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As perguntas do Papa Francisco. 2

por Thynus, em 30.11.13

Embora sensível ao raciocínio de Vasco Pulido Valente, que, reflectindo, no "Público", sobre os caminhos que ficam para o Papa Francisco, concluía: "Apesar da sua imensa popularidade, e mesmo por causa dela, Francisco acabou numa velha armadilha, em que esbraceja em vão. O inquérito não o ajudará.", não creio que, desde que superemos a análise sociopolítica e nos coloquemos na perspectiva cristã, que é a sua, Francisco tenha caído numa armadilha.
Então, qual é o maior problema de Francisco? Ele é um cristão convicto. O que o move é o Evangelho enquanto notícia felicitante da parte de Deus para todos. Assim, o seu problema é que todos se convertam realmente ao Evangelho, começando pelos cardeais, continuando nos bispos e nos padres e acabando nos católicos, que devem converter-se a cristãos.
Neste sentido, não se trata de mudar o essencial da doutrina, mas de ir ao decisivo do Evangelho. Ora, o núcleo do Evangelho são as pessoas, dignas de respeito e atenção. É, pois, preciso continuar a anunciar o ideal do matrimónio cristão, mas, depois, atender às pessoas, às suas necessidades e feridas. Para isso, Francisco conta com a mediação da sensibilidade pastoral dos bispos e dos padres e dos cristãos em geral, que asseguram no concreto a aplicação do ideal.
Por outro lado, não se deve esquecer que Francisco tem uma dupla origem. Ele é ao mesmo tempo "franciscano", e, assim, humilde e próximo das pessoas, e jesuíta, portanto, com toda uma formação de procura da eficácia. Ele crê na "Igreja Povo de Deus", que é também a "santa Igreja hierárquica". Por isso, sabe consultar, no quadro de uma adelfocracia (governo de irmãos), mas também sabe que, em última instância, é a ele que compete decidir, com os outros bispos e em Igreja. Neste quadro, deixei aqui na semana passada o que me parece expectável como resultado deste inquérito, passando agora a algumas perspectivas de teor mais pessoal.
É claro que a família é uma instituição essencial, indispensável, enquanto espaço de comunhão, partilha de afectos, valorização e realização pessoal e educação das crianças. A família é a célula de base da sociedade. Mas também é claro que a pastoral familiar não pode continuar a centrar-se num catálogo de proibições e pecados, na proibição dos anticonceptivos e das relações sexuais pré-matrimoniais. O próprio Francisco já preveniu que não se pode viver obcecado com o rigorismo e o legalismo; de outro modo, "mesmo o edifício moral da Igreja corre o risco de cair como um castelo de cartas". É evidente que não vale tudo, mas a Igreja tem de reconhecer que tem tido enorme dificuldade em falar pela positiva das questões ligadas à família e ao sexo. O seu discurso nestas matérias tem de centrar-se na dignidade, liberdade, respeito e responsabilidade. Isto também significa que a valorização que se faz da família cristã não tem de ser acompanhada de ataques a outros tipos de realização e vivência de família.
Se o Papa reconhece que há também a tendência homossexual, pergunta-se se não se deve caminhar no sentido do reconhecimento do direito de actividade sexual no mesmo quadro de exigências dos heterossexuais. A adopção é diferente, pois o debate continua, mesmo entre especialistas. Embora Francisco, quando arcebispo de Buenos Aires, tenha aprovado que um casal gay adoptasse uma criança, o que significa, mais uma vez, a dialéctica entre os princípios e as pessoas na sua situação concreta.
Quanto à paternidade e maternidade responsáveis, é urgente perceber que a moral é autónoma, pertencendo, portanto, as decisões neste domínio às pessoas e aos casais, dentro da liberdade na responsabilidade.
No caso dos divorciados que voltam a casar, é claro que se exige celeridade nos processos de declaração de nulidade no casamento. Mas pergunta-se se não será necessário ir mais longe e, atendendo à fragilidade humana, invocar, como a Igreja cristã ortodoxa, o princípio da misericórdia, dando a possibilidade de outra oportunidade. Seja como for, não se pode pedir aos divorciados recasados que continuem no seu empenhamento na Igreja, mas impedindo-os da comunhão.

(Anselmo Borges)

publicado às 13:49

 

