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Os xitara dividem aos minerais em «machos» e «fêmeas»; os primeiros, duros e negros, acham-se na superfície da terra, enquanto que os minerais «fêmeas», brandos e avermelhados, são extraídos do interior da mina; a mescla de ambos os «sexos» é indispensável para conseguir uma fusão frutífera5. Trata-se, claro está, de uma classificação objetivamente arbitrária, posto que nem as cores nem a dureza dos minerais correspondem sempre a sua classificação «sexual». Mas o que importava era a visão global da realidade, pois era o que justificava o rito, quer dizer, o «matrimônio dos minerais», e que este fizesse factível um «nascimento». Idéias similares se acham na antiga China. Yu, o Grande, o Fundador primitivo, sabia distinguir os metais machos dos metais fêmeas. Por tal razão homologava suas caldeiras com os dois princípios cosmológicos yang e yin6. Teremos que insistir sobre as tradições metalúrgicas chinesas, pois o matrimônio dos metais é uma antiqüíssima intuição prolongada e cumprida no mysterium conjunctionis da alquimia.
Além dos minerais e dos metais estavam «sexuadas» as pedras preciosas. Os mesopotâmicos as dividiam em «macho» e «fêmea», segundo sua cor, forma e brilho. Um texto assírio, traduzido por Boson, fala da pedra musa, masculina (por sua forma), e da pedra de cobre, feminina (por sua forma)». Boson precisa que as pedras masculinas tinham uma cor mais viva; as femininas eram mais pálidas7. (Ainda hoje os joalheiros distinguem o «sexo» dos diamantes segundo seu brilho.) A mesma divisão encontramos para os sais e os minerais da época da literatura ritual babilônica, e assim se conserva nos textos médicos8. A classificação sexual dos minerais e das pedras se manteve nos escritos dos lapidários e alquimistas da Idade Média9; assim, o lapis judaicus, por exemplo, é «macho» ou «fêmea», etc.
 O místico e exegeta judeu Bahya Ben Asher (morto em 1340) escrevia: «Não é somente entre as palmeiras onde se dá a divisão em machos e fêmeas, mas sim existe em todas as espécies vegetais, quão mesmo entre os minerais.» Sabattai Donnolo fala deste modo da sexualidade mineral no século X. O sábio e místico árabe Ibn Sina (980-1037) afirmava que o «amor romântico (al'ishaq) não é privativo da espécie humana, mas sim se estende a todo o existente (em nível) celestial, elementar, vegetal e mineral, e que seu sentido não é percebido nem conhecido, mas sim se torna tão mais obscuro quantas mais explicações se dão a respeito dele» 10. A noção de «amor romântico» aplicada aos metais completa de modo magnífico sua «animação», já assegurada pelas idéias de sexualidade e matrimônio.
Também as ferramentas estão sexuadas. «Qual é a melhor arma? Exclama o poeta Ibn Errümi. Tão somente um sabre bem afiado, com seu fio, masculino, e sua folha, feminina» 11. Por outro lado, os árabes chamam o ferro duro «homem» (dzakar) e ao ferro brando «mulher» (ánit)12. Os ferreiros de Tanganika praticam várias clarabóias no lar. A maior parte recebe o nome de «mãe» (nyina); «por ela é por onde ao final da operação do fundido sairá a escória, o mineral forjado, etc.; a da frente recebe a denominação de isi (o pai), e por ela se introduzirá um dos melhores foles; as intermediárias são os aana (filhos)» 13. Na terminologia metalúrgica européia o lar onde se fundia o esmalte recebe o nome de «matriz» ou «seio maternal» (Mutterschoss). Ainda sobrevive obscura a assimilação do trabalho humano no qual se utiliza o fogo (metalurgia, forja, cozinha) ao crescimento do embrião no seio materno nos vocabulários europeus (cf. Mutterkuchen, «placenta»; Kuchen, «bolo»)14. Em tal universo mental foi onde cristalizaram as crenças relativas às pedras fecundantes e ginecológicas e às pedras de chuva 15. E uma crença ainda mais arcaica as precedeu: a da petra genitrix.
Quando a chuva cai com força, os dayaks têm a certeza de que é «masculina» 16. Quanto às águas cósmicas, vemos que o livro de Enoch as divide deste modo: «A água superiora representará o papel do homem; a inferior, o da mulher» (Lili, 9-10). Um poço alimentado por um arroio simboliza a união do homem e da mulher (Zohar, fol. 14 b, 11-152). Na Índia védica, o altar dos sacrifícios (vedi) era considerado como «fêmea», e o fogo ritual (agni), como «macho», e «sua união engendrava a origem». Nos encontramos ante um complicado simbolismo que não se reduz a um só plano de referência. Porque, por uma parte, o vedi era assimilado ao umbigo (náhbi) da terra, símbolo por excelência do «centro». Mas o náhbi era valorado também como a «matriz» da deusa (cf. Zatapatha Bráhmana, 1, 9, 2, 21). Por outro lado, o próprio fogo era considerado como resultado (origem) de uma união sexual. Nascia como resultado de um movimento de vaivém (assimilado à copulação) de um palito (que representa o elemento masculino) sobre um entalhe feito em uma parte de madeira (elemento feminino) (cf. Rig Veda, III, 29, 2 e ss.; V, 11, 6; VI, 48, 5). Este mesmo simbolismo se acha em bom número de sociedades arcaicas 17. Mas todos estes termos sexuais traduzem uma concepção cosmológica apoiada na hierogamia. É partindo de um «centro» (umbigo) como se verifica a criação do mundo, e deste modo, imitando solenemente este modelo exemplar, toda «construção» ou «fabricação» deve operar-se a partir de um «centro». A produção ritual do fogo reproduz a criação do mundo. Por isso é que ao terminar o ano se extinguem todos os fogos (ritualismo da Noite cósmica), que reacendem se o dia do Ano Novo (repetição da Cosmogonia ou renascimento do Mundo). O fogo não perde, portanto, seu caráter ambivalente: é umas vezes de origem divina e outras demoníaca (pois segundo algumas crenças arcaicas se origina magicamente no órgão genital das feiticeiras). E sobre esta ambivalência teremos que insistir antes de apresentar os prestígios do ferreiro.
Como era de esperar, o simbolismo sexual e ginecológico mais transparente se encontra nas imagens da Mãe Terra. Não é este lugar para recordar os mitos e lendas concernentes ao nascimento dos homens no seio terrestre. (Veja-se nosso Traite de l'Histoire des Religions, pp. 216 e ss.) Às vezes a antropogenia está descrita em termos de embriologia e obstetrícia. Segundo os mitos Zuñi, por exemplo, vemos que a humanidade primitiva nasceu depois da hierogamia Céu-Terra na mais profunda das quatro «cavernas-matrizes» ctônicas. Guiados pelos Gêmeos míticos, os humanos passam de uma matriz a outra situada em cima até que chegam à superfície da Terra. Neste tipo de mitos, a imagem da Terra se adapta perfeitamente a da mãe, e da antropogonia está apresentada em termos de ontogenia. A formação do embrião e a gestação repetem o ato exemplar do nascimento da Humanidade, concebido como uma emersão da mais profunda caverna-matriz ctônica 18. Ainda sobrevivem na Europa crenças similares, seja em forma de lenda, de superstição ou, simplesmente, de metáfora. Cada região, quase cada cidade e povo, conhecem uma rocha ou uma fonte que «dão» filhos; assim temos os Kinderbrunnen, Kinderteiche, Bubenquellen, etc.

