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O retorno da Águia

por Thynus, em 30.04.13

 

 

Vivemos em uma época sombria: a Renascença ainda não veio. Hoje, podemos viajar a grandes velocidades, mas não sabemos porque desejamos chegar ao nosso objetivo; o Homem conhece cada palmo da superfície da Terra, mas não conhece mais a si mesmo; pode desembarcar na Lua mais facilmente que Ulisses pôde fazer na Ítaca, mas não dispõe de um Homero ou Virgílio para cantar essa façanha, e inscrever o seu significado simbólico na alma coletiva. Suas cidades são imensas, mas a vida é desumana e alienante; os prédios, monumentais, não mais reproduzem a estrutura do cosmos em suas formas, nem abrigam os Mistérios em suas medidas. Os médicos jactam-se de poder curar muitas doenças, mas não percebem que todas elas foram e continuarão a ser produzidas pela própria civilização, numa ciranda interminável; por outro lado, converteu-se a nossa medicina em mera caçadora de sintomas, buscando invariavelmente eliminar uma doença, sem procurar compreender o significado de seu surgimento em determinada pessoa ou determinado meio. A superstição medieval de que os vírus são os causadores das doenças, em vez de meros oportunistas, deverá durar ainda um tempo considerável, o necessário para cair o mito da causa e do efeito.
O Homem tem aprendido a prolongar a quantidade de seus dias, mas vê deteriorar-se inexoravelmente a qualidade dos mesmos, destituindo a velhice de sua dignidade e sabedoria. Apregoa que conhece e pode explicar quase tudo, mas nunca sentiu tanto medo da morte. Ingenuamente, gaba-se de ter sepultado a superstição, mas bate na madeira, teme o diabo, o gato preto e o número treze; evita pronunciar o nome das doenças incuráveis, acredita nos anabolizantes, na televisão, na injeção para resfriado e na vitamina C. Suas máquinas são aparentemente perfeitas, mas sujam o céu, a terra, as águas e o próprio homem; as conquistas tecnológicas são muitas, mas o engenho parece estar antes de mais nada a serviço da vaidade, da desídia e da intemperança. As escolas nos cobrem de informações, mas deixam-nos desprovidos da capacidade crítica e do bom senso. A história cumula-nos de fatos, mas o homem moderno rompeu com a ancestralidade, perdeu os seus mitos, e vê as antigas civilizações como obsoletas e ultrapassadas; desse modo, acaba ficando sozinho na trilha da história, com suas aflições e angústias, sem saber quem é, de onde veio, nem para onde vai.
Mas sem dúvida há uma grande esperança. A Humanidade tem atravessado ciclos de trevas, mas nem por isso tem deixado de reencontrar o seu caminho, e os augúrios nos são dos mais favoráveis. Juliano, o último imperador iniciado de Roma, a quem Máximo introduziu nos mistérios de Hélio, e mais tarde rotulado pela Igreja como O Apóstata, por ter recusado a deixar-se converter à doutrina cristã, certa vez teve um sonho. Nele, a águia romana levantava vôo do Capitólio, dirigindo-se para as altas montanhas do Oriente; após uma permanência que o sonho estipulara como dois mil anos, retornava ao Ocidente, trazendo em suas garras uma série de símbolos. Intrigado com a experiência, levou-a ao mestre, que a interpretou da seguinte maneira: a águia representava a Sabedoria, que haveria de retirar-se de Roma, último baluarte do saber esotérico, escondendo-se no Oriente por dois mil anos. Ao cabo desse período, retornaria ao Ocidente, trazendo de volta um conhecimento esquecido. Esse tempo já está quase cumprido. Estejamos preparados para saudar o retorno da Águia!

(Antonio Farjani - "A linguagem dos deuses")

publicado às 14:01

 

 

Liberdade é mais que uma faculdade do ser humano. a de poder escolher ou o livre arbítrio. A liberdade pertence à essência do ser humano. Mesmo sem poder escolher, o escravo não deixa de ser, em sua essência, um ser livre. Pode resistir, negar e até se rebelar e aceitar ser morto. Essa liberdade ninguém lhe pode tirar.
Entre muitas definições, penso que esta é, para mim, a mais correta: liberdade é capacidade de  auto-determinação.
Todos nascem dentro de um conjunto de determinações: de etnia, de classe social, num mundo já construído e sempre por construir. É a nossa determinação. Ninguém é livre de alguma dependência. Ela pode ser uma opressão como o trabalho escravo ou o baixo salário. Ao lutar contra, exerce  um tipo de liberdade: liberdade de, desta situação. É a luta por sua in-dependência e  autonomia.   Ele se auto-determina: assume a determinação mas para superá-la e ser livre de, livre dela.
Mas existe ainda um outro sentido de liberdade como  auto-determinação: é aquela força interior e própria (auto) que lhe permite ser livre para, para construir sua própria vida, para ajudar a transformar as condições de trabalho e para criar outro tipo de sociedade onde seja menos difícil ser livre de e para. Aqui se mostra a singularidade do ser humano, construtor de si mesmo, para além das determinações que o cercam. A liberdade é uma libert-ação, vale dizer, uma ação autônoma que cria a liberdade que estava cativa ou ausente.
Estes dois tipos de liberdade ganham uma expressão pessoal, social e global.
Em nível pessoal a liberdade é o dom mais precioso que temos depois da vida: poder se expressar, ir e vir, construir sua visão das coisas, organizar a vida como gosta, o trabalho e a família e eleger seus representantes políticos. A opressão maior  é ser privado desta liberdade.
Em nível social ela mostra bem as duas faces: liberdade como independência  e como autonomia. Os países da América Latina e do Caribe ficaram independentes dos colonizadores. Mas isso não significou ainda autonomia  e libertação. Ficaram dependentes das elites nacionais que mantiveram as relações de dominação. Com a resistência, protestação e organização dos oprimidos, gestou-se um processo de libertação que, vitorioso, deu autonomia às classes populares, uma liberdade para  organizarem outro tipo de política que beneficiasse os que sempre foram excluídos. Isso ocorreu na América Latina a partir do fim das ditaduras militares que representavam os interesses das elites nacionais articuladas com as internacionais. Está em curso um processo de libert-ação para, que não se concluiu ainda mas que fez avançar a democracia nascida de baixo, republicana e de cunho popular.
Hoje precisamos também de uma dupla libertação: da globalização econômico-financeira que explora mundialmente a natureza e os países periféricos, dominada por um grupo de grandes corporações, mais fortes que a maioria dos Estados. E uma libertação para uma governança global desta globalização que enfrente os problemas globais como o aquecimento, a escassez de água e a fome de milhões e milhões. Ou haverá uma governança colegiada global ou há o risco de uma bifurcação na humanidade, entre os que comem e os que não comem ou padecem grandes necessidades.
Por fim,  hoje se impõe urgentemente um tipo especial de liberadade de e de liberdade para. Vivemos a era geológica do antropoceno. Isto significa: o grande risco para todos  não é um meteoro rasante, mas a atividade irresponsável e ecoassassina por parte dos seres humanos (ántropos). O sistema de produção imperante capitalista, está devastando a Terra e criou as condições de destruir toda a nossa civilização. Ou mudamos ou vamos ao encontro de um abismo. Precisamos de uma liberdade deste sistema ecocida e biocida que tudo põe em risco para acumular e consumir mais e mais.
Precisamos também de uma liberdade para: para ensairmos alternativas que garantam a produção do necessário e do decente pra nós e para toda a comunidade de vida. Isso está sendo buscado e ensaiado pelo bien vivir das culturas andinas, pela ecoagricultura, pela agricultura familiar orgânica, pelo índice de felicidade da sociedade e outras formas que respeitam os ciclos da vida. Queremos  uma biocivilização.
Como cristãos precisamos também libertar a fé cristã de visões fundamentalistas, de estruturas eclesiásticas autoritárias e machistas para chegarmos a uma liberdade para as mulheres serem sacerdotes, para os leigos poderem decidir junto com o clero os destinos de sua comunidade, para os que tem outra opção sexual. Precisamos de uma Igreja que, junto com outros caminhos espirituais, ajude a educar a humanidade para o respeito dos limites da Terra e para a veneração da Mãe Terra que tudo nos dá.
Esperamos que o Papa Francisco honre a herança de São Francisco de Asssis que viveu uma grande liberdade das tradições e para novas formas de relação para com a natureza e com os pobres.
A luta pela liberdade nunca termina, porque ela nunca é dada mas conquistada por um processo de libert-ação sem fim.

(Leonardo Boff) 

publicado às 23:08


TORQUEMADA E A SANTA INQUISIÇÃO

por Thynus, em 29.04.13

 

 


Com o intuito de ser mais justo possível para com a Inquisição, tentei examiná-la através de seus próprios depoimentos. Confiei, exclusivamente, em fontes católicas ao colher o material para este capítulo, e, por conseguinte, considerarei a Inquisição sob o ângulo daqueles que a patrocinaram, que a defenderam no passado e estão prontos, em teoria ao menos, a defendê-la hoje.
Os primeiros cristãos, fiéis aos ensinamentos de Cristo, opunham-se a qualquer espécie de violência. Tertuliano negava o direito a qualquer cristão de servir no exército. “Certamente não faz parte da religião”, dizia ele, “forçar a religião. Ela deve ser abraçada livremente e não por coação.” Era esta também a doutrina de Orígenes e de Lactâncio. “Não há justificação para a violência”, escrevia Lactâncio, “pois a religião não pode ser imposta pela força.”
No século IV, contudo, houve uma mudança nos corações dos cristãos. Agostinho assegurava que em “alguns” casos era permitido matar descrentes. Optato estendia a pena de morte a “todos” os hereges, Agostinho e Optato são, hoje, venerados como santos. Na cidade de Verona queimaram vivos cerca de sessenta homens num mês.
Os bispos tinham ordens de assalariar informantes, cujo dever era denunciar todos os cristãos suspeitos, isto é, todos aqueles cuja maneira de viver divergia da dos católicos. Os bispos, então, examinavam estes cristãos e os puniam como achavam conveniente. Os bispos que deixassem de contribuir com suas quotas de hereges queimados eram, por ordem do Papa, depostos de seus cargos; quando mostravam muita clemência para com suas vítimas, eram ameaçados de prisão, sob a acusação de heresia. Deste modo, assegurava o Papa um constante fornecimento de seres humanos “para a glória do Senhor”, e casualmente também para a sua riqueza pessoal, pois que a Igreja confiscava a propriedade dos condenados. Os bispos, com todo o seu zelo, não eram nem suficientemente sedentos de sangue, nem bastante eficazes para satisfazer ao Papa.
A fim de descobrir todos os pecadores e exterminar todo o pecado da cristandade, eram necessários espiões treinados. De acordo com esse preceito, o Papa aceitou o auxílio de dominicanos. Estes, como estão lembrados, eram os sectários de Domingos, que santamente advogava o batismo pela espada. Agora, o Papa Gregório IX tirava vantagem desse treinamento dos dominicanos na arte da selvageria eclesiástica, e, com a sua ajuda, transformou a Inquisição num negócio poderoso e lucrativo. Numa carta que Gregório dirigiu aos dominicanos, delineava os seus deveres do seguinte modo:

