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De tudo e de nada, discorrendo com divagações pessoais ou reflexões de autores consagrados. Este deverá ser considerado um ficheiro divagante, sem preconceitos ou falsos pudores, sobre os assuntos mais variados, desmi(s)tificando verdades ou dogmas.
Não roubar referia-se, antes de mais, ao sequestro de pessoas, ao roubo de outros seres humanos, frequente para arranjar escravos. Esse rapto continua hoje, sobretudo para conseguir órgãos. Mas também continuam os raptos dos opositores políticos e de bebés, como aconteceu na ditadura argentina, tanto mais horrorosos quanto foram praticados também por pessoas ligadas à religião, até de missa diária. Ora, "o corpo é a propriedade elementar que cada um de nós tem e ninguém quer ser utilizado, raptado ou manipulado por outros".
Há múltiplas formas de roubo: o roubo da dignidade, do tempo, de ideias. É impressionante o que se passa em situações de catástrofe, como terramotos e inundações: no meio do caos e da desordem, o saque em massa. É como se populações desfavorecidas pudessem, finalmente, participar no festim do capitalismo e do consumo.
Na realidade, quando falamos em roubo, referimo-nos, em princípio, a tirar às pessoas injustamente os bens que possuem e a que têm direito. Mas, em caso de necessidade, ainda se pode falar de roubo? Quem condenaria alguém por roubo, concretamente se se rouba a uma pessoa rica ou uma instituição endinheirada, para, numa situação de desespero, comprar um remédio ou pão para um filho esfomeado? "Há matizes morais e jurídicos que diferenciam quem rouba um pedaço de pão e quem tira a uma viúva o sustento com que alimenta os filhos." Lá está o carácter insaciável de algumas pessoas com quantidades de dinheiro suficientes para mais de dez vidas e que continuam a roubar. No entanto, só podemos comer três vezes ao dia e dormir numa cama de cada vez. "No fundo, há um limiar a partir do qual o dinheiro se transforma numa doença e não numa ajuda." Aí estão os especuladores gananciosos, que enriquecem utilizando mecanismos e sistemas que, embora não constituam delito no sentido estrito do termo, equivalem a roubar do ponto de vista moral: legalidade e moralidade não coincidem, "sobretudo em situações de penúria e escassez". Ora, no dia em que escrevo, leio, num documento divulgado pela organização não governamental Oxfam, que os paraísos fiscais ocultam 14 biliões (14 seguido de 12 zeros) de euros, que, se fossem taxados, poriam duas vezes fim à pobreza extrema no mundo.
E os impostos? Lá está o dito célebre: duas certezas na vida: morrer e ter de pagar impostos. A justificação destes só pode ser o bem comum e o bem-estar, como bens colectivos, segurança social, protecção no desemprego e na doença, garantidos pelo Estado. Se o Estado não cumpre os seus deveres, nomeadamente na sua função redistributiva, pode chegar-se a "uma forma legal de roubo".
O Papa Francisco não se tem cansado de insistir na necessidade de trazer a ética para a economia e para a finança. Na sua linguagem simples, evocou recentemente uma parábola para explicar a crise. Como se trata de uma "crise do homem, que destrói o homem, que despoja o homem da ética, tudo é possível, tudo se pode fazer, e vemos como a falta de ética na vida pública faz tanto mal a toda a humanidade". E vem a estória, contada por um rabino do século XII. Aquando da construção da Torre de Babel, era necessário fabricar tijolos do barro, meter-lhe palha, levá-los ao forno e, já cozidos, transportá-los para o alto. Cada tijolo era um tesouro, devido a todo o trabalho para o fabricar. Quando caía um tijolo, era um drama e o operário era castigado. Mas se caísse um operário nada acontecia.
"Isso é o que se passa hoje: se os investimentos nos bancos caem, é uma tragédia, mas se as pessoas morrem de fome, se não têm nada para comer nem têm saúde, não acontece nada. Esta é a crise actual."
