar e, desse modo, buscará educá-lo. E é por ter, segundo creio, contato e trato com o belo, que ilumina e dá vida ao que havia concebido anteriormente; a seu lado ou separado dele, recorda-se sempre desse ser, e com sua ajuda cria em comum o fruto de sua procriação, de tal modo que aqueles que experimentam entre si tal condição formam uma comunidade muito maior do que a dos filhos, e têm um afeto muito mais firme, já que geraram em comum filhos mais belos e mais imortais. E mais, todo homem preferiria ter filhos de tal índole a tê-los humanos, se dirige seu olhar a Homero, a Hesíodo e a todos os demais grandes poetas e contempla com inveja a descendência que deixaram de si mesmos, que lhes garante memória e fama imortal uma vez que essa descendência também é famosa ou imortal. Ou se quiseres - acrescentou ela - poderão ter filhos iguais àqueles que deixou Licurgo na Lacedemônia, que se tornaram salvadores da Lacedemônia e, por assim dizer, de toda a Hélade. Também entre vós Sólon é honrado por ter dado vida às leis, do mesmo modo que muitos outros homens o são em outras partes, tanto entre os gregos como no meio dos bárbaros, por haverem realizado muitas e belas obras e gerado virtudes de todos os gêneros. Em honra a tais homens, e por haverem tido tais filhos, já são muitos os cultos instituídos; por outro lado, até hoje não se presta culto e homenagem a ninguém por ter tido apenas filhos humanos. Esses são os mistérios do amor, Sócrates, mistérios nos quais inclusive tu poderias ser iniciado. [...](*)
Como dissera Aristófanes, o amor não se projeta somente em direção à outra metade de nosso ser, tampouco sobre sua totalidade, a menos que por tal se entenda o bom e o perfeito. E se Diotima nos proporcionou o instrumento para interpretar um anseio inerente ao bem, graças à posterior Ética Nicomaquéia, de Aristóteles, podemos inferir que o amor, apanágio unívoco da condição feminina, é a forma mais acabada da perfeição moral e, portanto, um impulso de cultura, no mais profundo sentido desta palavra.

(*) Platão, O banquete ou sobre o amor, Obras completas, tradução do grego, preâmbulos e notas de Maria Araújo, Francisco Garcia Yágüe, Luis Gil, José Antonio Miguez, Maria Rico, Antonio Rodríguez Huescar e Francisco de Paula Samaranch; Introdução a Platão, por José Antonio Miguez, (2. ed. Madri: Aguilar, 1966; e 2. reimp. 1979, p. 586 e seguintes). [Nota da Autora]

(Martha Robes - Mulheres, mitos e deusas / o feminino através dos tempos)

publicado às 13:13


SABER “TRAÇAR”

por Thynus, em 08.12.13

 