NOTAS:
5 Cline: Mining and Metallurgy in Negro África, p. 117.
6 Marcel Granet: Danses et légendes de la Chine ancienne (París, 1926), p. 496.
7 G. Boson: Les métaux et les pierres dans les inscriptions assyro-babyloniennes (Munich, 1914), p. 73.
8 R. Eisler: Die chemische Terminologie der Babylonier, página 116. Kunz: The Magic of Jewels and Charms
(Filadelfia-Londres, 1915, p. 188).
9 Os textos alquímicos assim falam, por exemplo, da «magnesia hembra» (Ed. v. Líppmann: Entstehung
und Ausbreitung der Alchemie, I, p. 393). A «sexualidad» das pedras nos lapidários: Julius Ruska: Das
Steinbuch des Aristóteles (Heidelberg, 1912), pp. 18, 185. Sexualidade dos minerais nas concepções da
antigüidade clássica: Nonnos: Dionysiaca (ed. Loeb. Classical Library), I, p. 81. Sobre a pedra viva nos
conceitos da antigüidade e no cristianismo, cf. J. C. Plumpe: «Vivum Saxum, viví Lapides» (Traditio, I,
1943, pp. 1-14).
10 Veja-se Salomón Gandz: Artificial fertilization of date palms in Palestine and Arabia, p. 246.
11 F. W. Schwartzlose: Die Waffen der alten Araber aus Ihren Dichtern dargestellt, p. 142; v. Ed. von
Lippmann, op. cit., p. 403. Sobre as espadas sexuadas da China veja-se a obra citada de Marcel Granet, p.
496. Os tambores, as campanhias, estão igualmente sexuados. Cf. Max Kaltenmark: «Le Dompteur des
flots» (Han Hiue, Bulletin du Centre d'Etudes Sinologiques de Pékin, III, 1948, pp. 1-113), p. 39, h. 141.
12 Leo Wiener: África and the discovery of America (Filadelfia, 1922), vol. III, pp. 11-12.
13 R. P. Wyckaert: «Forgerons pdiens et forgerons chrétiens au Tanganika» (Anthropos, 9, 1914, pp. 371-380), p.
372. Os fornos de Mashona e Alunda são ginecomórficos. Cf. Cline: op. cit., p. 41.
14 Cf. Eisler: Die chemische Terminologie..., p. 115.
15 Veja-se algumas indicações bibliográficas em nosso Traite d'Histoire des Religions, pp. 208-210. Sobre as
pedras ginecológicas, cf. G. Boson: «I metalli e le pietre nelle inscrizioni sumero-assiro-babilonessi»
(Rivísta di Studi Orientali, III, páginas 379-420), pp. 413-414; B. Laufer: The Diamond (Chicago, 1915), pp.
9 e ss.
16 A. Bertholet: Das Geschlecht der Gottheit (Tübingen, 1934). Neste livro encontraram-se múltiplos
documentos referentes à sexualização do meio ambiente.
17 Veja-se algumas indicações na nota E.
18 Sobre o mito zuñi e versões paralelas, cf. Eliade: La Terre-Mere et les hiérogamies costniques, pp. 60 e ss.

(Mircea Eliade - FERREIROS E ALQUIMISTAS)

publicado às 18:46


Check-up

por Thynus, em 27.12.13
Este ano pretendo cumprir rigorosamente a resolução que tomei no fim do ano passado: não mais tomar resoluções de ano-novo. Elas são promessas que fazemos à nossa consciência em que nem a consciência acredita mais. A minha já estava reagindo com bocejos a cada juramento que eu fazia para o ano-novo.
- Vou começar uma dieta. Séria, desta vez.
- Sei, sei.
- Vou ser tolerante, justo, sóbrio, equilibrado... e arrumar meus livros.
- Tudo bem.
- Fazer exercícios diários. Usar fio dental. Reler os clássicos. Não tudo ao mesmo tempo, claro.
- Certo, certo.
Mesmo com ar de enfado, minha consciência não deixa de se submeter ao exame anual que faço nela, sempre nos últimos dias de dezembro. Uma espécie de checkup moral. Seu estado geral é bom. Não teve grandes provações no ano passado. Fiz algumas coisas que não devia, não fiz outras que devia, nada grave. Vamos poder continuar nos encarando - principalmente agora que eliminamos este ridículo ritual das resoluções de fim de ano da nossa relação. O homem maduro é o que desiste da virtude impossível para não perder a possível.

