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Pela primeira vez na história milenar do catolicismo, um papa reinante e seu predecessor se encontraram. Neste sábado 23, o recém-eleito Francisco foi recebido pelo papa emérito Bento XVI no palácio apostólico de Castel Gandolfo.
Dez dias após sua eleição, Francisco foi de helicóptero até a tranquila localidade ao sul de Roma e foi recebido pessoalmente por Bento XVI no heliporto da residência de veraneio papal.
“O abraço no heliporto entre o Papa e o Papa emérito foi muito bonito”, comentou o porta-voz do Vaticano, padre Federico Lombardi.
Nas imagens distribuídas pela televisão do Vaticano, os dois Papas foram vistos usando a batina branca. Bento XVI caminhava com dificuldade, apoiado por uma bengala.
Os dois papas conversaram em particular por 45 minutos na biblioteca do palácio, enquanto inúmeras pessoas se congregaram na pequena praça central de Castel Gandolfo para aplaudir e gritar os nomes de Francisco e Bento XVI.
Durante o encontro, o papa emérito reiterou “sua reverência e obediência” ao novo pontífice. Francisco, por sua vez, manifestou seu “agradecimento próprio e de toda a Igreja pelo ministério desenvolvido por Bento XVI durante seu pontificado”, informou o porta-voz.
Durante o histórico encontro, os dois líderes religiosos também rezaram na capela do palácio apostólico. “Papa Francisco quis que se sentassem juntos, no mesmo banco, para rezar. Ele disse: ‘somos irmãos’”, contou Lombardi.

Durante o encontro privado na biblioteca, Francisco presenteou seu Bento XVI com uma imagem da “Virgem da humildade”. “Francisco disse que escolheu esta imagem porque pensou nele e em todos os exemplos de humildade que deu durante seu pontificado.”
No total, Francisco permaneceu quase três horas em Castel Gandolfo, e depois regressou ao Vaticano.
Os assuntos que os dois pontífices examinaram não foram divulgados, mas é certo que giraram em torno de temas importantes para uma igreja com 1,2 bilhão de fiéis: a “nova evangelização”, as perseguições contra os cristãos, a reforma da Cúria, as divisões internas, os escândalos envolvendo dinheiro e sexo, incluindo casos de pedofilia.
Relatório do Vatileaks 
O papa emérito entregou ao sucessor o relatório ultrassecreto que pediu para ser elaborado sobre a situação interna da Igreja após o vazamento de documentos secretos conhecido como Vatileaks.
Segundo vaticanistas, o papa argentino seguirá “o mapa do caminho” traçado por Bento XVI de recuperar a autoridade perdida e terminar a limpeza interna na Cúria.
Antes de renunciar, Bento XVI disse que iria se retirar do mundo, mas que estaria pronto para dar conselhos ao novo pontífice.

Estilos diferentes
Os papas têm temperamentos completamente diferentes: enquanto Joseph Ratzinger se mostrava tímido diante da multidão, Jorge Bergoglio é espontâneo e até abraça os fiéis.
O novo pontífice se distingue por um estilo informal e se mostra mais próximo dos pobres e da simplicidade. Ainda sim, é inflexível em sua doutrina. Sobre as questões da sociedade, Joseph Ratazinger e Jorge Bergoglio compartilham posições conservadoras, seja quanto ao casamento homossexual, o aborto ou a eutanásia.
Quanto aos sinais de simplicidade (anel de prata, etc) do novo papa, sua importância não deve ser exagerada, segundo os vaticanistas. Bento XVI quis manter as tradições, mas viveu de forma simples.
Nos arredores do Vaticano, os cartazes e cartões postais com o retrato de Bento XVI tendem a perder espaço para os do sorridente Jorge Bergoglio e do midiático João Paulo II. Karol Wojtyla, beatificado em 2012, sete anos após sua morte, e que pode ser canonizado em breve, continua a ser o “gigante de Deus” aos olhos dos católicos.
A popularidade adquirida por Francisco em apenas uma semana e a insistência sobre seus gestos simbólicos de ruptura com as tradições podem ser vistas com maus olhos por uma parte do Vaticano. “Este pontificado será enraizado nos ensinamentos de Bento XVI, que foi a principal força intelectual da Igreja nos últimos 25 anos. Sua herança continuará a influenciar este pontificado”, considera Samuel Gregg, do instituto de pesquisa americano Aston.
Semelhanças podem ser traçadas entre os discursos dos dois papas, por exemplo, sobre a necessidade de privilegiar aspectos positivos da doutrina ao invés das condenações.
De acordo com o jornalista alemão Peter Seewald, maior especialista de Joseph Ratzinger, “está claro desde o início que o novo Papa se inscreve nos passos de seu predecessor”.
Ao jornal Corriere della Sera, Seewald afirmou que “Bento preparou o caminho (…) Ele é um grande admirador de São Francisco de Assis. Depois de São Bento (fundador do monaquismo ocidental), é Francisco de Assis que está em segundo lugar para ele: dois reformadores da Igreja, cada um em seu território, em seu caminho próprio.”
“João Paulo II estabilizou o barco da Igreja na tempestade, Bento a purificou, deu instruções à tripulação e a recolocou no caminho certo. Agora Francisco irá ligar o motor para fazer a Igreja se mover”, afirma Peter Seewald.
Quando se estabelecer em maio em um antigo monastério na colina do Vaticano, o Papa emérito estará a poucos passos do gabinete de Francisco. Uma coabitação inédita terá início, e os encontros serão possíveis nos jardins.

http://www.cartacapital.com.br/internacional/papas-francisco-e-bento-xvi-oram-juntos-em-encontro-historico/

