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Foi a partir da sua fé católica que Hans Küng aderiu à defesa da morte assistida.

No começo de Outubro de 2013, o conhecido teólogo católico suíço Hans Küng (HK), de 85 anos, publicou o terceiro livro das suas Memórias, Erlebte Menschlichkeit (que se poderá traduzir como Humanidade experienciada). Nele, revela que sofre da doença de Parkinson e que, para além de padecer de outros problemas de saúde, pensa que em breve ficará cego.
Perante esta degradação da  vida – HK pergunta-se o que é um académico que já não pode ler e escrever -, expressa a possibilidade de optar pelo suicídio assistido se uma morte súbita não o poupar a uma última decisão. Saliente-se, no entanto, que já em 1995 HK e o seu colega e amigo da Universidade de Tübingen, Walter Jens, crítico literário (falecido este ano, demente), escreveram o que em inglês foi traduzido por Dying with Dignity. A Plea for Personal Responsability. No último parágrafo desse “apelo”, num Postscript em torno da encíclica Evangelium Vitae, HK concluía: “podemos expressar a esperança de que, se não morrermos de morte súbita, possamos deixar este mundo rodeados por verdadeiros amigos e com a ajuda de um médico compreensivo, em serenidade e confiança, em gratidão e tranquila expectativa”.

Foi a partir da sua fé católica que HK aderiu à defesa da morte assistida, rejeitando qualquer forma de “autonomismo individualista”. Para ele, a vida é um dom de Deus e uma responsabilidade humana: no gerar de novas vidas, durante a existência e também na morte. Assim, “de acordo com a vontade de Deus”, ao mesmo tempo que uma dádiva, “a vida é também uma tarefa humana,  portanto tornada responsabilidade nossa (e não dos outros). Trata-se de uma autonomia baseada numa teonomia”.

Não foi por acaso que HK se colocou estas questões. Em 1954, ao mesmo tempo que se dirigia para a Cripta de S. Pedro em Roma para celebrar a sua primeira eucaristia, o irmão, de vinte e dois anos, tinha um problema de saúde, tendo-lhe sido detectado pouco depois um tumor cerebral de que viria a morrer. HK diz ter então vivenciado um processo de morte terrivelmente lento, em que “um membro após o outro, um órgão após o outro, deixava de funcionar”. Isto, claro, depois dos métodos clássicos de “combate” ao cancro. Após dias atrozes de agonia, o irmão morreu sufocado nos fluidos dos pulmões. HK confessa que, “desde então, tenho-me perguntado se esta é a morte que Deus dá, que Deus ordena. Será que os homens e as mulheres devem aceitar isto ‘submissamente’ [...] até ao fim, como algo ‘dado por Deus’, ‘divinamente querido’ ou mesmo algo que ‘agrada a Deus’?”. Para HK, Deus é deste modo visto sobretudo como o “proprietário” dos seres humanos, dificilmente identificável com “o pai dos pobres, dos que sofrem, dos que estão perdidos”. Por isso, depois de uma longa reflexão, assumiu que “como cristão e teólogo estou convencido de que o Deus todo misericordioso, que deu aos homens e às mulheres liberdade e responsabilidade relativamente às suas vidas, também deu às pessoas que estão para morrer a responsabilidade de tomarem uma decisão consciente sobre o modo e o tempo das suas mortes”. Óbvio adepto dos cuidados paliativos, sabe que eles por vezes não eliminam toda a dor ou sofrimento, ou só o fazem à custa de uma sedação que elimina a hipótese de lucidez, tão apreciada por tantas pessoas. Por isso, Jens escreve que tanto ele como HK viveriam mais tranquilos se soubessem que poderiam dispor de um Max Schur para os acompanhar no final, ou seja, o médico pessoal de Freud que lhe proporcionou a eutanásia desejada. Escreve HK em 1995: “Tal morrer para dentro de Deus [dying into God], com um sentido de gratidão embaraçada, parece-me ser o que podemos esperar em confiança: uma verdadeira morte dignificada”. Claro que HK não exclui que outras mortes sejam também vividas dignamente, mas acredita que o seu cristianismo não lhe impede a morte assistida. Se esta vier a ser a sua opção, estou convencida de que acreditará de facto estar desse modo a mergulhar em Deus, podendo-se assim, como diz neste livro de Memórias, celebrar-se em seguida uma missa de acção de graças.

(Laura Ferreira dos Santos)

publicado às 23:26


DO ALTO DOS MONTES

por Thynus, em 30.12.13

Oh! Meio dia da vida! Época solene!
Oh! jardim de estio!
Beatitude inquieta da ansiedade na espera:
espero meus amigos, noite e dia,
onde estais, amigos meus?
Vinde! É tempo, é tempo!

Não é por vós que o gelo cinzento
hoje se adorna com rosas?
A vós procura o rio,
suspensos nos céus ventos e nuvens se alevantam
para observar vossa chegada.
competindo com o mais sublime vôo dos pássaros.

No meu santuário coloquei a mesa:
Quem vive mais próximo das estrelas
e das horríveis profundezas do abismo?
Que reino mais extenso que o meu?
E do mel, daquele que é meu, que sentiu seu fino aroma?

Aqui estais, finalmente, meus amigos!
Ai! não é a mim que procuras?
Hesitais, mostrais surpresa?
Insultai-me é melhor! Eu não sou mais eu?
Mudei de mão, de rosto, de andar?
O que eu era, amigos, acaso não mais sou?

Tornei-me, talvez, outro?
Estranho a mim mesmo? De mim mesmo, fugido?
Lutador que muitas vezes venceu a si mesmo?
Que muitas vezes lutou contra a própria força,
ferido, paralisado pelas vitórias contra si mesmo?

