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De tudo e de nada, discorrendo com divagações pessoais ou reflexões de autores consagrados. Este deverá ser considerado um ficheiro divagante, sem preconceitos ou falsos pudores, sobre os assuntos mais variados, desmi(s)tificando verdades ou dogmas.
Pela primeira vez na história milenar do catolicismo, um papa reinante e seu predecessor se encontraram. Neste sábado 23, o recém-eleito Francisco foi recebido pelo papa emérito Bento XVI no palácio apostólico de Castel Gandolfo.
Dez dias após sua eleição, Francisco foi de helicóptero até a tranquila localidade ao sul de Roma e foi recebido pessoalmente por Bento XVI no heliporto da residência de veraneio papal.
“O abraço no heliporto entre o Papa e o Papa emérito foi muito bonito”, comentou o porta-voz do Vaticano, padre Federico Lombardi.
Nas imagens distribuídas pela televisão do Vaticano, os dois Papas foram vistos usando a batina branca. Bento XVI caminhava com dificuldade, apoiado por uma bengala.
Os dois papas conversaram em particular por 45 minutos na biblioteca do palácio, enquanto inúmeras pessoas se congregaram na pequena praça central de Castel Gandolfo para aplaudir e gritar os nomes de Francisco e Bento XVI.
Durante o encontro, o papa emérito reiterou “sua reverência e obediência” ao novo pontífice. Francisco, por sua vez, manifestou seu “agradecimento próprio e de toda a Igreja pelo ministério desenvolvido por Bento XVI durante seu pontificado”, informou o porta-voz.
Durante o histórico encontro, os dois líderes religiosos também rezaram na capela do palácio apostólico. “Papa Francisco quis que se sentassem juntos, no mesmo banco, para rezar. Ele disse: ‘somos irmãos’”, contou Lombardi.
Durante o encontro privado na biblioteca, Francisco presenteou seu Bento XVI com uma imagem da “Virgem da humildade”. “Francisco disse que escolheu esta imagem porque pensou nele e em todos os exemplos de humildade que deu durante seu pontificado.”
No total, Francisco permaneceu quase três horas em Castel Gandolfo, e depois regressou ao Vaticano.
Os assuntos que os dois pontífices examinaram não foram divulgados, mas é certo que giraram em torno de temas importantes para uma igreja com 1,2 bilhão de fiéis: a “nova evangelização”, as perseguições contra os cristãos, a reforma da Cúria, as divisões internas, os escândalos envolvendo dinheiro e sexo, incluindo casos de pedofilia.
Relatório do Vatileaks
O papa emérito entregou ao sucessor o relatório ultrassecreto que pediu para ser elaborado sobre a situação interna da Igreja após o vazamento de documentos secretos conhecido como Vatileaks.
Segundo vaticanistas, o papa argentino seguirá “o mapa do caminho” traçado por Bento XVI de recuperar a autoridade perdida e terminar a limpeza interna na Cúria.
Antes de renunciar, Bento XVI disse que iria se retirar do mundo, mas que estaria pronto para dar conselhos ao novo pontífice.
Estilos diferentes
Os papas têm temperamentos completamente diferentes: enquanto Joseph Ratzinger se mostrava tímido diante da multidão, Jorge Bergoglio é espontâneo e até abraça os fiéis.
O novo pontífice se distingue por um estilo informal e se mostra mais próximo dos pobres e da simplicidade. Ainda sim, é inflexível em sua doutrina. Sobre as questões da sociedade, Joseph Ratazinger e Jorge Bergoglio compartilham posições conservadoras, seja quanto ao casamento homossexual, o aborto ou a eutanásia.
Quanto aos sinais de simplicidade (anel de prata, etc) do novo papa, sua importância não deve ser exagerada, segundo os vaticanistas. Bento XVI quis manter as tradições, mas viveu de forma simples.
Nos arredores do Vaticano, os cartazes e cartões postais com o retrato de Bento XVI tendem a perder espaço para os do sorridente Jorge Bergoglio e do midiático João Paulo II. Karol Wojtyla, beatificado em 2012, sete anos após sua morte, e que pode ser canonizado em breve, continua a ser o “gigante de Deus” aos olhos dos católicos.
A popularidade adquirida por Francisco em apenas uma semana e a insistência sobre seus gestos simbólicos de ruptura com as tradições podem ser vistas com maus olhos por uma parte do Vaticano. “Este pontificado será enraizado nos ensinamentos de Bento XVI, que foi a principal força intelectual da Igreja nos últimos 25 anos. Sua herança continuará a influenciar este pontificado”, considera Samuel Gregg, do instituto de pesquisa americano Aston.
Semelhanças podem ser traçadas entre os discursos dos dois papas, por exemplo, sobre a necessidade de privilegiar aspectos positivos da doutrina ao invés das condenações.