publicado às 18:34



Não foi para mim completa surpresa o cardeal argentino Bergoglio, jesuíta. O que constituiu surpresa foi a escolha do nome: Francisco, sugerido pelo colega, cardeal Hummes, de São Paulo, quando o abraçou e lhe disse: "não te esqueças dos pobres." O Papa Francisco explicou: "Essa palavra entrou aqui (apontou para a cabeça): os pobres. Pensei imediatamente em Francisco de Assis. Assim surgiu o nome no meu coração." E exclamou: "Ah, como gostaria de uma Igreja pobre e para os pobres", provocando a ovação dos jornalistas.
E as suas palavras e gestos têm correspondido ao que o nome de Francisco de Assis representa. A simplicidade não teatral, até no vestir e calçar, inclinar-se perante a multidão, a fala cordial e descomplicada, uma cruz peitoral barata, o desejo de "bom descanso" e "bom almoço", ir pagar as despesas de hospedagem, o humor, palavras de ternura e compaixão: isso aproximou-o das pessoas, que agora se podem aproximar, pois é um homem entre homens e mulheres, como Cristo. "Cristo é o centro; o centro não é o sucessor de Pedro." Afinal, a Constituição da Igreja é mesmo o Evangelho e não o Código de Direito Canónico.
Sublinhe-se o seu respeito pela liberdade de consciência. "Tinha-vos (aos jornalistas) dito que vos daria de todo o coração a minha bênção. Muitos de vós não pertencem à Igreja Católica, outros não são crentes. Dou-vos de coração esta bênção, em silêncio, a cada um de vós, respeitando a consciência de cada um, mas sabendo que cada um de vós é filho de Deus. Que Deus vos abençoe."
No passado dia 12, frente àquela pompa toda dos 115 cardeais a entrar na Capela Sistina, para o conclave, perguntei-me pela simplicidade do Evangelho e sobretudo quem representava as mulheres, as famílias, os jovens, os católicos em geral. A Francisco de Assis pareceu--lhe uma vez, numa pequena ermida, ouvir dos lábios de Cristo crucificado: "Francisco, repara a minha Igreja, que ameaça ruína." Espera-se que o Papa Francisco refaça o rosto da Igreja tão desfigurado. No quadro de uma Igreja-instituição descredibilizada, que reforme a Cúria Romana, tornando-a ágil, transparente e colegial. Significativamente, Francisco tem-se referido a si mesmo como bispo de Roma e não como Papa, transmitindo a mensagem de que quer descentralizar, tornando eficaz a colegialidade dos bispos: ele exerce o ministério da unidade numa Igreja solidariamente co-responsável. Francisco tem força e determinação para acabar com os escândalos da pedofilia, do Vatileaks, do Banco do Vaticano.
O peruano Vargas Llosa, prémio Nobel da literatura, agnóstico, pensa que Francisco "parece moderno" e espera que "inicie o processo de modernização da Igreja, libertando-a de anacronismos como não tratar temas como o sexo e a mulher". Francisco de Assis impôs-se também pela fraternidade. Como poderá então Francisco Papa esquecer mais de metade dos católicos, as mulheres, ainda discriminadas na Igreja, povo de Deus? Um pormenor: dirigiu-se ao povo como irmãos e "irmãs". E como pode não proceder a uma revisão da atitude da Igreja face ao corpo e à sexualidade? Aí está a questão dos anticonceptivos, do celibato obrigatório - neste do- mínio, talvez comece pela ordenação de homens casados. Neste contexto de fraternidade franciscana, pode contar-se com a sua luta pela justiça, pelos direitos dos pobres, dos mais débeis, para que todos possam realizar dignamente a sua humanidade. O meio ambiente, os problemas ecológicos, a preservação da natureza, criação de Deus e habitação da humanidade não serão esquecidos.
Em tempo de cruzadas, Francisco de Assis pôs-se a caminho para ir dialogar com o sultão no Egipto. Francisco Papa não abandonará a urgência da continuação do diálogo ecuménico entre as Igrejas cristãs e do diálogo inter-religioso e intercultural. Francisco Papa, um sul-americano com raízes europeias e o responsável máximo pela Igreja católica, organização verdadeiramente global, ocupa um lugar privilegiado para estabelecer pontes entre nações e povos e culturas, a favor da justiça e da paz, num mundo cada vez mais policêntrico e multipolar.
Há razões para uma esperança paciente.

(Anselmo Borges)
http://www.dn.pt/inicio/opiniao/interior.aspx?content_id=3125358&seccao=Anselmo%20Borges&tag=Opini%E3o%20-%20Em%20Foco&page=-1

publicado às 18:08

O Papa Francisco celebrou hoje a sua primeira eucaristia no Domingo de Ramos, apelando aos fiéis para terem uma vida "simples" e "humilde" e com "alegria cristã."
"Jesus despertou tantas esperanças no coração, sobretudo entre os humildes, simples, pobres, pessoas esquecidas, aqueles que não importa aos olhos do mundo", declarou o Papa perante uma multidão de cerca de 250 mil peregrinos, sublinhando que o Domingo de Ramos assinala como Jesus foi traído por um dos seus apóstolos, acabando por ser sentenciado à morte na cruz.
O pontífice referiu ainda que "Jesus levou consigo o pecado do mundo, que também é nosso, mas que lavou com o seu sangue e misericórdia, com o amor de Deus".
Francisco destacou a importância de se ter a alegria cristã no coração, sendo fonte de inspiração e de fé para toda a vida.

"O coração não envelhece"

 

"A alegria cristã não nasce de possuir um monte de coisas, mas de ter conhecido Jesus. De sete a 70 anos, o coração não envelhece", afirmou o Papa.
O pontífice, que se reuniu ontem com o seu antecessor Bento XVI, condenou também a guerra, a corrupção e os conflitos, sublinhando que são crimes contra a Humanidade que Deus criou para o amor e paz.
"Olhem ao nosso redor. Quantas feridas são infligidas pelo mal da Humanidade! Guerra, violências, conflitos económicos que se abatem sobre os mais fracos, a sede de dinheiro e poder, a corrupção, as divisões, os crimes contra a vida humana e contra a  criação", declarou.
Com vestes vermelhas e batina branca, o Papa Francisco passou pela multidão num veículo sem proteção, respondendo a acenos de milhares de peregrinos que exibiam ramos de oliveira e folhas de palmeira.