“Logo ao chegar a uma cidade, convoquem os bispos, o clero e o povo, e preguem um solene sermão de fé; depois, façam uma seleção de certos homens de boa reputação para estes os ajudarem no julgamento dos hereges e de suspeitos denunciados nos seus tribunais. Todos os que, em exame, forem achados culpados ou suspeitos de heresia, serão obrigados a prometer obediência absoluta aos comandos da Igreja. Se eles recusarem, devem processá-los.”

Por que estava o Papa tão sedento de hereges? Só por uma razão: os hereges se opunham ao esplendor do Papa. Representavam os socialistas cristãos e os anarquistas filosóficos do mundo medieval. Foram os antepassados espirituais de Emerson e de Tolstoi. Havia vários grupos, tendo todos uma coisa em comum: acreditavam na doçura de Cristo e odiavam a arrogância dos padres. “Cristo”, diziam “não tinha onde descansar a cabeça, ao passo que os Papas vivem num palácio. Cristo rejeitava domínios terrestres, enquanto os Papas os exigem. O que tem o papado romano, com sua sede de riquezas e honrarias, em comum com o evangelho de Cristo?” Como aconteceu mais tarde com a seita dos quacres, os hereges pregavam contra a opressão, o ódio, a pena capital e a guerra. Suas teorias radicais, escreve Vacandard, “não eram só anticatólicas, mas antipatrióticas e anti-sociais”. E, assim, matando todos esses amantes da paz a Igreja agia simplesmente em defesa própria o crescimento de suas idéias devia ser embargado a todo custo. Ainda que fosse à custa da morte!

É interessante notar que esta não é a opinião de um padre medieval, e sim de um historiador católico moderno. O espírito da Inquisição, como parece, ainda está bem vivo em certos lugares, mesmo em nossos dias.

A Inquisição tomou a si o encargo de perseguir não somente os hereges, isto é, os cristãos que se desviassem do caminho ortodoxo, mas também os maometanos e os judeus. Os maometanos e os judeus que viviam na Europa cristã e particularmente na Espanha eram considerados bons combustíveis para a santa fogueira... não tanto porque seus corações se achassem repletos de pecados, mas porque seus cofres se achavam cheios de ouro. Primeiro, eram eles compelidos a aceitar a religião cristã, e depois eram assados vivos, na suposição de que fossem “maus” cristãos.
O homem que mais sobressaiu em zelo nas incinerações de maometanos e judeus foi Tomás de Turrecremata, ou como é mais geralmente conhecido, Tomás de Torquemada. Se Gregório IX foi o pai da Inquisição, Torquemada foi o seu produto mais perfeita. Tinha paixão por três coisas: oração, dinheiro e assassínios. Era um beato convicto — um dos animais humanos mais perigosos. Pensava que satisfazia a vontade de Deus matando seus semelhantes. Era um louco piedoso, investido pelo Papa com poder de dar vazão a toda sua loucura. Durante sua presidência da Inquisição, queimou cerca de dois mil homens e mulheres (alguns calculam o número em oito ou nove mil), e quebrou os ossos de dezenas de milhares de seres, com instrumentos de tortura. Servia igualmente de acusador, testemunha e juiz, e freqüentemente “dava uma ajudazinha” na câmara de tortura. Examinemos, rapidamente, o processo da Inquisição sob a direção de Torquemada.
Para começar, o inquisidor expedia uma intimação geral, ordenando que os hereges aparecessem à sua presença e abjurassem suas heresias dentro do prazo de trinta dias. Bem poucos, naturalmente, denunciavam-se espontaneamente. Ao findar o “período de graça”, todo católico era incitado a denunciar todos os habitantes da cidade que suspeitasse de heresia. Para culpar alguém, bastavam duas testemunhas e essas testemunhas podiam ser ladrões ou assassinos, desde que fossem cristãos confessos. Ao acusado, porém, não era permitido ter nem advogados, nem testemunhas. E, ainda mais, os nomes dos espiões e das testemunhas para a Inquisição não eram revelados ao acusado. Com todas as cartas assim dispostas contra ele, o prisioneiro achava-se virtualmente impossibilitado de provar a falsidade da acusação. Se se confessava cristão, era mandado para a prisão; se, por outro lado, insistisse em sua inocência, era levado à câmara de tortura.
Poder-se-ia escrever um livro interessante, embora bem pouco agradável, sobre os instrumentos de tortura empregados pelos inquisidores a serviço do Senhor. Mencionarei, rapidamente, apenas dois ou três.
Primeiro havia o Strappado. Vacandard, o moderno apologista da Inquisição, descreve-o como segue: “O prisioneiro, com as mãos amarradas para trás, era levantado por uma corda que passava por uma roldana, e guindado até o alto do patíbulo ou do teto da câmara de tortura; em seguida, deixava-se cair o indivíduo e travava-se o aparelho ao chegar o seu corpo a poucas polegadas do solo. Repetia-se isso várias vezes. Os cruéis carrascos, às vezes, amarravam pesos nos pés da vítima, a fim de aumentar o choque da queda.
“Depois havia a tortura pelo fogo. Colocavam-se os pés da vítima sobre carvão em brasa e espalhava-se por cima uma camada de graxa, a fim de que este combustível estalasse ao contato com o fogo. Os inquisidores estavam ali enquanto o fogo martirizava a vítima, e incitavam-na, piedosamente, a aceitar os ensinamentos da Igreja em cujo nome ela estava sendo tratada tão delicadamente e tão misericordiosamente. Para que houvesse um contraste com a tortura pelo fogo, também praticavam a da água.

“Amarrando as mãos e os pés do prisioneiro com uma corda trançada que lhe penetrava nas carnes e nos tendões, abriam a boca da vítima à força, despejando dentro dela água até que chegasse o ponto de sufocação ou confissão.”

Em suma, todas as imaginações bárbaras do espírito de Dante, quando escreveu o Inferno, foram incorporadas em máquinas reais que cauterizavam as carnes, esticavam os corpos e quebravam os ossos de todos aqueles que recusavam crer na branda misericórdia dos Inquisidores.
E agora citemos mais uma vez o Sr. Vacandard:

“De acordo com a lei, tortura só podia ser infligida uma vez, mas essa regulamentação era burlada facilmente ... quando desejavam fazer repetir a tortura, mesmo depois de um intervalo de alguns dias, infringiam a lei, não alegando que fosse uma repetição, mas simplesmente uma continuação da primeira tortura... Esse jogo de palavras dava margem à crueldade e ao zelo desenfreado dos inquisidores.”

Se, por fim, sob a dor que a tortura causava, a vítima prometesse ser um bom católico, era posta, geralmente, em prisão perpétua. Se, porém, recusasse a atirar-se nos braços da Igreja, era entregue às chamas. Teoricamente, como já observei, a Igreja fazia questão de dizer que nada tinha com o assassínio de suas vítimas. Apenas “retirava sua proteção” dessas criaturas e entregava-as à justiça. Tecnicamente falando, suas mãos ficavam limpas. Mesmo os historiadores modernos tentam salvá-la de todas as vergonhas em relação aos assassínios de homens e mulheres que cometeu. José de Maistre, escrevendo no século XIX, foi suficientemente ingênuo para fazer a seguinte observação surpreendente:

“Quando examinarmos a Inquisição, é preciso separar e distinguir muito cuidadosamente o papel da Igreja e o do Estado. Tudo o que há de horrível e cruel neste Tribunal, especialmente sua pena de morte, é devido ao Estado... Toda a clemência, por outro lado, que tem um papel tão preponderante no tribunal da Inquisição deve ser atribuída à Igreja.”

Na realidade, infelizmente, a Igreja não só condenava as suas vítimas, como também insistia sobre suas mortes. De acordo com uma lei estabelecida pelo Papa Inocêncio IV, o Estado era obrigado a queimar, dentro de um período de cinco dias, todos os prisioneiros condenados que a Igreja lhe confiasse. Todos aqueles príncipes que se recusassem a matar os condenados hereges eram prontamente excomungados pela Igreja.
Mas a mancha mais negra da Inquisição era o tratamento bárbaro dos filhos dos condenados. Quando queimava um homem, a Igreja confiscava suas propriedades. Não permitia aos filhos herdar um único vintém. A esta regra, contudo, far-se-ia uma exceção importante. E esta exceção era ainda mais desumana do que a regra. Os filhos de pais hereges podiam herdar uma parte de suas propriedades, desde que espionassem e denunciassem seus progenitores à Inquisição. Esta lei incrível, estabelecida por Frederico II, foi reforçada no texto da carta por muitos inquisidores e particularmente por Torquemada. De fato, os pais da Igreja não só acreditavam nesta lei, como também se orgulhavam dela. O Papa Gregório IX dizia que fazia bem a seu coração ver como as crianças se voltavam contra seus pais, por amor a Deus. “Deixai vir a mim os pequeninos”, dizia Cristo. E a santa irmandade da Inquisição respondia: “Sim, na verdade, Senhor! Nós deixaremos sofrer os pequeninos, de maneira que eles possam ir a Vós!”