De acordo com o jornalista alemão Peter Seewald, maior especialista de Joseph Ratzinger, “está claro desde o início que o novo Papa se inscreve nos passos de seu predecessor”.
Ao jornal Corriere della Sera, Seewald afirmou que “Bento preparou o caminho (…) Ele é um grande admirador de São Francisco de Assis. Depois de São Bento (fundador do monaquismo ocidental), é Francisco de Assis que está em segundo lugar para ele: dois reformadores da Igreja, cada um em seu território, em seu caminho próprio.”
“João Paulo II estabilizou o barco da Igreja na tempestade, Bento a purificou, deu instruções à tripulação e a recolocou no caminho certo. Agora Francisco irá ligar o motor para fazer a Igreja se mover”, afirma Peter Seewald.
Quando se estabelecer em maio em um antigo monastério na colina do Vaticano, o Papa emérito estará a poucos passos do gabinete de Francisco. Uma coabitação inédita terá início, e os encontros serão possíveis nos jardins.
http://www.cartacapital.com.br/internacional/papas-francisco-e-bento-xvi-oram-juntos-em-encontro-historico/
Hoje muito se fala sobre a “politização da religião”. Muito pouca atenção é dada, contudo, à tendência paralela de “sacralização da política”, algo talvez ainda mais perigoso e muitas vezes muito mais sangrento em suas consequências. Um conflito de interesses que convida à negociação e ao compromisso (o pão de cada dia da política) é então reciclado sob a forma de um confronto final entre o bem e o mal que torna qualquer acordo negociado inconcebível, do qual apenas um dos antagonistas pode sair vivo (o horizonte liminar das religiões monoteístas). As duas tendências, eu diria, são gêmeas siamesas inseparáveis, cada qual voltada sobretudo para projetar na irmã os demônios interiores que partilham.
Então, o que virá a ser o “futuro de uma ilusão”, para utilizar uma frase de Sigmund Freud? Estou inclinado a pensar que, seja qual for o futuro daquela “ilusão”, ele será longo. Provavelmente tão longo quanto a presença da humanidade. Freud atribuiu “a ilusão” aos traços permanentes e inextirpáveis do instinto humano: grosso modo, dada a “apatia geneticamente determinada e inata dos seres humanos”, sua impermeabilidade à “argumentação racional”, além do potencial destrutivo dos ímpetos também endêmicos dos homens, a sociedade humana é inconcebível sem a coerção.
Karl Marx associou a origem (temporária) inescapável da “ilusão” à história, e não à genética, e também às condições humanas historicamente desenvolvidas, e não à evolução biológica: a religião era o “ópio” que pretendia manter as massas em estupor para abafar a dissensão e impedi-las de se rebelar. Ela deveria durar tanto quanto, mas não mais que, o tipo de condição humana capaz de dar à luz ao dissenso e incitar à rebelião. Uma vez que os pressupostos que apoiavam os veredictos dos dois grandes pensadores desde seu surgimento (no caso de Freud) ou até agora (no caso de Marx) permaneceram inacessíveis aos testes empíricos, prefiro adiar indefinidamente o retorno do júri ao tribunal.
Estou inclinado a apoiar de forma incondicional a interpretação da religião dada por meu erudito amigo Leszek Kolakowski. Segundo ele, a religião é a manifestação/declaração da insuficiência humana. Assim como nos solicitam que esperemos pelos já mencionados teoremas de Gödel (segundo o qual: um sistema não pode ser ao mesmo tempo completo e consistente; se ele for compatível com seus próprios princípios, surgem problemas que não pode resolver; e, se tenta resolvê-los, não pode fazer isso sem contradição com seus próprios pressupostos fundadores), a coesão humana cria problemas que não consegue compreender, ou não pode atacar, ou ambos.
Confrontada com esses problemas, a lógica humana corre o risco de falhar e ir a pique. Incapaz de reverter as irracionalidades que detectou no mundo para se ajustar à estrutura resistente da razão humana, ela corta-as do domínio dos assuntos humanos e as transporta para regiões inacessíveis ao pensamento e à ação dos homens. É por isso, aliás, que Kolakowski acerta com tamanha exatidão o alvo quando afirma que os teólogos formados deram à religião mais prejuízo que lucro, ao empreenderem esforços extremos para oferecer uma “comprovação lógica” da existência de Deus. A serviço da lógica, os seres humanos dispõem de pesquisadores e conselheiros devidamente credenciados.