publicado às 18:06

O capitalismo, exatamente como os sistemas de números naturais do famoso teorema de Kurt Gödel (embora por razões diversas), não pode ser simultaneamente coerente e completo. Se é coerente com seus princípios, surgem problemas que não é capaz de enfrentar. Se ele tenta resolver esses problemas, não pode fazê-lo sem cair na incoerência em relação a seus próprios pressupostos fundamentais.
Muito antes que Gödel redigisse seu teorema, Rosa Luxemburgo já havia escrito seu estudo sobre a “acumulação capitalista”, no qual sustentava que esse sistema não pode sobreviver sem as economias “não capitalistas”: ele só é capaz de avançar seguindo os próprios princípios enquanto existirem “terras virgens” abertas à expansão e à exploração – embora, ao conquistá-las e explorá-las, ele as prive de sua virgindade pré-capitalista, exaurindo assim as fontes de sua própria alimentação.
Sem meias palavras, o capitalismo é um sistema parasitário. Como todos os parasitas, pode prosperar durante certo período, desde que encontre um organismo ainda não explorado que lhe forneça alimento. Mas não pode fazer isso sem prejudicar o hospedeiro, destruindo assim, cedo ou tarde, as condições de sua prosperidade ou mesmo de sua sobrevivência.
Escrevendo na época do capitalismo ascendente e da conquista territorial, Rosa Luxemburgo não previa nem podia prever que os territórios pré-modernos de continentes exóticos não eram os únicos “hospedeiros” potenciais, dos quais o capitalismo poderia se nutrir para prolongar a própria existência e gerar uma série de períodos de prosperidade.
Hoje, quase um século depois de Rosa Luxemburgo ter divulgado sua intuição, sabemos que a força do capitalismo está na extraordinária engenhosidade com que busca e descobre novas espécies hospedeiras sempre que as espécies anteriormente exploradas se tornam escassas ou se extinguem. E também no oportunismo e na rapidez, dignos de um vírus, com que se adapta às idiossincrasias de seus novos pastos.
Há uma piada sobre dois vendedores que viajam para a África representando suas respectivas empresas de calçados. O primeiro envia uma mensagem para a matriz: não mandem sapato algum, todos aqui andam descalços. A mensagem enviada pelo segundo foi: mandem dez milhões de pares imediatamente – todos aqui andam descalços. Essa velha anedota foi estabelecida como um elogio à perspicácia comercial agressiva e como condenação da filosofia empresarial predominante na época: dos negócios voltados para a satisfação de necessidades existentes, com as ofertas produzidas em resposta à demanda corrente. No entanto, nas poucas dezenas de anos que se seguiram, a filosofia empresarial completou uma virada.
Agora, num cenário exitosamente transformado, de uma sociedade de produtores (com os lucros provindo sobretudo da exploração do trabalho assalariado), numa sociedade de consumidores (sendo os lucros oriundos sobretudo da exploração dos desejos de consumo), a filosofia empresarial dominante insiste em que a finalidade do negócio é evitar que as necessidades sejam satisfeitas e evocar, induzir, conjurar e ampliar novas necessidades que clamam por satisfação e novos clientes em potencial, induzidos à ação por essas necessidades: em suma, há uma filosofia de afirmar que a função da oferta é criar demanda. Essa crença se aplica a todos os produtos – sejam eles fábricas ou sociedades financeiras. No que diz respeito à filosofia dos negócios, os empréstimos não são exceção: a oferta de empréstimos deve criar e ampliar a necessidade de empréstimos.
A introdução dos cartões de crédito foi um sinal do que viria a seguir. Foram lançados “no mercado” cerca de 30 anos atrás, com o slogan exaustivo e extremamente sedutor de “Não adie a realização do seu desejo”. Você deseja alguma coisa, mas não ganha o suficiente para adquiri-la? Nos velhos tempos, felizmente passados e esquecidos, era preciso adiar a satisfação (e esse adiamento, segundo um dos pais da sociologia moderna, Max Weber, foi o princípio que tornou possível o advento do capitalismo moderno): apertar o cinto, privar-se de certas alegrias, gastar com prudência e frugalidade, colocar o dinheiro economizado na caderneta de poupança e ter esperança, com cuidado e paciência, de conseguir juntar o suficiente para transformar os sonhos em realidade.
Graças a Deus e à benevolência dos bancos, isso já acabou! Com um cartão de crédito, é possível inverter a ordem dos fatores: desfrute agora e pague depois! Com o cartão de crédito você está livre para administrar sua satisfação, para obter as coisas quando desejar, não quando ganhar o suficiente para obtê-las.
Esta era a promessa, só que ela incluía uma cláusula difícil de decifrar, mas fácil de adivinhar, depois de um momento de reflexão: dizia que todo “depois”, cedo ou tarde, se transformará em “agora” – os empréstimos terão que ser pagos; e o pagamento dos empréstimos, contraídos para afastar a espera do desejo e atender prontamente as velhas aspirações, tornará ainda mais difícil satisfazer os novos anseios. O pagamento desses empréstimos separa “espera” de “querer”, e atender prontamente seus desejos atuais torna ainda mais difícil satisfazer seus desejos futuros. Não pensar no “depois” significa, como sempre, acumular problemas. Quem não se preocupa com o futuro, faz isso por sua própria conta e risco. E certamente pagará um preço pesado. Mais cedo do que tarde, descobre-se que o desagradável “adiamento da satisfação” foi substituído por um curto adiamento da punição – que será realmente terrível – por tanta pressa. Qualquer um pode ter o prazer quando quiser, mas acelerar sua chegada não torna o gozo desse prazer mais acessível economicamente. Ao fim e ao cabo, a única coisa que podemos adiar é o momento em que nos daremos conta dessa triste verdade.
Por mais amarga e deletéria que seja, esta não é a única pequena cláusula anexada à promessa, grafada em letras maiúsculas, do “desfrute agora, pague depois”. Para impedir que o efeito dos cartões de crédito e do crédito fácil se reduza a um lucro que o emprestador só realiza uma vez com cada cliente, a dívida contraída tinha de ser (e realmente foi) transformada numa fonte permanente de lucro.