(As Mentiras que os Homens Contam - LUIS FERNANDO VERÍSSIMO)

publicado às 18:08

(...) O homem antigo enxerga na natureza repetições arquetípicas da cosmogonia, e em seus ciclos a alternância entre os reinos da Ordem e da Desordem. Entre esses ciclos, está o do ano solar: o ano novo, ou o advento da primavera, ou a época da semeadura representavam uma renovação de toda a Criação, expressa através da renovação da vida observada na natureza. Não fica difícil entrever nesses reis sacrificados, substitutos ou não, e nos bodes expiatórios símbolos da divindade primordial que entrega seu corpo para despedaçar, proporcionando com seu sacrifício a manifestação de todas as coisas.
A noção onipresente é a de que o mundo advém do Caos, e a ele retorna no final de cada ciclo. Fiz questão de expressar essa idéia com os verbos no presente com o intuito de reafirmar a atemporalidade do mito; essa alternância entre caos e ordem efetua-se a cada momento em todos os planos da manifestação, tanto no macrocosmo quanto no microcosmo, tanto dentro quanto fora da alma humana. O retorno periódico ao caos fica dramatizado nos ciclos da natureza, e quando isso acontece, o homem antigo utiliza-se do ritual para "refazer" a Criação. Como já havia assinalado anteriormente, o que o motiva não é o medo de que a renovação da vida não ocorra sem a sua ajuda, mas o desejo de consagrar esse evento, e dele participar.
Todas as cerimônias de renovação repetem "fatos" primordiais. O sacrifício das vítimas repete a imolação do deus primevo; a agitação e a dança desenfreadas repetem a confusão e a ebulição dos elementos que reinam antes do momento criador; as orgias dramatizam a fertilidade absoluta contida no Caos, e o casamento ou a simples união sexual efetuados nesses cerimoniais repetem a realização do hierósgámos.
O caminho agora fica livre para analisarmos mais detidamente a simbologia do sacrifício do rei temporário, ou o "rei louco". Vimos como a oposição Caos-Cosmos manifesta-se continuamente na natureza e em seus ciclos, e como o universo se torna palco de uma "luta" entre os princípios da agregação e da desagregação, da ordem e da desordem, erradamente cunhados pela mentalidade maniqueísta como princípios de "vida" e de "morte". Se todo o universo comporta essa polaridade, o mesmo se dará com o rei, lídimo representante da divindade sobre a terra. Portanto, na figura do monarca, assim como na divindade, coexistem caos e ordem, fertilidade e esterilidade, potência e impotência, sabedoria e loucura. O rei sacrificado simboliza invariavelmente o "rei louco", ou seja, o aspecto da divindade representante do caos, que vive ameaçando irromper na ordem estabelecida; no decorrer de um tempo simbólico, que pode ser tanto de doze meses, doze anos, ou toda a juventude e maturidade do rei, a idéia é a de que as forças do caos, representadas por exemplo pela velhice ou esterilidade, vão tomando conta paulatinamente da figura do monarca. O costume observado hoje em dia, de se representar o ano findo como uma figura senil, e o ano próximo, o "ano novo", como um bebê recém-nascido expressa adequadamente essa simbologia. Mesmo que saibamos que objetivamente tal coisa não acontece, carregamos dentro de nós a fantasia de que o ano vai-se desgastando, e que precisamos renovar as nossas forças por ocasião do ano-novo.
O sacrifício do rei substituto advém de um recurso mágico: efetua-se um splitting na figura do monarca, onde o rei temporário chama a si, num processo homeostático, as potências do caos, deixando com o rei verdadeiro somente as virtudes da ordem. Portanto, matar o rei substituto significa eliminar o aspecto caótico, desordenado e insano do verdadeiro monarca, que através desse sacrifício fica preservado do desgaste proporcionado pelas forças do caos. Os dois reis assumem simbolicamente a polaridade presente no mundo divino, seja qual for o seu nome, Mazda e Ariman, Odin e Loki, Osíris e Tifon, Vishnu e Shiva, Apolo e Dioniso, Javé e Satã, ou qualquer outra dupla divina, que os iniciados sabiam tratar-se da dupla face de um único Ser.
A Teogonia de Hesíodo nos ensina que a Noite, filha do Caos, pariu Momo, o Sarcasmo. Momo, dentro da simbologia que vimos estudando, é a própria personificação do Rei Louco, oriundo do Caos e soberano da Desordem. Ele consiste no arquétipo de todos os reis temporários, os senhores da desrazão, que chamam a si o lado insano dos legítimos governantes. Paradigma dos palhaços, dos líderes dos cortejos carnavalescos, dos loucos e dos bobos da corte, e inspirador das figuras do Louco, no Tarô, e do Coringa no baralho comum, até os tempos atuais ele reina por três dias no Carnaval. Depois, é banido simbolicamente na quarta-feira de cinzas, quando a ordem se reinstaura, revigorada, no seio da coletividade. Hoje, o seu sacrifício fica reduzido ao simples destronamento, mas a essência da simbologia permanece, e o povo, ainda que de forma inconsciente, repete esse mesmo mistério a cada ano que passa.