Um dos principais atos da Inquisição, e o acontecimento culminante na vida de Torquemada, foi a expulsão dos judeus da Espanha. Em sua juventude, Torquemada foi o confessor da Princesa Isabel, que mais tarde veio a ser esposa do Rei Fernando. Tal como seu confessor fanático, Isabel era vingativa, estúpida, bárbara e devota. Prometera a Torquemada que devotaria sua vida inteira à exterminação da heresia.
Quando se tornou rainha da Espanha, encontrou um aliado entusiástico em seu marido. Fernando foi um dos reis mais cobiçosos. Era ávido em queimar os judeus porque suas propriedades, quando confiscadas pela Igreja, eram divididas entre os padres e ele. Quando Torquemada veio queixar-se a ele de que todos os judeus deviam ser expulsos da Espanha, escutouo avidamente, pois a expulsão dos judeus significaria uma pilhagem, por atacado, aos seus bens e ao seu ouro, uma parte substancial da qual tornar-se-ia ,sua propriedade pessoal. Com um simples golpe de pena poderia tornar-se o homem mais rico da Europa. Isabel, não sendo mais do que uma argila maleável nas mãos de um velho padre confessor,aderiu prontamente a seus planos. O decreto da expulsão dos judeus foi elaborado e apresentado aorei para ser assinado.
Entrementes, os judeus lançavam mão de tudo o que estava ao seu alcance para abrandar o coração do rei. Jogados de um lado para outro pelos ventos da intolerância religiosa, eles eram expulsos de uma região para outra. Tudo o que pediam agora ao Rei Fernando era que os deixasse em paz. Mandaram-lhe os oradores mais eloqüentes. Lembraram-lhe que eles o tinham ajudado a pagar as despesas de suas guerras com os mouros. Ofereceram-lhe um presente de 30.000 ducados — uma soma tentadora aos olhos do cobiçoso príncipe. Fernando, nada inclinado a escutar seus argumentos, estava pronto a considerar o ouro, quando Torquemada, precipitando-se no palácio real, segurando um crucifixo no ar, em suas mãos enrugadas — nesse tempo ele já tinha mais de setenta anos — berrou: “Eis aqui aquele Judas, que vendeu Jesus por 30 moedas de prata! Estais vós porventura pronto a vendê-lo por 30.000 moedas de prata novamente?” Não, trinta mil não era bastante. Torquemada subjugara a vontade do rei e da rainha. O edito contra os judeus foi assinado em 31 de março de 1492. De acordo com este edito, todo judeu residente em território espanhol deveria ser batizado dentro de quatro meses ou deixar o país para sempre. Trezentos mil preferiram o, exílio ao cristianismo. Permitia-se-lhes vender suas propriedades, mas os compradores esperavam astuciosamente até o último momento, quando podiam ditar seus próprios preços. Bernaldes, um autor contemporâneo, afirma ter visto judeus deixarem um palácio por um burro, e um vinhedo por uma peça de linho. Aos exilados era proibido levar qualquer porção de ouro consigo.
Tendo assim roubado os judeus e os lançado para fora do país, os cristãos regozijaram-se com suas barbaridades. “Eis aqui”, gritava o irmão dominicano Bleda, “o acontecimento mais glorioso da Espanha, desde o tempo dos apóstolos; agora a unidade da religião está assegurada; uma era de prosperidade está, realmente, para chegar.” Mas a esperada alvorada de prosperidade jamais chegou. Pelo contrário, a expulsão dos judeus marcou o começo do ocaso da prosperidade espanhola.
Ao serem expulsos da Espanha, os judeus não sabiam então para onde se dirigir, em busca de proteção. Um grande número deles lançou-se sob a misericórdia de Manuel, rei de Portugal. Mas o rei chamava-se a si próprio de cristão piedoso, Pilhou o que os judeus conseguiram salvar e ordenou-lhes então que deixassem o país. Esse “rei misericordioso” fez a sua manobra bem-feita. Roubou não só os bens dos judeus, como também seus filhos, pois expediu uma ordem secreta para seqüestrar todas as crianças judias menores de 14 anos, a fim de que fossem batizadas e educadas como cristãos.

Quanto a Torquemada, alimentava os fogos sagrados lançando nas chamas várias centenas de hereges, “Sua crueldade”, dizem seus admiradores, “explica-se pelo seu sincero desejo de salvar os hereges.” Tal como seu amado Tomás de Aquino, “ele consolava seu coração entristecido, refletindo que agia pelo bem da Igreja”. Pois convém notar que Torquemada ignorava que fosse cruel. Como todos os outros inquisidores, ele mutilava e assassinava suas vítimas misericordia et justitia — com misericórdia e justiça. Essa era a frase dos inquisidores quando sentenciavam suas vítimas a morrer queimadas.
Torquemada retirou-se da Inquisição com setenta e quatro anos e morreu dois anos depois, em 1498.
A Inquisição, porém, continuou até o século, XIX.

(Henry Thomas - "A HISTÓRIA DA RAÇA HUMANA")

 

publicado às 20:51


TERROR: DEPOIS DE 11 DE SETEMBRO

por Thynus, em 29.04.13

 

 