Não pode pagar sua dívida? Em primeiro lugar, nem precisa tentar: a ausência de débitos não é o estado ideal. Em segundo lugar, não se preocupe: ao contrário dos emprestadores insensíveis de antigamente, ansiosos para reaver seu dinheiro em prazos prefixados e não renováveis, nós, modernos e benevolentes credores, não queremos nosso dinheiro de volta. Longe disso, oferecemos mais créditos para pagar a velha dívida e ainda ficar com algum dinheiro extra (ou seja, alguma dívida extra) a fim de pagar novas alegrias. Somos os bancos que gostam de dizer “sim”. Seus bancos amigos. Bancos “que sorriem”, como dizia uma de suas mais criativas campanhas publicitárias.
O que nenhuma publicidade declarava abertamente, deixando a verdade a cargo das mais sinistras premonições dos devedores, era que os bancos credores realmente não queriam que seus devedores pagassem suas dívidas. Se eles pagassem com diligência os seus débitos, não seriam mais devedores. E são justamente os débitos (os juros cobrados mensalmente) que os credores modernos e benevolentes (além de muito engenhosos) resolveram e conseguiram transformar na principal fonte de lucros constantes. O cliente que paga prontamente o dinheiro que pediu emprestado é o pesadelo dos credores.
As pessoas que se recusam a gastar um dinheiro que ainda não ganharam, abstendo-se de pedi-lo emprestado, não têm utilidade alguma para os emprestadores, assim como as pessoas que (levadas pela prudência ou por uma honra hoje fora de moda) se esforçam para pagar seus débitos nos prazos estabelecidos. Para garantir seu lucro, assim como o de seus acionistas, bancos e empresas de cartões de crédito contam mais com o “serviço” continuado das dívidas do que com seu pronto pagamento. Para eles, o “devedor ideal” é aquele que jamais paga integralmente suas dívidas.
Os indivíduos que têm uma caderneta de poupança e nenhum cartão de crédito são vistos como um desafio para as artes do marketing: “terras virgens” clamando pela exploração lucrativa. Uma vez cultivadas (ou seja, incluídas no jogo dos empréstimos), não se pode mais permitir que escapem, que entrem “em pousio”. Quem quiser quitar inteiramente seus débitos antes do prazo deve pagar pesados encargos.
Até a recente crise do crédito, os bancos e as empresas de cartões de crédito se mostravam mais que disponíveis a oferecer novos empréstimos aos devedores inadimplentes, para cobrir os juros não pagos sobre os débitos anteriores. Uma das maiores empresas de cartões de crédito da Grã-Bretanha causou escândalo (um escândalo de curta duração, podemos estar certos) quando revelou o jogo, recusando-se a fornecer novos cartões de crédito aos clientes que quitavam inteiramente seus débitos mensais, sem incorrer, portanto, no pagamento de encargos financeiros.
Resumindo: a atual “contração do crédito” não é resultado do insucesso dos bancos. Ao contrário, é o fruto, plenamente previsível, embora não previsto, de seu extraordinário sucesso. Sucesso ao transformar uma enorme maioria de homens, mulheres, velhos e jovens numa raça de devedores. Alcançaram seu objetivo: uma raça de devedores eternos e a autoperpetuação do “estar endividado”, à medida que fazer mais dívidas é visto como o único instrumento verdadeiro de salvação das dívidas já contraídas. O hábito universal de buscar mais empréstimos era visto como a única forma realista (ainda que temporária) de suspensão da execução da dívida.
Hoje, ingressar nessa condição é mais fácil do que nunca antes na história da humanidade, assim como escapar dessa condição jamais foi tão difícil. Todos os que podiam se transformar em devedores e milhões de outros que não podiam e não deviam ser induzidos a pedir empréstimos já foram fisgados e seduzidos para fazer dívidas.
Como em todas as mutações precedentes do capitalismo, desta vez o Estado também participou da criação de novos pastos a explorar: foi do presidente Clinton a iniciativa de introduzir nos Estados Unidos as hipotecas subprime. Elas eram garantidas pelo governo, a fim de oferecer crédito, para compra da casa própria, a pessoas desprovidas dos meios de pagar a dívida assumida, e, portanto, a fim de transformar setores da população até então inacessíveis à exploração creditícia em devedores.
Mas assim como o desaparecimento de pessoas descalças representa um problema para a indústria de calçados, o desaparecimento de pessoas não endividadas representa um desastre para a indústria de crédito. E a famosa previsão de Rosa Luxemburgo mostrou-se novamente verdadeira: mais uma vez, o capitalismo esteve perigosamente perto de um suicídio indesejado, conseguindo exaurir o estoque de novas terras lucrativas.
Nos Estados Unidos, o endividamento médio das famílias cresceu algo em torno de 22% nos últimos oito anos – tempos de uma prosperidade que parecia não ter precedente. A soma total das aquisições com cartões de crédito não ressarcidas cresceu 15%. E a dívida, talvez ainda mais perigosa, dos estudantes universitários, futura elite política, econômica e espiritual da nação, dobrou de tamanho. Os estudantes foram obrigados/encorajados a viver a crédito, a gastar um dinheiro que, na melhor das hipóteses, só ganhariam muitos anos mais tarde (supondo que a prosperidade e a orgia consumista durem até lá).
O adestramento para a arte de “viver em dívida” e de forma permanente foi incluído nos currículos escolares nacionais. A Grã-Bretanha também chegou a situação bem semelhante. Em agosto de 2008, a inadimplência dos consumidores superou o total do Produto Interno Bruto da Grã-Bretanha. As famílias britânicas têm dívidas num valor superior a tudo o que suas fábricas, fazendas e escritórios produzem. Os outros países europeus não estão em situação muito diversa. O planeta dos bancos está esgotando as terras virgens e já se apropriou implacavelmente de vastas extensões de terras endemicamente estéreis.