(Antonio Farjani - A linguagem dos deuses)

publicado às 17:58


Escoriações da pele

por Thynus, em 27.12.13
Voltava para casa depois de mais uma comemoração de fim de ano junto com os colegas do escritório. Todos aqueles brindes e a grande agitação só fizeram aumentar o aperto no coração que se instalara desde o início de dezembro.
O ano estava terminando. O inevitável balanço das perdas e ganhos, cedo ou tarde, acabaria por ser feito.
Não adiantava pensar que tudo não passava de uma grande bobagem, afinal a marcação do tempo é aleatória, uma ritualização que não pode influenciar sua vida. Que diferença faz se é 1° de janeiro ou 29 de setembro? Para que tanta ansiedade?
Gostaria de sentir-se livre desses condicionamentos, dessas convenções sociais. Mas sentada na penteadeira, cara a cara com o espelho, só conseguia pensar que passaria a noite do Ano-Novo só. Tivera três namorados durante o ano, e o último, que parecia o amor de sua vida, foi o que lhe causou a pior decepção. E no trabalho então! A nova diretoria, que prometia trazer grandes mudanças, aumentou as exigências burocráticas, tornando a execução dos serviços uma rotina ainda mais penosa. Estava estressada e ansiosa.
Fixou seu olhar nas marcas de acne. Percebeu uma pequena área avermelhada e um pouco protuberante. Começou a apertá-la, a princípio com delicadeza, prometendo a si mesma que só iria tirar aquela espinha.
Não foi o que aconteceu. Quando parou de cutucar a pele, algumas marcas antigas sangravam e seu rosto estava todo inchado. Parecia aliviada, mas em seus olhos era possível enxergar o prenúncio da tempestade.
Existem pessoas que literalmente se entregam a cutucar a pele repetidas vezes, gerando lesões visíveis, dolorosas, que sempre lhes deixam marcas, ou melhor, cicatrizes difíceis de esconder ou disfarçar. Essas lesões podem iniciar-se como resultado de esforços excessivos para manter a pele limpa, nos casos dos rituais de desinfecção, como já vimos. Porém, na maioria das vezes, as lesões têm origem em pequenas imperfeições momentâneas da pele como uma acne, uma pequena vesícula (de um pêlo encravado ou de um processo alérgico) ou um cravo, sobre os quais os pacientes exercem os atos de apertar, cutucar ou espremer.
Costumo dar preferência ao termo cutucar, pois, além de ser o mais utilizado pelos próprios pacientes ao confessarem seus homicídios cutâneos, é o termo americano usado para dar nome a esse transtorno, s/c/n picking, que traduz com exatidão a bagunça provocada na pele das pessoas que dele sofrem — até porque esse comportamento de cutucar lesões preexistentes acaba causando infecções secundárias e cicatrizes mais feias que as lesões originais.
As lesões — mais comuns no rosto, braços, coxas, pernas e tronco — são produzidas com as unhas, em geral à noite ou quando a pessoa se encontra sozinha diante do espelho. A inspeção visual e palpatória (toque) da pele precede a escoriação. Nesse momento o paciente experimenta uma sensação de tensão crescente, que só é aliviada com o ato de cutucar. Em seguida surge o sentimento de arrependimento e fracasso por não ter conseguido se controlar mais uma vez.
As escoriações da pele têm em comum com o TOC o fato de serem repetitivas, se realizarem contra a vontade da pessoa e trazerem um alívio de tensão, que a pessoa experimenta ao cutucar a pele.
É importante destacar que as escoriações da pele são bem mais comuns do que imaginamos. Entretanto, as pessoas que lesam repetidas vezes a face, os braços e as pernas costumam negar que isso seja um transtorno do comportamento. Dessa forma, elas procuram clínicas dermatológicas exigindo dos especialistas resultados perfeitos, impossíveis de serem alcançados nesse tipo de tratamento.

(MENTES e MANIAS - ANA BEATRIZ BARBOSA SILVA)

publicado às 17:57


Identidade narrativa

por Thynus, em 26.12.13
Quando nos perguntam quem somos, respondemos, contando a nossa história: somos filhos de fulano e fulana, nascemos no ano tal, em tal sítio, frequentámos a escola X, a universidade Y, fazemos isto ou aquilo, somos casados com A, temos os filhos B e C e D...
Mas isto é apenas o que somos enquanto resultado de um processo biográfico. Se quiséssemos apresentar mais adequadamente a nossa identidade, teríamos ainda de narrar a cosmogénese e a filogénese e a ontogénese e a história da humanidade, pois nós somos o que somos também enquanto resultado de um acto criador e da evolução biológica e de um desenvolvimento embriológico e do devir histórico da humanidade toda.
Mas, depois, seria necessário acrescentar: eu ainda não sou o que serei, pois a minha história e a história do cosmos e da humanidade ainda não estão encerradas. Por isso, e dado que "por essência o homem é um ente gerundial", como diz Pedro Laín Entralgo, "eu vou sendo o que era e o que sou, e desde o que era e o que sou movo-me para o que serei".
A identidade humana é constitutivamente narrativa, incluindo, portanto, o acontecimento, a mudança, o imprevisível. Se não sabemos nem nunca saberemos adequadamente quem somos nem o que somos, é porque nos é impossível fazer a narração plena da nossa história, que implica narrar a história toda do mundo, que continua em aberto. Quando pensamos na nossa identidade, referimo-nos a uma identidade adquirida, mas que continuamente se desfaz, refaz e recria, num esforço nunca terminado de sermos nós próprios. Somos constitutivamente temporais: não estamos simplesmente no tempo; somos tempo, com um futuro aberto...
Na temporalidade humana, há certos marcos fundamentais: evidentemente, o dia do nascimento, a festa do casamento, a data do nascimento dos filhos... Por isso, celebramos o aniversário natalício, as bodas de prata e de ouro... E o que se diz dos indivíduos acontece também com os grupos, que precisam de comemorar datas significativas (por exemplo, o aniversário dos fundadores).
Só somos numa cultura. E todas as culturas vivem de datas e relatos fundadores, que comemoram e celebram para manter viva a identidade própria. Sem futuro, a identidade é petrificada e morta; sem tradição, também não existe, pois não tem raízes.
Tenhamos ou não consciência clara disso, o cristianismo é um dos fundamentos, uma das raízes da nossa cultura e da nossa identidade. Jesus Cristo é uma das referências determinantes da história dos homens. Sem ele, o mundo não seria o que é. Provém dele a consciência maior que temos da infinita dignidade de se ser ser humano e, consequentemente, da liberdade, da igualdade, da fraternidade, sem nenhum tipo de discriminação. A partir dele, os seres humanos já não podem ser discriminados por causa da raça, da língua, do sexo, da cor, da religião. Com ele, soubemos da tolerância, do perdão e da misericórdia sem limites; que Deus se adora em espírito e em verdade; que não se pode amar a Deus sem amar o próximo, que é todo aquele que precisa de mim. Para ele, a fé em Deus não pode desvincular-se da fé no homem: pelo contrário, acreditar em Deus implica acreditar no homem, incluindo o ser humano que cada um de nós é: e muitas vezes acreditar no homem é bem mais difícil do que acreditar em Deus... Nele, assenta a esperança confiada de que a vida não caminha para a morte, mas para a vida eterna.
Celebrar o Natal é, pois, antes de mais, lembrar Jesus Cristo, com o intuito de redescobrir e recuperar e reconfigurar a identidade de ser homem e refundar o futuro e recolocar a questão do sentido da existência humana e da história do mundo e revigorar a fé e a esperança e o amor.