Na pós-modernidade, a utopia dos mercados livres e da globalização torna-se a referência. Mas o efêmero, o vazio, o simulacro, a complexidade e a crise flutuam como nuvens escuras. Sente-se um mundo fragmentado, seu sentido se perdendo nessas fraturas, com múltiplos significados, orientações e paradoxos.
Ciência e técnica juntas não param de surpreender e revolucionar. Mas essa ciência vencedora começa a admitir que seus efeitos possam ser perversos. Ela é simultaneamente hegemônica e precária. Tudo se passa como se o ato de saber se tornasse cada vez mais obscuro. A instituição religiosa se enfraquece, os deuses se distanciam e se apagam, o indivíduo se encontra mais livre para negociar suas crenças. Como lembra Georges Balandier, essa nova fé sem compromissos pode levar o indivíduo a crer em qualquer coisa, multiplicar os objetos sobre os quais se fixa e, assim, fetichizar o mundo com poderes obscuros. O paradoxo está em toda a parte. A capacidade de produzir mais e melhor não cessa de crescer. Paciência que tal progresso traga consigo regressões, desemprego, exclusão, pauperização, subdesenvolvimento. A distribuição de renda piora, a exclusão social aumenta, o trabalho se torna mais precário nesse mundo de poder, produção e mercadoria. As tecnologias da informação encolhem o espaço. As diversas "teles" anulam distâncias, desmaterializando os encontros. O espaço já não é mais obstáculo, mas alguma coisa desaparece nesses buracos negros que se tornaram lugares onde nada fica e onde as pessoas estão sempre separadas. Com o estabelecimento da era visual e a proliferação das imagens, tudo parece estar progressivamente em estado de transparência. As escritas brilhantes, as telas e luminescências, tudo aparenta ser mais obscuro, ainda que paradoxalmente mergulhado em luz. De um lado, nada mais parece impossível; o mundo da performance cultua o otimismo. De outro, cresce o sentimento de impotência diante dos impasses, da instabilidade, da precariedade das conquistas. A opacidade do futuro parece impenetrável. Encantamento e desilusão se alternam.
Algumas reflexões de Friedrich Nietzsche aplicadas ao final do século XIX parecem expressar as mesmas angústias vividas na pós-modernidade. A incerteza é a regra; nada está sobre pés firmes e crença sólida: "Resta a convicção de que toda fé, todo julgar verdadeiro é necessariamente falso. Não há nada a fazer com a verdade". Também não há nada a fazer com a moral; ela anuncia princípios éticos, mas a ação não se orienta por eles. Afirma-se o niilismo, a fé na absoluta falta de valores e de sentido. Ou então revive-se com pleno ardor simulacros, deuses-atores, agentes de um messianismo vulgar, a religião espetáculo e diversão. Os deuses que temos conseguido criar são pérfidos simulacros daqueles em que "O insensato", de Nietzsche, afirmava termos a obrigação de nos transformar para sermos dignos da enorme responsabilidade de tê-los matado. Assim como o homem do fim do século XIX, aquele que inicia o século XXI também se sente sem rumo. Para onde conduzirá o seu caminho? Não estará ele também em uma corda sobre o abismo, atada entre o animal e o super-homem? É preciso, com Nietzsche, romper as amarras nessa alternância, empreender a exploração incansável dos espaços desconhecidos onde a pósmodernidade encerra os homens deste tempo. Novos instrumentos intelectuais, ainda não disponíveis, são necessários para traçar esses caminhos sem temer o mergulho profundo nas incertezas e dúvidas, mas sem se deixar levar pelas armadilhas e maravilhas apontadas pelos futurólogos deslumbrados. No mundo global, os poderes que atuam sobre o destino individual estão mal identificados, ocultos pelas redes multinacionais e pelas grandes organizações internacionais. Esse mundo-espetáculo no qual as vedetes são as figuras do ganhador, do ostentador — e seus palcos eletrônicos —, mitifica o fugaz e o frágil. A comunicação e as mídias, os comunicadores e os publicitários, selecionam as imagens daquilo que querem que o mundo venha a ser, especialmente ornadas de artifícios sedutores e, por isso mesmo, mais vulneráveis. Quando Guy Debord publicou O Estado espetáculo, um ano antes do movimento de maio de 1968, sua contundente análise acabou antecipando uma face fundamental do capitalismo no século XXI. Com a tecnologia da informação, nunca a tirania das imagens e a submissão ao império das mídias foram tão fortes. Os profissionais do espetáculo ocuparam grande parte da cena e do poder. Durante a Revolução Industrial, a mercadoria apareceu como a grande força que veio ocupar a cena social. Segundo Debord, é então que se constitui a economia política como ciência dominante e como ciência da dominação. O espetáculo passa a ser o momento em que a mercadoria ocupa totalmente os espaços; a produção econômica moderna espalha, extensa e intensamente, sua ditadura; e a vida social é invadida pela superposição contínua de camadas de mercadorias. Nesse ponto da Segunda Revolução Industrial, o consumo alienado torna-se para as massas um dever suplementar à produção alienada, um verdadeiro instrumento de busca da felicidade, um fim em si mesmo.
De fato, a vida nas sociedades contemporâneas se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente torna-se uma representação. Sob todas as suas formas particulares — informação ou propaganda, publicidade ou consumo de divertimentos — o espetáculo constitui o modelo atual da vida dominante na sociedade. A primeira fase da dominação da economia sobre a vida social acarretou uma degradação do "ser" para o "ter". Em seguida, operou-se um deslizamento generalizado do "ter" para o "parecer-ter". Na atual situação das grandes massas excluídas da sociedade global só resta o "identificar-se-com-quem-parece-ser-ou-ter" por meio do espetáculo, sequer ao vivo, mas "visto a-distância" através das mídias globais que lhes oferecem exibições instantâneas de todos os tipos e partes do mundo.
Debord considera o espetáculo o herdeiro da grande fraqueza do projeto filosófico ocidental. Segundo ele, como a filosofia jamais conseguiu superar a teologia, o espetáculo é a reconstrução material da fantasia religiosa, a realização técnica do exílio, a cisão consumada do interior do homem. O espetáculo funciona "quase como uma forma de reconstrução material da ilusão religiosa. Ela já não remete para o céu, mas abriga dentro de si sua recusa absoluta, seu paraíso ilusório. Do automóvel à televisão, todos os bens selecionados pelo sistema espetacular são também suas armas para um reforço constante das condições de isolamento das multidões solitárias" (p.19 e 23). No espetáculo, global e instantâneo, virtual e real, tudo se confunde por meio de processos de identificação. Programas de auditório substituem os tribunais, propiciando julgamentos e processos públicos de conciliação; e garantem, como na loteria a esperança do resgate da exclusão pela visualização do prêmio do outro, ou o sonho do seu fugaz minuto de glória. Debord afirma que "a alienação do espectador em favor do objeto contemplado se expressa assim: quanto mais ele contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos compreende sua própria existência e seu próprio desejo. Em relação ao homem que age, a exterioridade do espetáculo aparece no fato de seus próprios gestos já não serem seus, mas de um outro que os representa por ele. É por isso que o espectador não se sente em casa em nenhum lugar, pois o espetáculo está em toda parte" (p.25).
As novas tecnologias geram produtos de consumo radicalmente novos. Ondas de entusiasmo, apoiadas e lançadas por todos os meios de comunicação, propagam-se instantaneamente. O telefone celular e a internet, símbolos da interconectividade, passam a ser condição de felicidade. O homem volta a ser rei exibindo a sua intimidade com a mercadoria ou identificando-se com os novos ícones, os heróis da mídia eletrônica transformados eles mesmos em mercadoria ou identificados com marcas globais. Essa relação atinge momentos de excitação fervorosa, de transe religioso e de submissão, como o observar encantado do brilho intenso e das propriedades mágicas de um celular ou de um herói da TV.
O quadro se torna mais complexo porque, como lembra Joel Birman, vivemos hoje um mundo em que a performance define o lugar social de cada um. O sujeito da pós-modernidade é "performático", vive só o momento, está voltado para o gozo a curto prazo e a qualquer preço, é o "sujeito perverso" clássico. A perversão não é mais um desvio, como na modernidade, mas a regra. As grandes doenças estudadas pela psiquiatria hoje são aquelas em que a performance falha: a depressão (o sujeito trancado em si mesmo) e a síndrome do pânico (o sujeito que não consegue estar num contexto em que a exibição de sua performance é requerida). A produção de medicamentos vem para revertêlas. As drogas, oficiais ou ilegais, oferecem a possibilidade de as pessoas voltarem a ter uma boa performance. Daí também a relação sutil existente hoje entre o narcotráfico e a psiquiatria: ambos tentam dominar o desamparo com a ajuda de drogas. Esse é o universo da satisfação imediata, que reduz a importância dada àquilo que toma tempo e a aceitação dos sacrifícios que isso impõe.
A salvação a longo prazo e incerta governa menos o curso das vidas individuais. A satisfação levada ao seu grau máximo, validada por um discurso ideológico travestido de filosófico, é a certeza de que a democracia — conjugada ao liberalismo e ao mercado — definitivamente triunfou. O reconhecimento da democracia liberal como o regime que oferece as maiores possibilidades ao cidadão e ao ator social é neste momento amplamente aceito. Mas, para Balandier, "atrás da alternativa da universalização do modelo democrático se escondem o mercado mundial e seus focos de poder tecnoeconômico, atrás da proclamação das vitórias da racionalidade se escondem o instrumento e o poder primeiro da técnica, os interesses particulares e a razão calculista; atrás da liquidação das ideologias consideradas em fase terminal esconde-se o recuo da política em proveito da economia e da competição que a dinamiza" (p.23). Proclama-se que algumas sociedades chegaram a um estágio de mínima imperfeição, jamais atingido fora delas e agora desejado por todas as outras. É o mito dos futuros que cantam, renascendo qual uma fênix das ruínas do marxismo político, mas longe dele e contra ele.
Na verdade, em meio às turbulências pelas quais passam as sociedades contemporâneas, duas esperanças parecem acalentar os sonhos dos homens. A primeira é que a sobrevivência da humanidade como espécie esteja garantida. A segunda, de que em algum momento do futuro uma parte razoável dos seres humanos possa atingir uma qualidade de vida semelhante ao atual padrão do cidadão médio norte-americano ou europeu. É preciso ter claro que não há nenhuma segurança sobre essas hipóteses. A primeira dependerá de um enorme esforço conjunto de toda a raça humana. A segunda tem toda a chance de ser uma falsa premissa.
Cientistas renomados fazem-nos graves advertências sobre a maneira como estamos conduzindo nossos caminhos. Ao mesmo tempo, eles nos delegam responsabilidades brutais. O filósofo Daniel Dennett acha quase certo não sermos a espécie do planeta com maior chance de sobreviver. Perdemos para as baratas e as criaturas mais simples. Possuímos uma grande vantagem: a condição de olhar à frente e planejar. No entanto, apesar — e por causa — de todo o avanço tecnológico de que fomos capazes, caminhamos em direção a uma barreira de escassez, não de minérios ou energia, mas de água e alimentos. O sociobiologista Edward O. Wilson lembra que transformamo-nos na primeira espécie a se tornar uma força geofísica, capaz de alterar o clima da Terra; e que temos sido os maiores destruidores de vida desde o meteorito que caiu perto de Iucatã há 65 milhões de anos e encerrou o ciclo dos grandes répteis. Com a superpopulação e o atual estilo de desenvolvimento, corremos o risco de esgotar nossas reservas naturais — inclusive de água doce — e eliminar para sempre numerosas espécies vegetais e animais. Ele nos compara a uma família que dissipa irrefletidamente seu parco patrimônio e que depende cada vez mais de novos conhecimentos para se manter viva. De fato, se hipoteticamente retiramos a eletricidade de uma tribo de aborígenes australianos, quase nada acontecerá. Se o fizermos aos moradores da Califórnia, milhões morrerão.
Wilson adverte que a maior parte da pressão destruidora sobre o nosso ecossistema vem de um pequeno número de países desenvolvidos. No entanto, suas fórmulas de prosperidade estão sendo vivamente adotadas como objetivo pelo resto do mundo, o que conduz a uma impossibilidade matemática. Elevar ao nível médio norte-americano a qualidade de vida da população atual da Terra já exigiria os recursos naturais de mais dois planetas iguais ao nosso. Nos mesmos níveis de consumo e desperdício, mesmo que apenas uma parte das nações fosse bem-sucedida nesse intento, o choque ambiental decorrente liquidaria a vida humana. Ainda assim, os eternos otimistas nos tranqüilizam: a vida está melhorando, continuamos crescendo; não nos preocupemos com o próximo ano, sempre foi possível dar um jeito. Wilson sugere que façamos ouvidos moucos a esses otimistas e pede muito cuidado. Cada avanço tecnológico é uma espécie de prótese artificial, dependente de avançado know-how e intensa administração mas, o que é mais importante, introduzindo seus riscos a longo prazo.
É curioso como nossa maravilhosa capacidade de previsão tem evoluído menos que nosso arsenal destrutivo e nossas aspirações de consumo. O homem primitivo dava-se por satisfeito ao voltar para a caverna com algum alimento para sua família e por ter sobrevivido mais um dia. Hoje, tentamos planejar a longo prazo: mas é difícil avaliar as conseqüências de nossas ações para mais de duas gerações. É o caso da degradação do meio ambiente. Ao cortarmos uma árvore da floresta tropical, raramente assumimos que nossos bisnetos poderão encontrar lá um deserto. E, embora saibamos ter de preservar a velha mãe-Terra, o único lar capaz de sustentar a vida, continuamos a destruir seus frágeis ecossistemas naturais, envenenar as águas e poluir o ar com o uso irresponsável da tecnologia.
O paleontólogo Stephan J. Gould lembra que não pedimos para desempenhar esse papel, podemos nem ser talhados para ele mas não temos saída. A existência humana dependerá de sermos capazes de estabelecer contratos de longo prazo com nosso futuro. Se destruirmos frágeis equilíbrios em nome do que chamamos progresso, nem nós sobraremos. A esse respeito é sempre oportuno relembrar o alerta de Walter Benjamin, mergulhado nas angústias do desastre da Segunda Guerra: "Uma pintura de Klee mostra um anjo prestes a se afastar de algo que está olhando com grande concentração. Seus olhos estão fixos diante de si, escancarados, a boca aberta, as asas prontas para o vôo. É assim que se pode imaginar o anjo da história. Seu rosto está voltado para o passado e onde nós vemos uma cadeia de eventos ele percebe uma catástrofe única que acumula, sem cessar, destroços sobre destroços e os atira a seus pés. Talvez o anjo desejasse ficar, acordar os mortos, consertar o que foi arruinado. Mas uma tempestade está sendo soprada do Paraíso; pegou suas asas tão violentamente que o anjo não as consegue mais fechar. A tempestade o suga para trás, para o futuro, enquanto os destroços se acumulam em direção aos céus, diante de seus olhos. Essa tempestade chama-se progresso".