Certo final de tarde, no outono, um aluno parisiense sentou-se em minha cozinha em Berlim e perguntou, do nada, onde eu estava ao ouvir a notícia. Ele poderia ter vindo de Boston, de Santiago ou de Zagreb. Onde quer que estivéssemos, quem quer que sejamos, esse é um instante que não vamos esquecer e do qual precisamos nos lembrar vezes sem conta — assim como precisamos ver o World Trade Center caindo, incontáveis vezes, na televisão, até ficarmos enjoados o suficiente para ter certeza de que aquilo foi real. Isso é globalização. Será isso Lisboa?
Os paralelos são inegáveis. A surpresa e a velocidade do ataque pareciam-se com as de uma catástrofe natural. Não houve aviso. Também não houve mensagem. A ausência de ambos criou o tipo de medo que fez a maioria de nós entender que não havíamos, até então, compreendido o significado da palavra terror. Como os terremotos, os terroristas atacam aleatoriamente: quem sobrevive e quem morre dependem de contingências que não podem ser merecidas ou evitadas. Pensadores como Voltaire sentiram raiva de Deus por Seu fracasso em sustentar as leis morais elementares que os seres humanos tentam seguir. Crianças não deveriam ser atormentadas súbita e brutalmente, nem algo tão grande quanto a diferença entre vida e morte deveria depender de algo tão pequeno quanto a probabilidade. O desastre natural é cego quanto às  distinções morais estabelecidas mesmo pela mais simples das justiças. O terrorismo as desafia deliberadamente. Ao ressaltar a contingência, 11 de setembro ressaltou nossa infinita fragilidade. Mesmo em Nova York, muitas pessoas não conheciam ninguém que estivesse no World Trade Center na hora do ataque, mas todos pareciam conhecer alguém que estivesse então se recuperando de uma ressaca ou levando uma criança ao jardim de infância. Quando não ir ao trabalho se torna um modo de salvar a própria vida, nossa noção de impotência torna-se assombrosa. Os terroristas escolheram alvos que a aumentassem de forma certa. Wall Street e o Pentágono são ao mesmo tempo símbolos e realidade da força ocidental, e não está claro o que foi mais assustador: a queda das torres ou o ataque aos recantos impenetráveis do poder militar. Tampouco a visibilidade ou a invisibilidade forneceram proteção. Ao ver ambas ruírem tão depressa, ninguém seria capaz de se sentir seguro. Pessoas comuns em todos os lugares faziam eco a Arendt: o impossível havia-se tornado verdade.
Assim, foi dito e escrito, nas ruas e nos jornais, em mais línguas do que vale a pena contar, que o mundo não será mais o mesmo. É cedo demais para saber o que isso significa. A razão é, em parte, que as conseqüências não são todas claras. Outra razão é que a única maneira de manter um mundo funcionando é negar que ele tenha sido destruído. Não podemos saber se uma época terminou com um acontecimento quando não considerar o acontecimento crucial for essencial para seguir em frente. Isso faz parte de manter a ordem frente a quaisquer desafios ou tentativas de destruí-la. Pombal precisou minimizar o significado do terremoto de modo a fazer Lisboa voltar à normalidade. Suas exortações para retomar os afazeres normais tiveram a mesma origem das de Giuliani: quando tudo conspira contra, tomar a vida comum pode ser um ato de heroísmo. Durante um ou dois dias depois da catástrofe, a própria língua parecia inútil. Ao meio-dia de 12 de setembro, a CNN exibiu fotografias silenciosas acima de uma faixa com a legenda: SEM COMENTÁRIOS SEM COMENTÁRIOS SEM COMENTÁRIOS SEM COMENTÁRIOS SEM COMENTÁRIOS SEM COMENTÁRIOS. Ao cair da noite, havia um noticiário normal abordando todos os assuntos, das perdas econômicas à adequação de discutir o que quer que fosse. Pombal simplesmente fez com que os jornais portugueses continuassem a ser impressos. Em nossa época de auto-reflexão, a mídia apressou-se em defender sua própria volta aos afazeres normais. Isso não era necessário. A intenção do terror é deixar-nos petrificados. Encontrar palavras para lhe fazer frente é um ato de reconstrução.
Ainda assim, não somos capazes de dizer o quanto o mundo vai mudar. Agora enfrentamos novas formas de perigo. Mas elas não são, afirmo, novas formas de mal. As dificuldades de lidar com o terrorismo não são conceituais. Aqueles que perpetraram o assassinato em massa de 11 de setembro personificavam um tipo de mal tão antiquado, que sua reaparição faz parte de nosso choque. Ele é antiquado não por ter sido perpetrado por aqueles que conservavam as ideologias fundamentalistas intocadas por escrúpulos modernos. Ver o poder da crença em um Deus que recompensa aqueles que destroem seus inimigos com uma caricatura azeda do paraíso só pode deixar-nos agradecidos pelo ceticismo, mas o conteúdo das crenças dos terroristas não é central. Algumas das decisões dos nazistas de morrer em vez de se render nos últimos dias da guerra vinham de fantasias milenaristas primitivas, e, no entanto, argumentei que o Terceiro Reich simbolizava o mal contemporâneo; 11 de setembro forneceu um exemplo de mal cuja estrutura era antiquada. O mal banal emerge do tecido da vida comum que 11 de setembro rasgou.
Mais importante de tudo: 11 de setembro foi assombrosamente intencional. A premeditação envolvida foi intensa. Os assassinos concentraram-se precisamente em seu objetivo e realizaram todos os esforços possíveis para atingi-lo — do exato planejamento exigido para anos de coordenação ã preparação de suas próprias mortes certas. O uso mais claro da racionalidade instrumental foi equivalente ao mais claro desafio ao raciocínio moral. A natureza ignora distinções entre todo tipo de culpa e todo tipo de inocência; os terroristas desprezaram-nas de forma ativa. Sem sequer uma demanda que pudesse ser negociada, não havia a mais ínfima desculpa para a destruição de vidas comuns. Os objetivos dos terroristas eram, isso sim, produzir o que a moralidade tenta evitar: morte e medo. (Rousseau considerava o medo da morte pior do que a própria morte, já que o medo ameaça nossa liberdade e envenena nossas vidas.) Malícia e premeditação, componentes clássicos da intenção má, raramente foram tão bem combinados. Os terroristas desconsideraram modelos complexos como Mefistófeles e nos levaram de volta a Sade. Alguns sem dúvida argumentarão que eles acreditavam que sua causa fosse justa. Mas a ausência de pelo menos um ultimato torna inútil qualquer tentativa de defesa desse tipo de terrorismo — mesmo para quem gosta de defender contradições. Destruir membros aleatórios de uma cultura que se considera inaceitável não conta como causa permissível.
Mais tarde, isso veio a parecer um presságio. A lenta e inexorável destruição dos duplos Budas gigantes no Afeganistão fez correrem calafrios pela espinha de um mundo há muito acostumado a ver crianças morrerem de fome diante das câmeras. A explosão talibã do que era, afinal de contas, apenas pedra e estátua, atraiu dias de atenção global inexplicável. Seria aquilo um presságio da implosão das torres alguns meses depois? Heine escreveu que qualquer pessoa disposta a queimar livros não hesitará em queimar pessoas. A frase foi escrita muito antes de alegres estudantes nazistas empilharem livros banidos em fogueiras públicas, e sua presciência hoje parece assustadora. Escolher a cultura humana como um objetivo tão preciso — aquilo que nos torna livres, segundo Hegel, e capazes de assumir o papel de criadores, segundo Marx — é ter como objetivo a própria humanidade.
Mas os paralelos param por aí. Os talibãs e os terroristas que eles apoiavam não são brutamontes complexos. Sua aparição em uma manhã de sol no centro da civilização foi chocante porque estávamos acostumados a mais sofisticação, assim como a mais segurança. Aqueles cujo alimento intelectual não se limita a velhos filmes de caubói não estavam mais acostumados a juízos morais tão claros. Forçadas a escolher entre a simplificação e o cinismo, pessoas educadas tendem à segunda opção. Havia provas suficientes para fazê-la parecer razoável. Wall Street parecia determinada a mostrar que tudo podia ser comprado e vendido, o Pentágono parecia decidido a renovar a crença pré-socrática de que justiça significa ajudar os amigos e ferir os inimigos. Depois de 1989, apenas interesses, não idéias, pareciam objetos de um conflito real. É bem fácil concluir que qualquer conflito entre o bem e o mal em si não fosse nada a não ser exagero.
Isso paralisou a reação moral. Aqueles cujas concepções do mal sempre foram simples e demoníacas ficaram felizes em vê-las confirmadas. Isso lhes deu novas missões e novas desculpas para executar missões antigas. Aqueles cujas concepções do mal haviam sido forjadas menos por Hollywood do que pelo Chile, Vietnã, Auschwitz e Camboja ficam mais confusos. Aprendemos com quanta facilidade crimes são cometidos por meio de estruturas burocráticas de pessoas comuns que não se permitem reconhecer exatamente o que estão fazendo. A análise de Arendt sobre Eichmann nunca foi completamente elaborada. Mas a descrição do mal como impensado simbolizava tantos casos de mal contemporâneo, que estávamos despreparados para um caso de mal decidido e pensado. A noção de impotência conceitual que os terroristas produziram assim foi quase tão grande quanto qualquer outra noção de impotência. Parece que não nos resta nenhuma escolha boa. Chamar o que aconteceu em 11 de setembro de mal parece unir forças com aqueles cujas concepções simples, demoníacas, do mal com freqüência ocultam deliberadamente suas formas mais insidiosas. Não qualificar os assassinatos de mal parecia relativizá-los por meio de modalidades de cálculo que os tornam compreensíveis — e corria o risco de ser um passo rumo a sua justificação.
Alguns estavam dispostos a dar esses passos e a oferecer formas cruas de teodicéia vindas de diversas direções. Os fundamentalistas cristãos culpavam o mundo secular por enfraquecer a vontade divina de proteger a América. Havia sugestões mais numerosas de que os novaiorquinos estavam colhendo o que o Pentágono e Wall Street haviam semeado em todas as formas de sofrimento que causaram no Terceiro Mundo. Apenas aqueles mais próximos dos terroristas continuaram a afirmar que 11 de setembro era, portanto, simples justiça. Mas a falta de uma conclusão coerente não impediu muita gente de apontar para os fatos vezes sem conta, como se eles devessem formar por si só uma conclusão coerente.
Teodicéias simples são tipos de pensamento mágico. Esperar que os poderes que controlam sua vida estejam escutando o que você pensa que eles querem escutar é uma busca desesperada de proteção — o que Kant repreendia nos amigos de Jó. Jerry Falwell nunca fez um aborto; os críticos franceses nunca feriram uma criança iraquiana. Certamente eles devem estar a salvo de um ataque terrorista?
Não estão, claro, mas entendemos seu impulso. Essa maneira de buscar explicações para o mal faz parte de uma tentativa de evitar mais males, bem como de dar conta do mundo como um todo. Se o primeiro anseio é compreensível, o segundo pode ser positivamente recomendado. No entanto, nesse contexto, ambos são obscenos. Pois ambos são formas de negar que o que aconteceu em 11 de setembro foi um mal — quando o sofrimento evidente, insuportável nos olhava nos olhos em qualquer angustiante cartaz caseiro exposto nas ruas de Nova York.
Recusar-se a negar esse tipo de mal não chega a acarretar uma recusa de negar outros tipos. Muito pelo contrário. Dividir os males em maiores e menores e tentar pesá-los não é apenas inútil, mas também inadmissível. Chamar algo de mal é dizer que ele desafia a justificação e o equilíbrio. Males não deveriam ser comparados, mas deveriam ser distinguidos. O surgimento de antigas formas de mal não precisa nos cegar para o surgimento de novas formas e pode até aguçar nossa visão para estas últimas. Uma opressão sistemática em escala mundial nada faz para justificar o terrorismo — nem sequer o explica. Certamente prepara o terreno em que o terrorismo pode crescer. Mas, mesmo que não preparasse, deveria ser objeto de resistência, como um mal em si.
Para aqueles que queriam ouvi-la, Auschwitz ofereceu uma lição moral sobre vigilância. Muito poucas pessoas estão preparadas para destruir as próprias vidas em nome da destruição de outras. Muitas estão preparadas para desempenhar pequenos papéis em sistemas que levam a males que elas não desejam vislumbrar. Muitos cujas vidas foram dedicadas a se opor a formas contemporâneas de mal relutaram em usar essa palavra para se referir aos terroristas — ou a usá-la de qualquer maneira que fosse, exceto em citações alarmistas. Sabiam que ela havia sido usada de forma crua por aqueles cujas vidas foram dedicadas a se tornar surdos para as formas de mal causadas por suas instituições. Mas deixar o discurso moral a cargo daqueles que têm menos escrúpulos é uma maneira estranha de conservar os próprios escrúpulos. Aqueles que se importam com a resistência aos males devem ser capazes de reconhecê-los como quer que eles surjam. Deixar a palavra mal a cargo de quem percebe apenas suas formas mais simples deixa-nos ainda menos recursos com os quais abordar suas formas complexas.
Os males podem ser reconhecidos como tais sem insistir na idéia de que o mal tem uma essência. Nossa incapacidade de encontrar algo profundo que seja comum aos assassinatos em massa cometidos por terroristas e à fome perpetuada por interesses corporativos não evita que condenemos ambos. Pensar com clareza é crucial; encontrar fórmulas não é, pois as possibilidades contemporâneas ameaçam qualquer tentativa moderna de separar os males morais dos naturais. Ataques terroristas imitam os golpes arbitrários da natureza. Se combinados com a reprodução deliberada dos piores elementos da natureza, como a peste, a mistura feita pelo terrorismo de mal moral e mal natural é tão assustadora, que parecemos fadados ao desespero. Usar a intenção humana para superar a natureza no que ela tem de mais pérfido faz as formas anteriores de reorganizar a natureza parecerem risíveis. Saber isso não pode nos fazer esquecer as outras possibilidades que ameaçam confundir as distinções entre os males naturais e morais. Um lento desastre ecológico não é a intenção das nações desenvolvidas que não regulam o consumo que certamente a ele conduzirá — o que não diminui a responsabilidade de ninguém em evitá-lo. Debates sobre qual mistura de mal moral e mal natural é pior não nos levarão a lugar algum. Escrevo com o medo e a consciência de que ambos seriam capazes de destruir todos nós.
O 11 de setembro revelou um motivo para ter esperança de que isso não acontecerá. A decisão dos terroristas de nos fazer sentir que não temos poder mostrou que na verdade temos, pois eles revelaram o
quanto o mal, assim como a resistência a ele, continua nas mãos humanas individuais. Poucos homens com determinação e estiletesmataram milhares de pessoas em um instante e puseram em marcha acontecimentos que ameaçam o mundo como um todo. Isso seria motivo de desespero ou, no melhor dos casos, de reflexão, não fosse pelo vôo 93.
O mal não é apenas o contrário do bem, mas também seu inimigo. O verdadeiro mal tem por objetivo destruir as próprias distinções morais. Uma maneira de fazer isso é transformar as vítimas em cúmplices. Os Sonderkommandos executores do trabalho que permitia que as câmaras de gás funcionassem estavam implicados nelas, embora qualquer oportunidade de resistência não fosse mais possível quando descobriram o que estavam fazendo. O pior horror de 11 de setembro foi o fato de as pessoas no avião que se chocou contra o World Trade Center não terem apenas sido arrancadas de suas vidas comuns e levadas à própria morte, mas se terem tornado parte de explosões que mataram milhares de outras. Essa, pelo menos, foi a avaliação de um punhado de passageiros a bordo do quarto avião que rumava para um alvo indefinido em Washington. Ao contrário dos passageiros dos outros vôos, eles tinham um conhecimento a partir do qual podiam agir. Sem ele, teriam sido tão impotentes quanto aqueles confrontados ao impensável quando as portas dos trens de animais se abriam. Antes de isso acontecer, quem poderia supor que seres humanos seriam extinguidos como vermes ou transformados em bombas vivas?
Aviões destroçados deixam pouca esperança de que algum dia venhamos a saber a história toda, mas o que já sabemos basta. Informados pelo celular de que outros aviões seqüestrados haviam colidido com as torres, algumas pessoas decidiram lutar. Não conseguiram derrotar os terroristas, mas conseguiram garantir que o avião caísse em um descampado. Morreram como morrem os heróis. Ao contrário do personagem hipotético no exemplo de Kant, que prefere morrer a prestar falso testemunho, sua recusa de se tornarem instrumentos do mal foi mais do que um gesto. Jamais saberemos quanta destruição eles evitaram, mas sabemos que evitaram alguma. Eles provaram não apenas que os seres humanos têm liberdade; provaram que podemos usá-la para afetar um mundo que temos medo de não controlar. Isso não é teodicéia. Não é sequer um consolo — embora seja toda a esperança que temos.

