Em primeiro lugar nasceu o Caos
Hesíodo
Chamado o Abismo, a Grande Profundidade, Vazio, Desordem, pelos povos da Antigüidade, o Caos, palavra de origem grega, denomina "a personificação do vazio primordial anterior à criação, no tempo em que a ordem não havia sido imposta aos elementos do mundo" (Grid, 88). Para a cosmogonia egípcia, o Caos é "uma potência do mundo informe e não ordenado... que rodeia a criação ordenada como um oceano rodeia a terra" (Morr, 48); sob o nome de Nun, é apontado como o pai de todos os deuses e de todas as criaturas, e, como o oceano primordial, engendra o próprio Ra. Na Bíblia, o Caos é designado tohu wabohu. "Tohu é o deserto desolado, sem água, sem caminhos (...) Bohu, da mesma raiz que o ar bico bahiya (ser vazio), confirma a primeira noção; a combinação dos dois termos indica desolação extrema". (Dic. Enciclopédico da Bíblia, ª Van denBorn, Ed. Vozes, p.242)
Tanto na narrativa bíblica da Criação, quanto nas cosmologias babilônia, fenícia, egípcia ou grega, vemos o Caos como um estado indiferenciado, amorfo, confuso, que antecede o princípio de todas as coisas. Em todas elas, igualmente, o Caos coloca-se em oposição ao Cosmos, ou seja, o Universo, o conjunto ordenado de todas as coisas criadas.
Contudo, a forma "moderna" de pensamento à qual estamos acostumados pode induzir-nos a um engano, o de conceber-se o Caos como um estado ocorrido "antigamente", no dia anterior ao da Criação. Decididamente, não pensavam assim os nossos antepassados, que não consideravam o tempo da forma linear tal como procedemos hoje em dia. Os egípcios, ao descreverem o Caos rodeando a Criação como o oceano circunda a terra, são categóricos a esse respeito.
Os gregos, por sua vez, vêem o mundo como a arena onde se trava a luta entre os irmãos gêmeos Eros e Anteros, que personificam respectivamente as forças de atração e repulsão presentes em todas as coisas. Ao contrário da idéia atualmente difundida, Eros não personifica apenas a atração sexual: ele preside a todas as forças que atraem, unem, agregam, desde as células vivas, tomos e moléculas, aos planetas e galáxias; amizade, amor e atração sexual são representações dessas forças agregadoras, todas elas regidas pela mesma divindade. Seu irmão, Anteros (Anti-Eros), preside a todas as forças desagregadoras: desde a decomposição das células mortas, à força de repulsão existente entre as moléculas, e as que não permitem que o cosmos se precipite sobre si mesmo.
Não é correto opor-se Eros a Tânatos, como faz a Psicanálise, pois Eros não está em oposição à Morte, ao menos da maneira que se acredita. Mesmo na dupla Eros- Anteros, o pensamento dualista verá o antagonismo entre a vida e a morte, mas esta consiste numa concepção infantil, que mostra as limitações da visão judeu-cristã na compreensão dos mitos. Fora do dualismo maniqueísta, a vida não é Eros, e sim o resultado da contraposição entre Eros e Anteros; nem a vida nem a morte se situam num desses pólos, mas no equilíbrio entre os mesmos.
Essas considerações recordam-me o paradoxo Zen: "Você pode produzir o som de duas mãos batendo uma na outra. Mas qual é o som de uma das mãos?" Esta pequena jóia da filosofia oriental mostra-nos, entre outras coisas, a impossibilidade de se dividir o universo em aspectos isolados como peças de uma máquina, tal como se procede no raciocínio cartesiano. Eros e Anteros somente fazem sentido se considerados conjuntamente, e a vida procede da interrelação entre os mesmos, assim como uma ponte pênsil se mantém em pé devido à tensão entre os cabos das margens opostas.
Transportando essas idéias para a oposição Caos- Cosmos, temos que o mundo manifesto apresenta as características não só de um, mas de ambos os princípios. A noção do caos circundando o universo como o oceano rodeia a terra, como pensam os egípcios, constitui-se numa excelente imagem. O caos subjaz à natureza, e nela irrompe a todo momento, através dos mais variados fenômenos. Quando alguém é morto e sepultado, é o caos que retorna, transformando o corpo em matéria decomposta; quando a noite cai, é o caos que envolve a natureza com as trevas indiferenciadas do princípio. O mesmo se dá no inverno, quando a vegetação definha, e o sol parece desmaiar no firmamento, ou numa simples tempestade, onde os elementos se confundem em sua fúria exatamente como o fazem no instante primordial. A morte igualmente não se constitui para os antigos num momento único: ela está presente no cair de uma folha, na chegada do inverno, na troca de pele das serpentes, e até mesmo no crescimento interior de um indivíduo; mudar, crescer, é deixar morrer uma parte de si mesmo para permitir o nascimento de um novo eu. A noção da morte como o momento concreto em que o corpo chega ao fim é mais um produto da mentalidade reducionista e simplória do homem moderno, aparentemente incapaz de compreender abstrações desse tipo.