A observação das pessoa em seus ambientes naturais e de suas expressões mais sinceras nos pode revelar muita sabedoria. E talvez demonstrar na prática os benefícios da autenticidade e da livre expressão de nossas tendências criativas. Um destes mestres de grupos musicais e folclóricos do nordeste, deu a TV um depoimento relevante:
Um cidadão de muito pouca educação formal, mas dono de sabedoria, diz à reportagem que o fundamental na vida é saber ‘traçar’. O que entende por traçar é relacionar-se com o outro: “...saber traçar é saber tratar bem a qualquer um nessa vida, seja pobre ou seja rico, homem ou mulher, seja de que cor for...”
Dá pra imaginar alguma expressão maior de civilidade?
Aquela gente canta, dança e se relaciona com elegância. Os velhos ensinam aos jovens a sua arte e são respeitados, todos compartilham do prazer. A alegria, a competição saudável, os desafios dos trovadores são exemplo de interação positiva e muito civilizada, sim, embora tão simples.
Se pudéssemos estar menos tempo submetidos a tensão e mais dedicados a atividades criativas, talvez soubéssemos todos "traçar melhor".
O mau humor e a irritabilidade são sinais de tensão interna. Indicam que há um desconforto mental gerado pelo fluxo inadequado de energias psíquicas.
Há uma compreensão popular que uma pessoa cronicamente mal humorada, e que suporta mal a alegria e satisfação alheias, é uma frustrada. Isso é verdadeiro. O quanto podemos nos permitir ter satisfação e, o quanto somos capazes de produzi-la, estão diretamente relacionados ao quanto poderemos suportar que os outros estejam bem.
E, quando alguém se encontra em tal situação de frustração, provavelmente foi por demais tolhido em sua espontaneidade, de forma que já não pode conectar-se com o que há de lúdico e autêntico em si, nem o permite aos demais.
Pode ser o meio que a cerca, pode ser ela própria que tenha banido de sua imagem ideal qualquer manifestação mais primitiva e desinibida, próxima a sua natureza.
Se, em seu meio ou em seu próprio código moral, a satisfação não é bem vista e aceita, as situações de frustração a que essa pessoa se exporá serão crônicas, e o mal estar inevitável.
Quando você está impedido de encontrar satisfação dificilmente concordará que outros encontrem. Mesmo que as pessoas a seu redor não sejam as responsáveis por seu estado de insatisfação, você tenderá a vê-las como tal. Essa é uma confusão típica da mente humana.
Como disse, não podemos nos reger sempre pela razão, há momentos em que o inconsciente e seu modo de funcionar entram em ação. Para ele, o que é parecido pode tornar-se igual e sentimentos podem ser inadequadamente desenvolvidos.
Por isso é tão necessário que ao menos tentemos criar um ambiente que permita um quantum de satisfação suficiente para nós mesmos e para aqueles que nos cercam. Senão, corremos o risco de nos sentir agredidos e roubados de forma absolutamente equivocada, e de não tratarmos nada bem a quem nos rodeia. Pior, podemos passar a tratar mal a nós mesmos e nos desinteressar pela vida, quando ela não mantém um mínimo necessário de seu caráter prazeroso.
Sem que estejamos ao menos medianamente satisfeitos com nossas vidas, é difícil que saibamos “traçar”, é difícil que ela nos interesse, e que permitamos ao outros viver em paz.

(Manoelita Dias dos Santos - "A lógica da emoção, da psicanálise à física quântica")

publicado às 16:36


Vamos falar de tolerância

por Thynus, em 08.12.13

 

Morreu Nelson Mandela e é tão fácil encher a boca para falar do exemplo que nos deixa. É impossível não perceber a importância que, no século XX, teve este homem. A ele só se compara Mahatma Gandhi. 


O século em que a maioria de nós nasceu teve muitos estadistas, mas ninguém se compara em exemplo para a humanidade com estes dois grandes senhores. Em situações muito adversas e claramente desiguais perante os seus opressores, lutaram pela libertação dos seus povos com uma marca que eles quereriam que durasse no tempo e em todo o mundo: a tolerância.
Mandela não foi sempre assim, mas foi tolerante que se afirmou como exemplo no mundo inteiro. Ele conquistou o poder para incluir os que o excluíram. E nós por cá? Estaremos disponíveis para aprender com este exemplo?
É verdade que vivemos tempos difíceis em que mais facilmente se extremam as posições. Mas o que nos leva a ser intolerantes até com a opinião dos outros? Acontece demasiadas vezes sermos surdos aos argumentos dos outros. Acontece demasiadas vezes querermos catalogar negativamente os outros apenas porque pensam de forma diferente.
Precisamos de ser mais tolerantes. Com as ideias que não são as nossas. Com o sucesso dos outros. Com os que erraram mas aprenderam com os erros. Com os nossos falhanços. Com os que têm o que queríamos ter.
Não há, no entanto, justiça quando tratamos toda a gente da mesma maneira, os que são solidários e os que não são, os que dizem a verdade e os que mentem... Mas a justiça não é reposta apenas porque somos intolerantes com os que não acompanham as nossas ideias.
Ainda assim, só seremos verdadeiramente herdeiros da tolerância de Mandela e de Gandhi se soubermos ser igualmente intolerantes. Pode parecer uma contradição, mas não é. Precisamos de ser mais intolerantes não com as pessoas mas com as coisas. Com as injustiças da sociedade que sacrifica a dignidade de alguns em nome de um pretenso mérito dos que têm tudo. Com a falta de emprego para quem quer trabalhar. Com a fome de milhões de seres humanos. Com a pedofilia, dentro da Igreja e fora dela. Com tantas outras coisas.
Mandela ou Gandhi, pela tolerância que tiveram em relação aos seus carrascos, ajudaram a mudar de forma significativa o mundo em que vivemos. Foram tolerantes mas não se renderam nunca na batalha que travaram por sociedades mais justas. Todos os que reconhecem em Mandela um exemplo de vida deveriam estar obrigados a mantê-lo "vivo", acrescentando um pouco mais de tolerância na relação com os outros.