(Anselmo Borges)
Nos últimos anos tenho trabalhado de forma aprofundada a categoria do cuidado especialmente nos livros Saber Cuidar e O Cuidado Necessário (Vozes). O cuidado mais que uma técnica ou uma virtude entre outras, representa uma arte e um paradigma novo de relação para com a natureza e com as relações humanas, amoroso, diligente e participativo. Tenho tomado parte de muitos encontros e congressos de operadores da saúde com os quais pude dialogar e aprender, pois o cuidado é a ética natural desta atividade tão sagrada.
Retomo aqui algumas idéias referentes às atitudes que devem estar presentes em quem cuida de enfermos seja em casa seja no hospital. Vejamos algumas delas entre outras.
Compaixão: é a capacidade de colocar-se no lugar do outro e sentir com ele. Não dar-lhe a impressão que está só e entregue à sua própria dor.
Toque da carícia essencial: tocar o outro é devolver-lhe a certeza de que pertence à nossa humanidade. O toque da carícia é uma manifestação de amor. Muitas vezes, a doença é um sinal de que o paciente quer se comunicar, falar e ser ouvido. Quer identificar um sentido na doença. O enfermeiro ou a enfermeira ou médico e a médica podem ajudá-lo a se abrir e a falar. Testemunha uma enfermeira: “quando te toco, te cuido; quando te cuido te toco; se és um idoso te cuido quando estás cansado; te toco quando te abraço; te toco quando estás chorando; te cuido quando não estás mais podendo andar”.
Assistência judiciosa: O paciente precisa de ajuda e a enfermeira ou o enfermeiro deseja cuidar. A convergência destes dois movimentos gera a reciprocidade e a superação do sentimento de uma relação desigual. A assistência deve ser judiciosa: tudo o que o paciente pode fazer, incentivá-lo a fazer e assisti-lo somente quando já não o pode fazer por si mesmo.
Devolver-lhe a confiança na vida: O que o paciente mais deseja é recuperar a saúde. Dai ser decisivo devolver-lhe a confiança na vida: em suas energias interiores, físicas, psíquicas e espirituais, pois elas atuam como verdadeiras medicinas. Incentivar gestos simbólicos, carregados de afeto. Não raro, os desenhos que a filhinha traz para o pai doente, suscita nele tanta energia e comoção que equivale a um coquetel de vitaminas.
Fazê-lo acolher a condição humana. Normalmente o paciente se interroga perplexo: “por que isso foi acontecer comigo, exatamente agora em que tudo na vida estava dando certo? Por que, jovem ainda, sou acometido de grave doença”? Tais questonamentos remetem a uma reflexão humilde sobre a condition humaine que é, em todo o momento, exposta a riscos e à vulnerabilidades inesperadas.
Quem é sadio sempre pode ficar doente. E toda doença remete à saúde que é o valor de referência maior. Mas não conseguimos saltar por cima de nossa sombra e não há como não acolher a vida assim como é: sadia e enferma, bem sucedida e fragilizada, ardendo por vida e tendo que aceitar eventuais doenças e, no limite, a própria morte. É nestes momentos em que os pacientes fazem profundas revisões de vida. Não se contentam apenas com as explicações científicas (sempre necessárias), dadas pelo corpo médico mas anseiam por um sentido que surge a partir de um diálogo profundo com seu Self ou da palavra sábia de um parente, de um sacerdote, de um pastor ou de uma pessoa espiritual. Resgatam, então, valores cotidianos que antes sequer percebiam, redefinem seu desenho de vida e amadurecem. E acabam tendo paz.
Acompanhá-lo na grande travesia. Há um momento inevitável que todos, mesmo a pessoa mais idosa do mundo, devem morrer. É a lei da vida, sujeita à morte: uma travessia decisiva. Ela deve ser preparada por toda uma vida que se guiou por valores morais generosos, responsáveis e benfazejos.
Mas para a grande maioria, a morte é sofrida como um assalto e um sequestro, gerando sentimento de impotência. E então dá-se conta de que, finalmente, deve se entregar.