Os homens precisam de Deus por seus milagres, não para seguir as leis da lógica; por sua inescrutabilidade e imprevisibilidade, não por sua transparência e rotina; por sua capacidade de virar o curso dos acontecimentos de cabeça para baixo (e não apenas o desenrolar do futuro, mas também o passado “já consumado”, como insistiu Leon Shestov); por sua capacidade de colocar entre parênteses a ordem das coisas, em vez de, subserviente, submeter-se a ela, como os seres humanos são pressionados a fazer e em sua maioria fazem a maior parte do tempo. Em suma, o homem precisa de um Deus onisciente e onipotente para dar conta (e espero que para domar e domesticar) de todas aquelas forças aterradoras, em aparência entorpecidas, surdas e cegas que a compreensão humana e seu poder de ação não podem alcançar.
Creio, em resumo, que o futuro dessa ilusão (em especial) está entrelaçado com o futuro da incerteza humana: incerteza coletiva (relativa à segurança e aos poderes da espécie humana como um todo reunida em, e dependente de, um hábitat composto de homens, feito por homens e gerido por homens e que eles são incapazes de domesticar). Tendo falhado e continuando a sofrer derrotas em seus esforços recorrentes e contínuos para liquidar os dois tipos de incerteza, a humanidade continuará a se voltar para a “ilusão”: sua solidão no Universo, a ausência de um tribunal de apelações e de poderes executivos são por demais assustadores para a maioria dos homens suportar. Suponho que Deus morrerá com a humanidade. Não num momento anterior.
(Zygmunt Bauman - "Vida a crédito")
Outro leitor de La Repubblica, David Bernardi, perguntou o que podemos fazer para escapar da situação alarmante em que nos encontramos depois da crise do crédito e como evitar suas consequências possivelmente catastróficas. Em outras palavras, ele perguntou como cada um de nós pode e deve se comportar e viver – e quais as possibilidades de que outras pessoas sigam o bom exemplo.
Estas são perguntas que nos fazemos todos os dias; afinal, não foi só o sistema bancário e a bolsa de valores que sofreram duros e sucessivos golpes – nossa confiança nas estratégias de vida, nos modos de agir, nos padrões de sucesso e no ideal de felicidade que, dia após dia, nos últimos anos, nos disseram que valia a pena seguir também foi abalado e perdeu parte considerável de sua autoridade e poder de atração. Nossos ídolos, versões líquido-modernas do bezerro de ouro bíblico, derreteram ao mesmo tempo que a confiança na economia! Como observou Mark Furlong, da La Trove University, Michigan: “Acabou, foi tudo ralo abaixo. … À vista de todo mundo, ‘os melhores e mais brilhantes’, os ‘caras mais inteligentes da turma’ fizeram tudo espetacularmente errado” (Mark Furlong, “Crying to be heard”).
Pensando em retrospecto, os anos anteriores à crise do crédito parecem ter sido tempos tranquilos e alegres do tipo “aproveite agora, pague depois”; uma época em que nós agíamos com a certeza de que haveria riqueza suficiente e até maior no dia seguinte, anulando qualquer preocupação com o crescimento das dívidas de hoje, desde que fizéssemos o que se exigia para aderir aos “caras mais inteligentes da turma” e seguir seu exemplo. Naqueles dias que ficaram para trás, o exercício de subir montanhas cada vez mais altas e ter acesso a paisagens cada vez mais arrebatadoras, eclipsar as grandiosas montanhas de ontem com o perfil das colinas de hoje e aplainar as colinas de ontem na gentil ondulação das planícies de hoje parecia durar para sempre. Como declarou a milhões de internautas um jovem e brilhante corretor de fundos de hedge, hoje falido: “Ninguém jamais perdeu de verdade – a viagem já estava difícil há muito tempo. De repente, pum!!”
O fato é que agora o tempo da orgia acabou. Chegaram os dias (meses, talvez anos) de fazer contas, de calcular. Dias de ressaca e de recobrar a sobriedade. Por sorte, dias também de reflexão, de repensar coisas que pareciam estabelecidas há muito tempo e para sempre; dias de voltar à prancheta; dias ameaçadores e promissores, de maus presságios e bons augúrios (dependendo de sua preferência!) acerca dos longos dias de decroissance (decrescimento), como os chama Serge Latouche (leiam o livro dele, Farewell to Growth).
Latouche fala em apertar os cintos, de voltar aos anos anteriores à orgia. Menciona tempos nos quais (como nos faz lembrar David Bernardi) havia menos cosméticos e detergentes, menos automóveis nas estradas; em compensação, havia menos lixo e desperdício, menos refugos e disparidades, mas muita energia e silêncio. Até é possível, sugere Bernardi, que haja dias de ar menos poluído, com menos edifícios e mais áreas verdes… Pode ser, quem sabe? Quem pode garantir que isso acontecerá? Haverá um caminho de volta ao passado (caminhos para percorrer na vida real, e não para contemplar com saudosismo nos filmes de Hollywood)? Ou será que os homens se parecem com sua época muito mais do que com seus pais, como diz a sabedoria árabe?