(Paulo Baldaia)

publicado às 07:59


Francisco: a alegria do Evangelho (1)

por Thynus, em 08.12.13

 

Precisamente com este título - "A alegria do Evangelho" -, Francisco acaba de publicar o seu primeiro grande texto, na forma de exortação, que foi objecto de referência e análise por parte dos media em todo o mundo e nomeadamente dos principais diários mundiais, como o The New York Times, o Wall Street Journal, The Guardian, Le Monde, El País. Viram nele, e com razão, o programa do pontificado de Francisco, com duas partes: uma que diz respeito à renovação no interior da Igreja, outra referente à missão da Igreja perante a situação económico-financeira e social do mundo. Centro-me hoje na primeira, ficando a segunda para o próximo sábado. "A alegria do Evangelho" não é uma redundância? De facto, a própria palavra Evangelho (do grego, "eu angélion") significa notícia boa, felicitante. Mas Francisco quer sublinhar isso mesmo e, por outro lado, sabe que, como denunciou Nietzsche, o que, de facto, muitas vezes, a Igreja transmitiu, por palavras e obras, foi um Disangelho, uma notícia má e causadora de infelicidade. Os anunciadores do Evangelho terão, antes de mais, de perguntar a si próprios o que significa o Evangelho para eles mesmos. Estão verdadeiramente interessados nele porque lhes traz alegria, sentido para a existência e salvação? Só a partir daí poderão avançar para a sua entrega aos outros. Precisamente porque é uma notícia boa, feliz e felicitante. Aí está então a urgência da renovação na Igreja. Para a pedofilia, tolerância zero. Transparência total no Banco do Vaticano: acaba de nomear o seu secretário pessoal como supervisor do IOR e da comissão económico-administrativa, com o objectivo de estar directamente informado. Francisco não quer bispos "príncipes" nem "de aeroporto" a viajar em vez de estar ao serviço das pessoas. E sabe que a missão da Igreja não é ganhar prosélitos, mas contribuir para a felicidade e alegria de todos. Tudo parte desta constatação, que inaugura a exortação: "A alegria do Evangelho enche o coração e a vida toda dos que se encontram com Jesus. Aqueles que se deixam salvar por Ele são libertados do pecado, da tristeza, do vazio interior, da solidão. Com Jesus Cristo, nasce constantemente e renasce a alegria. Nesta exortação quero dirigir-me aos cristãos para os convidar para uma nova etapa evangelizadora marcada por essa alegria e indicar caminhos para a marcha da Igreja nos próximos anos." Ficam aí alguns desses caminhos. A palavra mais repetida no documento é a palavra alegria. A Igreja tem, pois, de ser uma casa onde reina a alegria, o que não significa ausência de esforço, de trabalho e sacrifício. A Igreja tem de ser a "Casa do Pai", o Deus que ama e perdoa sempre, e onde, por isso, as pessoas se sentem bem: os sacramentos (baptismo, eucaristia...) não são só para "os perfeitos". "A Igreja não é uma alfândega", controladora das pessoas e fiscalizadora das suas ideias, mas uma casa aberta, onde há transparência e fraternidade. Nela, o predomínio não pertence à doutrina mas ao Evangelho e, portanto, à confiança e à esperança, aonde todos se podem acolher. A Igreja tem de ser missionária, sair de si mesma, arriscar e ir ao encontro das pessoas, sobretudo das que vivem nas "periferias" geográficas e existenciais. Uma Igreja livre, capaz de denunciar profeticamente as injustiças do mundo. Uma Igreja atenta aos "sinais dos tempos", como mandou o Concílio Vaticano II, e assim capaz de comunicar a sua mensagem com linguagem viva e actual - atenção às homilias! Impõe-se a reforma das estruturas eclesiásticas, portanto, mais colegialidade e sinodalidade, isto é, mais democracia. "Uma excessiva centralização, mais do que ajudar, complica a vida da Igreja e a sua dinâmica missionária." Assim, "não se deve esperar do Papa uma palavra definitiva ou completa sobre todas as questões". "Não é conveniente que o Papa substitua os episcopados locais no discernimento de todas as problemáticas que se colocam nos seus territórios." "Igreja somos todos" e por isso é necessário desclericalizá-la e activar a corresponsabilidade dos leigos, reconhecendo à mulher os seus direitos nos lugares de decisão.