Porventura não procurei os mais ásperos ventos e aprendi a
viver onde ninguém habita,
nos desertos onde impera o urso polar?
Não esqueci a Deus e ao homem, blasfêmias e orações?
Tornei-me um fantasma das geleiras.

Oh! meus velhos amigos, vossos rostos
empalidecem de imediato,
transtornados de ternura e espanto!
Andai, sem rancor! Não podeis demorar aqui!
Não é para vós este país de geleiras e rochas!
Aqui é preciso ser caçador e antílope!

Converti-me em caçador cruel. Vede meu arco:
a tensão de sua corda!
Apenas o mais forte poderá arremessar tal dardo.
Mas não há nenhuma seta mortal copo esta.
Afastai-vos, se tendes amor à vossa vida!

Fugis de mim!? Oh, coração, quanto sofreste!
E entretanto, tua esperança ainda se mantém firme!
Abre tuas portas a novos amigos,
renuncia aos antigos e às lembranças!
Fostes jovem? — Pois agora és mais e com mais brio.

Quem pode decifrar os signos apagados,
do laço que une com uma mesma esperança?
Signos que em outros tempos escreveu o amor,
que luzem como velho pergaminho queimado
que se teme tocar, como ele. queimado e enegrecido!

Basta de amigos! Como chamá-los?
Fantasmas de amigos! Que de noite,
tentam ainda meu coração e minha janela
e me olham sussurrando:
"Somos nós"!
Oh! Ressequidas palavras, um dia fragrantes como rosas!
Sonhos juvenis tão cheios de ilusão,
aos quais buscava no impulso de minh’alma,
agora os vejo envelhecidos!
Apenas os que sabem mudar são os de minha linhagem.

Oh! Meio dia da vida! Oh! segunda juventude!
Oh! jardim de estio!
Beatitude inquieta na ansiedade da espera!
Os amigos esperam, dia e noite, os novos amigos.
Vinde! É tempo! É tempo!

O hino antigo cessou de soar,
O doce grito do desejo expira em meus lábios.
Na hora fatídica apareceu um encantador,
o amigo do pleno meio-dia.
Não, não me pergunteis quem é:
ao meio-dia, o que era um,
dividiu-se em dois.

Celebremos, seguros de uma mesma vitória,
a festa das festas!
Zaratustra está ali, o amigo,
o hóspede dos hóspedes!
O mundo ri, o odioso véu cai,
E eis que a luz se casa com a misteriosa,
subjugadora Noite.


(FRIEDRICH WILHELM NIETZSCHE - ALÉM DO BEM E DO MAL)

publicado às 18:50

 

Contrariamente ao que ensinam os jesuítas, achamos que é de toda necessidade, para cada um de nós, não procurar senão emoções cuja delicadeza envolva toda a nossa pessoa apenas de impressões de prazer.
O grande inimigo do psiquista é a tristeza. Todo pensamento deprimente deve ser impiedosamente rejeitado de nosso espírito.
E devemos neutralizar com outros tantos cuidados todo o sentimento de natureza a fazer nascer em nossa alma qualquer inquietação. Nosso papel é criar, em torno de nós, a alegria e a esperança, mas não podemos fazer nascer esses sentimentos nos outros, se não os possuímos em nós mesmos.
É preciso, pois, esforçarmo-nos por ver em torno de nós tudo o que é belo, alegre e robusto, tudo o que encanta e arrebata a nossa imaginação, tudo o que reconforta o nosso abatimento.
Nessa alegria do mundo, absorveremos forças novas e nos tornaremos aptos a fazer com que outros também as experimentem.
Tomemos, pois, o hábito de observar com minúcia tal quadro, tal sítio que nos agrada; façamo-lo reviver diante do olhar de nossa alma; analisemos, do melhor modo possível, a sensação que nos dá e o prazer que nos infunde. Quando, por um esforço da nossa imaginação, o quadro ou o panorama reaparecem diante de nossos olhos com tanta nitidez e relevo, como se aí se achassem na realidade, procuremos animar este sítio.
Se evocamos diante do nosso espírito grandes árvores, nada mais fácil do que ouvir nos ramos o gorjear dos pássaros que se perseguem e brincam.
Não há necessidade de se entregar a criações gigantescas. O menor recanto tem o seu atrativo; podemos deixar-nos entusiasmar aí pela calma e a poesia, tanto quanto diante de lugares os mais grandiosos.
Este sítio vos deve ser familiar, de maneira que vos recordeis dele como de um lugar de repouso e meditação. Porém, antes de tudo, se quereis tirar daí o maior proveito possível para a vossa formação psíquica, encarai-o sempre sob o seu aspecto mais risonho. Sob essa forma, essa evocação vos dará o máximo da vitalidade, força e otimismo.
A presença ideal do sítio que vos encanta servir-vos-á de sustentáculo e repouso. É agindo assim que se vibra cada vez mais.
Desenvolvemo-nos nesse sentido, do mesmo modo que um violinista descobre, à proporção que trabalha, todos os segredos de sua arte. Começou por não tirar de seu violino senão sons discordantes, mas, à medida de seu esforço, tornou-se mais apto, cada dia, a tirar de seu instrumento melodias mais sensíveis e mais completas.
Se é bem dotado e se continua, se não considera como tendo atingido a perfeição, desde que consiga algum talento, chegará a tornar-se um verdadeiro "virtuose" e dará a todos aqueles que o escutam a volúpia sagrada da música que os fará comunicar com grandes harmonias superiores.

(HENRI DURVILLE - A Ciência Secreta)

publicado às 18:50


Passado e futuro em Espinosa

por Thynus, em 30.12.13
 
 
direita esquerda passado futuro
Vista pelos jovens, a vida é um futuro infinitamente longo; vista pelos velhos, um passado muito breve. 
 
O passado e o futuro parecem-nos sempre melhores; o presente, sempre pior. 
 