Deixando de lado o arriscado jogo de fazer prognósticos e adivinhações, a questão prática é se saberemos nos virar em qualquer paisagem que venha substituir a orgia. Como poderemos viver, entra dia, sai dia, num mundo meio esquecido pelos mais velhos e totalmente estranho e desconhecido para os jovens?
Alguns dos analistas mais perspicazes a formular respostas para esses desafios, como Lisa Appignanesi, preveem um aumento acelerado da frequência e propagação dos problemas mentais. A autora afirma que, no plano mundial, “a ‘depressão’ em breve estará no segundo lugar entre as doenças graves, perdendo apenas para doenças cardíacas; no mundo desenvolvido, estará em primeiro lugar”.
Que depressão? A reação à perda de ilusões e à evaporação de belos sonhos, um sentimento de que o mundo ao redor “está indo para o brejo” e nos levando junto. A verdade é que não podemos fazer grande coisa para resistir ao fracasso ou mudar sua direção. Glenn Albrecht, da University of Newcastle, pesquisou tempos atrás os efeitos psicossociais que o fechamento das atividades de mineração teve sobre as comunidades mineiras adjacentes, descrevendo a “perda de bem-estar que se segue à consciência de que o ambiente onde se vive está sofrendo uma grave deterioração” (In Frulong). O terremoto que afetou o crédito e sacudiu as torres financeiras que ficaram de pé após o ataque terrorista ao World Trade Center talvez venha a ter efeitos similares, e não só para os que trabalham nelas.
Outra possível reação à crise econômica atual é o que Mark Furlong denominou de “militarização do eu”. É o que vão fazer, sem dúvida, os produtores e comerciantes interessados em capitalizar a catástrofe transformando-a em lucro acionário, como de hábito. A indústria farmacêutica já está em plena atividade, tentando invadir, conquistar e colonizar a nova “terra virgem” da depressão pós-crise a fim de vender sua “nova geração” de smart drugs, começando por semear, cultivar e fazer crescer as novas ilusões que tendem a propulsionar a demanda. Já estamos ouvindo falar de drogas fantásticas que prometem “melhorar tudo”, memória, humor, potência sexual e a energia de quem as ingere com regularidade, proporcionando assim total controle sobre a construção do próprio ego e sua preponderância sobre o ego de outros. É possível mesmo que o mundo esteja indo ladeira abaixo, por isso, deixem que eu me salve do tranco com a ajuda de inovações farmacêuticas.
Contudo, há outra possibilidade. Existe a opção de tentar chegar às raízes do problema atual e (como sugeriu Furlong) “fazer o contrário do que estamos acostumados: inverter o padrão e organizar nosso pensamento não mais a partir daquele em que o ‘indivíduo’ está no centro, mas segundo uma ordem alternativa centrada em práticas éticas e estéticas que privilegiem a relação e o contexto”.
Trata-se, sem dúvida, de uma possibilidade remota (inverossímil ou pretensiosa, diriam alguns), que exige um período prolongado, tortuoso e muitas vezes doloroso de autocrítica e reajuste. Nascemos e crescemos numa sociedade completamente “individualizada”, na qual a autonomia, a autossuficiência e o egocentrismo do indivíduo eram axiomas que não exigiam provas (nem as admitiam), e que dava pouco espaço, se é que dava, à discussão. Só que mudar nossa visão de mundo e assumir uma compreensão adequada do lugar e do papel que temos na sociedade não é fácil nem se faz de um dia para o outro. No entanto, essa mudança parece ser imperativa, na verdade, inevitável. Ao contrário do que falam sobre as espetaculares “medidas de emergência” generosamente oferecidas pelos governos aos administradores de bancos (sempre tendo em vista os telespectadores), não há curas instantâneas para doenças prolongadas e crônicas. Há poucas chances de se sarar a doença sem a cooperação voluntária e dedicada, muitas vezes árdua e envolvendosacrifício espontâneo do paciente. Todos nós somos pacientes no que diz respeito à doença sociocultural que nos afeta. Portanto, há necessidade de cooperação de todos e de cada um.
Creio que o “decrescimento” mencionado por Serge Latouche, por mais racional que seja e por mais aconselhável que pareça, está longe de ser um fato predeterminado. É apenas um dos cenários possíveis. Se ele vai ou não entrar no palco da história, isso dependerá do que nós, seus atores e em última análise seus dramaturgos involuntários, viermos a fazer.
(Zygmunt Bauman - "44 cartas do mundo líquido moderno")
Ninguém sabe ao certo quantas demissões a atual crise financeira vai causar. No mundo inteiro, a economia está andando para trás; os dados estatísticos da atividade econômica e da produção de riquezas demonstram uma queda rápida ou a iminência da queda e o número de pessoas que recorrem ao seguro-desemprego só faz crescer num ritmo que a atual geração jamais presenciou.