(Anselmo Borges)

publicado às 07:51


O SEU DIA ACABOU

por Thynus, em 08.12.13

 

A escritora norte-americana Maya Angelou, amiga de longa data de Nelson Mandela, escreveu um longo poema de homenagem ao líder histórico sul-africano. "O seu dia acabou" é o título do texto, divulgado na sexta-feira pelo Departamento de Estado dos EUA. 


"Homem forte, Gideão, que surge triunfante, embora nascido nos braços brutais do apartheid, marcado pela cruel atmosfera do racismo, injustamento encarcerado nas entranhas sangrentas dos calabouços sul africanos. Esse homem sobreviveria? Poderia ele sobreviver? A sua resposta fortaleceu homens e mulheres do mundo inteiro", recita Maya Angelou.

A escritora conheceu Nelson Mandela nos anos 60 quando era jornalista no Egito. O sul africano foi preso em 1964 mas a amizade entre eles foi retomada após a libertação. "Ele era generoso com todos", disse a escritora, uma das mais populares dos EUA, numa entrevista à cadeia de televisão ABC.
O texto "O Seu Dia Acabou" foi traduzido em vários línguas, incluindo português.

(Homenagem)

publicado às 07:42


O INCONSCIENTE COLETIVO

por Thynus, em 07.12.13

 

 