(Susan Neiman - "O mal no pensamento moderno")

 

publicado às 14:18


Depressão clínica

por Thynus, em 28.04.13

 

 

Um diagnóstico desse estado clínico envolve mais que um estado de espírito deprimido, por mais persistente e grave que este seja: é preciso que esteja presente um certo número de sintomas característicos, tais como perda de interesse, sentimentos de culpa, perturbações do sono e do apetite, planos suicidas, lentidão de movimentos e incapacidade de sentir prazer. Mas a depressão não é um fenômeno unitário. A depressão maníaca (ou estado bipolar), por exemplo, pode ser distinguida por implicação genética, recorrência clínica (em geral implicando episódios maníacos) e reações a tratamentos específicos. No entanto outras divisões diagnósticas mostraram-se mais difíceis de fazer, e palavras como “reativa” e “neurótica”, em contraste com “endógena” ou “psicótica”, podem confundir, se tomadas literalmente. Está claro hoje, por exemplo, que estados “endógenos” (definidos pelo que se acredita serem sintomas característicos e que alguns crêem surgir espontaneamente dentro do indivíduo) podem, na verdade, ser provocados por crises tais como um aborto ou separação conjugal.
As explicações biológicas recentemente têm tido destaque — em especial variações sobre formulações com respeito a deficiências nas aminas neurotransmissoras do cérebro. Também ficou claro que situações psicossociais tensionantes, particularmente com respeito a perdas e decepções, parecem estar freqüentemente envolvidas na provocação de todas as formas de depressão (deixando de lado o relativamente raro estado bipolar), e que fatores como o apoio psicossocial oferecem certa proteção. Com base nos indícios atuais, se tomarmos o âmbito amplo dos estados depressivos, incluindo os que não chegam a ser examinados por um psiquiatra nem diagnosticados por um clínico geral, os fatores psicossociais provavelmente desempenham um papel muito importante no começo e no decorrer desses estados, e ajudam muito a explicar as grandes diferenças de classe social geralmente presentes nos cenários urbanos. Mais ainda, certos tipos de experiências adversas prematuras, particularmente implicando rejeição e abuso por parte de um dos pais, também podem levar a um risco mais elevado de depressão na vida adulta. Felizmente, nada existe de inevitável nesses efeitos, de vez que uma experiência “positiva” posterior, particularmente em termos de um casamento incentivador ou de uma nova oportunidade, pode reduzir enormemente os riscos.
Os psiquiatras atendem relativamente poucos dos membros da população geral que vivenciam um episódio depressivo, e a tarefa de se ajustar intelectualmente àquilo que examinam é complicada de várias maneiras. Boa parte da disfunção indubitavelmente biológica que se torna presente uma vez que a pessoa está deprimida poderia ser conseqüência de eventos externos, embora possa haver pouca dúvida de que alguma depressão tem origem essencialmente biológica. O mais comum é os psiquiatras atenderem pacientes que se encontram em estado de depressão particularmente profundo, o que é bastante compreensível. Além disso, os pacientes em geral têm mais do que uma depressão pura e simples. Os que apresentam um comportamento “teatral”, como gestos suicidas, têm mais probabilidades de serem levados a psiquiatras, bem como os que apresentam alcoolismo, abuso de substâncias químicas e doenças físicas, da mesma forma que os casos em que o paciente ajudou a provocar a crise imediatamente responsável por sua depressão. De fato, com o uso crescente de drogas antidepressivas na medicina geral, os psiquiatras podem muito bem atender relativamente poucas depressões “comuns”. Dada a natureza seletiva da depressão atendida por psiquiatras, é compreensível um certo ceticismo por parte destes em reação a simples explicações etiológicas. Ao mesmo tempo, cabe a eles reconhecer a possibilidade de que o fenômeno depressivo como um todo pode não se mostrar tão complexo em suas origens quanto pareceria a partir da perspectiva da prática psiquiátrica.

(William Outhwaite & Tom Bottomore - "Dicionário do pensamento social do século XX")

publicado às 00:30


Suicídio

por Thynus, em 28.04.13

 

 