(Gilberto Dupas - Ética e Poder na Sociedade de Informação)

publicado às 15:22

 

Observava o grande conhecedor dos meandros da psiqué humana C.G. Jung: a viagem rumo ao próprio Centro, ao coração, pode ser mais perigosa e longa do que a viagem à lua. No interior humano habitam anjos e demônios, tendências que podem levar à loucura e à morte e energias que conduzem ao êxtase  e à comunhão com o Todo.
Há uma questão nunca resolvida entre os pensadores da condição humana: qual é a estrutura de base do ser humano? Muitas são as escolas de intérpretes. Não é o caso de sumariá-las.
Indo diretamente ao assuto diria que não é a razão como comumente se afirma. Esta não irrompe como primeira. Ela remete a dimensões mais primitivas de nossa realidade humana das quais se alimenta e que a  perpassam em todas as suas expressões. A razão pura kantiana é uma ilusão. A razão sempre vem impregnada de emoção, de paixão e de interesse. Conhecer é sempre um entrar em comunhão interessada e afetiva com o objeto do conhecimento.
Mais que idéias e visões de mundo, são paixões, sentimentos fortes, experiências seminais que nos movem e nos põem marcha. Eles nos levantam, nos fazem arrostar perigos e até arriscar a própria vida.
O primeiro parece ser a inteligência cordial, sensível e emocional. Suas bases biológicas são as mais ancestrais, ligadas ao  surgimento da vida, há 3,8 bilhões de anos, quando as primeiras bactérias irromperam no cenário da evolução e começaram a dialogar quimicamente com o meio para poder sobreviver. Esse processo se aprofundou a partir do momento em que, há milhões de anos, surgiu o cérebro límbico dos mamíferos, cérebro portador de cuidado, enternecimento, carinho e amor pela cria, gestada no seio desta espécie nova de animais, à qual nós humanos também pertencemos. Em nós ele alcançou o patamar autoconsciente e inteligente, Todos nós esamos  vinculados a esta tradição primeva.
O pensamento ocidental, logocêntrico e antropocêntrico, colocou o afeto sob suspeita, com o pretexto de prejudicar a objetividade do conhecimento. Houve um excesso, o racionalismo, que chegou a produzir em alguns setores da cultura, uma espécie de lobotomia, quer dizer, uma completa insensibilidade face ao sofrimento humano e dos demais seres e da própria Mãe Terra. O Papa Francisco em Lampedusa face aos imigrados africanos criticou a globalização da insensibilidade, incapaz de se compadeer e de chorar.
Mas, podemos dizer que a partir do romantismo europeu (com Herder, Goethe e outros) se começou resgatar a inteligência sensível. O romantismo é mais que uma escola literária. É um sentimento do mundo, de pertença à natureza e da integração dos seres humanos na grande cadeia da vida (Löwy e Sayre, Revolta e melancolia, 28-50).
Modernamente o afeto, o sentimento e a paixão (pathos) ganharam centralidade. Esse passo é hoje imperativo, pois somente com a razão (logos) não damos conta das graves crises por que passa a vida, a Humanidade e  a Terra. A razão intelectual  precisa integrar a inteligência emoconal sem o que não construíremos uma realidade social integrada e de rosto humano. Não se chega ao coração do coração sem passar pelo afeto e pelo amor.
Um dado entretanto, cabe ressaltar entre outros importantes, por sua relevância e pela alta tradição de que goza: é a estrutura do desejo  que marca a psiqué humana.         Partindo de Aristótles, passando por Santo Agostinho e pelos medievais como  São Boaventura( chama a São Francisco de vir desideriorum, um homem de desejos), por Schleiermacher, Max Scheler nos tempos modernos e culminando em Sigmund Freud, Ernst Bloch e René Girard nos tempos mais recentes, todos afirmam a centralidade da estrutura do desejo.
O desejo não é um impulso qualquer. É um motor que dinamiza e põe em marcha toda a vida psíquica. Ele funciona como um princípio, traduzido tambem pelo  filósofo Ernst Bloch por princípio esperança.  Por sua natureza, o desejo é infinito e confere o caráter infinito ao projeto humano.
O  desejo torna dramática e, por vezes, trágica a existência. Mas também, quando realizado, uma felicidade sem igual. Por outro lado, produz grave desilusão quando o ser humano identifica uma realidade finita como sendo o objeto infinito desejado. Pode ser a pessoa amada, uma profissão sempre ansiada, uma propriedade, uma viagem pelo mundo ou uma nova marca de celular.
Não passa muito tempo e aquelas realidades desejadas lhe parecem ilusórias e apenas fazem aumentar o vazio interior, grande do tamanho de Deus. Como sair deste impasse tentando equacionar o infinito do desejo com o finito de toda realidade? Vagar de um objeto a outro, sem nunca encontrar repouso? O ser humano tem que se colocar seriamente a questão: qual é o verdadeiro e obscuro objeto de seu desejo? Ouso responder: este é o Ser e não o ente, é o Todo e não a parte, é o Infinito e não o finito.
Depois de muito peregrinar, o ser humano é levado a fazer a experiência do cor inquietum  de  Santo Agostinho, o incansável homem do desejo e o infatigável  peregrino do Infinito. Em sua autobiografia,  As Confissões  testemunha com comovido sentimento:
Tarde  te amei,  ó Beleza tão antiga e tão nova.Tarde  te amei.Tu me tocaste e eu ardo de desejo de tua paz. Meu coração inquieto não descansa enquanto não respousar em ti (livro X, n.27).
Aqui temos  descrito o percurso do desejo que busca e encontra  o seu obscuro objeto sempre desejado, no sono e na vigíla. Só o Infinito se adequa ao desejo infinito do ser humano. Só então termina a viagem rumo ao coração e começa o sábado do descanso  humano e divino.