Aquilo a que se refere Jung como inconsciente coletivo não é a soma das mentes humanas em todos os tempos projetadas, sob a forma da energia, formando um campo psíquico único? Esta energia psíquica parece ser transformada em fantasias e, registros de memória que se transmitem geneticamente, adquirindo uma forma individual. Além disso, pode existir como energia livre em nosso meio?
Uma idéia recebe uma determinada carga energética. Uma imagem ou qualquer outra sensação, também. Tudo que é processado pela mente torna-se parte dela ou seja: energia. Se tudo o que é energia pode vir a ser matéria, e vice versa, outros universos podem ser formados à partir da mente?
Se ela processou o que viu, viveu, ouviu e sentiu, transformou isto em uma forma de energia, que é psíquica. Ela é passível de algum tipo de materialização?
O campo psíquico denominado inconsciente coletivo tem uma determinada carga energética, que corresponde à mais que a soma de todos os campos de energia psíquica de todos os habitantes da terra em todos os tempos. Mais porque existe o efeito denominado sinergismo, segundo o qual a ação simultânea de duas forças resulta numa potência maior que a soma delas
Este campo psíquico formado pela soma de todas as individualidades pode ter uma densidade específica ou talvez vários níveis dela, correspondendo à variações de caráter qualitativo nas fantasias que o compõe.
Tudo que tenha sido registrado e faça parte do inconsciente humano tornou-se carregado de energia e está em algum lugar. Se existiram na mente humana, são formas de energia, logo existem de alguma maneira, que pode ser a fantasia inconsciente. Poderíamos dizer que as fantasias tem tendência a existir. Isso porque foram investidas de uma determinada carga, e no nível subatômico a matéria mostra tendência a existir a partir da energia.
Talvez este seja também o mundo dos ancestrais, dos mortos; afinal, talvez deles só reste o registro energético, que pode estar na forma de imagens, sons, fantasias que pertenceram ao que denominamos inconsciente e que, tal como ele, estão fora do tempo e do espaço.
Claro que nós humanos não podemos ser a única forma de criadores no universo. Mas nos tornamos algum tipo de criatura transformadora de energia, capazes de projetá-la sob várias formas, tanto no mundo concreto quanto em dimensões de fantasia.
Até aqui, temos nos esforçado em dominar e compreender aquilo que é externo a nós. Parecemos nem desconfiar do infinito universo que a nós se une pelo dom especial que temos: nossas mentes inteligentes e criativas.
Muitos organismos e mentes se deterioram em situações de extrema escassez de energia psíquica e orgânica. Outras são perdidas pela falta de estímulos: capacidades humanas maravilhosas são jogadas no lixo, como imprestáveis, quando estão em indivíduos relegados ao abandono.
Não temos como escapar deste exercício de domínio e poder sobre o que é interno. Para além de quaisquer políticas, é a emoção humana quem decide sobre o mundo. É ela quem permite andar para frente, em um caminho real de progresso e saúde, ou atrasar-se em formas mais primitivas de relação. Atentados à dignidade humana são diariamente cometidos. Acontecem até mais do que atos solidários e leais, num franco indício de que as emoções humanas encontram-se em desordem.
As patologias que atingem adultos e crianças cujos cérebros estão intactos, são derivadas de alguma forma da emoção. As patologias sociais também derivam do convívio humano e das emoções que nele se despertam.
Todas as ações, de todos os homens, em relação a si e aos seus, são o que forma a qualidade da emoção do mundo. Dessa emoção, mais que da racionalidade, iniciam-se as ações que criam nossa realidade. Governos, exércitos, organizações e sistemas econômicos, cada um deles é expressão de forças emocionais que determinam a percepção que teremos do mundo, que passará a constituir nossa realidade. Desta forma estaremos sendo obrigados a admitir, tal como o próprio Freud já o percebia, que somos um mundo muito mais composto de fantasia do que admitimos. A tal ponto que talvez os orientais tenham razão em referir-se a ele como Maia ou ilusão.
Boa parte do mundo concreto em que vivemos foi construído por nós, expressa algo de nosso interior que é chamado de fantasia inconsciente, bem podendo lembrar um pesadelo ou um lindo sonho, em diferentes momentos.
Se tudo que nos cerca está tocado pela qualidade de nossas fantasias, melhor que sejam boas, amorosas e de aproximação, porque com as outras nos destruímos.
Melhor que o inconsciente coletivo esteja povoado de fantasias prazenteiras e amistosas se a cada um de nós caberá uma fatia dele.
Enquanto no mundo objetivo cargas opostas se atraem, no universo da subjetividade, que é denominado aqui inconsciente, as coisas se dão de outra maneira, os conteúdos que o constituem se atraem por semelhanças.
Esse é um princípio de funcionamento do inconsciente, uma afirmação sobre uma lei do universo interior que vale tanto qualquer lei da natureza externa.
Pois bem, sendo assim, a qualidade subjetiva de um conteúdo inconsciente é o que atrai outro igual. Estaríamos de certa forma sendo influenciados pela qualidade da fantasia predominante num meio humano.
Num grupo familiar, onde a intensa ligação afetiva permite uma melhor conexão entre os inconscientes de seus membros, pode-se observar isso com maior clareza. O membro da família que adoece mentalmente é aquele que encena e toma para si o drama familiar. Ele é o resultado aparente de uma conjunção de fatores de desequilíbrio partilhados pelo grupo.
Nada pode excluir a possibilidade de que tais fatos se repitam numa extensão maior, envolvendo membros de uma comunidade, de uma nação e da espécie.
O que talvez resulte no equivalente psicanalítico do conceito religioso e filosófico do Karma. Eis aí alguma coisa que pode se distribuir igualmente a todos os membros da espécie: o inconsciente coletivo e a qualidade das fantasias que o compõe.

(Manoelita Dias dos Santos - "A lógica da emoção, da psicanálise à física quântica")