As últimas estatísticas sobre os Estados Unidos (segundo o jornal New York Times de 7 de novembro de 2009) mostram que um quinto dos norte-americanos procurava emprego em vão ou desistira da busca depois de um ano de fracasso. (Os índices de desemprego alcançam 17,5% nesse momento e continuam a crescer. David Leonhardt avalia que “são os mais altos índices há décadas”, provavelmente mais elevados que os da Grande Depressão dos anos 1930: “Quase dezesseis milhões de pessoas estão desempregadas e mais de sete milhões de empregos foram perdidos desde 2007”.) As taxas de desemprego continuam a subir em todo o planeta.
É pouco, muito pouco o que os governos centrais podem fazer para segurar a onda, porque a dependência global e o entrelaçamento das economias os impede de chegar às raízes distantes dos problemas locais. A crise do crédito propagou-se com a rapidez de raio para os países mais remotos, revelando a densidade da interdependência da economia mundial. A súbita escassez de crédito nos Estados Unidos fez com que muitos americanos reduzissem drasticamente seu consumo (por um tempo, pelo menos); isto se refletiu no corte acentuado das importações americanas; a China, país que vem desenvolvendo rapidamente sua produção industrial e tem expandido em ritmo acelerado a exportação de bens de consumo, perdeu seu maior mercado; por conseguinte, os entrepostos chineses estão atulhados de mercadorias não vendidas, inúmeras empresas estão quebrando ou são obrigadas a suspender a produção; essas empresas se veem obrigadas a adiar seus projetos de expansão por tempo indeterminado. Até há pouco tempo, o crescimento da China absorvia grande parte do investimento tecnológico feito sobretudo pelo Japão e a Alemanha, de modo que esses dois gigantes industriais também estão em situação difícil, porque a demanda por seus serviços e produtos tende a diminuir.
Em termos gerais, as fileiras dos “demitidos” só fazem crescer em todo o mundo, fato que diminui ainda mais o consumo global; isso, por sua vez, acelera o aumento do número de desempregados, e por aí vai. É um círculo vicioso, uma cadeia retroalimentada de causas e efeitos que ninguém sabe como deter ou mesmo desacelerar. Medidas tomadas por vários governos no mundo inteiro têm produzido até agora resultados medíocres ou não mostraram efeito algum no que diz respeito ao emprego. De uma coisa podemos ter certeza: no futuro próximo (quem sabe por quanto tempo?) haverá menos empregos disponíveis e mais pessoas correndo atrás deles.
Essas observações deprimentes já deixaram de ser novidade. Mas só agora estamos começando a refletir a respeito das prováveis consequências das novas condições econômicas, ainda não de todo exploradas, sobre importantes aspectos de nossa vida cotidiana, como, por exemplo, a forma e a divisão de tarefas no interior da família. Só podemos especular acerca da gravidade e extensão dessas possíveis consequências – como poderão mudar nossos relacionamentos e padrões de interação cotidianos, ou nossa maneira de pensar sobre isso e as formas que desejaríamos que essas mudanças assumissem?
Vejamos um exemplo. Há muitos indícios de que a perda de empregos em grande escala poderia atingir sobretudo os setores da economia (em especial as indústrias “pesadas”) que tradicionalmente, até um tempo atrás, empregavam mais homens. Setores conhecidos por empregarem mão de obra feminina (como serviços e comércio) podem ser menos afetados pela depressão. Se isso de fato acontecer, a posição de marido e pai como principal provedor da família deverá receber um novo e sério golpe, e a habitual divisão do trabalho, assim como todo o padrão de vida típico das famílias, poderia ser devolvido ao “olho do furacão”.
É verdade que, por vários motivos, tanto por necessidade quanto por escolha, trabalhar fora de casa e ter um emprego remunerado já deixou de ser uma prática exclusiva ou predominantemente masculina. Em grande número de famílias, marido e mulher trabalham fora do domicílio familiar. Mas, na maioria dos casos, a remuneração do marido compunha, até pouco tempo atrás, a maior parcela do orçamento familiar.
Apesar dos espetaculares avanços na libertação das mulheres, a situação de ficar em casa e cuidar dos afazeres domésticos enquanto o cônjuge vai trabalhar fora é um cenário menos atrativo e mais difícil de suportar para os maridos que para as esposas. Na eventualidade de haver uma colisão entre as duas carreiras e for impossível conciliá-las, a prioridade sempre foi dada (por consentimento mútuo, embora nem sempre de coração e mais raro ainda com alegria) às exigências do trabalho do marido. Com a chegada de novos membros na família, o impulso “natural” sempre foi para que a mãe deixasse o emprego e dedicasse todo seu tempo e energia ao cuidado dos filhos.