Leonardo Boff é teólogo e filósofo e escreveu Tempo de Transcendência: o ser humano como  projeto infinito,  Vozes 2002.

publicado às 11:57


As perguntas do Papa Francisco. I

por Thynus, em 24.11.13

É normal, antes de cada Sínodo dos Bispos, auscultar os diferentes episcopados sobre a problemática a debater. Mas, desta vez, foi diferente, de tal modo que os media mundiais deram e dão imenso relevo ao tema. Que se passa?
Por um lado, o Papa Francisco não dirige o seu inquérito apenas aos cardeais, bispos, padres. Ele quer que todos sejam ouvidos, que o inquérito chegue às bases, pois, como constantemente acentua, a Igreja somos nós todos. Ele tem uma visão da Igreja enquanto um Nós, Povo de Deus. Por isso, não mantém uma concepção vertical de governo da Igreja, mas sinodal (a palavra é rica, quando se atende ao étimo grego: reunião, caminhar juntos, fazer juntos o caminho). No fim, será ele, em última instância, a decidir, mas sinodalmente, não separado dos outros bispos nem dos fiéis.
Por outro lado, sendo a próxima Assembleia do Sínodo sobre a família, Francisco quer saber o que pensam os católicos sobre esse tema fundamental e decisivo, sem ocultar as questões, mesmo que difíceis e fracturantes.
Assim, quer saber o que é que os católicos sabem da concepção da Igreja sobre a família e se essa doutrina é aceite. Que é que se pensa sobre o fundamento natural da família? Aceita-se o conceito de lei natural com relação à união entre o homem e a mulher? Como enfrentar os desafios que se colocam no caso de não praticantes ou não crentes pedirem o matrimónio? Que caminhos pastorais se tem seguido na preparação dos casamentos, no sentido da oração em família e transmissão da fé às novas gerações pelas famílias, e em relação a casais em crise?
Francisco não ignora situações matrimoniais difíceis. Por exemplo, a convivência experimental, uniões livres de facto. Como vivem os baptizados as suas irregularidades? São conscientes delas, manifestam indiferença, vivem com sofrimento a impossibilidade de receber os sacramentos? Quantas são as pessoas divorciadas e recasadas e que pedem os sacramentos da eucaristia e da reconciliação? A simplificação do processo de declaração de nulidade do vínculo matrimonial poderia ajudar nestes casos? Que pastoral existe para estas situações?
O Papa também quer saber se no respectivo país há uma lei civil que reconhece as uniões de pessoas do mesmo sexo equiparadas ao casamento. Que pastoral para as pessoas que escolheram viver segundo este tipo de uniões? Se adoptaram crianças, como comportar-se em ordem à transmissão da fé? Em geral: no quadro de situações matrimoniais irregulares, com que atitude se dirigem os pais à Igreja no sentido da educação religiosa dos filhos e que prática sacramental existe nestes casos?
Quanto à abertura dos esposos à vida: que conhecimento têm da doutrina oficial da Igreja sobre a paternidade responsável e que avaliação fazem dos diferentes métodos de regulação dos nascimentos? Que métodos naturais promove a Igreja? Que consequências tem a prática dos anticonceptivos na participação dos sacramentos, nomeadamente, na eucaristia? Como favorecer o aumento dos nascimentos? A família é um lugar privilegiado para o encontro com Cristo?
A pergunta, agora, é como procederão as Conferências Episcopais para que todos os interessados possam participar. Por exemplo, entre nós, teoricamente há pelo menos cinco milhões de católicos que poderão responder. Quem e como vai fazê-lo, para que haja na Igreja uma tomada de consciência real do que se passa?
Só dentro de dois anos saberemos as resoluções que Francisco tomará. Mas não é impossível antecipar linhas de orientação - no próximo sábado, apresentarei as minhas respostas pessoais. 1. Evidentemente, a Igreja continuará a afirmar o seu ideal de matrimónio: uma união definitiva e fiel de amor entre um homem e uma mulher, aberta à procriação. 2. Nenhuma criança será discriminada, seja qual for a sua origem. 3. Alguma abertura aos anticonceptivos, com a revisão da Humanae Vitae. 4. Admissão dos recasados, dentro de certas regras, à comunhão. 5. Maior compreensão e acolhimento dos homossexuais, mas sem admissão institucional ao casamento e à adopção.

(Anselmo Borges)

publicado às 00:12

 

Há  negacionistas da Shoah (eliminação de milhões de judeus nos campos nazistas de extermínio) e há negacionistas das mudanças climáticas da Terra. O primeiros recebem o desdém de toda a humanidade. Os segundos, que até há pouco sorriam cinicamente, agora veem dia a dia suas convicções sendo refutadas pelos fatos inegáveis. Só se mantem coagindo cientistas para não dizerem tudo o que sabem como foi denunciado por diferentes e sérios meios alternativos de comunição. É a razão ensandecida que busca a acumulação de riqueza sem qualquer outra consideração.
Em tempos recentes temos conhecido eventos extremos da maior gravidade: Katrina e Sandy nos USA, tufões terríveis no Paquistão e em Bengladesh, o tsunami no Sudeste da Ásia e o tufão  no Japão que perigosamente danificou as usinas nucleares em Fukushina e ultimamente o avassalador tufão Haiyan nas Filipinas com milhares de vítimas.
Sabe-se hoje que a tempertura do Pacífico tropical, de onde nascem os principais tufões, ficava normalmente abaixo de 19,2ºC. As águas marítimas foram aquecendo a ponto de a partir de 1976 ficarem por volta de 25ºC e a partir de 1997/1998 alcançaram 30ºC. Tal fato produz grande evaporação de água. Os eventos extremos ocorrem a partir de 26ªC. Com o aquecimento, os tufões estão acontecendo com cada vez mais frequência e maior velocidade. Em 1951 eram de 240 km/h; em 1960-1980 subiram para 275 km/h; em 2006 chegaram a 306 km/h e em 2013 aos terrificantes 380 km/h.
Nos últimos meses quatro relatórios oficiais de organismos ligados a ONU lançaram veemente alerta sobre as graves consequência do crescente aquecimento global. Com 90% de certeza é comprovadamente provocado pela atividade irresponsável dos seres humanos e dos países industrializados.
Em setembro o IPPC que articula mais de mil cientistas o confirmou; o mesmo o fez o Programa do Meio Ambiente da ONU (PNUMA); em seguida o Relatório Internacional do Estado dos Oceanos denunciando o aumento da acidez  que por isso absorve menos C02; finalmente em 13 de novembro em Genebra a Organização Meteorológica Mundial. Todos são unânimes em afirmar que não estamos indo ao encontro do aquecimento global: já estamos dentro dele. Se nos inícios da revolução industrial o CO2 era de 280 ppm (parte de um milhão), em 1990 elevou-se a 350 ppm e hoje chegou a 450 ppm. Neste ano noticiou-se que em algumas partes do planeta já se rompeu a barreira dos 2ºC o que pode acarretar danos irreversíveis para os seres vivos.
Poucas semanas atrás, a Secretária Executiva da Convenção do Clima da ONU, Christina Figueres, em plena entrevista coletiva, desatou em choro incontido por denunciar que os países quase nada fazem para a adaptação e a mitigação do aquecimento global. Yeb Sano das Filipinas, na 19ª Convenção do Clima em Varsóvia ocorrida entre 11-22 de novembro, chorou diante de represenantes de 190 países contando o horror do tufão que dizimou seu pais, atingindo sua própria família. A maioria não pode conter as lágrimas. Mas para muitos eram lágrimas de crocodilo. Os representantes já trazem no bolso as instruções previamente tomadas por seus governos e os grandes dificultam por muitos modos qualquer consenso. Lá estão também os donos do poder no mundo, donos das minas de carvão,  muitos acionistas de petrolíferas ou de siderurgias movidas a carvão, as montadoras e outros. Todos querem que as coisas continueam como estão. É o que de pior nos pode acontecer, porque então o caminho para o abismo se torna mais direto e fatal.Por falta de consenso entre os representantes dos povos, desprezando os dados cienficos, se entende que as centenas ONGs presentes na 19.Convenção sobre o clima em Varsóvia abandonaram as discussões e em protesto foram embora.
Por que essa irracional resistência às mudanças que nos podem salvar?
Respondendo, vamos diretos à questão central: esses caos ecológico é tributado ao nosso modo de produção que devasta a natureza e alimenta a cultura do consumismo ilimitado. Ou mudamos nosso paradigma de relação para com a Terra e para com os bens e serviços naturais ou vamos irrefreavelmente ao encontro do  pior. O paradigma vigente se rege por esta lógica: quanto posso ganhar com o menor investimento possível, no mais curto lapso de tempo, com inovação tecnológica e com maior potência competitiva? A produção é para o puro e simples consumo que gera a acumulação, este, o objetivo principal. A devastação da natureza e o empobrecimento dos ecossistemas aí implicados são meras externaliddes (não  entram na contabilidade empresarial). Como a economia neoliberal se rege estritamente pela competição e não pela cooperação, se estabelece uma guerra de mercados, de todos contra todos. Quem paga a conta  são os seres humanos (injustiça social) e a natureza (injustiça ecológica).
Ocorre que a Terra não aguenta mais este tipo de guerra total contra ela. Ela precisa de um ano e meio para repor o que lhe arrancamos durante um ano. O aquecimento global é a febre que denuncia estar doente e gravemente doente.
Ou começamos a nos sentir parte da natureza e então a respeitamos como a nós mesmos, ou passamos do paradigma da conquista e da dominação para aquele do cuidado e da convivência e produzimos respeitando os ritmos naturais e dentro dos limites de cada ecossistema ou então preparemo-nos para as amargas lições que a Mãe Terra no dará. E não é excluida a possibilidade de que ela já não nos queira mais sobre sua face e se liberte de nós como nos libertamos de uma célula cancerígena. Ela continuará, coberta de cadáveres, mas sem nós. Que Deus não permita semelhante e trágico destino.