A presença discreta, respeitosa de alguém, da enfermeira ou do enfermeiro ou do parente próximo ou da amiga, pegando-lhe a mão, susurrando-lhe palavras de conforto e de coragem, convidando-o a ir ao encontro da Luz e ao seio de Deus que é Pai e Mãe de bondade, podem fazer com que o moribundo saia da vida sereno e agradecido pela existência que viveu.
Sussurar-lhe ao ouvido, se possui uma referência religiosa, as palavras tão consoladoras de São João: Se teu coração te acusa, saiba que Deus é maior que teu coração (3,20). Pode entregar-se tranquilamente a Deus cujo coração é de puro amor e de misericórdia. Morrer é cair nos braços de Deus.
Aqui o cuidado se revela muito mais como arte que como técnica e supõe no agente de saúde densidade de vida, sentido espiritual e um olhar que vai para além da morte. Atingir este estágio é uma missão a que o enfermeiro e enfermeira e também os médicos e médicas devem buscar para serem plenamente servidores da vida. Para todos valem as sábias palavras: “A tragédia da vida não é a morte, mas aquilo que deixamos morrer dentro de nós enquanto vivemos”.
(Leonardo Boff é autor de Vida para além da morte, Vozes 2012)
Um espírito de insurreição de massas humanas está varrendo o mundo todo, ocupando o único espaço que lhes restou: as ruas e as praças. O movimento está apenas começando: primeiro no norte da África, depois na Espanha com os “indignados”, na Inglaterra e nos USA com os “occupies” e no Brasil com a juventude e outros movimentos sociais. Ninguém se reporta às clássicas bandeirtas do socialismo, das esquerdas, de algum partido libertador ou da revolução. Todas estas propostas ou se esgotaram ou não oferecem o fascínio suficiente para mover as massas. Agora são temas ligados à vida concreta do cidadão: democracia participativa, trabalho para todos, direitos humanos pessoais e sociais, presença ativa das mulheres, transparência na coisa pública, clara rejeição a todo tipo de corrupção, um novo mundo possível e necessário. Ninguém se sente representado pelos poderes instituídos que geraram um mundo politico palaciano, de costas para o povo ou manipulando diretamente os cidadãos.
(Leonardo Boff é autor de Depois de 500 anos: que Brasil queremos? Vozes, Petrópolis 2000)
Estou fora do país, na Europa a trabalho e constato o grande interesse que todas as mídias aqui conferem às manifestações no Brasil. Há bons especialistas na Alemanha e França que emitem juízos pertinentes. Todos concordam nisso, no caráter social das manifestações, longe dos interesses da política convencional. É o triunfo dos novos meios e congregação que são as mídias sociais.
O grupo da libertação e a Igreja da libertação sempre avivaram a memória antiga do ideal da democracia, presente, nas primeiras comunidades cristãs até o século segundo pelo menos. Repetia-se o refrão clássico: “o que interessa a todos, deve poder ser discutido e decidido por todos”. E isso funcionava até para a eleição dos bispos e do Papa. Depois se perdeu esse ideal nas nunca foi totalmente esquecido. O ideal democrático de ir além da democracia delegatícia ou representativa e chegar à democracia participativa, de baixo para cima, envolvendo o maior número possível de pessoas, sempre esteve presente no ideário dos movimentos sociais, das comunidades de base, dos Sem Terra e de outros. Mas nos faltavam os instrumentos para implementar efetivamente essa democracia universal, popular e participativa.
Eis que esse instrumento nos foi dado pelas várias mídias sociais. Elas são sociais, abertas a todos. Todos agora têm um meio de manifestar sua opinião, agregar pessoas que assumem a mesma causa e promover o poder das ruas e das praças. O sistema dominante ocupou todos os espaços. Só ficaram as ruas e as praças que por sua natureza são de todos e do povo. Agora surgiram a rua e a praça virtuais, criadas pelas mídias sociais.