 
Pensamos no passado como aquilo que não pode ser alterado e no futuro como algo que está aberto a alternativas. Mas, no Universo determinista de Espinosa, o futuro não está menos fixado do que o passado. A diferença entre o passado e o futuro não deve, por isso, desempenhar qualquer papel nas reflexões de um homem sábio; não devemos preocupar-nos com o futuro nem sentir remorsos relativamente ao passado. A existência definitiva de qualquer mente como parte do único Universo infinito e necessário é uma verdade eterna; olhando para as coisas à luz das verdades eternas, a mente capta o Universo interminável, necessário e eterno. Nesse sentido, qualquer mente é eterna, e pode-se considerar que existia antes do nasc imento e que existirá depois da morte. Mas tudo isto é muito diferente da sobrevivência pessoal numa vida depois da morte em que a piedade popular coloca a sua esperança. Isso permitirá a Espinosa receber a sua própria morte com tranquilidade, mas não é de espantar que tanto judeus como cristãos o considerassem um herético.

(Anthony Kenny - História Concisa da Filosofia Ocidental)
 

publicado às 18:48

O individualismo, marca registrada da sociedade de mercado e do capitalismo como modo de produção e sua expressão política o (neo)liberalismo, revelam toda sua força mediante as corporações nacionais e multinacionais. Nelas vigora cruel competição dentro da lógica do ganha-perde.
Pensava-se que a crise sistêmica de 2008 que afetou pesadamente o coração dos centros econômico-financeiros nos USA e na Europa, lá onde a sociedadade de mercado é dominante e elabora as estratégias para o mundo inteiro, levasse a uma revisão de rota. Ainda mais que não se trata apenas do futuro da sociedade de mercado mundializada mas de nossa civilização e até de nossa espécie e do sistema-vida.
Muitos como J. Stiglitz e P. Krugman esperavam que o legado da crise de 2008 seria um grande debate sobre que tipo de sociedade queremos construir. Enganaram-se rotundamente. A discussão não se deu. Ao contrário, a lógica que provocou a crise foi retomada com mais furor.
Richard  Wilkinson, epidemiologista inglês e um dos maiores especialistas sobre o tema desigualdade  foi mais atento e dissse, ainda em 2013 numa entrevista ao jornal Die Zeit da Alemanha:”a questão fundamental é esta: queremos ou não verdeiramente viver segundo o princípio que o mais forte se apropria de quase tudo e o mais fraco é deixado para trás?”.
Os super-ricos e super-poderosos decidiram que querem viver segundo o princípio darwinista do mais forte e que se danem os mais fracos. Mas comenta Wilkinson: “creio que todos temos necessidade de uma maior cooperação e reciprocidade, pois as pessoas desejam uma maior igualdade social”. Esse desejo é intencionalmene negado por esses epulões.
Via de regra, a lógica capitalista é feroz: uma empresa engole a outra (eufemisticamente se diz que se fizeram fusões). Quando se chega a um ponto em que só restam apenas algumas grandes, elas mudam a lógica: ao invés de se guerrearem, fazem entre si uma aliança de lobos e comportam-se mutuamente como  cordeiros. Assim articuladas detém mais poder, acumulam com mais certeza para si e para seus acionistas, desconsiderando totalmente o bem da sociedade.
A influência política e econômica que exercem sobre os governos, a maioria muito mais fracos que elas, é extremamente constrangedor, interferindo no preço das commodities, na redução dos investimentos sociais, na saúde, educação, transporte e segurança. Os milhares que ocupam as ruas no mundo e no Brasil intuíram essa dominação de um novo tipo de império, feito sob o lema:”a ganância é boa” (greed is good) e “devoremos o que pudermos devorar”.
Há excelentes estudos sobre a dominação do mundo por parte das grandes corporações multilaterais. Conhecido é o do economista norte-americano David Korten ”Quando as corporações regem o mundo”(When the Corporations rule the World, Berret-Koehler Publisher 1995/2001)). Mas fazia falta  um estudo de síntese. Este foi feito pelo Instituto Suiço de Pesquisa Tecnológica (ETH)” em Zurique em 2011 que se conta entre os mais respeitados centros de pesquisa, competindo com MIT. O documento envolve grandes nomes, é curto, não mais de 10 páginas e 26 sobre a metodologia para mostrar a total transparência dos resultados. Foi resumido pelo Professor de economia da PUC-SP Ladislau Dowbor em seu site. Baseamo-nos nele.
Dentre as 30 milhões de corporações existentes, o Instituto selecionou 43 mil para estudar melhor a lógica de seu funcionamento. O esquema simplificado se articula assim: há um pequeno núcleo financeiro central que possui dois lados: de um,  são as corporações que compõe o núcleo e do outro, aquelas que são controladas por ele. Tal articulação cria uma rede de controle corporativo global. Essse pequeno núcleo (core) constitui uma super-entidade(super entity). Dele emanam os controles em rede, o que facilita a redução dos custos, a proteção dos riscos, o aumento da confiança e, o que é principal, a definição das linhas da economia global que devem ser fortalecidas e onde.
Esse pequeno núcleo, fundamentalmente de grandes bancos, detém a maior parte das participações nas outras corporações. O topo controla 80% de toda rede de corporações. São apenas 737 atores, presentes em 147 grandes empresas. Ai estão o Deutsche Bank, o J.P. Morgan Chase, o UBS, o Santander, o Goldes Sachs, o BNP Paribas entre outros tantos. No final menos de 1% das empresas controla 40% de toda rede.
Este fato nos permite entender agora a indignação dos Occupies  e de outros que acusam que 1% das empresas faz o que quer com os recursos suados de 99% da população. Eles não trabalham e nada produzem. Apenas fazem mais dinheiro com dinheiro lançado no mercado da especulação.
Foi esta absurda voraciade de acumular ilimitadamente que gestou a crise sistêmica de 2008. Esta lógica aprofunda cada vez mais a desigualdade e torna mais difícil a saída da crise. Quanto de desumanidade aquenta o estômago dos povos? Pois tudo tem seu limite nem a economia é tudo. Mas agora nos é dado ver as entranhas do monstro. Como diz Dowbor: ”A verdade é que temos ignorado o elefante que está no centro da sala”.  Ele está quebrando tudo, critais, louças e pisoteando pessoas. Mas até quando? O senso ético mundial nos assegura que uma sociedade não pode subsistir por muito tempo assentada sobre a super exploração, a mentira e a anti-vida.
A grande alternativa é oferecida por David Korten que tem trabalhado com Joanna Macy, uma das mais comprometidas educadoras com o novo paradigma e com um futuro diferente e otimista do mundo. A grande virada (The Great Turning) se dará com a passagem do paradigma “Império” para o da “Comunidade da Terra”. O primeiro dominou nos últimos cinco mil anos. Agora chegou seu ponto mais baixo de degradação. Uma virada salvadora é a renúncia ao poder como dominação imperial  sobre e contra os outros na direção de uma convivência de todos com todos na única “Comunidade da Terra”, na qual seres humanos e demais seres da grande comunidade de vida convivem, colaboram e juntos mantém uma Casa Comum hospitaleira e acolhedora para todos. Só nesta direção poderemos garantir um futuro comum, digno de ser vivido.