(Zygmunt Bauman - "Vida a crédito")

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publicado às 21:51

Hoje muito se fala sobre a “politização da religião”. Muito pouca atenção é dada, contudo, à tendência paralela de “sacralização da política”, algo talvez ainda mais perigoso e muitas vezes muito mais sangrento em suas consequências. Um conflito de interesses que convida à negociação e ao compromisso (o pão de cada dia da política) é então reciclado sob a forma de um confronto final entre o bem e o mal que torna qualquer acordo negociado inconcebível, do qual apenas um dos antagonistas pode sair vivo (o horizonte liminar das religiões monoteístas). As duas tendências, eu diria, são gêmeas siamesas inseparáveis, cada qual voltada sobretudo para projetar na irmã os demônios interiores que partilham.
Então, o que virá a ser o “futuro de uma ilusão”, para utilizar uma frase de Sigmund Freud? Estou inclinado a pensar que, seja qual for o futuro daquela “ilusão”, ele será longo. Provavelmente tão longo quanto a presença da humanidade. Freud atribuiu “a ilusão” aos traços permanentes e inextirpáveis do instinto humano: grosso modo, dada a “apatia geneticamente determinada e inata dos seres humanos”, sua impermeabilidade à “argumentação racional”, além do potencial destrutivo dos ímpetos também endêmicos dos homens, a sociedade humana é inconcebível sem a coerção.
Karl Marx associou a origem (temporária) inescapável da “ilusão” à história, e não à genética, e também às condições humanas historicamente desenvolvidas, e não à evolução biológica: a religião era o “ópio” que pretendia manter as massas em estupor para abafar a dissensão e impedi-las de se rebelar. Ela deveria durar tanto quanto, mas não mais que, o tipo de condição humana capaz de dar à luz ao dissenso e incitar à rebelião. Uma vez que os pressupostos que apoiavam os veredictos dos dois grandes pensadores desde seu surgimento (no caso de Freud) ou até agora (no caso de Marx) permaneceram inacessíveis aos testes empíricos, prefiro adiar indefinidamente o retorno do júri ao tribunal.
Estou inclinado a apoiar de forma incondicional a interpretação da religião dada por meu erudito amigo Leszek Kolakowski. Segundo ele, a religião é a manifestação/declaração da insuficiência humana. Assim como nos solicitam que esperemos pelos já mencionados teoremas de Gödel (segundo o qual: um sistema não pode ser ao mesmo tempo completo e consistente; se ele for compatível com seus próprios princípios, surgem problemas que não pode resolver; e, se tenta resolvê-los, não pode fazer isso sem contradição com seus próprios pressupostos fundadores), a coesão humana cria problemas que não consegue compreender, ou não pode atacar, ou ambos.
Confrontada com esses problemas, a lógica humana corre o risco de falhar e ir a pique. Incapaz de reverter as irracionalidades que detectou no mundo para se ajustar à estrutura resistente da razão humana, ela corta-as do domínio dos assuntos humanos e as transporta para regiões inacessíveis ao pensamento e à ação dos homens. É por isso, aliás, que Kolakowski acerta com tamanha exatidão o alvo quando afirma que os teólogos formados deram à religião mais prejuízo que lucro, ao empreenderem esforços extremos para oferecer uma “comprovação lógica” da existência de Deus. A serviço da lógica, os seres humanos dispõem de pesquisadores e conselheiros devidamente credenciados.
Os homens precisam de Deus por seus milagres, não para seguir as leis da lógica; por sua inescrutabilidade e imprevisibilidade, não por sua transparência e rotina; por sua capacidade de virar o curso dos acontecimentos de cabeça para baixo (e não apenas o desenrolar do futuro, mas também o passado “já consumado”, como insistiu Leon Shestov); por sua capacidade de colocar entre parênteses a ordem das coisas, em vez de, subserviente, submeter-se a ela, como os seres humanos são pressionados a fazer e em sua maioria fazem a maior parte do tempo. Em suma, o homem precisa de um Deus onisciente e onipotente para dar conta (e espero que para domar e domesticar) de todas aquelas forças aterradoras, em aparência entorpecidas, surdas e cegas que a compreensão humana e seu poder de ação não podem alcançar.
Creio, em resumo, que o futuro dessa ilusão (em especial) está entrelaçado com o futuro da incerteza humana: incerteza coletiva (relativa à segurança e aos poderes da espécie humana como um todo reunida em, e dependente de, um hábitat composto de homens, feito por homens e gerido por homens e que eles são incapazes de domesticar). Tendo falhado e continuando a sofrer derrotas em seus esforços recorrentes e contínuos para liquidar os dois tipos de incerteza, a humanidade continuará a se voltar para a “ilusão”: sua solidão no Universo, a ausência de um tribunal de apelações e de poderes executivos são por demais assustadores para a maioria dos homens suportar. Suponho que Deus morrerá com a humanidade. Não num momento anterior.