(Anselmo Borges - Janela do (In)Visível)

publicado às 21:25


Futuro e advento

por Thynus, em 26.12.13
É concretamente no tempo natalício que nos lembramos mais dos amigos. E vamos ao seu encontro, pelo menos, com um postal, um telefonema, um pequenino presente. Mas, precisamente ao folhear a lista na nossa agenda pessoal, somos, de repente, brutalmente confrontados com a constatação de que alguns deles entretanto já deixaram este mundo. Ainda no Natal anterior cá estavam, e já cá não estão!...
Depois, é um novo ano. Mas, apesar de novo, tudo parece repetir-se. Após aquela exaltação da passagem de ano, tudo parece voltar ao mesmo. Aparentemente, é o eterno retorno do mesmo, segundo a concepção que domina a mentalidade do homem arcaico no que se refere ao tempo.
Os próprios gregos não superaram uma concepção circular do tempo. Por isso, dizia-se: Zeus era, Zeus é, Zeus será, Zeus é eterno. Segundo Plutarco, à porta do templo de Apolo estava escrito: El, isto é: Tu és, no sentido de uma existência divina atemporal e invariável.
Foi essencialmente com a Bíblia que se abriu uma nova concepção do tempo: já não circular, mas linear e com uma finalidade, não já o eterno retorno do mesmo, como escreveu Nietzsche, mas uma história com um final de promessa de salvação. O Deus bíblico define-se essencialmente como Aquele que diz de si mesmo: Eu sou Aquele que serei. E o Apocalipse diz: Deus é Aquele que era, que é e que vem. Inesperadamente, em vez de dizer-se: que era, que é e que será, diz-se: e que vem. O Deus bíblico está presente na história, à qual, pela sua Promessa, abre possibilidades sempre novas.
Significativamente, para dizer futuro, temos, em português, duas palavras: precisamente, futuro e advento. O mesmo se passa, aliás, com outras línguas: futur e avenir, em francês; Futur e Zukunft, em alemão. O futuro é aquilo que é possível ser determinado por nós. E assim temos o futuro enquanto planificável. Mas há um outro futuro, e esse futuro é expresso pela palavra advento, que significa vinda, chegada. Temos, portanto, de planificar o futuro, concretamente nós portugueses que somos imensamente não planificados. Mas temos ao mesmo tempo e sobretudo de esperar, estando abertos ao futuro novo que chega.
Socorrendo-nos até das nossas pequenas histórias pessoais, constatamos que o futuro para nós também é essencialmente chegada, visita do inesperado. A história é essencialmente visita, sempre surpreendente e imprevisível. Por isso, esperamos: esperamos confiadamente e de modo activo. O que vincula os homens, vivos e mortos, é a esperança, a esperança fundada nas experiências de sentido e aberta ao Mistério indizível e que chega, que vem ao nosso encontro. Afinal, nem a natureza nem Deus disseram ainda tudo quanto podem e têm para nos dar.

(Anselmo Borges - Janela do (In)Visível)