(Leonardo Boff)

publicado às 19:40


Pequenos pensamentos para 2014

por Thynus, em 29.12.13

É. Quando se chega a uma certa idade e mais um ano passa, o que mais dói é cair sobre nós as ausências de tantos que partiram. Partiram para onde? Ah, esse partir sem deixar endereço, e a falta que nos fazem!
Um novo ano novo começa. Novo: 2014. Por mais diagnósticos e prognósticos, é novo, imprevisível. Não está pré-escrito em parte alguma. Também é nosso: vamos fazê-lo. Mas é na surpresa que ele vem.
Envelhecemos, mas, por mim, não tenho inveja da juventude. Pelo contrário, agora, à distância, o que quero é que os jovens vivam intensamente cada tempo. Na dignidade livre e na liberdade com dignidade. O que deveria ser norma para todos. Que vivam com atenção e intensidade, pois tudo passa muito rápido.
Essa norma também pode ter outra expressão, que vou buscar ao início do Evangelho segundo São João, o passo mais filosófico do Novo Testamento. "No princípio, era o Verbo. Mediante Ele tudo foi criado. E o Verbo fez-se carne." Encontra-se aqui todo um programa para a existência. No princípio, era o Verbo. No original grego, está: era o Logos, a Razão, a Palavra. E tudo foi criado mediante o Logos, a Razão, a Palavra. E o Logos, a Razão, a Palavra, fez-se carne, tornou-se um de nós, por amor. Chama-se Jesus Cristo. O que sustenta o mundo é o Logos, a Razão, a Palavra, que não é impessoal, mas uma pessoa.
Onde deve então assentar a vida senão no vínculo da Razão e do Amor? Tantas vezes perdemos a vida, porque agimos sem razão e até contra a razão. Afinal, de que valem o ódio e o rancor e a exploração dos outros e a inimizade e a imensa estupidez de não pensar? Mas não basta a razão, pois a razão, só, pode ser cruel e mortal. Tem de ser a razão aliada à bondade e a bondade vinculada à razão, pois a bondade, só, sem a razão, pode lutar em vão e perder-se. Uma vida humana plena vive dessa aliança entre a razão que não olvida a bondade e a bondade que se ilumina com a razão.
O objectivo final só pode ser a felicidade, uma tarefa simples, que é ao mesmo tempo terrivelmente complexa. Como todos sabem por experiência. De qualquer forma, se me fosse permitido, gostaria de deixar aqui que muitas vezes fui chamado à cabeceira - isso: à cabeceira - de quem estava de partida, a tal de que falei no início. E devo dizer que não era propriamente a carreira - é certo que alguns/algumas nem carreira tiveram - que os ocupava ou preocupava naqueles momentos derradeiros nem o dinheiro ou a fama. Apenas a verdade maior, que tinha que ver com a família, com os amigos e o pouco tempo para eles e para o mais importante e decisivo. E queriam arrumar com verdade as coisas do aqui e do Além.
Mas isto tudo que para aí fica talvez se diga melhor de modo mais simples. Socorro-me de algumas regras para o bom viver de Manuela Santos, no seu blogue "umavidacomsentido". "Aproveite cada dia para aprender algo diferente. Não viva apenas para o trabalho, pois existe outra vida para além dele. Cuide da sua família todos os dias com amor. Aproveite para cuidar do seu bem-estar interior. Ouça música. Dedique-se a um hobby. Conheça os seus limites e não vá além deles. Aprenda a perdoar. Cultive a honestidade, a verdade, a humildade. Ame-se e namore todos os dias. Seja feliz! Dedique algum tempo à meditação, é muito importante."
Algum tempo, todos os dias, para meditar. É realmente muito importante, decisivo mesmo, vital. Significativamente, meditação, moderação e medicina têm o mesmo étimo: mederi (radical med-, "pensar, medir, julgar, tratar um doente"), que significa: cuidar de, tratar, dar remédio a, medicar, curar.
Quem quiser uma vida sensata e feliz tem de ir por aqui: dedicar todos os dias algum tempo à meditação, para ir ao encontro do essencial, do mais fundo, que é também o mais perto, porque mora dentro de cada um de nós, para ouvir a Palavra primeira, que fala no silêncio e diz a sabedoria do viver na sabedoria e que leva a cuidar do mais importante e melhor e a pensar e a julgar, a dar remédio e a curar. Seja feliz! Bom Ano Novo!