É possível que essa “lógica da família”, aceita de maneira tácita, venha a entrar em conflito com a nova “lógica da economia” e depare com enormes desafios e pressões no sentido de ser repensada, renegociada e modernizada. A questão do direito das mulheres a uma carreira profissional, a uma renda pessoal e, em geral, ao acesso à esfera pública, com presença importante e influente, senão plenamente equitativa, que já parecia resolvida de uma vez por todas, pode vir a ressurgir com nova aparência e outra vez se tornar alvo de intenso e árduo debate.
Mesmo antes de tomarmos consciência de que a depressão econômica era uma realidade, alguns poucos sinais indicavam que o processo já havia começado. Nos Estados Unidos, há um inflamado debate em torno do livro de Megan Basham, Beside Every Successful Man: A Woman’s Guide to Having It All, no qual a autora argumenta que ajudar o marido a subir na carreira é mais produtivo para o casal e para toda a família que a situação em que marido e mulher seguem suas carreiras individuais, e cada um contribui com uma parcela do orçamento comum. Em termos puramente financeiros, as estatísticas parecem apoiar as conclusões de Megan Basham: homens cujas esposas ficam em casa ganham em média 31% a mais que os solteiros; mas, quando marido e mulher têm empregos de tempo integral, a vantagem cai para meros 3,4%.
A esses números, Megan Basham acrescenta sua experiência pessoal. Ela ajudou o marido a firmar-se num cargo na televisão, não só lhe oferecendo apoio moral, participando e absorvendo parte das tensões e frustrações geradas pela carreira dele, mas atuando na prática, trabalhando como redatora e sua empresária (de graça, claro). Ela se orgulha de sua contribuição e acha que a renda expressiva que o marido traz para casa é fruto do trabalho de ambos. Ela não ficou atrás do marido, mas, como sugere o título do livro, trabalhou ao lado dele (e não é a única, afinal, foi Michelle Obama quem apresentou Barack Obama ao círculo político de Chicago).
É assim que Megan Basham se sente. Mas nem todos os seus leitores entendem os sentimentos dela. Centenas de críticas, às vezes virulentas, acusaram-na de enganar a si própria, de desvirtuar a solidariedade feminina, de interromper a caminhada das mulheres rumo à verdadeira emancipação, e inclusive de tentar persuadi-las a recuar de uma guerra que ainda está longe de chegar ao fim. As críticas encaram o que Megan Basham interpreta como “estar ao lado” do homem como “ser lançada à sombra” dele, um exemplo de discriminação, negação da dignidade da pessoa – uma humilhação.
De um lado, críticas. De outro, aliados inesperados, talvez indesejados, de todo modo importunos. Pouco depois de Megan Basham publicar seu livro, a direita religiosa americana tornou público seu “Manifesto das mulheres de verdade”, que ressaltava o fato de que mulheres e homens foram criados para servir a Deus de modo complementar e de maneiras diferentes. Dizia que o lugar das mulheres é no lar, assim como caberia aos homens o papel de força de trabalho; a confusão desses papéis, insiste o manifesto, leva à destruição da ordem das coisas como Deus as instituiu, uma ordem que não deve ser tratada de modo superficial e deve permanecer intacta para todo o sempre.
O debate está longe de acabar. Pelo contrário, vem ganhando força. Só que hoje um novo participante está prestes a chegar: o crescimento desigual do desemprego depois da depressão econômica. E o recém-chegado pode reclamar ou ganhar sem pedir o voto decisivo, a última palavra, pelo menos na rodada atual da polêmica. Preparem-se.
(Zygmunt Bauman - "44 cartas do mundo líquido moderno")
Quando a crise chega e o novo desastre bate à porta, nem você nem eu temos o direito de pedir desculpas por não termos sido avisados. Somente uma pessoa como Simão o Eremita, que passou avida encarapitado no alto de uma coluna, bem acima da multidão enlouquecida e fora do alcance datagarelice (se pudéssemos imaginar façanha semelhante num planeta atravessado por autoestradas deinformação; se houvesseseguidores contemporâneos de Simão o Eremita, eles não iam tirar o iPhone do bolso antes de subir à coluna), poderia alegar ignorância. Não nós, que seguramos na palma damão aparelhos inteligentes capazes de nos proporcionar de imediato todo conhecimento disponível.