publicado às 21:25


Não sabia nada de finanças

por Thynus, em 26.12.13
Não sabia nada de finanças nem consta que tivesse biblioteca, como escreveu Fernando Pessoa. Ele que não sabia de finanças nem consta que tivesse biblioteca é Jesus Cristo. Não há figura histórica mais estudada nem mais amada.
O que há neste homem, nascido há dois mil anos, para arrastar multidões e ser uma referência determinante para toda a humanidade? Segundo o ateu Ernst Bloch, Jesus agiu como um homem "pura e simplesmente bom, algo que ainda não tinha acontecido", e Umberto Eco, que se considera laico, escreveu que, se fosse um viajante proveniente de galáxias longínquas, ao encontrar-se frente a uma humanidade que soube propor-se o modelo de Cristo, com o amor universal, o perdão dos inimigos, a vida oferecida em holocausto pela salvação dos outros, "consideraria esta espécie miserável e infame, que cometeu tantos horrores, redimida pelo simples facto de ter conseguido desejar e crer que tudo isto é a Verdade". Até Nietzsche reconheceu, no seu O Anticristo, que no fundo só houve um cristão, mas esse morreu na cruz, e acrescenta: "Só uma vida como a daquele que morreu na cruz é cristã".
Que vida foi essa? Por outras palavras, por que é que o mataram?
Foi morto como blasfemo. Ergueu-se contra o Templo e a religião oficial que, em vez de libertarem o homem, o esmagavam. Levantou-se contra o Sábado: "O Sábado é para o homem e não o homem para o Sábado" foi talvez a afirmação mais revolucionária da história da consciência humana, pois coloca como critério último dos mandamentos do próprio Deus a realização e o bem-estar do ser humano. À lei da justiça e do cálculo Jesus contrapôs a misericórdia e a nova lógica do dom. Não era um asceta, e foi apelidado de comilão e bebedor: a salvação e a alegria são desde já e aqui.
Foi morto como subversivo político. Os seres humanos têm todos igualdade radical na dignidade inviolável: não há judeu nem grego nem homem nem mulher nem branco nem negro nem adulto nem criança nem livre nem escravo nem religioso nem ateu. Rebeldemente livre, Jesus não prestava culto nem a César nem ao Dinheiro, e o Deus a quem tratava terna e filialmente por Papá não quer sacrifícios e não se adora nem em Jerusalém nem em Guerizim, mas em espírito e verdade. A sua Boa Nova é o Reino de Deus da filadélfia, um Reino de amigos e irmãos.
A história das revoluções que têm Jesus na sua base está ainda por escrever. A maior delas é a revolução na concepção de Deus: um Deus que não está longe, mas próximo dos homens, um Deus bom, amigo e misericordioso para todos, com uma preferência: os pobres, os débeis, os doentes, as prostitutas, os humilhados, excluídos e ofendidos. Um Deus, que é o Deus da vida: a vitória não pertence à morte.
O Natal é, antes de mais, a celebração deste acontecimento: o nascimento de Cristo, o nascimento do ser humano bom, verdadeiro.

(Anselmo Borges - Janela do (In)Visível)

publicado às 21:24

Um dia, o Filho de Deus quis saber como andavam as crianças que outrora, quando andou entre nós,“as tocaca e as abençoava” e que dissera:”deixai vir a mim as criancinhas porque delas é o Reino de Deus”(Lucas 18, 15-16).
À semelhança dos mitos antigos, montou num raio celeste e chegou à Terra, umas semanas antes do Natal. Assumiu a forma de um gari que limpava as ruas. Assim podia ver melhor os passantes, as lojas todas iluminadas e cheias de objetos embrulhados para presentes e principalmente seus irmãos e irmãs menores que perambulavam por aí, mal vestidos e muitos com forme, pedindo esmolas. Entristeceu-se sobremaneira, porque verificou que quase ninguém seguira as palavras que deixou ditas:”quem receber qualquer uma destas crianças em meu nome é a mim que recebe”(Marcos 9,37).
E viu também que já ninguém falava do Menino Jesus que vinha, escondido, trazer na noite de Natal, presentes para todas as crianças. O seu lugar foi ocupado por um velhinho bonachão, vestido de vermelho com um saco às costas e com longas barbas que toda hora grita bobamente:”Oh, Oh, Oh…olhem o Papai Noel aqui”. Sim, pelas ruas e dentro das grandes lojas lá estava ele, abraçando crianças e tirando do saco presentes que os pais os haviam comprado e colocado lá dentro. Diz-se que  veio de longe, da Finlândia, montado num trenó puxado por renas. As pessoas haviam esquecido de outro velhinho, este verdadeiramente bom: São Nicolau. De família rica, dava pelo Natal presentes às crianças pobres dizendo que era o Menino Jesus que lhes estava enviando. Disso tudo ninguem falava. Só se falava do Papai Noel, inventado há mais de cem anos.

 Tão triste como ver crianças abandonadas nas ruas, foi perceber como elas eram enganadas, seduzidas pelas luzes e pelo brilho dos presentes, dos brinquedos e de mil outros objetos que os pais e as mães costumam comprar como presentes para serem distribuidos por ocasião da ceia do Natal.

 

Propagandas se gritam em voz alta, muitas enganosas, suscitando o desejo nas crianças que depois correm para os pais, suplicando-lhes para que comprem o que viram. O Menino Jesus travestido de gari, deu-se conta de que aquilo que os anjos cantaram de noite pelos campos de Belém”eis que vos anuncio uma alegria para todo o povo porque nasceu-vos hoje um Salvador…glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa-vontade”(Lucas 2, 10-14) não significava mais nada. O amor tinham sido substituído pelos objetos e a jovialidade de Deus que se fez criança, tinha desaparecido em nome do prazer de consumir.
Triste, tomou outro raio celeste e antes de voltar ao céu deixou escrita uma cartinha para as crianças. Foi encontrada debaixo da porta das casas e especialmente dos casebres dos morros da cidade, chamadas de favelas. Ai o Menino Jesus escreveu:

Meus queridos irmãozinhos e irmãzinhas,

Se vocês olhando o presépio e virem lá o Menino Jesus e se encherem de fé de que ele é o Filho de Deus Pai  que se fez um menino, menino qual um de nós e que Ele é o Deus-irmão que está sempre conosco,

Se vocês conseguirem ver nos outros meninos e meninas, especialmente nos pobrezinhos, a presenca escondida do Menino Jesus nascendo dentro deles.

Se vocês fizerem renascer a criança escondida no seus pais e nas pessoas adultas para que surja nelas o amor, a ternura, o carinho, o cuidado e a amizade  no lugar de muitos presentes.