(Anselmo Borges)

publicado às 15:39


Um Cristo formatado?

por Thynus, em 29.12.13

 

Pretender despolitizar o discurso económico e torná-lo tecnocrático e apartidário é um embuste.

1. “Esta é a definição da lei: algo que pode ser transgredido”. Assim falava, no seu gosto pelos paradoxos, o grande escritor católico, Gilbert K.Chesterton (1874-1936). Partindo da convicção de que a Deus nada é impossível, as comunidades cristãs, sobretudo as do primeiro século, elaboraram narrativas sobre o percurso de Jesus Cristo - desde a anunciação à ressurreição – que parecem contrariar, sem necessidade, as mais respeitáveis e inocentes leis da natureza. 
A este respeito, importa não esquecer que a linguagem mítica e simbólica da liturgia do Natal não pretende dar aulas de biologia e astronomia, mas subverter as leis de um mundo dominado pela injustiça. Quando os Evangelhos são interpretados em registo literal, em vez de provocarem a inteligência, a imaginação e os afectos, paralisam-nos e tornam-se charadas absurdas, até naquilo que têm de mais belo e subversivo. A letra mata. O espírito livre vivifica.
Esta observação não desvaloriza, porém, a importância do método histórico-crítico aplicado aos escritos do Novo Testamento. Ao procurar esclarecer a produção dos textos bíblicos, nas suas diferentes etapas, descobre-se o ridículo das leituras fundamentalistas e que a pluralidade de interpretações não brota da arbitrariedade.
Passada a decepção com as “biografias liberais” de Jesus, do séc. XIX e os estudos pós-bultmanianos da década de 50 do século passado, vários exegetas célebres desenvolvem a “terceira vaga” de investigações sobre o “Jesus da história”. A obra monumental, de John P. Meier, “Jesus, um Judeu marginal”, impôs-se como referência incontornável. No entanto, como ele próprio confessa, o Jesus reconstruido pela investigação histórica – dada a natureza das fontes disponíveis – não pode sondar todas as dimensões da sua realidade. J. Meier alimenta a fantasia da reunião de um “conclave sem papa” e que ele próprio configurou: um católico, um protestante, um judeu e um agnóstico - todos historiadores honestos e bem informados sobre os movimentos religiosos do século I – ficariam trancados, na biblioteca da Harvard Divinity School, submetidos a uma dieta espartana e só lhes seria permitido reaparecer, quando tivessem elaborado um documento de consenso, sobre Jesus de Nazaré.
Um requisito essencial desse documento seria o de basear-se em fontes e argumentações puramente históricas. As suas conclusões deveriam ser abertas à verificação de todas e quaisquer pessoas sinceras, com acesso aos meios da moderna pesquisa histórica. Esse documento não teria a pretensão de apresentar uma interpretação completa, final e definitiva sobre Jesus, a sua obra e as suas intenções. Poderia, no entanto, proporcionar uma base comum e um ponto de partida academicamente respeitáveis para o diálogo entre pessoas de várias crenças ou sem crença alguma. J. Meier talvez goste de um Jesus marginal, mas não muito!
2. Esse empreendimento pode ter a sua utilidade, sobretudo para enfraquecer os delírios teológicos estacionados em definições dogmáticas, como alfândegas da fé. Mas não estou nada interessado num Jesus normalizado, formatado e em repouso num museu da história do cristianismo. Os escritos cristãos falam da sua presença clandestina, onde e quando menos se espera, baseados na promessa de que Ele não desertará da nossa vida.
Muito se escreveu acerca do mundo em que Jesus nasceu e cresceu, e onde se difundiram as comunidades cristãs dos séculos primeiro e segundo. Funcionavam “em rede”. Quando o Imperador Constantino entrou em cena, no séc. III, foi porque ele próprio se deu conta que mais valia ter os cristãos do seu lado do que persegui-los.
Os monges não foram para o Deserto por terem desistido da evangelização do mundo, mas porque se consideravam marginais em relação a uma cristandade adulterada por privilégios. Em vez de se instalarem no Poder, preferiram recusá-lo. Sabiam que ao esquecer o Cristo crucificado na carne dos sacrificados pelos interesses dos poderosos, acabariam na adoração de um Deus do Poder que tudo justifica.
3. O Papa Francisco denunciou os efeitos da economia que mata. Muitos se apressaram a dizer que ele não percebia nada de economia e a sua “Exortação Apostólica” era gravemente desmobilizadora quando já estavam à vista os belos frutos da austeridade, que importa não abrandar. Paul Krugman, Prémio Nobel de economia, em 2008, mostrou, no passado Domingo (cf. El País), as consequências desastrosas, nos EUA, da correlação entre os cortes nos programas sociais, o crescimento das desigualdades e o aumento da dívida. São os interesses e preconceitos de uma elite económica, cuja influência política disparou ao mesmo tempo que a sua riqueza, que procuram ocultar essa realidade. Pretender despolitizar o discurso económico e torná-lo tecnocrático e apartidário é um embuste. A classe social e a desigualdade modelam e distorcem o debate.
Será possível uma economia amiga das pessoas? Manuela Silva mostra que sim (cf. rev. Communio, XXX (2013).
Bom ano!