O velho sonho democrático segundo o qual o que interessa a todos, todos tem direito de opinar e contribuir para alcançar um objetivo comum, pode em fim ganhar forma. Tais redes sociais podem desbancar ditaduras como no Norte da África, enfrentar regimes repressivos como na Turquia e agora mostram no Brasil que são os veículos adequados de revindicações sociais,sempre feitas e quase sempre postergadas ou negadas: transporte de qualidade (os vagões da Central do Brasil tem quarenta anos), saúde, educação, segurança, saneamento básico. São causas que tem a ver com a vida comezinha, cotidiana e comum à maioria dos mortais. Portando, coisas da Política em maiúsculo.
Nutro a convicção de que a partir de agora se poderá refundar o Brasil a partir de onde sempre deveria ter começado, a partir do povo mesmo que já encostou nos limites do Brasil feito para as elites. Estas costumavam fazer políticas pobres para os pobres e ricas para os ricos. Essa lógica deve mudar daqui para frente. Ai dos políticos que não mantiverem uma relação orgânica com o povo. Estes merecem ser varridos da praça e das ruas. Escreveu-me um amigo que elaborou uma das interpretações do Brasil mais originais e consistentes, o Brasil como grande euforia e empresa do Capital Mundial, Luiz Gonzaga de Souza Lima. Permito-me citá-lo: “Acho que o povo esbarrou nos limites da formação social empresarial, nos limites da organização social para os negócios. Esbarrou nos limites da Empresa Brasil. E os ultrapassou. Quer ser sociedade, quer outras prioridades sociais, quer outra forma de ser Brasil, quer uma sociedade de humanos, coisa diversa da sociedade dos negócios. É a Refundação em movimento”.
Creio que este autor captou o sentido profundo e para muitos ainda escondido das atuais manifestações multitudinárias que estão ocorrendo no Brasil. Anuncia-se um parto novo. Devemos fazer tudo para que não seja abortado por aqueles daqui e de lá de fora que querem recolonizar o Brasil e condená-lo a ser apenas um fornecedor de commodities para os países centrais que alimentam ainda uma visão colonial do mundo, cegos para os processos que nos conduzirão fatalmente à uma nova consciência planetária e a exigência de uma governança global. Problemas globais exigem soluções globais. Soluções globais pressupõem estruturas globais de implementação e orientação. O Brasil pode ser um dos primeiros nos quais esse inédito viável pode começar a sua marcha de realização. Daí ser importante não permitirmos que o movimento seja desvirtuado. Música nova exige um ouvido novo. Todos são convocados a pensar este novo, dar-lhe sustentabilidade e fazê-lo frutificar num Brasil mais integrado, mais saudável, mais educado e melhor servido em suas necessidades básicas.
(Leonardo Boff: o caráter das novas manifestações)
O que é o mito
O mito, entre os povos primitivos, é uma forma de se situar no mundo, isto é, de encontrar o seu lugar entre os demais seres da natureza. E um modo ingênuo, fantasioso, anterior a toda reflexão e não-crítico de estabelecer algumas verdades que não só explicam parte dos fenômenos naturais ou mesmo a construção cultural, mas que dão, também, as formas da ação humana. Devemos salientar, entretanto, que, não sendo teórica, a verdade do mito não obedece a lógica nem da verdade empírica, nem da verdade científica. É verdade intuída, que não necessita de provas para ser aceita.
O mito nasce do desejo de dominação do mundo, para afugentar o medo e a insegurança. O homem, à mercê das forças naturais, que são assustadoras, passa a emprestar-lhes qualidades emocionais. As coisas não são mais matéria morta, nem são independentes do sujeito que as percebe. Ao contrário, estão sempre impregnadas de qualidades e são boas ou más, amigas ou inimigas, familiares ou sobrenaturais, fascinantes e atraentes ou ameaçadoras e repelentes. Assim, o homem se move dentro de um mundo animado por forças que ele precisa agradar para que haja caça abundante, para que a terra seja fértil, para que a tribo ou grupo seja protegido, para que as crianças nasçam e os mortos possam ir em paz.