(Zygmunt Bauman - "Vida a crédito")

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publicado às 16:10


Como escapar da crise?

por Thynus, em 24.03.13

Outro leitor de La Repubblica, David Bernardi, perguntou o que podemos fazer para escapar da situação alarmante em que nos encontramos depois da crise do crédito e como evitar suas consequências possivelmente catastróficas. Em outras palavras, ele perguntou como cada um de nós pode e deve se comportar e viver – e quais as possibilidades de que outras pessoas sigam o bom exemplo.
Estas são perguntas que nos fazemos todos os dias; afinal, não foi só o sistema bancário e a bolsa de valores que sofreram duros e sucessivos golpes – nossa confiança nas estratégias de vida, nos modos de agir, nos padrões de sucesso e no ideal de felicidade que, dia após dia, nos últimos anos, nos disseram que valia a pena seguir também foi abalado e perdeu parte considerável de sua autoridade e poder de atração. Nossos ídolos, versões líquido-modernas do bezerro de ouro bíblico, derreteram ao mesmo tempo que a confiança na economia! Como observou Mark Furlong, da La Trove University, Michigan: “Acabou, foi tudo ralo abaixo. … À vista de todo mundo, ‘os melhores e mais brilhantes’, os ‘caras mais inteligentes da turma’ fizeram tudo espetacularmente errado” (Mark Furlong, “Crying to be heard”).
Pensando em retrospecto, os anos anteriores à crise do crédito parecem ter sido tempos tranquilos e alegres do tipo “aproveite agora, pague depois”; uma época em que nós agíamos com a certeza de que haveria riqueza suficiente e até maior no dia seguinte, anulando qualquer preocupação com o crescimento das dívidas de hoje, desde que fizéssemos o que se exigia para aderir aos “caras mais inteligentes da turma” e seguir seu exemplo. Naqueles dias que ficaram para trás, o exercício de subir montanhas cada vez mais altas e ter acesso a paisagens cada vez mais arrebatadoras, eclipsar as grandiosas montanhas de ontem com o perfil das colinas de hoje e aplainar as colinas de ontem na gentil ondulação das planícies de hoje parecia durar para sempre. Como declarou a milhões de internautas um jovem e brilhante corretor de fundos de hedge, hoje falido: “Ninguém jamais perdeu de verdade – a viagem já estava difícil há muito tempo. De repente, pum!!”
O fato é que agora o tempo da orgia acabou. Chegaram os dias (meses, talvez anos) de fazer contas, de calcular. Dias de ressaca e de recobrar a sobriedade. Por sorte, dias também de reflexão, de repensar coisas que pareciam estabelecidas há muito tempo e para sempre; dias de voltar à prancheta; dias ameaçadores e promissores, de maus presságios e bons augúrios (dependendo de sua preferência!) acerca dos longos dias de decroissance (decrescimento), como os chama Serge Latouche (leiam o livro dele, Farewell to Growth).
Latouche fala em apertar os cintos, de voltar aos anos anteriores à orgia. Menciona tempos nos quais (como nos faz lembrar David Bernardi) havia menos cosméticos e detergentes, menos automóveis nas estradas; em compensação, havia menos lixo e desperdício, menos refugos e disparidades, mas muita energia e silêncio. Até é possível, sugere Bernardi, que haja dias de ar menos poluído, com menos edifícios e mais áreas verdes… Pode ser, quem sabe? Quem pode garantir que isso acontecerá? Haverá um caminho de volta ao passado (caminhos para percorrer na vida real, e não para contemplar com saudosismo nos filmes de Hollywood)? Ou será que os homens se parecem com sua época muito mais do que com seus pais, como diz a sabedoria árabe?
Deixando de lado o arriscado jogo de fazer prognósticos e adivinhações, a questão prática é se saberemos nos virar em qualquer paisagem que venha substituir a orgia. Como poderemos viver, entra dia, sai dia, num mundo meio esquecido pelos mais velhos e totalmente estranho e desconhecido para os jovens?
Alguns dos analistas mais perspicazes a formular respostas para esses desafios, como Lisa Appignanesi, preveem um aumento acelerado da frequência e propagação dos problemas mentais. A autora afirma que, no plano mundial, “a ‘depressão’ em breve estará no segundo lugar entre as doenças graves, perdendo apenas para doenças cardíacas; no mundo desenvolvido, estará em primeiro lugar”.
Que depressão? A reação à perda de ilusões e à evaporação de belos sonhos, um sentimento de que o mundo ao redor “está indo para o brejo” e nos levando junto. A verdade é que não podemos fazer grande coisa para resistir ao fracasso ou mudar sua direção. Glenn Albrecht, da University of Newcastle, pesquisou tempos atrás os efeitos psicossociais que o fechamento das atividades de mineração teve sobre as comunidades mineiras adjacentes, descrevendo a “perda de bem-estar que se segue à consciência de que o ambiente onde se vive está sofrendo uma grave deterioração” (In Frulong). O terremoto que afetou o crédito e sacudiu as torres financeiras que ficaram de pé após o ataque terrorista ao World Trade Center talvez venha a ter efeitos similares, e não só para os que trabalham nelas.
Outra possível reação à crise econômica atual é o que Mark Furlong denominou de “militarização do eu”. É o que vão fazer, sem dúvida, os produtores e comerciantes interessados em capitalizar a catástrofe transformando-a em lucro acionário, como de hábito. A indústria farmacêutica já está em plena atividade, tentando invadir, conquistar e colonizar a nova “terra virgem” da depressão pós-crise a fim de vender sua “nova geração” de smart drugs, começando por semear, cultivar e fazer crescer as novas ilusões que tendem a propulsionar a demanda. Já estamos ouvindo falar de drogas fantásticas que prometem “melhorar tudo”, memória, humor, potência sexual e a energia de quem as ingere com regularidade, proporcionando assim total controle sobre a construção do próprio ego e sua preponderância sobre o ego de outros. É possível mesmo que o mundo esteja indo ladeira abaixo, por isso, deixem que eu me salve do tranco com a ajuda de inovações farmacêuticas.
Contudo, há outra possibilidade. Existe a opção de tentar chegar às raízes do problema atual e (como sugeriu Furlong) “fazer o contrário do que estamos acostumados: inverter o padrão e organizar nosso pensamento não mais a partir daquele em que o ‘indivíduo’ está no centro, mas segundo uma ordem alternativa centrada em práticas éticas e estéticas que privilegiem a relação e o contexto”.
Trata-se, sem dúvida, de uma possibilidade remota (inverossímil ou pretensiosa, diriam alguns), que exige um período prolongado, tortuoso e muitas vezes doloroso de autocrítica e reajuste. Nascemos e crescemos numa sociedade completamente “individualizada”, na qual a autonomia, a autossuficiência e o egocentrismo do indivíduo eram axiomas que não exigiam provas (nem as admitiam), e que dava pouco espaço, se é que dava, à discussão. Só que mudar nossa visão de mundo e assumir uma compreensão adequada do lugar e do papel que temos na sociedade não é fácil nem se faz de um dia para o outro. No entanto, essa mudança parece ser imperativa, na verdade, inevitável. Ao contrário do que falam sobre as espetaculares “medidas de emergência” generosamente oferecidas pelos governos aos administradores de bancos (sempre tendo em vista os telespectadores), não há curas instantâneas para doenças prolongadas e crônicas. Há poucas chances de se sarar a doença sem a cooperação voluntária e dedicada, muitas vezes árdua e envolvendosacrifício espontâneo do paciente. Todos nós somos pacientes no que diz respeito à doença sociocultural que nos afeta. Portanto, há necessidade de cooperação de todos e de cada um.
Creio que o “decrescimento” mencionado por Serge Latouche, por mais racional que seja e por mais aconselhável que pareça, está longe de ser um fato predeterminado. É apenas um dos cenários possíveis. Se ele vai ou não entrar no palco da história, isso dependerá do que nós, seus atores e em última análise seus dramaturgos involuntários, viermos a fazer.