Se vocês ao olharem para o presépio descobrirem Jesus pobremente vestido, quase nuzinho e lembrarem de tantas crianças igualmente pobres e mal vestidas e sofrerem no fundo do coração por esta situação desumana e se decidirem já agora, quando grandes, mudar estas coisas para que nunca mais haja crianças chorando de fome e de frio,

Se vocês repararem nos três reis magos com os presentes para o Menino Jesus e pensarem que até os reis, os grandes deste mundo e os sábios reconheceram a grandeza escondida desse pequeno Menino que choraminga em cima das palhinhas,

Se vocês, ao verem no presépio todos aqueles animais, como as ovelhas, o boi e a vaquinha pensarem que o universo inteiro é também iluminado pela Menino Jesus e que todos, galáxias, estrelas, sois, a Terra  e outros seres da natureza e nós mesmos formamos a grande Casa de Deus,

Se vocês olharem para o alto e virem a astrela com sua cauda e recordarem que sempre há uma Estrela como a de Belém sobre vocês,  iluminando-os e mostrando-lhes os melhores caminhos,

Se vocês  aguçarem bem os ouvidos e escutarem a partir dos sentidos interiores, uma música celestial como aquela dos anjos nos campos de Belém que anunciavam paz na terra,

Então saibam que sou eu, o Menino Jesus, que  está chegando de novo e renovando o Natal. Estarei sempre perto de vocês, caminhando com vocês, chorando com vocês e brincando com vocês até aquele dia em que chegaremos todos, humanidade e universo, à Casa do Pai e Mãe de infinita bondade para sermos juntos eternamente felizes como uma grande família reunida.

                                    Belém, 25 de dezembro do ano 1.

                                    Assinado: Menino Jesus

(Leonardo Boff)

publicado às 16:46


Natal: a História no seu reverso

por Thynus, em 21.12.13
Há um testemunho de Kant que diz bem da sua grandeza de filósofo e de homem. Poucos dias antes de morrer - 12 de Fevereiro de 1804 -, confiou a amigos: "Senhores, eu não temo a morte, eu saberei morrer. Asseguro-vos perante Deus que, se sentisse que esta noite iria morrer, levantaria as mãos juntas e diria: Deus seja louvado! Mas, se um demónio mau se colocasse diante de mim e me insinuasse ao ouvido: Tu tornaste um homem infeliz, ah! então seria outra coisa." Afinal, o que é mais importante e decisivo não é a dignidade de todos e a sua felicidade? Não é devido ao seu combate ímpar pela liberdade e dignificação de todos que o mundo se inclina unânime, com respeito, perante a memória de Mandela? Este é também o segredo do Papa Francisco: renovar a Igreja, evangelizá-la, para ela poder, por palavras e obras, evangelizar o mundo: levar a todos a notícia boa e felicitante do Deus de Jesus Cristo. O seu programa de pontificado, na exortação "A Alegria do Evangelho", de que aqui já dei conta, é simplesmente este: o Evangelho. Para isso, há um método, um caminho, uma luz: ler o mundo a partir de baixo, dos pobres, dos excluídos, e agir em consequência, isto é, colocando-se no seu lugar e, a partir desse lugar, que é o lugar de Deus, cumprir a sua missão. Para que todos possam realizar a dignidade de homens e mulheres e alcançar a alegria e a felicidade, para lá do consumismo e materialismo reinantes: "Deus quer a felicidade dos Seus filhos também nesta Terra, embora estejam chamados à plenitude eterna", escreve Francisco. Normalmente, a História é lida a partir dos vencedores, mas a missão da Igreja é lê-la e ensinar a lê-la a partir das vítimas, dos perdedores. Uma revolução das consciências, que, em termos cristãos, se chama conversão, metanóia, mudança de mentalidade e de horizonte.Então, o centro não é a Igreja nem os dogmas nem as leis, mas Cristo, o Evangelho e as pessoas. "Quando a vida interior se fecha nos próprios interesses, deixa de haver espaço para os outros, já não se ouve a voz de Deus, já não se goza da doce alegria do Seu amor, nem fervilha o entusiasmo de fazer o bem. Este é um risco, certo e permanente, que correm também os crentes". "Uma fé autêntica - que nunca é cómoda nem individualista - comporta sempre um profundo desejo de mudar o mundo, transmitir valores, deixar a terra um pouco melhor depois da nossa passagem por ela." A Igreja tem de avançar sem medo. Francisco repete: "Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas fora a uma Igreja doente pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças. Não quero uma Igreja preocupada com ser o centro e que acaba presa num emaranhado de obsessões e procedimentos. Mais do que o temor de falhar, espero que nos mova o medo de nos encerrarmos nas estruturas que nos dão uma falsa protecção, nas normas que nos transformam em juízes implacáveis, nos hábitos em que nos sentimos tranquilos, enquanto lá fora há uma multidão faminta", "sem uma comunidade de fé que os acolha, sem um horizonte de sentido e de vida".Afinal, os preceitos dados por Cristo "são pouquíssimos". E Francisco tem um sonho: "Sonho com uma opção missionária capaz de transformar tudo, para que os costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se tornem um canal proporcionado mais à evangelização do mundo actual do que à sua autopreservação." Para isso, Francisco convoca todos para uma reforma, a começar pelo papado: "Uma corajosa reforma, que toque tanto o espírito como as estruturas." Se se não quiser ficar só com uma parte minúscula da História - a História dos triunfadores -, é preciso recuperá-la e reconstruí-la na sua maioria: os escravos, os colonizados, as mulheres, os velhos, as crianças, os mortos, os drogados, os humilhados, todas as periferias. Isso: o reverso da História, a História recuperada no seu reverso. Para haver Natal de e da humanidade, como anunciaram os anjos aos pastores pela noite dentro: "Não temais, anuncio-vos uma grande alegria, que será a de todo o povo: nasceu-vos um Salvador". Natal feliz!