A obra de Émile Durkheim (1897) continua sendo a mais completa, abrangente e influente das teorias sociais sobre o suicídio. Sustentou ele que a consistência das taxas de suicídio era um fato social, explicado pelo grau em que os indivíduos eram integrados e regulados pelas forças morais coagentes da vida coletiva. O suicídio egoísta e altruísta resultava, respectivamente, da subintegração e da superintegração do indivíduo pela sociedade, enquanto que a anomia e o suicídio fatalista eram causados pela sub-regulação e pela super-regulação. Durkheim usou correlações entre o suicídio e várias taxas de associação externa para demonstrar a validade dos seus conceitos fundamentais. Por exemplo, as populações católicas tinham taxas de suicídios inferiores às protestantes porque a sociedade católica vincula o indivíduo mais rigorosamente à coletividade. Segundo Durkheim, o egoísmo e a ANOMIA crescentes estavam causando as taxas de suicídio invariavelmente ascendentes das sociedades ocidentais. Entretanto, o egoísmo não é uma conseqüência necessária da sociedade industrial. Iga (1986) mostrou como a grande maioria dos suicídios no Japão moderno resulta da vergonha dos indivíduos por fracassarem na realização dos objetivos que o grupo impõe a seus membros.
Obras sociológicas pós-durkheimianas, embora aprovando os esforços pioneiros de Durkheim na definição da taxa de suicídios como objeto de investigação e correlacionando-a com uma gama de variáveis sociais, mostraram-se predominantemente céticas diante da sua tentativa de explicação de ambas em termos de forças morais “reais mas invisíveis” que inclinam os indivíduos ao suicídio. Para esses sociólogos de orientação empirista, a noção de Durkheim de uma ciência dos fenômenos morais era uma impossibilidade. Assim, a maior parte das obras sociológicas subseqüentes, embora parecendo apoiar as “descobertas” de Durkheim, limitaram-se à relação entre taxas de suicídios e fatores sociais externos. Dessa perspectiva, alguns dos estudos mais conhecidos ligaram positivamente o suicídio, por exemplo, à urbanização e ao isolamento (Halbwachs, 1933; Sainsbury, 1955; Cavari, 1965), à falta de integração de status (Gibbs e Martin, 1964), à falta de restrição externa (Henry e Short, 1954; Maris, 1969) e à limitação em decorrência da cobertura da mídia (Phillips e Carstensen, 1988).
Abordagens fenomenológicas ou subjetivas tendem a examinar o modo como indivíduos chegam a construir intenções “suicidas” para si mesmos ou para outros. Esse último interesse foi desenvolvido e convertido em uma crítica de dados oficiais que vai além do interesse tradicional pela “exatidão” das estatísticas. Douglas (1967) afirmou que as idéias alimentadas por diferentes culturas e subculturas a respeito de suicídios determinam o que as autoridades finalmente classificam como “suicídio”. Desenvolvendo as idéias de Douglas, Atkinson (1978) e Taylor (1982), mostraram que um veredicto de suicídio só será pronunciado se as autoridades puderem encontrar provas compatíveis com as idéias culturais aceitas sobre os motivos que levam as pessoas a se matar e o modo como tratam de fazer isso. Assim, tanto a regularidade das taxas de suicídios quanto a sua correlação sistemática com fatores tais como isolamento e perda podem ser funções do modo como se coletam os dados.
Os subjetivistas afirmam que as tentativas de compreender o suicídio devem basearse nos significados que os suicidas oferecem para justificar suas próprias ações (Douglas, 1967; Baechler, 1979). Douglas, por exemplo, ao rejeitar os dados estatísticos em favor dos etnográficos, refere-se a estes últimos como “concretos e observáveis”. Entretanto, ao pressupor alguma espécie de acesso direto ao mundo através da observação, ele aproximou-se muito da tradição positivista que está criticando.
A teoria psicanalítica sobre o suicídio, estimulada inicialmente por Wilhelm Stekel e Alfred Adler, concentrou-se na agressão deslocada como motivo inconsciente para esse ato. Freud (1917), comparando luto e melancolia, afirmou que, na segunda, a libido livre retira-se para o ego, que estabelece uma identificação com o objeto perdido. Se a animosidade para com a parte do ego com a qual o objeto perdido está identificado é bastante grande, o ego age no sentido de destruir essa identificação e, por conseguinte, destrói-se a si mesmo. A hipótese formulada mais tarde por Freud em Para além do princípio do prazer, a de que o suicídio representa uma vitória precoce do instinto de morte, tem sido menos influente, mesmo entre psicanalistas. Entretanto, a idéia foi desenvolvida em um célebre livro de Menninger (1938), que interpretou uma série de comportamentos prejudiciais e potencialmente prejudiciais como suicídios parciais ou crônicos. Para o suicídio total, o indivíduo tinha que ter não só o desejo de morrer, mas também o desejo de matar e ser morto.
As teorias durkheimianas e freudianas têm muito mais em comum do que freqüentemente se percebe. Umas e outras usam a análise teórica para tentar revelar as causas subjacentes da ação humana; umas e outras explicam o suicídio em termos do desenvolvimento normal dos indivíduos e sociedades; umas e outras exploram as tensões resultantes das precárias relações nas pessoas entre o “animal” e o “ser social”. Em contraste, a moderna “suicidologia” (agora uma disciplina nos Estados Unidos, com sua própria associação e revista) tende a ser informada por uma epistemologia empirista, com “teorias” sobre tendências particulares no suicídio “emergindo” dos dados.
As teorias psicológicas e biológicas do suicídio tendem a averiguar que “fatores” caracterizam o indivíduo propenso ao suicídio ou são mais salientes nele. A psicologia cognitiva, por exemplo, apontou que os suicidas são caracterizados por processos de pensamento mais polarizados, menos imaginativos e mais estreitos (Neuringer, 1976). Uma série de estudos de psicologia social identificou indivíduos suicidas por suas pontuações mais altas em escalas de, por exemplo, “desesperança”, “hostilidade” e baixa auto-estima. Entretanto a falta de consistência e as dificuldades para estabelecer comparações decorrem do fato de tais escalas não serem “medidas” em qualquer sentido objetivo.
Fatores biológicos e genéticos oferecem potencialmente indicadores mais objetivos. Por exemplo, numerosos estudos encontraram ligações entre o comportamento suicida e baixos níveis de ácido 5-hidróxi-indoleacético (5-HIAA) metabólito de serotonina no líquido cérebro-espinhal (Brown et al, 1982). Entretanto as tentativas de explicar essas relações, em vez de meramente documentá-las, defrontam-se com o problema de relacionar medidas biológicas cada vez mais refinadas com escalas psicométricas rudimentares. Korn et al. (1990) afirmam que, sem se melhorar a “medição” de funções psicológicas, “a revolução biológica em psiquiatria pode, na verdade, parecer caótica”.
Definir suicídio não tem sido geralmente visto como um problema. O suicídio é um autocídio intencional. Mas a pesquisa sobre a natureza de atos suicidas, fatais ou nãofatais, tem desafiado a noção convencional de que todas as mortes de suicidas “autênticos” têm por objetivo a morte e podem assim distinguir-se de uma variedade de atos de “falsos” suicidas, tais como os “gritos por socorro”, quando a intenção é viver.
Stengel foi um dos primeiros a mostrar que a maioria dos atos suicidas, incluindo a maior parte dos que terminam em morte, são manifestações de comportamento de aceitação de riscos, empreendidas com um intuito ambivalente e caracterizadas pela incerteza quanto ao desfecho (Stengel e Cook, 1958). Alguns pesquisadores têm usado o termo “parassuicídio” a fim de descrever o comportamento que, embora se situe aquém de uma tentativa real de suicídio, é mais, porém, do que um mero gesto manipulativo. Essas observações têm implicações para definir e teorizar acerca do suicídio. Stengel (1973) definiu o suicídio como “qualquer ato deliberado de dano cometido por uma pessoa contra si própria e no qual ela não pode estar certa de sobreviver”. Talvez a questão fundamental para a pesquisa corrente não seja por que as pessoas se matam, mas por que tantas mais (possivelmente 100 mil por ano na Inglaterra e no País de Gales) arriscam suas vidas no que Stengel comparou a um ordálio medieval.

A ética do suicídio tende a não continuar dirigindo o seu foco para a culpabilidade moral de quem atenta contra a própria vida. O pensamento do século XX tem compaixão pelo suicídio, mas fica intrigado com o mistério do que impele indivíduos a desejarem desligar-se da boa sociedade. No século XXI, com uma população envelhecendo e recursos em declínio, o ressurgimento do suicídio como responsabilidade social, até como dever, não pode ser desprezado.

(William Outhwaite & Tom Bottomore - "Dicionário do pensamento social do século XX") 

publicado às 00:02


Ideologia

por Thynus, em 27.04.13

 

 

Referindo-se literalmente a uma ciência (ou logos) de idéias, a palavra foi usada nesse sentido pelo filósofo francês Destut de Tracy em seu livro Eléments d’idéologie, publicado em 1801. As idéias derivam exclusivamente de percepções sensoriais, acreditava ele. A inteligência humana é um aspecto da vida animal e “ideologia” é, portanto, parte da zoologia. Tracy e seus colegas achavam que, através dessa análise reducionista, no sentido de atividades mentais serem atribuídas a causas fisiológicas subjacentes, haviam chegado à verdade científica; e exigiram que se fizessem reformas educacionais com base nessa nova ciência (ver ILUMINISMO). Quando Napoleão era general, aceitara com orgulho sua indicação para membro do Institut National, formado pelas sociedades cultas, e — como os idéologues — visitava o salão filosófico de Mme. Helvétius. Mas, uma vez no poder, Napoleão quis defender a religião contra seus detratores. Daí, denunciou Tracy e seu círculo como “metafísicos nebulosos” e sua ciência de idéias como uma ideologia perigosa: esses inimigos do povo francês queriam basear uma legislação nas “causas primeiras” que alegavam haver descoberto e, daí, abolir as leis do coração humano e as lições da história. Desde então a palavra “ideologia” tornou-se inseparável da implicação pejorativa de que idéias estariam sendo usadas para obscurecer a verdade e manipular as pessoas através do engano (ver também PROPAGANDA). Nesse episódio histórico, encontram-se reunidos todos os significados associados a “ideologia”: uma ciência de idéias, a noção de que as idéias se originam de alguma base fundamental, extraideacional (fisiologia, classe, luta pelo poder e assim por diante), a denúncia de idéias como visionárias e subversivas, e daí a associação de doutrinas ou mitos a algum grupo ou movimento inclinado a pôr em ação algum plano político ou cultural perigoso.
O significado pejorativo de ideologia tornou-se um recurso habitual nas lutas políticas durante o século XIX, quando a política dos notáveis deu lugar ao desenvolvimento de partidos políticos, com seus apelos às massas. As questões públicas eram até então preocupação de uns poucos privilegiados, que partiam do princípio de que sabiam o que era melhor para seus inferiores. A seus próprios olhos, o privilégio de sua posição social dispensava a necessidade de justificarem suas ações. Era típico que conservadores dessa facção acusassem seus oponentes de serem visionários ideológicos que subvertiam a ordem social através de maquinações abstratas, fora de contato com a realidade. Liberais e radicais, por outro lado, sustentavam que as questões públicas eram uma preocupação do povo e organizavam clubes ou partidos políticos para promoverem seus objetivos. Já por parte destes, era típico acusar os poucos privilegiados de explorarem o povo sob o falso pretexto da benevolência. No entanto liberais e radicais também se acusavam uns aos outros, pois cada grupo achava que seus oponentes escondiam objetivos sectários sob o disfarce de identificá-los com o bem público. A conseqüência foi que o uso pejorativo de ideologia se tornou universal, levando Thomas Carlyle a gracejar, dizendo que “ortodoxia é o meu credo, heterodoxia é o credo alheio”. Era o velho paradoxo do mentiroso: um homem diz que todos os homens usam idéias para enganar; ele é homem, logo sua própria afirmação também é enganosa.
Eis aí um motivo para a enorme atração do MARXISMO, que só agora está diminuindo. Marx e Engels denunciaram seus oponentes como “ideólogos” e além disso elaboraram uma teoria da “verdade histórica” que afirmava que seus próprios pontos de vista eram científicos. A história é uma história de lutas de classe, afirmaram, brotando da organização da produção e afetando todos os aspectos da consciência. Marx diferencia sucessivas estruturas sociais, tais como feudalismo e capitalismo, em termo das classes e da consciência a que elas dão origem. E identifica a VERDADE com o papel histórico da classe que, pelo fato de ter sido subjugada no passado, tem o futuro progressista em suas mãos. O domínio reacionário de uma classe (a aristocracia no feudalismo, a burguesia no capitalismo recente) leva a defesas ideológicas do status quo; o papel progressista de uma classe (a burguesia no feudalismo, o proletariado no capitalismo) é a fonte da verdade no sentido do acesso à compreensão correta de toda a presente alienação e da emancipação humana no futuro. No passado os filósofos apenas interpretaram o mundo e produziram reflexões ideológicas de relações de classe desumanizantes, por mais abstratamente que fosse.
No presente e no futuro trata-se de destruir de uma vez por todas as condições desumanizantes. Isso só pode ser feito por uma unidade de teoria e prática tal que, na crise final do capitalismo (e devido a essa crise), os que se identificam com a classe operária poderão e irão compreender “teoricamente o movimento histórico como um todo”. Na sociedade socialista do futuro, o véu místico da religião e todas as outras distorções ideológicas da real condição do homem irão finalmente desaparecer, porque “as relações práticas da vida cotidiana não oferecem ao homem senão relações perfeitamente inteligíveis e racionais com respeito a seus semelhantes e à natureza”. Essas referências (Teses sobre Feuerbach , 1845; O manifesto comunista, 1848; O capital, 1867) mostram que, ao longo de sua carreira, Marx colocou sua própria obra no centro de sua distinção histórico-mundial entre ideologia e verdade. A idéia de estar do “lado certo”, e portanto “científico”, da história do mundo distingue o marxismo de todas as outras teorias sociais e políticas. 