publicado às 22:36

Nelson Mandela, com sua morte, mergulhou no inconsciente coletivo da humanidade para nunca mais sair de lá porque se transformou num arquétipo universal, do injustiçado que não guardou rancor, que soube perdoar, reconciliar pólos antagônicos e nos transmitir uma inarredável esperança de que o ser humano ainda pode ter jeito. Depois de passar 27 anos de reclusão e eleito presidente da Africa do Sul em 1994, se propos e realizou o grande desafio de transformar uma sociedade estruturada na suprema injustiça do apartheid que desumanizava as grandes maiorias negras do pais condenando-as a não-pessoas, numa sociedade única, unida, sem discriminações, democrática e livre.
E o conseguiu ao escolher o caminho da virtude, do perdão e da reconciliação. Perdoar não é esquecer. As chagas estão ai, muitas delas ainda abertas. Perdoar é não permitir que a amargura e o espírito de vingança tenham a última palavra e determinem o rumo da vida. Perdoar é libertar as pessoas das amarras do passado, é virar a página e começar  a escrever outra a quatro mãos, de negros e de brancos. A reconciliação só é possível e real quando há a admissão completa dos crimes  por parte de seus autores e o pleno conhecimento dos atos por parte das vítimas. A pena dos criminosos é a condenação moral diante de toda a sociedade.
Uma solução dessas, seguramente originalíssima, pressupõe um conceio alheio à nossa cultura individualista: o ubuntu que quer dizer: “eu só posso ser eu através de você e com você”. Portanto, sem um laço permanente que liga todos com todos, a sociedade estará, como na nossa, sob risco de dilaceração e de conflitos sem fim.
Deverá figurar nos manuais escolares de todo mundo esta afirmação humaníssima de Mandela:”Eu lutei contra a dominação dos brancos e lutei contra a dominação dos negros. Eu cultivei a esperança do ideal de uma sociedade democrática e livre, na qual todas as pessoas vivem juntas e em harmonia e têm oportunidadades iguais. É um ideal pelo qual eu espero viver e alcançar. Mas, se preciso for, é um ideal pelo qual estou disposto a morrer”.
Por que a vida e a saga de Mandela funda uma esperança no futuro da humanidade e de nossa civilização? Porque chegamos ao núcleo central de uma conjunção de crises que pode ameaçar o nosso futuro como espécie humana. Estamos em plena sexta grande extinção em massa. Cosmólogos (Brian Swimm) e biólogos (Edward Wilson) nos advertem que, a correrem as coisas como estão, chegaremos por volta do ano 2030 à culminância desse processo  devastador. Isso quer dizer que a crença persistente no mundo inteiro, também no Brasil, de que o crescimento econômico material nos deveria trazer desenvolvimento social, cultural e espiritual é uma ilusão. Estamos vivendo tempos de barbárie e  sem esperança.
Cito o o insuspeito Samuel P. Huntington, antigo assessor do Pentágono e um analista perspicaz do processo de globalização no término de seu O choque de civilizações: “A lei e a ordem são o primeiro pré-requisito da civilização; em grande parte no mundo elas parecem estar evaporando; numa base mundial, a civilização parece, em muitos aspectos, estar cedendo diante da barbárie, gerando a imagem de um fenômeno sem precedentes, uma Idade das Trevas mundial, que se abate sobre a Humanidade(1997:409-410).
Acrescento a opinião do conhecido filósofo e cientista político Norberto Bobbio que como Mandela acreditava nos direitos humanos e na democracia como valores para equacionar o problema da violência entre  os Estados e para uma convivência pacífica. Em sua última entrevista declarou:”não saberia dizer como será o Terceiro Milênio. Minhas certezas caem e somente um enorme ponto de interrogação agita a minha cabeça: será o milênio da guerra de extermínio ou o da concórdia entre os seres humanos? Não tenho condições de responder a esta indagação”.
Face a estes cenários sombrios Mandela responderia seguramente, fundado em sua experiência política: sim, é possível que o ser humano se reconcilie consigo mesmo, que sobreponha sua dimesão de sapiens  à aquela de demens e inaugure uma nova forma de estar  juntos na mesma Casa.
Talvez valham as palavras de seu grande amigo, o arcebispo Desmond Tutu que coordenou o processo de Verdade e Reconciliação:“Tendo encarado a besta do passado olho no olho, tendo pedido e recebido perdão e tendo feito  correções, viremos agora a página — não para esquecer esse passado, mas para não deixar que nos aprisione para sempre. Avancemos em direção a um futuro glorioso de uma nova sociedade em que as pessoas valham não em razão de irrelevâncias biológicas ou de outros estranhos atributos, mas porque são pessoas de valor infinito, criadas à imagem de Deus”.
Essa lição de esperança nos deixa Mandela: nós ainda viveremos se sem discriminações pusermos em prática de fato o Ubuntu.