(Frei Bento Domingues, O.P.)

publicado às 15:38

Para o homem antigo, todos os eventos profanos, assim como o tempo profano, são completamente desprovidos de sentido, a não ser que repitam um arquétipo. Por mais estranho que nos possa parecer a princípio, os gestos humanos somente possuirão significado se imitarem um modelo divino; portanto, dentro da mentalidade primitiva, não existe qualquer ato humano efetivamente original. Na verdade, o único ato "verdadeiro" por excelência, seria o ato divino, efetuado in illo tempore (naquele tempo). Por tudo isso, fica o homem sem escolha: ou ele participa desse ato "legítimo", divino, comungando dessa forma com a própria divindade que o criou, ou acaba isolado desse drama cósmico, relegado ao plano ilusório da manifestação.
Essas explicações vão de encontro a um preconceito muito difundido atualmente acerca da função dos rituais, do qual, segundo parece, nem mesmo Eliade teria escapado. Hoje se acredita que os antigos, ao efetuar por exemplo as festas do solstício de inverno, o faziam movidos pelo medo de que o sol, tendo descido ao seu ponto mais baixo em sua trajetória celeste, não mais se reerguesse, mergulhando o mundo num inverno permanente; ao procederem aos rituais de semeadura, o faziam para tornar os campos férteis para o próximo ano. Contudo, esta é uma concepção por demais simplista, que caberia talvez apenas na mente das massas não iniciadas daquela época. A finalidade do ritual não é pragmática: não se procede a uma cerimônia com a intenção de causar coisa alguma, mas sim de participar de algo que efetivamente já se constitui numa realidade. O rito tem a finalidade de consagrar, ou seja, de permitir que seus participantes possam ingressar na dimensão do sagrado; uma dança indígena da chuva não pretende fazer chover, mas sim permitir que o povo que a efetua ingresse numa dimensão onde já chove, porque o mundo do sagrado, detentor dos gérmenes de toda a criação, desconhece a infertilidade. Quando uma cidade é assolada pela peste, isso não se dá simplesmente porque seu monarca teria cometido um pecado, motivador da vingança de algum deus: a saúde abandona aquele lugar por ter o mesmo de algum modo se "dessacralizado" através de um distanciamento efetuado pelos seus próprios habitantes em relação ao mundo divino. Essa cidade teria perdido a identificação com seu modelo sagrado, imaterial, do qual se constitui em mero reflexo, o que significa, em outras palavras, que ela teria abandonado o seu "Centro".
Desse modo, as vicissitudes da vida, tais como a doença, a morte, ou quaisquer tipos de reveses experimentados pelo homem, se devem à perda de sua identificação com o sagrado. Ao se afastar da realidade apenas presente no Centro, torna-se o indivíduo presa da ilusão do plano manifesto, ficando portanto sujeito a todos os seus percalços. Por outro lado, se através do ritual apropriado, ele retomar sua identificação com a dimensão superior, desfaz-se a ilusão proporcionada pelo Ma, fazendo desaparecer por completo seus infortúnios.
Sei a que tal tipo de raciocínio pode conduzir alguém habituado a "psicologizar" os mitos: o homem dito primitivo, devido à inconsistência de suas crenças, tentaria negar a inevitabilidade do sofrimento, inerente a esta vida, criando uma espécie de mundo perfeito, mero reflexo de seu próprio ego ideal, e assim proteger-se de uma realidade insuportável para sua frágil estrutura psíquica. Não tentarei resolver essa questão agora, sob pena de acabar desvirtuando a proposta inicial deste item, mas peço a quem estiver se sentindo inclinado a tal veredicto, que contenha momentaneamente sua paixão e espere momento mais apropriado para retomar esta problemática. Como o material necessário para a resposta estar diluído em toda a extensão deste trabalho, talvez no final ela venha a se tornar simplesmente desnecessária.

Antonio Farjani - A linguagem dos deuses)

publicado às 22:00


O Logos Encarnado nasce com o Sol

por Thynus, em 28.12.13

O sol é a sombra física do Logos ou assim como a chama do seu corpo. Então a encarnação do Logos se representa por uma sombra e em corpo mortal. O Mito Solar, pois, é uma narrativa na qual, em primeiro lugar, aparece a atividade do Logos ou Verbo no Cosmo e logo nos fatos de vida de um ser que é uma encarnação do Logos, representado como Deus ou Semideus, sendo que sua carreira será determinada pelo curso do Sol, por ser este astro a sombra do Logos. O Logos Encarnado nasce com o Sol e, como este, no solstício do inverno, morre no equinócio da primavera e é vencedor da morte, ascende ao céu. O Deus Solar ocupa os seis primeiros meses do ano com um trabalho laborioso, ao passo que os outros seis meses são um período de proteção e de conservação. Nasce sempre no solstício do inverno, após o dia mais curto do ano (no hemisfério boreal) e na noite entre 24 e 25 de dezembro, a noite santa por excelência em todo o ano. O signo zodiacal da Virgem Imaculada Celestial está sobre o horizonte oriental à meia-noite, e o Sol (Menino) do ano-novo dá então começo à sua jornada, desde o ponto mais austral, em direção ao hemisfério norte, para livrar essa parte da obscuridade e do frio, da umidade e da fome, que seriam inevitáveis se permanecesse sempre debaixo do Equador.

 

(JORGE ADOUM - Do sexo à divindade)

publicado às 21:39


«Arcana Artis»