Leonardo Boff é autor de Proteger a Terra e cuidar da vida:como escapar do fim do mundo, Record, Rio de Janeiro 2011.

publicado às 00:10


Nas ilhas bem-aventuradas (*)

por Thynus, em 21.11.13

Os figos caem das árvores, são bons e doces; ao caírem, rasga-se a sua pele rubra. Um vento do norte sou eu para os figos maduros.

Assim, como figos vos caem estes ensinamentos, meus amigos: bebei do seu sumo e da sua doce polpa! É outono ao redor, e puro céu e tarde.
Vede a plenitude ao nosso redor! E a partir da abundância é belo olhar para os mares distantes.
Um dia se falou “Deus”, ao olhar para os mares distantes; mas agora vos ensinei a falar: “super-homem”.
Deus é uma conjectura; mas eu quero que vossas conjecturas não excedam vossa vontade criadora.
Podeis criar um deus? — Então não me faleis de deuses! Mas bem poderíeis criar o supra-homem.
Talvez não vós mesmos, irmãos! Mas podeis vos converter em pais e ancestrais do super-homem: e que esta seja a vossa melhor criação! —
Deus é uma conjectura: mas quero que vossas conjecturas se mantenham nos limites do pensável.
Podeis pensar um deus? — Mas que a vontade de verdade signifique isto para vós, que tudo seja transformado em humanamente pensável, humanamente visível, humanamente sensível! Vossos próprios sentidos deveis pensar até o fim!
E o que chamais de Mundo, isso deve ser criado primeiramente por vós: vossa razão, vossa imagem, vossa vontade, vosso amor deve ele próprio se tornar! E, em verdade, para vossa bem-aventurança, homens do conhecimento!
E como queríeis aguentar a vida sem tal esperança, ó homens do conhecimento? Nem no incompreensível nem no irracional poderíeis haver nascido.
Mas, para vos revelar inteiramente meu coração, meus amigos: caso houvesse deuses, como suportaria eu não ser deus? Portanto, não há deuses.
É certo que tirei a conclusão; mas agora ela me arrasta.
Deus é uma conjectura: mas quem beberia todo o tormento dessa conjectura sem morrer? Deve o criador ser privado de sua fé, e a águia, de seu pairar em distâncias aquilinas?
Deus é um pensamento que torna curvo o que é reto e faz girar o que está parado. Como? O tempo não existiria mais e tudo transitório seria apenas mentira?
Pensar isso é turbilhão e vertigem para esqueletos humanos, e também um vômito para o estômago: em verdade, sofrer de tontura é como denomino conjecturar assim.
Chamo isso de mau e inimigo do homem: todos esses ensinamentos sobre o uno, pleno, saciado, imóvel e intransitório!
Tudo intransitório — é apenas símile! E os poetas fingem demais. — Mas os melhores símiles devem falar do tempo e do devir: devem ser louvor e justificação de toda transitoriedade!
Criar — eis a grande libertação do sofrer, e o que torna a vida leve. Mas, para que haja o criador, é necessário sofrimento, e muita transformação.
Sim, é preciso que haja muitos amargos morreres em vossa vida, ó criadores! Assim sereis defensores e justificadores de toda a transitoriedade.
Para ser ele próprio a criança recém-nascida, o criador também deve querer ser a parturiente e a dor da parturiente.
Em verdade, através de cem almas percorri meu caminho, e de cem berços e dores de parto. Muitas vezes me despedi, conheço as pungentes horas finais.
Mas assim quer minha vontade criadora, meu destino. Ou, para dizê-lo mais honestamente: é justamente esse destino — o que deseja minha vontade.
Tudo o que sente sofre comigo e está em cadeias: mas meu querer sempre vem como meu libertador e portador de alegria.
Querer liberta: eis a verdadeira doutrina da vontade e da liberdade — assim Zaratustra a ensina a vós.
Não-mais-querer e não-mais-estimar e não-mais-criar! Ah, fique sempre longe de mim esse grande cansaço!
Também no conhecer sinto apenas o prazer de gerar e vir a ser de minha vontade; e, se há inocência em meu conhecimento, isso ocorre porque há nele vontade de gerar.
Para longe de Deus e dos deuses me atraiu essa vontade; que haveria para criar, se houvesse — deuses!
Mas para o ser humano sempre me impele minha fervorosa vontade de criar; assim o martelo é impelido para a pedra.
Ó humanos, na pedra dorme uma imagem, a imagem de minhas imagens!
Ah, que ela tenha de dormir na mais dura e feia das pedras!
Agora meu martelo investe furiosamente contra a sua prisão. A pedra solta estilhaços; que me importa?
Quero completar isso: pois uma sombra veio até mim — a mais silenciosa e mais leve das coisas veio um dia até mim!
A beleza do super-homem veio até mim como sombra. Ah, meus irmãos!
Que me concernem ainda — os deuses!
Assim falou Zaratustra.

(Nietzsche - Assim falou Zaratustra)

(*) Numa carta a Heinrich Köselitz (por ele denominado “Peter Gast”), Nietzsche se referiu desta forma a Ischia, a ilha próxima de Nápoles, que fora atingida por um terremoto: “Essa ilha sempre esteve comigo: quando você tiver lido Zaratustra II por inteiro, verá claramente onde situei minhas ilhas bemaventuradas” (em 16 de agosto de 1883). Na Antiguidade grega, as “ilhas dos bem-aventurados” eram lugares míticos onde reinava a felicidade: cf. Hesíodo, Os trabalhos e os dias, 166-173; Píndaro, Odes olímpicas, II, 70 ss.; Platão, República, 519c-d.

publicado às 22:34


NIETZSCHE

por Thynus, em 21.11.13

No século XIX , tudo aquilo que Kierkegaard defendeu foi bombasticamente rejeitado pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900). Enquanto para Kierkegaard o prazer estético era a mais baixa forma de existência individual e a abnegação cristã a mais elevada, Nietzsche considerava o Cristianismo o mais baixo aviltamento do ideal humano, que tem a sua mais elevada expressão em valores puramente estéticos.
Depois de uma educação luterana pelas suas piedosas mãe e tias, Nietzsche experimentou um sentimento de libertação quando, na Universidade de Leipzig em 1865, encontrou o ateísmo de Schopenhauer. Daí em diante apresentou-se, consequentemente, como opositor do espírito cristão e da personalidade de Jesus. A sua convicção de que a arte era a mais elevada forma de actividade humana exprimiu-se no seu próprio estilo filosófico, mais poético e aforístico do que argumentativo ou dedutivo. Nomeado com 24 anos para leccionar uma cadeira de filologia em Basel, dedicou o seu primeiro livro, A Origem da Tragédia, a Richard Wagner. Neste livro traça o contraste entre dois aspectos da alma grega: as paixões selvagens irracionais personificadas por Dionísio e a beleza disciplinada e harmoniosa representada por Apolo . A grandeza da cultura grega assenta na síntese dos dois, que foi rompida pelo racionalismo de Sócrates; a Alemanha contemporânea só podia ser salva da decadência que então dominava a Grécia se procurasse a sua salvação em Wagner.
Por volta de 1876, Nietzsche cortou relações com Wagner e perdeu a admiração por Schopenhauer. Em Humano, Demasiado Humano, foi atipicamente simpático para com a moral utilitarista e pareceu valorizar mais a ciência do que a arte. Mas considerava esta fase da sua filosofia como algo que devia ser tirado como a pele de uma cobra. Depois de desistir da sua cátedra em Basel, em 1879, começou uma série de obras que afirmavam o valor da Vida e denunciavam, como elementos hostis à vida, a abnegação cristã, a ética altruísta, a política democrática e o positivismo científico. As mais famosas destas obras foram A Gaia Ciência (1882), Assim Falava Zaratustra (1883 -85), Além do Bem e do Mal (1886) e A Genealogia da Moral (1887). Por volta de 1889 começou a mostrar sinais de loucura, vivendo num isolamento senil até à sua morte em 1900.
Nietzsche pensava que a história exibe duas espécies diferentes de moralidade. Os aristocratas, sentindo que pertencem a uma ordem mais elevada do que os outros, usam palavras como «bem» para se descreverem a si mesmos, aos seus ideais e às suas características: o nascimento nobre, a riqueza, a bravura, a autenticidade e o facto de serem louros. Desprezam os outros como plebeus, vulgares, cobardes, inautênticos e morenos, e designam estas características como «mal». Esta é a moral dos senhores. Os pobres e fracos, com ressentimentos relativamente ao poder dos ricos e aristocratas, erigem o seu próprio sistema contrastante de valores, uma moral de escravos ou de rebanho que premeia traços de carácter como a humildade, a simpatia e a benevolência, que beneficiam os vencidos. Nietzsche chama «transmutação dos valores» ao estabelecimento deste sistema de valores, que atribui aos judeus.