(William Outhwaite & Tom Bottomore - "Dicionário do pensamento social do século XX") 

publicado às 03:40


Agressão

por Thynus, em 26.04.13

 

 

 

Enquanto quase todas as teorias em vigor sobre a agressão se desenvolveram no século XX, as questões conceituais básicas e os debates importantes têm raízes bem mais antigas. Discussões recentes sobre até que ponto a agressão está biologicamente enraizada na natureza humana fazem reviver temas do Leviatã, de Thomas Hobbes, e da filosofia liberal de Jean-Jacques Rousseau. Freud (1920), por exemplo, restaura muitas das idéias originais de Hobbes sobre a brutalidade inerente do homem para com seus companheiros, em uma moldura psicanalítica, fornecendo um modelo posteriormente emulado em um campo bastante distinto o da etologia por Konrad Lorenz (1966) e os neodarwinistas.

 

Essas abordagens, concentrando-se em pressuposições bastante simplistas sobre mecanismos instintivos, ao mesmo tempo em que são extensamente revistas em obras didáticas mais importantes, estão amplamente excluídas das tentativas correntes de explicar a agressão. O aspecto da obra de Freud que se concentra na agressão é encarado, com a vantagem do exame em retrospectiva, como uma tentativa um tanto apressada de preencher lacunas evidentes em sua abordagem teórica, que se apoiava excessivamente no princípio do prazer para explicar os processos psicológicos e o comportamento humano. A catástrofe sangrenta da Primeira Guerra Mundial exigia um modelo bastante diferente, e assim surgiu thanatos, ou o instinto de morte: Como resultado de um pouco de especulação, viemos a supor que esse instinto está em ação dentro de cada criatura viva, lutando para levá-la à ruína e para reduzir a vida à sua condição original de matéria inanimada.

 

Uma dificuldade particular com essas antigas teorias do instinto era a idéia central de “espontaneidade. A agressão não apenas seria geneticamente pré-programada, e portanto inerradicável, como também assumiria a forma de um impulso que devia ser consumado, canalizado ou deslocado. Expressões de agressão, quer na forma de VIOLÊNCIA interpessoal ou em alguma forma menos direta, eram portanto inevitáveis. O que se enfatizava era a necessidade de direcionar essa força hidráulica, em vez dos meios de reduzi-la. Esportes vigorosos e competição física eram encarados como ingredientes essenciais no controle da agressão máscula (natural), fornecendo boa parte das bases racionais do sistema de ensino público britânico.

 

Embora essas perspectivas, tal como aspectos de muitas das primeiras teorias psicológicas, tenham sido incorporadas a representações sociais leigas da agressão e da violência, as modernas explicações da agressão nas ciências sociais evitam praticamente todas as noções de fatores genéticos e substratos biológicos. A ampla maioria dos trabalhos publicados a partir dos anos 50 dá ênfase ao papel do aprendizado, das condições sociais e da privação. O que se presume essencialmente é que a agressão seja uma forma de comportamento, em vez de uma força psicológica primária, e que, como qualquer outro comportamento, pode ser modificada, controlada e até mesmo erradicada. Isso também fica patente na obra, com base em trabalhos de laboratório, de psicólogos como Bandura (1973) e nas abordagens sociológicas de autores tão variados quanto Wolfgang e Weiner (1982) e Downes e Rock (1979). Encontramos semelhante ênfase na compreensão liberal da agressão na antropologia social do pós-guerra, com um grande esforço sendo dedicado à descoberta de sociedades totalmente pacíficas em que a agressão não existe, ou não existiu desse modo desmascarando com firmeza a falsa presunção de um determinante genético. Essas tentativas foram, de modo geral, inconvincentes. De fato, conforme destacou Fox (1968), as visões ingênuas dos bosquímanos do Kalahari como um povo livre de agressão erraram o alvo, uma vez que foi provado que eles tinham uma taxa de homicídios mais elevada que a de Chicago.

 

Até certo ponto, a rejeição das teorias biológicas da agressão deve-se não apenas à manifesta inadequação dessa teorias, mas também à gradual introdução do conceito de politicamente correto nos debates acadêmicos e nas ciências sociais. Não se pode dizer que as pessoas são naturalmente agressivas porque isso significaria assumir que a violência e a destruição jamais poderiam ser erradicadas. Isso, ao contrário do que acontecia nas primeiras décadas do século, não se enquadra absolutamente no Zeitgeist intelectual contemporâneo.

 

Essa nova polarização, e o acalorado debate natureza-educação que ocupou a maior parte do século, provavelmente depreciou, mais do que qualquer outra coisa, uma compreensão sensata da agressão. Marsh (1978, 1982) sustentou que a discussão sobre se a agressão tem uma raiz biológica ou é aprendida é eminentemente irrelevante, uma vez que (a) ela é indubitavelmente ambas as coisas e (b) os prognósticos de modificação de comportamento não são muito diferentes em ambos os casos. Pode-se fazer aqui uma analogia com o comportamento sexual. Seria tolice supor que a sexualidade humana não tem bases genéticas, biológicas e hormonais. Mas o comportamento sexual é, em grande parte, controlado por meio de quadros de regras culturais e sociais. As pessoas, no geral, não consumam seus impulsos sexuais de forma aleatória e espontânea são obrigadas a seguir convenções sociais e a observar exigências rituais. Todas as culturas desenvolvem soluções que maximizam as vantagens da sexualidade e inibem suas conseqüências potencialmente negativas.

 

Tornou-se cada vez mais fora de moda nas ciências sociais sugerir que a agressão tenha qualquer valor positivo. De fato, muitas definições correntes da agressão excluem tal possibilidade. Em psicologia, a definição predominante é a de comportamento intencional destinado a ferir outra pessoa que está motivada a evitálo. Em outros campos das ciências sociais, a agressão é com maior frequência encarada como um comportamento inadaptado, ou como uma reação infeliz a condições sociais patológicas (ver também CRIME E TRANSGRESSÃO). Somente em campos como a sociologia marxista podemos encontrar o ponto de vista de que a agressão é uma forma de conduta racional e justificada.

 

No discurso ordinário, no entanto, fica claro que a agressão é encarada como tendo conotações tanto positivas quanto pejorativas. No mundo dos esportes, é comum elogiarmos o atleta por fazer uma corrida agressiva, ou termos em grande estima o zagueiro valente e agressivo. Nessas arenas, a agressão não é apenas permissível. Ela é um ingrediente essencial para a distinção. Da mesma forma, no mundo dos negócios a agressão é a marca do empreendedor altamente considerado, sem o qual tanto a Grã-Bretanha pós-Thatcher quanto o Estilo Americano do século XX poderiam definhar e morrer.

 

Não surpreende que autores como Bandura (1973) tenham classificado o campo da agressão como uma selva semântica. Com muitas centenas de definições da agressão permeando as ciências sociais, é inevitável que reine a confusão e que discussões desnecessárias dominem o debate. As abordagens mais promissoras são as que deixaram para trás o debate natureza-educação e se concentraram na compreensão de formas específicas de comportamento agressivo e nos fatores que o influenciam. A análise dos quadros sociais que estimulam ou inibem exibições de agressão também se mostrou fértil na explicação de fenômenos sociais como o vandalismo das torcidas de futebol (Marsh, 1978), a violência feminina (Campbell, 1982), a violência política extremista (Billig, 1978) etc. Trabalhos voltados para o papel de mecanismos fisiológicos específicos (como Brain, 1986) também têm contribuído para um debate mais racional, em que existem bem menos obstáculos para se examinar a interação complexa entre fatores biológicos e sociais. Quer encaremos a agressão como uma patologia evitável ou como um componente inevitável da condição humana, nossa compreensão dos fenômenos só irá aumentar se o foco se concentrar em tentar saber por que certos indivíduos em certos contextos sociais demonstram extrema antipatia uns para com os outros a fim de atingirem metas específicas, quer essas metas sejam causar dano a outrem ou desenvolver prestígio e status social.



(William Outhwaite & Tom Bottomore - "Dicionário do pensamento social do século XX") 

publicado às 20:40


A importância de ser social

por Thynus, em 26.04.13

 

Estranha é a nossa situação aqui na Terra. Cada um de nós
chega para uma breve visita, sem saber por quê, parece que
às vezes por um propósito divino. Do ponto de vista da vida
cotidiana, porém, existe uma coisa que sabemos de fato: que
estamos aqui pelo bem dos outros.
ALBERT EINSTEIN

 

 