(Leonardo Boff escreveu Cuidar da Terra, proteger a vida: como evitar o fim do mundo, Record, Rio 2010)

publicado às 15:07

 

 

 

 

Temos indícios muito antigos dos costumes que dizem respeito à morte: os documentos pré-históricos sobre a sexualidade são mais recentes; são enfim tantos que deles nada podemos concluir. Há sepulturas do paleolítico médio, mas os testemunhos da atividade sexual dos primeiros homens não vão além do paleolítico superior. A arte (a representação), que não aparece no tempo do homem de Neandertal, (este homem conhecia o emprego de matérias corantes, mas não deixou nenhum vestígio de desenho, enquanto esses vestígios são numerosos desde os primeiros tempos do Homo sapiens) começa com o Homo sapiens, cujas imagens que nos deixou dele mesmo são, diga-se de passagem, raras. Essas imagens são em princípio itifálicas. Sabemos, pois, que a atividade sexual, da mesma forma que a morte, interessa os homens desde cedo, mas não podemos, como no caso da morte, deduzir de um dado tão vago uma indicação clara. As imagens itifálicas, evidentemente, testemunham uma liberdade relativa. Elas não podem, entretanto, provar que os que as desenharam cultivavam, nesse plano, a liberdade sem limite. Podemos dizer somente que, em oposição ao trabalho, a atividade sexual é uma violência que, enquanto impulso imediato, poderia perturbar o trabalho: uma coletividade laboriosa, no momento do trabalho, não pode ficar à sua mercê. Somos pois levados a pensar que, desde a origem, a liberdade sexual teve de ser limitada pelo que se pode chamar de interdito, sem, no entanto, nada podermos dizer dos casos em que ele se aplicava. Quando muito, podemos acreditar que, inicialmente, o tempo do trabalho determinou esse limite. A única razão verdadeira que temos para admitir a existência muito antiga de um tal interdito é o fato de que em todos os tempos e em todos os lugares, na medida em que vamos obtendo informações, o homem é definido por uma conduta sexual subordinada a regras, a restrições definidas: o homem é um animal que permanece "interdito" diante da morte e da união sexual. Ele não o é inteiramente, mas num e noutro caso sua reação difere da dos outros animais.
Essas restrições variam grandemente de acordo com as épocas e os lugares. Todos os povos não sentem da mesma maneira a necessidade de esconder os órgãos da sexualidade; mas escondem geralmente da visão o órgão masculino em ereção; e, em princípio, o homem e a mulher procuram a solidão no momento da conjunção. A nudez, nas civilizações ocidentais, transformou-se no objeto de um interdito bastante pesado, bastante geral, mas o tempo presente questiona o que parecia ser um fundamento. A experiência que temos de mudanças possíveis não mostra, aliás, o sentido arbitrário dos interditos: ela prova, ao contrário, um sentido profundo que eles têm, apesar de mudanças superficiais que incidem sobre um ponto que em si mesmo não teve importância. Conhecemos hoje a fragilidade dos aspectos que demos ao interdito informe de onde decorre a necessidade de uma atividade sexual subordinada a restrições geralmente observadas. Mas adquirimos nessa ocasião a certeza de uma regra fundamental que exige nossa submissão a certas restrições em comum. O interdito que se opõe em nós à liberdade sexual é geral, universal; os interditos particulares são os seus aspectos variáveis.
Espanta-me ser o primeiro a dizer isto tão claramente. É comum isolar um "interdito" particular, como a proibição do incesto, que é somente um seu "aspecto", e só ir buscar explicação fora de seu fundamento universal que é a interdição informe e universal, cujo objeto é a sexualidade. Mas, excepcionalmente, Roger Caillois escreve: "Problemas que fizeram correr muita tinta, como a proibição do incesto, só podem receber solução exata se os considerarmos como casos particulares de um sistema que abranja a totalidade das interdições religiosas numa determinada sociedade".(L'Homme et le Sacré, 2 ed., Gallimard, 1950, p. 71, nª 1.) A meu ver, a fórmula de Caillois é perfeita em seu princípio, mas "determinada sociedade" é ainda um caso particular, um aspecto. O que deve ser abordado no momento é a totalidade das interdições religiosas de todos os tempos, em todos os lugares. A fórmula de Caillois me leva a dizer desde já (sem nela me deter) desse "interdito informe e universal" que ele é sempre o mesmo. Como sua forma, seu objeto muda: mas, quer se trate da sexualidade ou da morte, o que é sempre visado é a violência, a violência que assusta e que fascina.

(George Bataille - "O Erotismo")

 
"A Escola de Platão", do belga Jean Deville, é um dos quadros que faz parte da exposição "Masculin/Masculin", patente no museu de Orsay,

publicado às 12:15



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