(Anselmo Borges

publicado às 13:47


Do país da cultura

por Thynus, em 20.12.13
Longe demais voei na direção do futuro; um pavor me assaltou.
E, quando olhei ao meu redor, eis que o tempo era meu único contemporâneo.
Então voei para trás, no rumo de casa — e cada vez mais depressa: assim cheguei até vós, homens do presente, e ao país da cultura.
Pela primeira vez trouxe comigo um olhar para vós, e bom desejo: em verdade, cheguei com saudade no coração.
Mas que me aconteceu? Embora tivesse medo — tive que rir! Meus olhos jamais tinham visto algo tão sarapintado!
Eu ria e ria, enquanto o pé ainda tremia, e também o coração: “Aqui deve ser a terra de todos os potes de tintas!” — disse eu.
Com cinquenta borrões de cores no rosto e nos membros: assim vos encontráveis ali, para meu espanto, ó homens do presente!
E com cinquenta espelhos ao vosso redor, que lisonjeavam e repetiam vosso jogo de cores!
Em verdade, não poderíeis usar máscaras melhores do que vossos próprios rostos, ó homens do presente! Quem poderia — reconhecer-vos?
Inteiramente inscritos com signos do passado, e com novos signos pincelados sobre esses signos: assim vos escondestes bem de todos os intérpretes de signos!
E, mesmo quando se é um escrutador de rins: quem ainda crê que tendes rins?(1) Pareceis formados de cores e pedaços de papel com cola.
Todos os tempos e povos transparecem coloridos atrás de vossos véus; todos os costumes e crenças falam coloridos através de vossos gestos.
Quem entre vós retirasse os véus, capas, cores e gestos, manteria apenas o suficiente para espantar os pássaros.
Em verdade, eu mesmo sou o pássaro espantado que um dia vos viu nus e sem cores; e fugi voando, quando o esqueleto me acenou amorosamente.
Preferiria ser trabalhador diarista no mundo inferior e junto às sombras do passado! — mais gordos e robustos do que vós são os habitantes desse outro mundo!
Sim, isso é amargor para minhas vísceras, que eu não vos suporte nus nem vestidos, ó homens do presente!
Tudo de inquietante no futuro, e que um dia assombrou pássaros fugidios, é verdadeiramente mais familiar e tranquilizador do que vossa “realidade”.
Pois assim falais: “Totalmente reais somos nós, e sem crença nem crendice”: desse modo vos gabais, inflando o peito — ah, embora não tendo peito!
Sim, como poderíeis crer, ó homens sarapintados! — que sois pinturas de tudo aquilo em que já se acreditou!
Sois refutações ambulantes da fé mesma, e fratura de todo pensamento.
Indignos de fé: assim vos chamo eu, ó homens reais!
Todos os tempos tagarelam uns contra os outros em vossos espíritos; e os sonhos e palavrórios de todos os tempos eram ainda mais reais do que é vossa vida acordada!
Sois estéreis: por isso vos falta fé. Mas quem tinha de criar sempre teve também seus sonhos proféticos e sinais dos astros — e acreditava na fé! —
Sois portões semiabertos, junto aos quais coveiros aguardam. E esta é a vossa realidade: “Tudo é digno de perecer”.(2)
Ah, como apareceis à minha frente, ó estéreis, com tão magras costelas! E mais de um, entre vós, provavelmente o percebeu.
E falou: “Será que um deus, enquanto eu dormia, subtraiu-me algo? Em verdade, o suficiente para formar uma mulherzinha!
Admirável é a pobreza de minhas costelas!”, assim já falou mais de um homem do presente.
Sim, fazeis-me rir, homens do presente! E especialmente quando vos admirais de vós mesmos!
E ai de mim se não pudesse rir de vossa admiração, e tivesse de beber tudo de repugnante de vossas tigelas!
Mas eu vos tomo de maneira leve, pois tenho coisa pesada a carregar; e que diferença faz se besouros e vermes alados ainda pousam em minha trouxa?
Em verdade, ela não me ficará mais pesada por isso! E não me virá de vós o grande cansaço, ó homens do presente! —
Ah, para onde devo ainda subir com o meu anseio? De todos os montes lanço o olhar, em busca de pátrias e mátrias.
Mas terra natal não encontrei em lugar nenhum: errante sou em todas as cidades, e me acho de partida em todos os portões.
São-me alheios, e um escárnio para mim, os homens do presente, aos quais há pouco tempo me impelia o coração; e expelido sou eu de pátrias e mátrias.
Então amo apenas o país de meus filhos, ainda não descoberto, no mais distante mar: a ele ordeno que minhas velas busquem sem cessar.
Em meus filhos quero reparar por ser filho de meus pais: e em todo o futuro — por este presente!
Assim falou Zaratustra.

(Nietzsche - Assim falou Zaratustra)  

NOTAS:
(1) “escrutador de rins”: tradução literal de Nierenprüfer, expressão de origem bíblica — cf. Salmos, 7, 10: “vós, Deus justo, que perscrutais o coração e as entranhas” (na versão de Lutero se acha especificamente “rins”: denn Du, gerechter Gott, prüfst Herzen und Nieren; a edição da Bíblia de Lutero utilizada nos cotejamentos foi a da Württembergische Bibelanstalt, Stuttgart, 1928). Logo acima, no texto, a palavra Zeichen foi traduzida por “signos”, mas também se poderia usar “sinais”. Algumas linhas abaixo, a referência já não é bíblica, mas clássica: “Preferiria ser trabalhador diarista...” remete às amargas palavras de Aquiles a Ulisses, quando este o visita no mundo dos mortos: “Não tentes reconciliar-me com a morte, ó glorioso Ulisses./ Eu preferiria estar na terra, como servo de outro,/ até de homem sem terra e sem grande sustento,/ do que reinar aqui sobre todos os mortos” (Odisseia, canto XI, vv. 488-91, citados na bela tradução de Frederico Lourenço, Lisboa: Biblioteca Editores
Independentes, 2008). Nietzsche parodia essa declaração, juntando o pior dos dois mundos.

(2) “Tudo é digno de perecer”: citação do Fausto, vv. 1339-40: “[...] pois tudo o que aparece/ É digno de perecer” ([...] denn alles, was entsteht/ Ist wert, dass es zu Grunde geht). Em seguida, há uma clara referência à criação de Eva a partir de uma costela de Adão, em Gênesis, 21, 2.

publicado às 16:10



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