(Zygmunt Bauman - "44 cartas do mundo líquido moderno")

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publicado às 14:26


Homens, é hora de voltar para casa?

por Thynus, em 24.03.13

Ninguém sabe ao certo quantas demissões a atual crise financeira vai causar. No mundo inteiro, a economia está andando para trás; os dados estatísticos da atividade econômica e da produção de riquezas demonstram uma queda rápida ou a iminência da queda e o número de pessoas que recorrem ao seguro-desemprego só faz crescer num ritmo que a atual geração jamais presenciou.
As últimas estatísticas sobre os Estados Unidos (segundo o jornal New York Times de 7 de novembro de 2009) mostram que um quinto dos norte-americanos procurava emprego em vão ou desistira da busca depois de um ano de fracasso. (Os índices de desemprego alcançam 17,5% nesse momento e continuam a crescer. David Leonhardt avalia que “são os mais altos índices há décadas”, provavelmente mais elevados que os da Grande Depressão dos anos 1930: “Quase dezesseis milhões de pessoas estão desempregadas e mais de sete milhões de empregos foram perdidos desde 2007”.) As taxas de desemprego continuam a subir em todo o planeta.
É pouco, muito pouco o que os governos centrais podem fazer para segurar a onda, porque a dependência global e o entrelaçamento das economias os impede de chegar às raízes distantes dos problemas locais. A crise do crédito propagou-se com a rapidez de raio para os países mais remotos, revelando a densidade da interdependência da economia mundial. A súbita escassez de crédito nos Estados Unidos fez com que muitos americanos reduzissem drasticamente seu consumo (por um tempo, pelo menos); isto se refletiu no corte acentuado das importações americanas; a China, país que vem desenvolvendo rapidamente sua produção industrial e tem expandido em ritmo acelerado a exportação de bens de consumo, perdeu seu maior mercado; por conseguinte, os entrepostos chineses estão atulhados de mercadorias não vendidas, inúmeras empresas estão quebrando ou são obrigadas a suspender a produção; essas empresas se veem obrigadas a adiar seus projetos de expansão por tempo indeterminado. Até há pouco tempo, o crescimento da China absorvia grande parte do investimento tecnológico feito sobretudo pelo Japão e a Alemanha, de modo que esses dois gigantes industriais também estão em situação difícil, porque a demanda por seus serviços e produtos tende a diminuir.
Em termos gerais, as fileiras dos “demitidos” só fazem crescer em todo o mundo, fato que diminui ainda mais o consumo global; isso, por sua vez, acelera o aumento do número de desempregados, e por aí vai. É um círculo vicioso, uma cadeia retroalimentada de causas e efeitos que ninguém sabe como deter ou mesmo desacelerar. Medidas tomadas por vários governos no mundo inteiro têm produzido até agora resultados medíocres ou não mostraram efeito algum no que diz respeito ao emprego. De uma coisa podemos ter certeza: no futuro próximo (quem sabe por quanto tempo?) haverá menos empregos disponíveis e mais pessoas correndo atrás deles.
Essas observações deprimentes já deixaram de ser novidade. Mas só agora estamos começando a refletir a respeito das prováveis consequências das novas condições econômicas, ainda não de todo exploradas, sobre importantes aspectos de nossa vida cotidiana, como, por exemplo, a forma e a divisão de tarefas no interior da família. Só podemos especular acerca da gravidade e extensão dessas possíveis consequências – como poderão mudar nossos relacionamentos e padrões de interação cotidianos, ou nossa maneira de pensar sobre isso e as formas que desejaríamos que essas mudanças assumissem?
Vejamos um exemplo. Há muitos indícios de que a perda de empregos em grande escala poderia atingir sobretudo os setores da economia (em especial as indústrias “pesadas”) que tradicionalmente, até um tempo atrás, empregavam mais homens. Setores conhecidos por empregarem mão de obra feminina (como serviços e comércio) podem ser menos afetados pela depressão. Se isso de fato acontecer, a posição de marido e pai como principal provedor da família deverá receber um novo e sério golpe, e a habitual divisão do trabalho, assim como todo o padrão de vida típico das famílias, poderia ser devolvido ao “olho do furacão”.
É verdade que, por vários motivos, tanto por necessidade quanto por escolha, trabalhar fora de casa e ter um emprego remunerado já deixou de ser uma prática exclusiva ou predominantemente masculina. Em grande número de famílias, marido e mulher trabalham fora do domicílio familiar. Mas, na maioria dos casos, a remuneração do marido compunha, até pouco tempo atrás, a maior parcela do orçamento familiar.
Apesar dos espetaculares avanços na libertação das mulheres, a situação de ficar em casa e cuidar dos afazeres domésticos enquanto o cônjuge vai trabalhar fora é um cenário menos atrativo e mais difícil de suportar para os maridos que para as esposas. Na eventualidade de haver uma colisão entre as duas carreiras e for impossível conciliá-las, a prioridade sempre foi dada (por consentimento mútuo, embora nem sempre de coração e mais raro ainda com alegria) às exigências do trabalho do marido. Com a chegada de novos membros na família, o impulso “natural” sempre foi para que a mãe deixasse o emprego e dedicasse todo seu tempo e energia ao cuidado dos filhos.
É possível que essa “lógica da família”, aceita de maneira tácita, venha a entrar em conflito com a nova “lógica da economia” e depare com enormes desafios e pressões no sentido de ser repensada, renegociada e modernizada. A questão do direito das mulheres a uma carreira profissional, a uma renda pessoal e, em geral, ao acesso à esfera pública, com presença importante e influente, senão plenamente equitativa, que já parecia resolvida de uma vez por todas, pode vir a ressurgir com nova aparência e outra vez se tornar alvo de intenso e árduo debate.
Mesmo antes de tomarmos consciência de que a depressão econômica era uma realidade, alguns poucos sinais indicavam que o processo já havia começado. Nos Estados Unidos, há um inflamado debate em torno do livro de Megan Basham, Beside Every Successful Man: A Woman’s Guide to Having It All, no qual a autora argumenta que ajudar o marido a subir na carreira é mais produtivo para o casal e para toda a família que a situação em que marido e mulher seguem suas carreiras individuais, e cada um contribui com uma parcela do orçamento comum. Em termos puramente financeiros, as estatísticas parecem apoiar as conclusões de Megan Basham: homens cujas esposas ficam em casa ganham em média 31% a mais que os solteiros; mas, quando marido e mulher têm empregos de tempo integral, a vantagem cai para meros 3,4%.
A esses números, Megan Basham acrescenta sua experiência pessoal. Ela ajudou o marido a firmar-se num cargo na televisão, não só lhe oferecendo apoio moral, participando e absorvendo parte das tensões e frustrações geradas pela carreira dele, mas atuando na prática, trabalhando como redatora e sua empresária (de graça, claro). Ela se orgulha de sua contribuição e acha que a renda expressiva que o marido traz para casa é fruto do trabalho de ambos. Ela não ficou atrás do marido, mas, como sugere o título do livro, trabalhou ao lado dele (e não é a única, afinal, foi Michelle Obama quem apresentou Barack Obama ao círculo político de Chicago).
É assim que Megan Basham se sente. Mas nem todos os seus leitores entendem os sentimentos dela. Centenas de críticas, às vezes virulentas, acusaram-na de enganar a si própria, de desvirtuar a solidariedade feminina, de interromper a caminhada das mulheres rumo à verdadeira emancipação, e inclusive de tentar persuadi-las a recuar de uma guerra que ainda está longe de chegar ao fim. As críticas encaram o que Megan Basham interpreta como “estar ao lado” do homem como “ser lançada à sombra” dele, um exemplo de discriminação, negação da dignidade da pessoa – uma humilhação.
De um lado, críticas. De outro, aliados inesperados, talvez indesejados, de todo modo importunos. Pouco depois de Megan Basham publicar seu livro, a direita religiosa americana tornou público seu “Manifesto das mulheres de verdade”, que ressaltava o fato de que mulheres e homens foram criados para servir a Deus de modo complementar e de maneiras diferentes. Dizia que o lugar das mulheres é no lar, assim como caberia aos homens o papel de força de trabalho; a confusão desses papéis, insiste o manifesto, leva à destruição da ordem das coisas como Deus as instituiu, uma ordem que não deve ser tratada de modo superficial e deve permanecer intacta para todo o sempre.
O debate está longe de acabar. Pelo contrário, vem ganhando força. Só que hoje um novo participante está prestes a chegar: o crescimento desigual do desemprego depois da depressão econômica. E o recém-chegado pode reclamar ou ganhar sem pedir o voto decisivo, a última palavra, pelo menos na rodada atual da polêmica. Preparem-se.

(Zygmunt Bauman - "44 cartas do mundo líquido moderno")

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publicado às 13:40


Não digam que não foram avisados!

por Thynus, em 24.03.13

Quando a crise chega e o novo desastre bate à porta, nem você nem eu temos o direito de pedir desculpas por não termos sido avisados. Somente uma pessoa como Simão o Eremita, que passou avida encarapitado no alto de uma coluna, bem acima da multidão enlouquecida e fora do alcance datagarelice (se pudéssemos imaginar façanha semelhante num planeta atravessado por autoestradas deinformação; se houvesseseguidores contemporâneos de Simão o Eremita, eles não iam tirar o iPhone do bolso antes de subir à coluna), poderia alegar ignorância. Não nós, que seguramos na palma damão aparelhos inteligentes capazes de nos proporcionar de imediato todo conhecimento disponível.
Temos plena ciência, por exemplo, de que estamos sentados sobre uma bomba-relógio  ecológica (ainda que raramente se vejam sinais desse conhecimento em nossa maneira cotidiana deagir). Estamos fartos de ouvir que nos sentamos sobre uma bomba-relógio demográfica (“há gentedemais, especialmente ‘eles’, quem quer que ‘eles’ sejam”). Ou uma bomba-relógio consumista(“Por quanto tempo nosso pobre planeta poderá alimentar esses milhões que batem a nossas portasmendigando à espera de serem admitidos em nossa festa?”). E alguns outros tipos de bomba, cujonúmero parece aumentar em vez de diminuir. Dessa forma, o leitor não vai se chocar ao ser advertidode que, entre todas essas bombas, há uma cujo tique-taque ressoa de modo tão funesto quanto as quemencionei, embora tenha ainda menos nossa atenção que as outras.