O pensamento mítico está, então, muito ligado à magia, ao desejo, ao querer que as coisas aconteçam de um determinado modo. É a partir disso que se desenvolvem os rituais como meios de propiciar os acontecimentos desejados. O ritual é o mito tomado ação.
Os exemplos são inúmeros: já nas cavernas de Lascaux e Altamira, o homem do Paleolítico (10000 a 5000 a.C.) desenhava os animais, dentro de um estilo muito realista, e depois "atacava-os" com flechas, para garantir o êxito da caçada. Os ritos de nascimento e de morte é que vão dar ao recém-nascido um reconhecimento como ser vivo, pertencente a uma determinada sociedade; ou, ao defunto (1), a mudança de seu estatuto ontológico (de ser vivo a ser morto) e a aceitação pela comunidade dos mortos. Outro exemplo é o da expulsão de uma comunidade: uma vez realizados os ritos, a pessoa expulsa não precisa sair da comunidade, pois todos os outros integrantes passarão a não vê-la, não ouvi-la, enfim, a agir como se não existisse ou não estivesse presente. Para a comunidade, terminado o ritual, a pessoa expulsa desapareceu simbolicamente, mesmo que continue de corpo presente. E essa exclusão social acaba, em geral, levando à morte.
Funções do mito
Além de acomodar e tranqüilizar o homem em face de um mundo assustador, dando-lhe a confiança de que, através de suas ações mágicas, o que acontece no mundo natural depende, em parte, dos atos humanos, o mito também fixa modelos exemplares de todas as funções e atividades humanas.
O ritual é a repetição dos atos dos deuses que foram executados no início dos tempos e que devem ser imitados e repetidos para que as forças do bem e do mal se mantenham sob controle. Desse modo, o ritual "atualiza", isto é, toma atual o acontecimento sagrado que teve lugar no passado mítico.
O mito, portanto, é uma primeira fala sobre o mundo, uma primeira atribuição de sentido ao mundo, sobre a qual a afetividade e a imaginação exercem grande papel, e cuja função principal não é explicar a realidade, mas acomodar o homem ao mundo.
Características do mito
O mito primitivo é sempre um mito coletivo. O grupo, cuja sobrevivência deve ser assegurada, existe antes do indivíduo e é só através dele que os sujeitos individuais se reconhecem enquanto tal. Explicando melhor, o sujeito 5Ó tem consciência, só se conhece como parte do grupo. É através da existência dos outros e do reconhecimento dos outros que ele se afirma. Por isso, pode ser expulso simbolicamente: no momento em que falta o reconhecimento dos outros integrantes do grupo, ele não se reconhece, não se encontra mais.
Outra característica do mito é o fato de ser sempre dogmático, isto é, de apresentar-se como verdade que não precisa ser provada e que não admite contestação. A sua aceitação, então, tem de ser através da fé e da crença. Não é uma aceitação racional, e não pode ser nem provado nem questionado. Dentro dessa perspectiva de coletivismo, a transgressão da norma, a não-obediência da regra afeta o transgressor e toda sua família ou comunidade. Assim é criado o tabu — a proibição —, envolto em clima de temor e sobrenaturalidade, cuja desobediência é extremamente grave. Só os ritos de purificação ou de "bode expiatório", nos quais o pecado é transferido para um animal, podem restaurar o equilíbrio da comunidade e evitar que o castigo dos deuses recaia sobre todos.
O mito hoje
Mas, e quanto aos nossos dias, os mitos são diferentes? O pensamento crítico e reflexivo, que teve início com os primeiros filósofos, na Grécia do século VI a. C, e o desenvolvimento do pensamento científico a partir do século XIV, com o Renascimento, ocuparam todo o lugar do conhecimento e condenaram à morte o modo mítico de nos situarmos no mundo humano?
Essa é a posição defendida por Augusto Comte, filósofo francês do século XIX, fundador do positivismo.
Essa corrente filosófica explica a evolução da espécie humana em três estádios: o mítico (teológico), o filosófico (metafísico) e o científico. Este último apresenta-se como o coroamento do desenvolvimento humano, que não só é superior aos outros, como é o único considerado válido para se chegar à verdade.