Temos plena ciência, por exemplo, de que estamos sentados sobre uma bomba-relógio ecológica (ainda que raramente se vejam sinais desse conhecimento em nossa maneira cotidiana deagir). Estamos fartos de ouvir que nos sentamos sobre uma bomba-relógio demográfica (“há gentedemais, especialmente ‘eles’, quem quer que ‘eles’ sejam”). Ou uma bomba-relógio consumista(“Por quanto tempo nosso pobre planeta poderá alimentar esses milhões que batem a nossas portasmendigando à espera de serem admitidos em nossa festa?”). E alguns outros tipos de bomba, cujonúmero parece aumentar em vez de diminuir. Dessa forma, o leitor não vai se chocar ao ser advertidode que, entre todas essas bombas, há uma cujo tique-taque ressoa de modo tão funesto quanto as quemencionei, embora tenha ainda menos nossa atenção que as outras.
Poucas semanas atrás podíamos ter ouvido essa advertência (mas quantos de nós a ouvimos de fato?): a da bomba-relógio da desigualdade, pronta a explodir em futuro não muito distante. Umrelatório da ONU sobre desenvolvimento urbano baseado num estudo sobre as 120 maiores cidadesdo mundo alertou que “altos níveis de desigualdade podem trazer consequências sociais, econômicase políticas negativas, acarretando um efeito desestabilizador para as sociedades”; eles “geramfraturas sociais e políticas que podem se transformar em intranquilidade social e insegurança”.
As divisões entre ricos e pobres são muitas, profundas e dão fortes demonstrações de que serãoduradouras, como a famosa “teoria da capilaridade”, que ajuda os ricos a continuarem ricos e a se tornarem ainda mais ricos, embora seja patente que ela não beneficia os pobres. Até hoje, os efeitosdo crescimento econômico acelerado na maioria dos países têm associado de modo inextricável orápido aumento da riqueza “média” e total com uma rápida multiplicação de privações intoleráveisentre as massas de desempregados e trabalhadores ocasionais e informais.
Embora sejam confortavelmente atenuadas pela distância, essas notícias podem parecerassustadoras para muitos de nós à medida que se aproximam chegadas de terras muito longínquas.
Mas, repito, não digam que não foram avisados! Não estamos falando aqui apenas dos camponesesde ontem, amontoados em vergonhosas conurbações dispersas, desordenadas, carentes de recursos,de políticas de gestão e de serviços públicos da África subsaariana ou da América Latina. AsNações Unidas declararam que Nova York é a nona cidade mais desigual do mundo, enquantograndes e prósperos centros urbanos dos Estados Unidos, como Atlanta, Nova Orleans, Washington eMiami, têm um nível dedesigualdade quase idêntico ao de Nairóbi ou Abidjan. Alguns poucos países, sobretudo Dinamarca, Finlândia, Holanda e Eslovênia, parecem por enquanto escapar datendência universal.
Na visão de senso comum, a questão é a desigualdade de acesso à educação, a carreirasprofissionais e a contatos sociais – e, em decorrência disso, uma desigualdade de posses materiais ede oportunidades de fruição da vida. Mas Göran Therborn nos faz lembrar que este não é o fim dahistória, nem mesmo de seu capítulo mais notável. Além da desigualdade “material” ou “derecursos”, há o que ele denomina de “desigualdade vital”1 – o fato de a expectativa de vida e achance de morrer bem antes de alcançar a idade adulta divergirem profundamente segundo asdiferentes classes sociais e diferentes países.
De acordo com Therborn, “um inglês aposentado, ex-bancário ou funcionário de companhia deseguros pode contar com sete ou oito anos a mais de vida pós-aposentadoria que um funcionário daWhitbread ou da Tesco”.a As pessoas classificadas nos níveis inferiores de renda em estatísticasoficiais do governo britânico têm quatro vezes menos chances de atingir a idade de aposentadoriaque os situados nos níveis mais altos. A expectativa de vida nas áreas mais pobres de Glasglow(Calton) é 28 anos menor que na área privilegiada da mesma cidade (Lenzie) e também na prósperaregião de Kensington ou Chelsea, emLondres. “As hierarquias de status social são literalmente letais”, conclui Therborn.
Há um terceiro caso ou aspecto da desigualdade, acrescenta o sociólogo sueco: A desigualdade“existencial”, que “o afeta como pessoa”, “que limita a liberdade de ação de certas categorias de pessoas” (por exemplo, o impedimento que recaía sobre as mulheres de entrar em espaços públicosna Inglaterra vitoriana e em muitos países hoje; ou o confinamento de londrinos no East End, cemanos atrás, substituído na atualidade pelos banlieues franceses, as favelas latino-americanas ou osguetos urbanos dos Estados Unidos). São vítimas da desigualdade existencial as categorias sociaishumilhadas, desrespeitadas e inferiorizadas por terem arrancada de si uma parcela fundamental desua humanidade – como os negros americanos ou os ameríndios (as “nações nativas”, como ahipocrisia do politicamente correto exige chamá-los) nos Estados Unidos; os imigrantes pobres, as“castas inferiores” e os grupos étnicos em vários lugares do mundo.