Os rituais mais diversos, como os da semeadura, da colheita, ou do solstício de inverno, expressavam o conhecimento dos antigos em relação à alternância do caos com a ordem, dramatizada pela natureza. Nos rituais iniciáticos, igualmente, a morte simbólica do neófito representava um retorno ao caos; nas narrativas mitológicas, esse momento é expresso na descida aos infernos que o herói tem que realizar. Conforme já estudamos anteriormente, o homem primitivo considerava o momento da criação como o único momento efetivamente real. Desse modo, para se obter o homem "real", ou seja, o iniciado, deve o homem comum, através do ritual, submeter-se ao mesmo processo ao qual o universo terá se submetido in illo tempore.
Uma vez feito esse preâmbulo, torna-se necessário conceituarmos mais precisamente o que seja caos. Pensarmos nele como um amontoado de matéria amorfa não seria satisfatório, pois, como acabamos de ver, o Caos se manifesta em todos os âmbitos da natureza, e, como teremos oportunidade de descobrir, em muitos outros aspectos.
Pensemos no Caos como um estado absolutamente desprovido de limites. A divindade que submete o Caos o faz "mutilando-o", ou seja, emprestando-lhe a Forma. Trazer a Ordem constitui-se, em outras palavras, em impor limites àquilo que não os tem. O Caos, como substância amorfa, possui a potencialidade de todas as formas, e impor a Ordem nada mais é que dar contorno a todas as coisas. Mais uma vez, podemos observar a simbologia da mutilação, presente nos mitos cosmogônicos tais como o do deus sacrificado, o da morte do dragão, ou o do filho que castra o pai; essa mutilação representa a imposição da forma a aquilo que anteriormente era informe - impor limites sempre equivalerá a "mutilar" alguma coisa.
Conceituando-se o Caos como um estado desprovido de limites, resulta-nos uma tarefa fácil compreendermos o porquê de seus símbolos. A água representa o Caos porque é um elemento fluido, amorfo; iniciar alguém com a imersão na água é repetir a cosmogonia, onde seu oficiante imita o deus criador ao retirar a matéria de dentro do oceano primordial. As trevas constituem-se igualmente num símbolo perfeito, pois nela se diluem as formas dos objetos; o que está mergulhado na escuridão "desaparece" aos nossos olhos, isto é, dilui-se num todo indiferenciado. Por esse motivo, muitas cerimônias iniciáticas envolvem a permanência na escuridão - um símbolo da descida aos Infernos - onde o neófito "morre" ritualmente. A noite simboliza o Caos tanto por envolver o mundo nas trevas, como porque representa a descida do sol às profundezas do Hades. Por extensão, o inverno também o representa, uma vez que recobre a natureza com um manto de morte, deteriorando a vida vegetal, como também porque se deve ao solstício, o ponto mais baixo em que o sol pode descer no céu, simbolizando mais uma vez a descida da divindade aos Infernos. O fogo também se presta para representar o Caos, pois dissolve todas as formas através da combustão ou fusão, e lembra o estado ígneo em que se encontrava a Terra antes de gerar a vida. Desse modo, os rituais de iniciação pelo fogo consistem, assim como os de imersão na água, numa repetição da cosmogonia. (“Eu vos batizo com a água para o arrependimento, mas aquele que vem depois de mim é mais forte do que eu... Ele vos batizará com o fogo do Espírito Santo" (Mateus 3,11, conforme Is. 1,25, Zc. 13,9, Ml. 3,2, e Eclo. 2,5).
A Ordem traz a hierarquia. Na natureza, separam-se luz e trevas, terra e água, alto e baixo; o mais leve assenta-se sobre o mais pesado, os elementos se formam, e os planetas adquirem suas órbitas. O Caos, por sua vez, representa a mais pura ausência de hierarquia: não há contorno entre as coisas, nem alto nem baixo, nem leve nem pesado, nem presente, passado ou futuro; até mesmo o tempo se dobra à fluidez do Caos, e perde sua razão de ser. Por isso mesmo fica sem sentido acreditar que o caos primordial teria existido em determinada época; quando os mitos se referem a algo ocorrido naquele tempo, referem-se não a um evento ocorrido "antigamente", e sim numa outra dimensão transcendente ao tempo formal.
Como não poderia deixar de ser, o Caos não se expressa somente nos fenômenos naturais, mas também no nível das atividades humanas, cuja simbologia fornece abundante material para os rituais. Por isso, as celebrações religiosas que abolem a hierarquia social por um período determinado, como as Bacanais ou o Carnaval, simbolizam o estado caótico que antecede a criação do mundo, por sua vez representada pelas atividades agrícolas que se seguem após este tipo de festividades. A nível psicológico, por sua vez, o caos fica representado pela loucura - ou seja, a perda dos limites do próprio eu, como símbolo pars pro toto do universo. No entanto, a loucura celebrada nessa classe de rituais não é a loucura comum, profana, conforme alguns poderiam pensar: trata-se do que os gregos denominavam ékstasis, símbolo da união do homem com Deus. No item que se segue, abordaremos alguns tipos de rituais que dramatizam a alternância entre a ordem e a desordem, que, devido a sua rica simbologia, contribuirá de forma inestimável para o estudo desta fascinante temática da mitologia universal.
(Antonio Farjani - "A linguagem dos deuses")
NOTA - Anteros (G.). Filho de Afrodite e de Ares, e irmão de Eros (vv.). Ele e seu irmão simbolizavam, respectivamente, a repulsão e a atração entre as criaturas, sendo Eros o amor feliz, e Anteros o infeliz. Anteros aparecia também como a divindade vingadora do amor não-correspondido. (Mário da Gama Cury - "Dicionário de Mitologia")