Foram os judeus quem, em oposição à equação aristocrática (bem =
aristocrático = belo = feliz = amado pelos deuses), ousaram, com uma
lógica aterradora, sugerir a equação contrária e cravar de facto os dentes
do mais profundo ódio (o ódio da fraqueza) nesta equação contrária,
nomeadamente «só os desgraçados são bons; só os pobres, os fracos,
os humildes são bons; os que sofrem, os necessitados, os doentes,
os repugnantes são os únicos que são piedosos, os únicos que são abençoados,
a salvação é só para eles — mas vocês, por outro lado, vocês os
aristocratas, vocês os homens de poder, são para toda a eternidade o
mal, o horrível, o avaro, o insaciável, o ímpio; também eternamente
serão os não abençoados, os amaldiçoados, os condenados ao Inferno!"

Nietzsche afirmou que a revolta dos escravos, começada por Jesus, conquistara então a vitória. O ódio judeu triunfou sob a máscara do evangelho cristão do amor. Até mesmo em Roma, em tempos o protótipo da virtude aristocrática, os ho mens se inclinaram diante de quatro judeus: Jesus, Pedro, Paulo e Maria. O homem moderno, em consequência, é um simples anão, que perdeu a vontade de ser verdadeiramente homem. A vulgaridade e a mediocridade tornaram-se norma: só raramente brilha ainda uma incarnação do ideal aristocrático, como em Napoleão .
A oposição entre bem e mal é uma característica da moral dos escravos, agora dominante. Os aristocratas desprezavam o rebanho como mau, mas os escravos, com maior malevolência, condenaram os aristocratas não apenas como maus, mas como demoníacos. Devemos lutar contra a dominação da moral dos escravos: seguir em frente é transcender os limites do bem e do mal, e introduzir uma segunda transmutação dos valores. Se formos capazes de fazer isso, erguer-se-á, como síntese da tese e antítese do senhor e do escravo, o Super-Homem.
O Super-homem será a mais elevada forma de vida. As pessoas começam a aperceber-se, diz Nietzsche, de que o Cristianismo é indigno de crença e de que Deus está morto. O conceito de Deus foi o maior obstáculo à plenitude da vida humana: agora somos livres para exprimir a nossa vontade de viver. Mas a nossa vontade de viver não deve ser tal que, como a de Schopenhauer, favoreça os fracos; deve ser vontade de poder.
A vontade de poder é o segredo de toda a vida; todas as coisas vivas procuram descarregar a sua força, dar o maior alcance às suas capacidades. O conhecimento não é senão o instrumento do poder; não há verdade absoluta, apenas ficções que servem melhor ou pior para fortificar a vida. O prazer não é o objectivo da acção, mas apenas a consciência do exercício do poder. A maior realização do poder humano será a criação do Super-homem.
A humanidade é simplesmente um estádio a caminho do Superhomem, que é o sentido da Terra. No entanto, o Super-homem não será  alcançado pela evolução, mas sim por um exercício de vontade. «Que a vossa vontade diga “o Super-homem deve ser o sentido da Terra”». Diz Zaratustra:

É claro que poderão criar o Super -homem ! Talvez não vocês mesmos,
meus irmãos! Mas poderão transformar-se vocês próprios em ancestrais
e antepassados do Super-homem: e que seja essa a vossa melhor criação!

A chegada do Super-homem será a perfeição do mundo; mas não será o fim da história. Porque Nietzsche defendia a doutrina do eterno retorno: a história é cíclica, e tudo o que aconteceu acontecerá outra vez, até ao mais pequeno pormenor.

É difícil avaliar Nietzsche friamente: a deslealdade biliosa das suas críticas aos outros gera no leitor uma correspondente impaciência irritável para com os seus escritos. Poder-se-ia dizer de A Genealogia da Moral, a sua última obra, o que ele mesmo disse da sua obra inicial: «Está pobremente escrita, é desajeitada, embaraçosa. As imagens são ao mesmo tempo desvairadas e confusas. Falta-lhe precisão lógica e está tão segura da sua mensagem que prescinde de qualquer tipo de prova.»
Nietzsche não oferece qualquer apresentação consistente do ponto de vista moral a partir do qual critica a moral convencional. A natureza do Super-homem é descrita de uma forma demasiado vaga para apresentar um padrão qualquer de avaliação das virtudes e vícios humanos. É difícil saber onde o próprio Nietzsche se situa numa questão como a da avaliação da crueldade. Ao denunciar a religião e o papel desempenhado pela culpa na moral dos escravos, Nietzsche descreve com eloquente injúria os sofrimentos amargos e as bárbaras torturas que os fanáticos e perseguidores infligiram. Mas, quando descreve os excessos das suas aristocráticas «bestas louras»,

que talvez provenham de um horrível ataque de assassínio, ímpeto incendiário, violação e tortura, com bravata e equanimidade moral, como se se tratasse apenas da representação de alguma selvagem peça estudantil, perfeitamente convencidos de que os poetas teriam agora um vasto tema para cantar e celebrar,

parece considerá-los um pecadilho, um escape necessário para os seus efervescentes espíritos elevados. Não seria filosófico considerar a insanidade final de Nietzsche como razão para desconsiderar a sua filosofia; mas, por outro lado, não é fácil sentir muita piedade por alguém que considerava a piedade a mais desprezível das emoções.

 

 

(Anthony Kenny - História Concisa da Filosofia Ocidental)

publicado às 16:04


O MARTELO FALA

por Thynus, em 21.11.13

Assim falou Zaratustra. 3,90.

"Por que tão duro!" -falou ao diamante um dia o carvão: "não somos afinal parentes próximos?"
Por que tão frágeis? Ó meus irmãos, assim vos pergunto: vós não sois afinal - meus irmãos?
Por que tão frágeis, tão prontos a ceder e a amoldar-se? Por que há tanta negação, tanta
renegação em vossos corações? Tão pouco destino em vossos olhares?
E vós não quereis ser destino e algo inexorável: como poderíeis um dia vencer comigo?
E se as vossas durezas não querem relampejar e cortar e despedaçar: como poderíeis vós criar comigo?
Todos os criadores são em verdade duros. E venturança precisa parecer-vos imprimir a vossa marca sobre milênios como sobre cera, -
Venturança de escrever sobre a vontade de milênios como sobre bronze - como sobre algo mais duro do que o bronze. Totalmente duro solitariamente é o que há mais nobre.
Esta nova tábua, ó meus irmãos, coloco sobre vossas cabeças: tornai-vos duros! -



SENTENÇAS E SETAS


1.
O ócio é o começo de toda psicologia. Como? A psicologia seria um - vício?

 

2.
Mesmo o mais corajoso de nós poucas vezes tem coragem para o que propriamente sabe...

 

3.
Para viver sozinho, é preciso ser um animal ou um deus - diz Aristóteles. Falta ainda a terceira alternativa: é preciso ser os dois ao mesmo tempo - Filósofo...

 

4.
"Toda verdade é simples (unívoca)". - Isto não é duplamente uma mentira?

(Jogo de palavras praticamente intraduzível: o termo "simples" em alemão significa literalmente o que só possui um setor (ein-fach). Duplo por sua vez diz-se 'zwie-fach': o que possui dois setores. Para acompanhar minimamente o intuito do texto, inserimos o termo "unívoco" entre parênteses.)

 

5.
De uma vez por todas, não quero saber muitas coisas. - A sabedoria também traz consigo os limites do conhecimento.

 

6.
É em nossa natureza selvagem que melhor nos restabelecemos de nosso movimento antinatural, de nossa espiritualidade...

 

7.
Como? O homem é apenas um erro de Deus? Ou Deus apenas um erro do homem? -

 

8.
Da Escola de Guerra da Vida - o que não me mata torna-me mais forte.

 

9.
Ajuda-te a ti mesmo: assim todos te ajudarão. Princípio do amor ao próximo.

 

10.
Que não se venha a cometer nenhuma covardia contra as próprias ações! Que não as abandonemos em seguida! O remorso é indecente.

 

11.
Um asno pode ser trágico? - Há como perecer sob um peso que não se pode nem carregar, nem lançar fora?... O caso do filósofo.

 

12.
Quando se possui o "por quê?" da vida, então se suporta quase todo "como?". - O homem não aspira à felicidade; somente o inglês o faz.