A linguagem é uma coisa útil, mas nós seres humanos temos ligações emocionais e sociais que transcendem as palavras, e nos comunicamos – e nos compreendemos – sem pensamentos conscientes.
A experiência de se sentir conectado aos outros parece começar muito cedo. Estudos com crianças mostram que, aos seis meses, já fazemos julgamentos pelo que observamos do comportamento social.
Esquilos não estabelecem bases para curar a raiva, cobras não ajudam suas semelhantes a atravessar uma estrada, mas os seres humanos conferem grande importância à bondade. Os cientistas chegaram a descobrir que partes do nosso cérebro ligadas ao processo de recompensa são estimuladas quando participamos de atos de cooperação mútua, de forma que ser bondoso talvez represente uma recompensa em si. Muito antes de conseguirmos verbalizar atração ou repulsa, já nos sentimos atraídos pelo bondoso e repelidos pelo malvado.
Uma das vantagens de pertencer a uma sociedade coesa, em que as pessoas ajudam umas as outras, é que o grupo costuma ser mais bem-equipado que um conjunto aleatório de indivíduos para lidar com ameaças externas. As pessoas percebem intuitivamente que existe uma força nos números e se consolam na companhia de outras, em especial em tempos de infelicidade ou carência. Ou, de acordo com a famosa afirmação de Patrick Henry: “Unidos resistimos, divididos, caímos.” (Ironicamente, Henry desmaiou e caiu nos braços dos espectadores pouco depois de balbuciar esta frase.)
A participação em grupos de apoio é um reflexo da necessidade humana de se associar com os outros, de nosso desejo fundamental de apoio, aprovação e amizade. Somos acima de tudo uma espécie social.
As ligações sociais são um aspecto tão básico da experiência humana que sofremos quando somos privados delas. Muitas línguas têm expressões como “sentimentos feridos”, que comparam a dor da rejeição social à dor de um ferimento físico. Elas podem ser mais que simples metáforas. Estudos de mapeamentos do cérebro mostram que existem dois componentes na dor física: um sentimento emocional desagradável e um sentimento de aflição sensorial. Esses dois componentes da dor estão associados a diferentes estruturas do cérebro. Os cientistas descobriram que a dor social está também associada a uma estrutura do cérebro chamada córtex cingulado anterior – a mesma estrutura envolvida no componente emocional da dor física.
A relação entre dor social e dor física ilustra os vínculos entre nossas emoções e os processos psicológicos do corpo. A rejeição social não é apenas uma dor emocional, ela afeta nosso ser físico. Na verdade, as relações sociais são tão importantes para os seres humanos que a falta de ligações sociais constitui o principal fator de risco para a saúde, comparando-se aos efeitos de cigarro, pressão arterial alta, obesidade e falta de atividade física.
Quando pensamos em termos de humanos versus cães e gatos, ou mesmo macacos, em geral supomos que o que nos distingue é nosso QI. Mas se a inteligência humana evolui segundo objetivos sociais, nosso QI social deve ser a principal característica que nos diferencia de outros animais. Em particular, o que parece especial nos humanos é nosso desejo e capacidade de entender o que outras pessoas pensam e sentem. Chamada de “teoria da mente”, ou “ToM”, essa aptidão dá aos seres humanos um notável poder de compreender o comportamento passado de outras pessoas e prever como vão se portar diante de circunstâncias presentes e futuras. Embora exista um componente racional e consciente na ToM, boa parte da nossa “teorização” sobre o que os outros pensam e sentem ocorre de forma subliminar, resultado de processos rápidos e automáticos da nossa mente inconsciente.
É difícil superestimar a importância da ToM para a espécie humana. Consideramos dado o funcionamento das nossas sociedades, mas muitas de nossas atividades na vida cotidiana só são possíveis como resultado de um esforço de grupo, de cooperação humana em larga escala. A produção de um automóvel, por exemplo, exige a participação de milhares de pessoas com diversas habilidades, em vários países, realizando tarefas distintas. Metais como o ferro devem ser extraídos do solo e processados; o vidro, a borracha e os plásticos devem ser criados a partir de inúmeros processos químicos anteriores e depois moldados; baterias, radiadores e muitas outras peças devem ser produzidos; os sistemas eletrônico e mecânico devem ser projetados; e tudo tem de ser reunido, coordenado de longe em uma fábrica para que o carro seja montado.
Hoje, até o café com pão que você venha a consumir enquanto dirige até o trabalho de manhã é resultado da atividades de várias pessoas ao redor do mundo – fazendeiros de trigo em um estado, padeiros em outro, produtores de laticínios em outro; trabalhadores em fazendas de café em outro país; e só podemos esperar que os fornos estejam mais perto; caminhoneiros e a marinha mercante precisam juntar tudo isso;
além de todas as pessoas que constroem fornos, tratores, caminhões, navios, fertilizantes e quaisquer outros dispositivos e ingredientes envolvidos. É a ToM que nos possibilita formar grandes e sofisticados sistemas sociais, de grandes comunidades agrícolas a grandes corporações nas quais o nosso mundo se baseia.
Os cientistas continuam a debater se os primatas não humanos usam ToM em suas atividades sociais; mas, se chegam a fazer isso, parece ser apenas num nível básico. Os homens são os únicos animais cujas relações e organização social exigem altos níveis de ToM individual. À parte a inteligência pura (e a destreza), essa é a razão por que peixes não conseguem construir barcos e macacos não montam bancas para vender frutas. A realização dessas façanhas torna os homens seres ímpares entre os animais. Em nossa espécie, uma ToM rudimentar se desenvolve no primeiro ano. Aos quatro anos, quase todas as crianças humanas adquiriram a capacidade de avaliar estados mentais de outras pessoas. Quando há um rompimento da ToM, como no autismo, as pessoas podem ter dificuldade de viver em sociedade.

(Leonard Mlodinow – “Subliminar,Como o inconsciente influencia nossas vidas”)

publicado às 16:23

 

 

Muitos se tem perguntado que pelo fato de o atual Papa Francisco provir da América Latina, seja um adepto da teologia da libertação. Esta questão é  irrelevante. O importante não é ser da teologia da libertação, mas da libertação dos oprimidos, dos  pobres e injustiçados. E isso ele o é com indubitável claridade.
Este, na verdade, sempre foi o propósito da teologia da libertação. Primeiramente vem a libertação concreta da fome, damiséria, da degradação moral e da ruptura com Deus. Esta realidade pertence aos bens do Reino de Deus e estava nos propôsitos de Jesus. Depois, em segundo lugar, vem a reflexão sobre este dado real: em que medida aí se realiza antecipatoriamente o Reino de Deus e de que forma o cristianismo, com o potencial espiritual herdado de Jesus, pode colaborar, junto com outros grupos humanitários, nesta libertação ncessária.
Esta reflexão posterior, chamada de teologia, pode existir ou não pois pode não haver pessoas que tenham condições de exrcer esta tarefa. O  decisivo é que o fato da libertação real ocorra.  Mas sempre haverá espíritos atentos que ouvirão o grito do oprimido e da Terra devastada e que se perguntarão: com aquilo que aprendemos de Jesus, dos Apóstolos e da doutrina cristã de tantos séculos, como podemos dar a nossa contribuição ao processo de libertação? Foi o que realizou toda uma geração de cristãos, de cardeais a leigos e a leigas a partir dos anos 60 do século passado. Continua até os dias de hoje, pois os pobres não cessam de crescer e seu grito já se transformou num clamor.
Ora, o Papa Francisco fez esta opção pelos pobres, viveu e vive pobremente em solidariedade a eles e o disse claramente numa de suas primeiras intervenções:”Como gostaria uma Igreja pobre para os pobres”. Neste sentido, o Papa Francisco, está realizando a intuição primordial da Teologia da Libertação e secundando sua marca registrada: a opção preferencial pelos pobres, contra a pobreza e a favor da vida e da justiça.
Esta opção não é para ele apenas discurso mas opção de vida e de espiritualidade. Por causa dos pobres, tem se indisposto com a presidenta Cristina Kirchner pois cobrou de seu governo mais empenho político para a superação dos problemas sociais que, analiticamete se chamam desigualdades, eticamente, representam injustiças e teologicamente  constituem um pecado social que afeta diretamente ao Deus vivo que biblicamente mostrou estar sempre do lado dos que menos vida tem e são injustiçados. 
Em 1990 havia na Argentina 4% de pobres.Hoje, dada a voracidade do  capital nacional e internacional, se elevam a 30%. Estes não são apenas números. Para uma pessoa sensível e espiritual como o bispo de Roma Francisco, tal fato representa uma via-sacra de sofrimentos, lágrimas de crianças famintas e desespero de paisdesempregados. Isso faz-me lembrar uma frase de Dostoiewski: ”Todo o progresso do mundo não vale o choro de uma criança faminta.”
Esta pobreza, tem insistido com firmeza o Papa Francisco: não se supera pela filantropia mas por políticas públicas para que devolvam dignidade aos oprimidos e os tornecidadãos autônomos e participativos.
Não importa que o Papa Francisco não use a expressão “teologia da libertação”. O importante mesmo é que ele fala e age na forma de libertação.
É até bom que o Papa não se filie a nenhum tipo de teologia,  como a da libertação ou de qualquer outra. Seus dois antecessores assumiram certo tipo de  teologia que estava em suas cabeças e se apresentava como expressões do magistério papal. Em nome disso se fizeram condenações de não poucos teólogos e teólogas.
Está comprovado historicamente que a categoria “magistério” atribuída aos Papas é uma criação recente. Começou a ser empregada pelos Papas Gregório XVI (1765-1846) e por Pio X (1835-1914) e se fez comum com Pio XII (1876-1958).  Antes “magistério” era  constituído pelos doutores em teologia e não pelos bispos e pelo Papa. Estes são mestres da fé. Os teólogos são mestres da inteligência da fé. Portanto, aos bispos e Papas não cabia fazer teologia: mas testemunhar oficialmente e garantir zelosamente a fé crista. Aos teólogos e teólogas cabia e cabe aprofundar este testemunho com os instrumentos intelectuais oferecidos pela cultura em presença. Quando Papas se põem a fazer teologia, como ocorreu recentemente, não se sabe se falam como Papas ou como teólogos. Cria-se grande confusão na Igreja; perde-se a liberdade de investigação e o diálogo com os vários saberes.
Graças a Deus que o Papa Francisco explicitamente se apresenta como Pastor e não como Doutor e Teólogo mesmo que fosse da libertação. Assim é mais livre para falar a partir do evangelho, de sua inteligência emocional e espiritual, com o coração aberto e sensível, em sintonia com o mundo hoje planetizado.Que o Papa deixe aos tólogos fazer teologia e ele presida a Igreja no amor e na esperança. Papa Francisco: coloque a teologia em tom menor para que a libertação ressoe em tom maior: consolação para os oprimidos e interpelação às consciências dos poderosos. Portanto, menos teologia e mais libertação.


 
(Leonardo Boff é autor de Teologia do cativeiro e dalibertação, Vozes 2013)

publicado às 12:54

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