Recentemente, o governo italiano transformou em lei a desigualdade existencial e sancionoucomo crime qualquer tentativa de suavizá-la; a lei exige que os cidadãos italianos espionem edenunciem os imigrantes ilegais, ameaçando-os de pena de prisão por ajudar e abrigar essesimigrantes.
A transformação do capital financeiro num imenso cassino global criou a presente criseeconômica que desempregou centenas de milhares de pessoas e criou a necessidade de sedispor de bilhões de libras do dinheiro dos contribuintes. No sul, a crise mundial está gerandomais pobreza, fome e morte. … A ampliação da distância social entre os pobres e os ricosdiminui a coesão social, e isso, por sua vez, significa novas questões coletivas, como o crime ea violência, e a redução dos recursos para solucionar todos os nossos problemas comunais, da
identidade nacional à mudança climática.
Mas este também não é o fim da história. Inquietações sociais, agitações urbanas, crime,violência, terrorismo, estas são possibilidades ameaçadoras que prenunciam desgraças para nossasegurança e a de nossos filhos. Contudo, são, por assim dizer, sintomas externos, explosõesespetaculares e intensamente dramatizadas de males sociais inflamados pelo acréscimo de novashumilhações às já existentes, são acontecimentos que aprofundam as desigualdades. No rastro de seucrescimento, a desigualdade lega à sociedade outro tipo de estrago: a devastação moral, a cegueiraética e a insensibilidade, a habituação à visão do sofrimento humano e ao dano que os homenscausam a outros homens todos os dias – a gradual mas implacável, paulatina e subterrânea erosão dosvalores que dão sentido à vida, tornam viável a coexistência humana e plausível o prazer de viver. Osaudoso Richard Rorty conhecia bem os perigos em questão quando dirigiu aos seus contemporâneoso seguinte apelo:
Devemos educar nossos filhos para achar intolerável o fato de que nos sentemos às nossasmesas e, com nossos teclados, recebamos dez vezes mais que aqueles que sujam as mãoslimpando nossas latrinas; e cem vezes mais que aqueles que fabricam nossos teclados noTerceiro Mundo. Devemos ter certeza de que eles se preocupam porque os países que seindustrializaram primeiro têm centenas de vezes mais riqueza que os ainda não industrializados.Nossos filhos devem aprender desde cedo a considerar que as desigualdades entre sua fortunae a de outras crianças não decorrem da vontade de Deus nem constitui um preço necessário apagar pela eficiência econômica, mas é uma tragédia evitável. Eles devem começar a pensar omais cedo possível que se pode mudar o mundo para assegurar que ninguém passe fomeenquanto outros se fartam.
Já está mais que na hora de parar de dizer que não fomos avisados. Ou de parar de perguntar porquem os sinos dobram cada dia mais fortemente.
(Zygmunt Bauman - "44 cartas do mundo líquido moderno")
Nenhum ser humano é exatamente igual a outro – e isso se aplica tanto aos jovens quanto aos velhos. Contudo, é possível notar que, em determinadas categorias de seres humanos, algumas características ou atributos tendem a aparecer com maior frequência que em outras. É essa “condensação relativa” de traços característicos que nos permite falar, em primeiro lugar, em “categorias”, sejam elas nações, classes, gêneros ou gerações. Ao fazê-lo, ignoramos temporariamente a multiplicidade de características que faz de cada um de seus integrantes uma entidade única e irrepetível, diferente de todas as outras, um ser que se destaca de todos os demais membros da “mesma categoria”.
Nós nos concentramos nos aspectos comuns a todos ou à maioria de seus integrantes em comparação com sua ausência ou relativa raridade entre os que fazem parte das outras “categorias”. É com essa condição sempre na cabeça que nos permitimos dizer que todos os nossos contemporâneos, salvo os muito mais velhos, “pertencem” a três gerações sucessivas.
Se esse é de fato o tipo de estratégia e filosofia de vida que costumava distinguir a “geração Y” das que a precederam, a juventude de hoje está fadada a despertar para uma triste realidade. Os países mais prósperos da Europa já dão como certo o ressurgimento de um longo período de desemprego em massa que até então parecia esquecido e relegado ao exílio permanente. Se as premonições mais tenebrosas se concretizarem, estão prestes a desaparecer as infinitas escolhas, a liberdade de movimento e de mudança que os jovens contemporâneos se acostumaram a visualizar (ou melhor, que nasceram para ver) como parte da natureza; e, com elas, o crédito aparentemente ilimitado com o qual esperavam se sustentar em situações de (breve e temporária) adversidade, e que resolveria qualquer (breve e temporária ) falta de solução imediata e satisfatória para seus problemas.
(Zygmunt Bauman - "44 cartas do mundo líquido moderno")