por Thynus, em 27.12.13
A «morte» corresponde geralmente no nível operatório à cor negra que tomavam os ingredientes, a nigredo. É a redução das substâncias à matéria prima, à massa confusa1,- a massa fluída, informe, que corresponde no nível cosmológico à situação primitiva, ao caos. A morte representa a regressão ao amorfo, a reintegração do Caos. Daí que o simbolismo aquático tenha um papel tão importante. Uma das máximas dos alquimistas era: «Não efetue nenhuma operação antes de que tudo tenha sido reduzido à Água.» 2 No terreno operacional, este processo corresponde à dissolução do ouro na água régia. Kirchweger, presumido autor da Áurea Caleña Homeri (1723) obra que, dito seja de passagem, exerceu uma notável influencia sobre o jovem Goethe, escreve: «É seguro e certo que a Natureza inteira era Água no começo; que todas as coisas nasceram pela Água e pela Água devem ser destruídas.»3 A regressão alquímica ao estado fluido da matéria corresponde nas cosmologias ao estado caótico, primitivo, e nos rituais de iniciação, à «morte» do místico.
O alquimista obtinha deste modo a dissolução pondo as substâncias em um banho mercurial. Como escreve Síarkey (= Eireneus Philalethes), «o principal fundamento da transmutação é a possibilidade de reduzir todos os metais e quão minerais são de natureza metálica a sua primeira matéria mercurial»4. Um tratado atribuído ao Alfonso, rei de Portugal, precisa que «nossa dissolução não é mais que o fato de devolver o corpo à umidade (...). O primeiro resultado desta opinião é a redução do corpo à Água, quer dizer, ao mercúrio, que é o que os Filósofos chamam solução e que é o fundamento da Obra inteira» 5. Segundo certos autores, a dissolução seria a primeira operação; segundo outros, seria a calcinação, a redução ao amorfo mediante o Fogo. Seja como for, o resultado é sempre o mesmo: a «morte».
Esta redução alquímica à prima matéria é suscetível de inumeráveis interpretações e homologações; particularmente pode ser considerada como uma regressão ao estado pré-natal, um regressus ad uterum. O simbolismo seminal figura, por exemplo, em um codex estudado por Carbonelli, no qual se diz que antes de utilizar o ouro na opus «é necessário reduzir-lo a esperma»6. O vas mirabile, no qual residia todo o secreto alquímico, conforme proclamava María a Profetisa, «é uma espécie de matrix ou uterus do qual tem que nascer o filius philosophonim, a Pedra milagrosa» (Jung, Psychologie und Alchemie, P. 325). «O vaso é semelhante à obra de Deus no vaso da divina germinação», escreve Dorn7. Segundo Paracelso, «quem quer entrar no Reino de Deus deve entrar primeiro com seu corpo em sua mãe e morrer ali». De novo segundo Paracelso, o mundo inteiro deve «entrar em sua mãe», que representa a prima matéria, a massa confusa, o abyssus, para poder alcançar a eternidade 8. Para o John Pordage, o Banho-maria é «o lugar, a matrix e o centro de onde a tintura divina flui como de sua fonte e origem»9. Nos versos publicados como apêndice ao Opus Mago-Cabbalisticum et Theosophicum (1735), de Georg von Welling, pode-se ler: «Não posso alcançar o Reino dos Céus se não nascer pela segunda vez. Por isso desejo voltar para o seio de minha mãe, para ser regenerado, e é o que farei muito em breve.» 10 O regressus ad uterum aparece representado às vezes em forma de um incesto com a Mãe. Michael Maier assinala que «Delphinas, um filósofo desconhecido, fala com muita claridade, em seu tratado Secretus Maximus, da Mãe, que deve por necessidade natural unir-se a seu filho» (cum filio ex-necessítate naturae conjungenda) 11 . Mas é evidente que a «Mãe» simboliza nestes diferentes contextos à Natureza em seu estado primitivo, a prima matéria dos alquimistas, e que o «retorno à Mãe» traduz uma experiência espiritual homologável a qualquer outra «projeção» fora do Tempo; em outros termos, à reintegração em uma situação originária. A «dissolução» na matéria prima aparece igualmente sob o símbolo de uma união sexual, que acaba com o desaparecimento no útero. No Rosarium Philosophicum se pode ler: «Beya montou sobre o Gabricus e lhe encerrou em sua matriz, de forma que não ficou visível nada dele. Abraçou-lhe com tanto amor que lhe absorveu por inteiro em sua própria natureza...» (Nam Beya ascendit super Gabricutn, et includit eum in suo útero, quod nil penitus videri potest de eo. Tantoque amore amplexata est Gabricum, quod ipsum totum in sui naturam concepit...)12. Este simbolismo se dispõe naturalmente a inumeráveis revalorizações e integrações. O Banho-maria não é somente a «matriz da tintura divina», como se assinalou mais acima, mas sim também representa a matriz da qual nasceu Jesus. A encarnação do Senhor no adepto pode por isso começar do momento em que os ingredientes alquímicos do Banho-maria entram em fusão e voltam para estado primitivo da matéria. Este fenômeno regressivo é relacionado tanto com o nascimento como com a morte de Cristo 13.
Situando-se em diferentes perspectivas, C. G. Jung e J. Evola comentam com acertada pertinência o simbolismo da Morte de iniciação conforme se desprende da nigredo, putrefactio, disolutio 14. Convém acrescentar que, a dissolução e a reintegração do caos é uma operação que, seja qual for seu contexto, apresenta pelo menos duas dignificações solidárias: cosmológica e de iniciação. Toda «morte» é ao próprio tempo uma reintegração da Noite cósmica, do Caos pré-cosmológico; em múltiplos níveis, as trevas expressam sempre a dissolução das Formas, o retorno ao estado seminal da existência. Toda «criação», toda aparição das Formas ou, em outro contexto, todo acesso a um nível transcendente se expressa com um símbolo cosmológico. Já o repetimos em muitas ocasiões: um nascimento, uma construção, uma criação de ordem espiritual, têm sempre o mesmo modelo exemplar, a cosmogonia. Assim se explica a aparição em culturas tão diferentes do mito cosmogônico, não só o dia de Ano Novo (quando o mundo volta a ser criado simbolicamente) ou com motivo da coroação de um rei, de um matrimônio, de uma guerra, etc., mas também quando terá que salvar uma colheita ameaçada ou curar uma enfermidade. O sentido profundo de todos estes rituais nos parece claro; para fazer bem uma coisa ou refazer uma integridade vital ameaçada pela enfermidade terá que voltar primeiro ad originem e logo repetir a cosmogonia 15. A morte de iniciação e as trevas místicas têm assim uma valência cosmológica: reintegra-se o estado primário, o estado germinal da matéria, e a «ressurreição» correspende à criação cósmica. Para utilizar a terminologia moderna, a morte de iniciação dissolve a Criação e a História, libera de todos os fracassos e «pecados»; ao final das contas, do desgaste inseparável da condição humana.
Desde este ponto de vista, o alquimista não fazia nenhuma inovação: ao procurar a matéria prima procurava a redução das substâncias ao estado pré-cosmológico. Sabia que não podia obter a transmutação partindo de formas já «gastas» pelo Tempo; havia, pois, que «dissolver» estas «formas». No contexto da iniciação, a «dissolução» significava que o futuro «místico» morria a sua existência profana, gasta, decaída. Que a Noite cósmica tinha sido assimilada à Morte (= trevas) tanto como à volta ad uterum é algo que se desprende tanto da história das religiões como dos textos alquímicos já citados. Os alquimistas ocidentais integraram seu simbolismo na teologia cristã: a «morte» da matéria era santificada pela morte de Cristo, que assim assegurava sua redenção. C. G. Jung estabeleceu com brilhantismo o paralelismo Cristo-Pedra Filosofal e a audaz teologia que isso implica 16.