 

13.
O homem criou a mulher. A partir de que porém? De uma costela de seu Deus - de seu "Ideal"...

 

14.
O quê? Tu procuras? Tu gostarias de te decuplicar, de te centuplicar? Tu procuras adeptos? - Procuras zeros! -

 

15.
Os homens póstumos - eu, por exemplo - são pior compreendidos do que os homens ligados ao seu próprio tempo, mas melhor ouvidos. Mais exatamente: nunca somos compreendidos e é daí que provém nossa autoridade...

 

16.

Entre mulheres - "A verdade? Oh, vós não conheceis a verdade! Afinal, a verdade não é um atentado contra todos os nossos pudores?" -

 

17.
Eis aí um artista como aprecio: modesto em suas necessidades. Só quer efetivamente duas coisas: seu pão e sua arte, - panem et Circen3...

 

18.
Quem não sabe colocar sua vontade nas coisas ainda insere nelas ao menos um sentido: isto é, crê que uma vontade já esteja nelas (princípio da "fé").

 

19.
Como? Vós escolhesses a virtude e o peito estufado, mas olhais ao mesmo tempo invejosamente para as vantagens dos inescrupulosos? Com a virtude renuncia-se contudo às "vantagens"... (escrito na porta da casa de um anti-semita.)

 

20.
A mulher perfeita pratica a literatura como pratica um pecadilho: a título de experiência, de passagem, olhando em torno de si para ver se alguém a nota e a fim de que alguém a note...

 

21.
Não devemos nos inserir senão em situações nas quais não é permitido ter nenhuma virtude aparente; nas quais, como o funâmbulo sobre a sua corda, ou caímos ou nos mantemos - ou o que vier daí...

 

22.
"Homens maus não possuem canções". - Como acontece de os russos possuírem canções?

 

23.
"O Espírito Alemão": há dezoito anos uma contradictio in adjecto.

 

24.
À medida que buscamos as origens, vamos nos tornando caranguejos. O historiador olha para trás; até que finalmente também acredita para trás.

 

25.
A satisfação protege até mesmo contra resfriados. Uma mulher que se soubesse bem vestida teria alguma vez se resfriado? Trago à baila o caso em que ela quase não estava vestida.

 

26.
Desconfio de todos os sistemáticos e me afasto de seus caminhos. A vontade de sistema é uma falta de retidão.

 

27.
Considera-se a mulher profunda. - Por quê? Porque nela nunca se chega ao fundo. A mulher não é nem mesmo rasa.

 

28.

Quando a mulher possui virtudes masculinas, não nos resta senão nos evadirmos; e quando ela não possui nenhuma virtude masculina, ela mesma se evade.

 

29.
"Outrora, quanto a consciência tinha de morder? Que bons dentes ela possuía? E hoje? Quantos lhe faltam?" Pergunta de um dentista.

 

30.
Raramente cometemos uma única precipitação. Na primeira precipitação faz-se sempre demais. Exatamente por isso comete-se habitualmente ainda uma segunda. - Daí por diante faz-se então muito pouco...

 

31.
O verme se enconcha quando é chutado. Essa é a sua astúcia. Ele diminui com isso a probabilidade de ser novamente chutado. Na língua da moral: humildade. -

 

32.
Há um ódio à mentira e à dissimulação que nasce de uma apreensão sensível da honra. Há um ódio exatamente como esse que nasce da covardia, visto que a mentira é proibida por um mandamento divino. Covarde demais para mentir...

 

33.
Quão poucas coisas são necessárias para a felicidade! O som de uma gaita. - Sem música a vida seria um erro. O alemão imagina Deus cantando canções.

 

34.
On ne peut penser et écríre qu'assis4 (G. Flaubert). É assim que te pego, Niilista! A pachorra é justamente o pecado contra o Espírito Santo. Só os pensamentos que surgem em movimento têm valor.

 

35.
Há casos em que somos como cavalos, nós psicólogos, e permanecemos inquietos: vemos nossas próprias sombras oscilando diante de nós para cima e para baixo. O psicólogo precisa abstrair-se de si, a fim de que seja acima de tudo capaz de ver.

 

36.
Se nós imoralistas fazemos mal à virtude? Tão pouco quanto os anarquistas fazem mal aos príncipes. Somente depois de lhes ter alvejado é que estes se sentam firmemente em seus tronos. Moral: é preciso alvejar a moral.

 

37.
Tu corres à frente? Tu fazes isto como pastor? Ou como exceção? Um terceiro caso seria o desertor... Primeiro caso de consciência.

 

38.
Tu és autêntico? Ou apenas um ator? Um representante? Ou o próprio representado? Por fim, talvez tu não passes da imitação de um ator... Segundo caso de consciência.

 

39.

Fala o desiludido. Eu procurei por grandes homens, mas sempre encontrei apenas os macacos de seu ideal.

 

40.
Tu és alguém que observa? Ou que coloca as mãos à obra? - Ou que desvia o olhar e se põe de lado?... Terceiro caso de consciência.

 

41.
Tu queres acompanhar? Ou ir à frente? Ou ir por sua própria conta?... É preciso saber o que se quer e que se quer. Quarto caso de consciência.

 

42.
Estes eram degraus para mim. Servi-me deles para subir e precisei então passar por cima deles. Mas eles pensavam que queria aquietar-me sobre eles...

 

43.
O que importa que eu tenha razão?!?! Eu tenho por demais razão. E quem hoje ri melhor também ri por último.

 

44.
A fórmula de minha felicidade: um sim, um não, uma linha reta, uma meta...



(Nietzsche - O Crepúsculo dos Ídolos)



Nesta aula, o professor Clóvis de Barros Filho explica a Filosofia do Martelo Nietzscheana. Como este autor construiu o edifício de seu pensamento, derrubando as verdades estabelecidas, em nome de um homem mais livre e senhor de si? Como ser feliz e virtuoso sem respostas prontas? Conheça o pensamento que inspirou o mais recente livro do professor Clóvis, O Executivo e o Martelo.


publicado às 15:26

O uso da palavra selfie aumentou 17.000% nos últimos 12 meses. Os auto-retratos captados por telemóvel e publicados nas redes sociais são a tendência de 2013.

Os auto-retratos existem quase desde sempre mas nunca estiveram tanto na moda como agora. Isto por causa da evolução da tecnologia, ou seja, do boom dos smartphones e, claro, das redes sociais. Afinal quem é que nunca tirou uma fotografia sua e a partilhou no Facebook ou no Instagram? Ou quem é que nunca criticou quem tivesse feito isto? É que de uma maneira ou de outra, a moda veio para ficar e tem um nome: selfie, a palavra inglesa do ano 2013.

Nunca se viram tantas selfies nas redes sociais, nem nunca se falou tanto nestes auto-retratos fotográficos tirados habitualmente com um telemóvel. Passear pelo Facebook, pelo Instagram ou pelo Twitter é tropeçar nestas fotografias e, consequentemente, nesta expressão. O seu uso na Internet aumentou como nenhuma outra palavra no último ano – 17.000%. E, por isso mesmo foi ontem eleita Palavra do Ano 2013 pelos editores dos Dicionários Oxford de Inglaterra. O próximo passo é incluí-la no Dicionário de Inglês de Oxford. Para já, tem apenas uma entrada no site OxfordDictionaries.com, com o significado formal: “Uma fotografia que uma pessoa tira a si mesma, geralmente com um smartphone ou uma webcam e que depois descarrega numa rede social na Internet”.

E é exactamente esta definição que afasta o mestre holandês Rembrandt (1606-1669), pintor de alguns dos auto-retratos mais conhecidos da pintura, verdadeiras obras-primas, de Justin Bieber, o músico canadiano que para dizer olá aos milhões de fãs, que o seguem nas redes sociais, tem por hábito publicar uma foto sua (na maior parte das vezes em tronco nu). Rihanna, Ashton Kutcher, Lady Gaga, James Franco, Miley Cyrus, Madonna ou Kim Kardashian são apenas alguns dos adeptos da selfie. Ora em frente ao espelho, ora de braço esticado, ora com o telemóvel em baixo, ora a fingir que não se estão a fotografar. Ora “eu” a acordar, ora “eu” a comer, ora “eu” às compras, num concerto ou a passear com os amigos. O que não faltam nas redes sociais são “eus” a fazer tudo e nada.


Até mesmo o Papa Francisco foi apanhado na onda e ajudou ainda a que o termo ganhasse uma maior popularidade quando em Agosto aceitou posar junto a um grupo de adolescentes numa fotografia tirada por um deles. O momento captado por um jornalista italiano, que dizia que “agora” já tinha visto tudo, rapidamente correu o mundo e multiplicou-se nas redes sociais.