Assim, ao opor o poder da razão à visão ingênua oferecida pelo mito, o positivismo, de um lado, empobrece a realidade humana. O homem moderno, tanto quanto o antigo, não é só razão, mas também afetividade e emoção. Se a ciência é importante e necessária à nossa construção de mundo, não oferece a única interpretação válida do real. Ao contrário, a própria ciência pode virar um mito, quando somos levados a acreditar que ela é feita à margem da sociedade e de seus interesses, que mantém total objetividade e que é neutra. (Para uma discussão mais aprofun-dada, ver Cap. 7, A ciência.)
Negar o mito é negar uma das formas fundamentais da existência humana. O mito é a primeira forma de dar significado ao mundo: fundada no desejo de segurança, a imaginação cria histórias que nos tranqüilizam, que são exemplares e nos guiam no dia a-dia.
Continuamos a fazer isso pela vida afora, independente de nosso desenvolvimento intelectual. Essa função de criar fábulas subsiste na arte popular (ver Cap. 19) e permeia a nossa vida diária.
Hoje em dia, os meios de comunicação de massa trabalham em cima dos desejos e anseios que existem na nossa natureza inconsciente e primitiva.
Os super-heróis dos desenhos animados e dos quadrinhos, bem como os personagens de filmes como Rambo, Os justiceiros e outros, passam a encarnar o Bem e a Justiça e assumem a nossa proteção imaginária, exatamente porque o mundo moderno, com inflação, seqüestros, violência e instabilidade no emprego, especialmente nos grandes centros urbanos, revela-se cada vez mais um lugar extremamente inseguro.
No campo político, certas figuras são transformadas em heróis, pregando um modelo de comportamento que promete combater, além da inflação, a corrupção, os privilégios e demais mordomias. Prometem, ainda, levar o país ao desenvolvimento, colocando-o no Primeiro Mundo. Prometem riqueza para todos. Têm de ganhar a eleição, não é?
Também artistas e esportistas podem ser transformados em modelos exemplares: são fortes, saudáveis, bem-alimentados, têm sucesso na profissão — sucesso que é traduzido em reconhecimento social e poder econômico —, são excelentes pais, filhos e maridos, vivem cercados de pessoas bonitas, interessantes e ricas. Como não mitificá-los?
Até a novela, ao trabalhar a luta entre o Bem e o Mal, está lidando com valores míticos, pré-reflexivos, que se encontram dentro de todos nós. Aliás, nas novelas, o casamento também é transformado em mito: é o grande anseio dos jovens enamorados, é a solução de todos os problemas, o apaziguamento de todas as paixões e conflitos. Por isso quase todas terminam com um verdadeiro festival de casamentos.
Só que os astros transformados em mito são heróis sem poder real: têm somente poder simbólico no imaginário da população.
E as festas de formatura, de Ano Novo, os trotes dos calouros, o baile de quinze anos, não são em tudo semelhantes aos rituais de passagem? Da morte de um estado e passagem para outro?
Assim, vemos que mito e razão se complementam nas nossas vidas. Só que o mito de hoje, se ainda tem força para inflamar paixões, como no caso dos astros, dos políticos ou mesmo de causas políticas ou religiosas, não se apresenta mais com o caráter existencial que tinha o mito primitivo. Ou seja, os mitos modernos não abrangem mais a totalidade do real. Podemos escolher um mito da sexualidade (Madonna, talvez?), outro da maternidade, ou-tro do profissionalismo, sem que tenham de ser coerentes entre si. Sem que causem uma revolução em toda nossa vida. Assim como houve uma especialização do trabalho, parece que houve uma especialização dos mitos. De qualquer forma, como mito e razão habitam o mesmo mundo, o pensamento reflexivo pode rejeitar alguns mitos, principalmente os que veiculam valores destrutivos ou que levam à desumanização da sociedade. Cabe a cada um de nós escolher quais serão nossos modelos de vida.
(Maria Lúcia de Arruda Aranha, Maria Helena Pires Martins - "Temas de filosofia")