NOTAS
1 Veja-se exemplos em C. G. Jung: Psychologie und Alchemie, páginas 442 e ss.
2 Veja-se John Read: Prelude to Chemistry, p. 132. Sobre a aqua permanens, vejam-se os textos citados por
Jung, op. cit., página 320.
3 Texto citado por R. D. Gray: Goethe the Alchemist, Cambridge, 1952, p. 14
4 G. Starkey: Rípley Reviv'd, Londres, 1678, p. 3, citado por Gray, Goethe..., p. 16.
5 Veja-se John Read: Prelude..., p. 137.
6 Et in che l'oro si vogli metiere in opra é necessario che si riduchi in sperma. Texto citado e reproduzido por G.
Carbonelli: Sulle fonti storiche della chimica e dell' alchimia in Italia, Roma, 1925, p. 7.
7 Dorn, Physica Trimegisti («Theatrum Chemícum», vol. I, Ursellis, 1602, pp. 405-437), p. 430; citado por
Jung, Psychologie und Alch'emie, p. 325, n. 1.
8 Citado por Gray, Goethe the Alchemist, p. 31.
9 Veja-se a carta de John Pordage (1601-1681) relativa à opus, e dirigida a sua sóror mystica Jane Leade,
reproduzida por C. G. Jung em Die Psychologie der Uebertragung (utilizamos a tradução inglesa,
«Psychology of the transference», em The Practice of Psychoth'erapy, Nova York, 1959; vejam-se pp. 295 e
ss.).
10 Citado por Gray, Goethe the Alchemist, pp. 32, 268. Foi Fraulein von Klettenberg quem, em 1768,
emprestou ao jovem Goethe à leitura de Opus Mago-Cabbalisticum; porém Goethe achou o livro «obscuro
e incompreensível»; veja-se Gray, p. 4. Embora seja certo que leu o apêndice (veja-se ibíd., p. 31) e o
simbolismo alquímico do «retorno da mãe» aparece na produção poética posterior de Goethe; veja-se
Gray, pp. 202 e ss. Pode ver-se também Alexander von Bernus, Alchymie und Heilkunst, páginas 165 e ss.
Sobre o simbolismo em Goethe de Gang zu den Muettern, veja-se M. Eliade, Mitul Reintegrara (Bucareste,
1942), pp. 16 e ss.
11 Maier, Symbola aureae tnensae duodecim nationum (Frankfurt, 1617), p. 344; citado por Jung, Psychologie und
Alchemie, página 453, n.1. Veja-se também J. Evola, La tradizione ermetica, pp. 78 e ss. (o incesto filosofal).
12 Rosarium Philosophorum (Artis Auriferae, I, p. 384), p. 246; citado por Jung, o. c, p. 459, n. 1. Al ser Beya
a irmã de Gabricus, a desaparição no útero conserva, também neste caso, o valor simbólico do «incesto
filosófico». Sobre este tema pode ver-se também C. H. Tosten, William Backhouse of Swallowfield
(«Ambix», IV, 1949, pp. 1-33), pp. 13-14.
13 R. D. Gray: Goethe the Alchemist, pp. 32-33.
14 J. Evola: La tradiziorie ermetica, pp. 116 e ss. C. G. Jung: Psychologie..., pp. 451 e ss. Id.: The Psychology of
the trans-ference, pp. 256 e ss.
15 Veja-se nosso Mito do eterno retorno, pp. 85 e ss.; veja-se assim como nosso Tratado de la historia de las
religiones, páginas 350 e ss.
16 Veja-se, sobretudo, Psychologie und Alchemie, pp. 469 e ss. Albert-Marie Schmidt apresentava o
paralelismo Cristo-Pedra filosofal com fórmulas especialmente felizes: «Professam a crença de que, para
completar a 'Grande Obra', regeneração da matéria, devem perseguir a regeneração de sua alma. Esta
gnosis toma rapidamente uma forma cristã. O mesmo que, em seu vaso selado, a matéria morre e
ressuscita, perfeita, desejam que sua alma, ao sucumbir à morte mística, renasça para alcançar, no seio
da Divinidade, uma existência extática. Alardeiam de conformar-se em todo o exemplo de Cristo, que,
para vencer à muerte, teve que sofrer, ou melhor que aceitar, sua espera. Desta forma, para eles, a
imitação de Cristo não só é um método de vida espiritual, como também um meio para regular o
desenvolvimento das operações materiais das quais derivará o magistério. A célebre parábola
evangélica: se o grão não morre, se aplica, ao mesmo tempo, para a matéria e para a alma. O mesmo
vitalismo oculto estimula a graça de Deus, uma e outra.» (La Poésie scientifirjue en Trance au XVIe siécle, p.
319.) Veja-se também J. Evola, La tradizione 'ermetica, pp. 168 v ss.



(Mircea Eliade - FERREIROS E ALQUIMISTAS)

publicado às 19:11

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