Selfie, twerk e bing-watch
Graças a um sistema de pesquisa capaz de analisar 150 milhões de palavras da língua inglesa utilizadas na Internet todos os meses, os editores do Dicionários Oxford constataram “uma tendência fenomenal em 2013” no uso da palavra selfie, que ultrapassou em muito a célebre twerk, introduzida pela controversa dança da cantora norte-americana Miley Cyrus nos prémios da MTV, ou binge-watch, usada quando há visionamento múltiplo e rápido de episódios de um programa de televisão.

Em comunicado, a directora editorial do Dicionário Oxford, Judy Pearsall, explicou que selfie aparece no sítio de partilha de fotografias Flickr desde 2004, mas “o seu uso só se generalizou a partir de 2012, quando selfie passou a ser usado de forma corrente nos media”. Antes disso, já em 2002, a palavra tinha sido usada num fórum australiano quando o interveniente descrevia o seu auto-retrato, lamentando que a imagem não estivesse focada por se tratar de um selfie.

Para Judy Pearsall a influência das redes sociais na explosão do termo é clara, pelo imediatismo que é permitido. Eu tiro a fotografia agora e agora é quando os meus amigos e seguidores a podem ver e comentar. E essa ideia, segundo os especialistas, pode ser estimulante para algumas pessoas. “Uma selfie é uma expressão de uma identidade online activa, uma coisa sobre a qual tens algum controlo. Até podes tirar várias fotografias, mas publicarás só as que gostas”, explicou à BBC o psicólogo Aaron Balick.

Para a investigadora da UCLA Andrea Letamendi, “os auto-retratos permitem aos jovens adultos e aos adolescentes expressarem os seus estados de espírito e partilharem experiências importantes”, tendo um peso muito importante na sua vida. Ao publicarem estes momentos nas redes sociais, estas pessoas sentem-se parte de um mundo, que é cada vez mais digital.

Uma espécie de check-in
Ana Leorne, de 29 anos, é digital media executive e o termo selfie não lhe é nada estranho. E não é apenas pelo seu trabalho mas também como fã desta prática. “Dantes também tínhamos esta necessidade de sermos ‘amados’ enquanto crescíamos, mas agora podemos brincar às figuras públicas a imaginarmo-nos a sermos vistos e admirados por todo o mundo”, diz Leorne ao PÚBLICO, para quem a selfie “é uma forma de dizer olá a toda a gente que nos segue, uma espécie de check-in”. “E claro que é narcisista dizer ‘olha para mim no concerto X’ ou ‘comprei o vestido Y’, continua a digital media executive, acrescentando que estas selfies servem também como um diário. “Vejo as fotos mais tarde e consigo reconstruir onde estava e com quem. É ver a vida passar-nos diante dos olhos sem termos de morrer primeiro.”

Mas como em todas as modas, as críticas também são muitas. Principalmente por a selfie ter muito sucesso entre as adolescentes, que por vezes desconhecem, ou se esquecem, dos riscos da Internet. Ou se sujeitam mesmo à condenação pelos seus pares, quando estes não gostam das suas fotografias. E aqui, os especialistas alertam: é normal que os mais novos se virem para a Internet mas é preciso que saibam quais as fotografias que é aceitável que publiquem e quais as que não devem expor. De resto, “a forma como as crianças hoje pensam sobre a tecnologia, os media e a comunicação é muito diferente do que as pessoas dez anos mais velhas”, defendeu a psicóloga norte-americana Pamela Rutledge à Time. Não há nada de errado nas selfies, acredita a especialista.

Em Portugal, a Porto Editora costuma organizar uma votação para eleger a palavra do ano. A de 2013 deverá ser conhecida até Janeiro. “Entroïkado” foi a palavra de 2012, anunciada em Janeiro deste ano.

 

(Cláudia Carvalho)

publicado às 17:05


VALORES COMPLEXOS

por Thynus, em 18.11.13

 

Porque para deliberar é preciso lidar com opostos. Neste campo, o tempo todo estamos nos ocupando com contradições, com uma gigantesca complexidade de situações, em conflitos de máximas e deveres. Max Weber – para citar o exemplo de apenas um dos analistas desta complexidade – distingue a ética de princípios ou de convicção da ética de responsabilidade. A última está fundada nos fins e a primeira nos meios, com propostas absolutamente inconciliáveis. Sem que se possa impor a quem quer que seja a adoção de uma ou de outra.
Encontra-se uma contradição entre valores, entre meios e fins. Tanta complexidade acaba por desautorizar um entendimento sistêmico da ética. Há uma frase de Lenin que expressa bem este aspecto. Se não for exatamente este o texto, é muito próximo de algo como: “nós reconhecemos o valor da camaradagem, o valor da ajuda a todos os camaradas, o valor de tolerância às suas opiniões. Mas para nós este valor da camaradagem é secundário em relação ao dever que temos face à social democracia russa e internacional, e não o contrário.”
A segurança ética parece necessária para a convivência. Para a vida em sociedade. Mas ainda fica faltando explicar o fundamento da hierarquia de valores que ela envolve. O porquê da primazia de uns sobre outros. O valor do valor.
Certa vez, em palestra para a alta cúpula de uma multinacional, um diretor da empresa me pediu para apresentar em telas de Powerpoint os valores ditos essenciais, em ordem decrescente de importância. Para facilitar a minha vida, segundo ele, bastaria indicar os top ten. Fiquei surpreso com a demanda e com a suposta gentileza. Esquivei-me ao máximo, alegando ignorância quanto ao uso do software para apresentações. Mas, a desculpa não foi eficiente. O homem me autorizou a usar lousa e giz!
Foi quando tive que esclarecer que eu ignorava a tal lista que ele pedia. Não pegou bem admitir ignorância num mundo de tantas certezas. Meu interlocutor fitou-me como se houvesse uma lacuna imperdoável no meu repertório de saberes pessoais, tomando-me por displicente, como se eu houvesse cabulado aula de importância fundamental.
Para tentar reverter a frustração do homem tive que apelar. Afinal, tratava-se de um diretor. Comecei por perguntar se ele conhecia Deus. Ele respondeu que sim, em tom de total obviedade. Muito normal, aliás, afinal Deus e diretores costumam trabalhar no mesmo andar. Cruzam-se no corredor. São íntimos.
Pois bem, continuei dizendo que quando Moisés se comunicou com Deus lá no alto do Monte Sinai, recebeu uma lista de valores, objetivados em mandamentos. Mas não constava em nenhuma parte da mensagem, que o quarto mandamento tivesse prevalência sobre o quinto, o primeiro sobre o terceiro…
Conclui-se, assim, que, no caso de conflito entre eles, Deus deixava na mão do nobre executivo a tarefa de decidir. “Livre arbítrio total”, exclamei com sarcasmo.
Meu anfitrião indignado concluiu, então, que jamais poderia saber qual dos valores tinha maior relevância. Concluiu também que, naquele caso, nunca poderia ter certeza do melhor critério e, consequentemente, da melhor opção para a vida. Inquiriu-me sobre como fazer para não errar e teve nova decepção.
Admiti não ter a menor ideia sobre isso e, sem poder oferecer uma resposta, completei afirmando que, se fosse diferente, erraria menos nas minhas próprias decisões. Argumentei que se ele encarasse a complexidade da vida com humildade ganharia distância deste mundo delirante das fórmulas garantidoras de sucesso. E proximidade da crueza das coisas, como elas realmente são.
Quando alguém argumenta no campo da ética sobre a melhor maneira de viver e conviver, não se contenta com a parcialidade de seu ponto de vista, busca o convencimento, aspira a universalidade. Porque a sociedade ou a civilização não tolera tanta diversidade de valores. Precisa se proteger. Manter a ordem.
No processo de redução desta complexidade, alguns pontos de vista serão elevados ao status de regra para todo mundo. É quando algumas impressões dispersas viram código. E outras não. E algumas vidas de qualidade são convertidas em protocolo de qualidade de vida. Conversões conflituosas, que implicam quase sempre na luta pela legitimidade de definir o que é ético e o que não interessa que seja.
 
Para prosseguir no tema, experimente enveredar pelo conhecimento disponível em: “Ética”, o artigo do professor Renato Janine Ribeiro, publicado no livro Comunicação na Polis: ensaios sobre mídia e política, e no capítulo sobre moral do livro Apresentação da filosofia, de André Comte-Sponville. Depois, explore o excelente Ética para o meu filho, do professor da Universidad Complutense, Fernando Savater. E, se ainda houver tempo e ânimo, não abra mão da leitura de Edgar Morin, em Ética, livro que integra uma extensa coleção chamada “O método”. O best-seller Aprender a viver: a filosofia para os novos tempos, de Luc Ferry, é uma introdução saborosa, e Convite à filosofia, de Marilena Chauí, será sempre bem-vindo.
(Clóvis de Barros Filho - A Filosofia explica as grandes questões da humanidade)

publicado às 00:07

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