Poucas semanas atrás podíamos ter ouvido essa advertência (mas quantos de nós a ouvimos de fato?): a da bomba-relógio da desigualdade, pronta a explodir em futuro não muito distante. Umrelatório da ONU sobre desenvolvimento urbano baseado num estudo sobre as 120 maiores cidadesdo mundo alertou que “altos níveis de desigualdade podem trazer consequências sociais, econômicase políticas negativas, acarretando um efeito desestabilizador para as sociedades”; eles “geramfraturas sociais e políticas que podem se transformar em intranquilidade social e insegurança”.
As divisões entre ricos e pobres são muitas, profundas e dão fortes demonstrações de que serãoduradouras, como a famosa “teoria da capilaridade”, que ajuda os ricos a continuarem ricos e a se tornarem ainda mais ricos, embora seja patente que ela não beneficia os pobres. Até hoje, os efeitosdo crescimento econômico acelerado na maioria dos países têm associado de modo inextricável orápido aumento da riqueza “média” e total com uma rápida multiplicação de privações intoleráveisentre as massas de desempregados e trabalhadores ocasionais e informais.
Embora sejam confortavelmente atenuadas pela distância, essas notícias podem parecerassustadoras para muitos de nós à medida que se aproximam chegadas de terras muito longínquas.
Mas, repito, não digam que não foram avisados! Não estamos falando aqui apenas dos camponesesde ontem, amontoados em vergonhosas conurbações dispersas, desordenadas, carentes de recursos,de políticas de gestão e de serviços públicos da África subsaariana ou da América Latina. AsNações Unidas declararam que Nova York é a nona cidade mais desigual do mundo, enquantograndes e prósperos centros urbanos dos Estados Unidos, como Atlanta, Nova Orleans, Washington eMiami, têm um nível dedesigualdade quase idêntico ao de Nairóbi ou Abidjan. Alguns poucos países, sobretudo Dinamarca, Finlândia, Holanda e Eslovênia, parecem por enquanto escapar datendência universal.

Na visão de senso comum, a questão é a desigualdade de acesso à educação, a carreirasprofissionais e a contatos sociais – e, em decorrência disso, uma desigualdade de posses materiais ede oportunidades de fruição da vida. Mas Göran Therborn nos faz lembrar que este não é o fim dahistória, nem mesmo de seu capítulo mais notável. Além da desigualdade “material” ou “derecursos”, há o que ele denomina de “desigualdade vital”1 – o fato de a expectativa de vida e achance de morrer bem antes de alcançar a idade adulta divergirem profundamente segundo asdiferentes classes sociais e diferentes países.
De acordo com Therborn, “um inglês aposentado, ex-bancário ou funcionário de companhia deseguros pode contar com sete ou oito anos a mais de vida pós-aposentadoria que um funcionário daWhitbread ou da Tesco”.a As pessoas classificadas nos níveis inferiores de renda em estatísticasoficiais do governo britânico têm quatro vezes menos chances de atingir a idade de aposentadoriaque os situados nos níveis mais altos. A expectativa de vida nas áreas mais pobres de Glasglow(Calton) é 28 anos menor que na área privilegiada da mesma cidade (Lenzie) e também na prósperaregião de Kensington ou Chelsea, emLondres. “As hierarquias de status social são literalmente letais”, conclui Therborn.
Há um terceiro caso ou aspecto da desigualdade, acrescenta o sociólogo sueco: A desigualdade“existencial”, que “o afeta como pessoa”, “que limita a liberdade de ação de certas categorias de pessoas” (por exemplo, o impedimento que recaía sobre as mulheres de entrar em espaços públicosna Inglaterra vitoriana e em muitos países hoje; ou o confinamento de londrinos no East End, cemanos atrás, substituído na atualidade pelos banlieues franceses, as favelas latino-americanas ou osguetos urbanos dos Estados Unidos). São vítimas da desigualdade existencial as categorias sociaishumilhadas, desrespeitadas e inferiorizadas por terem arrancada de si uma parcela fundamental desua humanidade – como os negros americanos ou os ameríndios (as “nações nativas”, como ahipocrisia do politicamente correto exige chamá-los) nos Estados Unidos; os imigrantes pobres, as“castas inferiores” e os grupos étnicos em vários lugares do mundo.
Recentemente, o governo italiano transformou em lei a desigualdade existencial e sancionoucomo crime qualquer tentativa de suavizá-la; a lei exige que os cidadãos italianos espionem edenunciem os imigrantes ilegais, ameaçando-os de pena de prisão por ajudar e abrigar essesimigrantes.

A transformação do capital financeiro num imenso cassino global criou a presente criseeconômica que desempregou centenas de milhares de pessoas e criou a necessidade de sedispor de bilhões de libras do dinheiro dos contribuintes. No sul, a crise mundial está gerandomais pobreza, fome e morte. … A ampliação da distância social entre os pobres e os ricosdiminui a coesão social, e isso, por sua vez, significa novas questões coletivas, como o crime ea violência, e a redução dos recursos para solucionar todos os nossos problemas comunais, da
identidade nacional à mudança climática.

Mas este também não é o fim da história. Inquietações sociais, agitações urbanas, crime,violência, terrorismo, estas são possibilidades ameaçadoras que prenunciam desgraças para nossasegurança e a de nossos filhos. Contudo, são, por assim dizer, sintomas externos, explosõesespetaculares e intensamente dramatizadas de males sociais inflamados pelo acréscimo de novashumilhações às já existentes, são acontecimentos que aprofundam as desigualdades. No rastro de seucrescimento, a desigualdade lega à sociedade outro tipo de estrago: a devastação moral, a cegueiraética e a insensibilidade, a habituação à visão do sofrimento humano e ao dano que os homenscausam a outros homens todos os dias – a gradual mas implacável, paulatina e subterrânea erosão dosvalores que dão sentido à vida, tornam viável a coexistência humana e plausível o prazer de viver. Osaudoso Richard Rorty conhecia bem os perigos em questão quando dirigiu aos seus contemporâneoso seguinte apelo:

Devemos educar nossos filhos para achar intolerável o fato de que nos sentemos às nossasmesas e, com nossos teclados, recebamos dez vezes mais que aqueles que sujam as mãoslimpando nossas latrinas; e cem vezes mais que aqueles que fabricam nossos teclados noTerceiro Mundo. Devemos ter certeza de que eles se preocupam porque os países que seindustrializaram primeiro têm centenas de vezes mais riqueza que os ainda não industrializados.Nossos filhos devem aprender desde cedo a considerar que as desigualdades entre sua fortunae a de outras crianças não decorrem da vontade de Deus nem constitui um preço necessário apagar pela eficiência econômica, mas é uma tragédia evitável. Eles devem começar a pensar omais cedo possível que se pode mudar o mundo para assegurar que ninguém passe fomeenquanto outros se fartam.

Já está mais que na hora de parar de dizer que não fomos avisados. Ou de parar de perguntar porquem os sinos dobram cada dia mais fortemente.

(Zygmunt Bauman - "44 cartas do mundo líquido moderno")

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publicado às 12:36


No rasto da "Geração Y"

por Thynus, em 24.03.13

Nenhum ser humano é exatamente igual a outro – e isso se aplica tanto aos jovens quanto aos velhos. Contudo, é possível notar que, em determinadas categorias de seres humanos, algumas características ou atributos tendem a aparecer com maior frequência que em outras. É essa “condensação relativa” de traços característicos que nos permite falar, em primeiro lugar, em “categorias”, sejam elas nações, classes, gêneros ou gerações. Ao fazê-lo, ignoramos temporariamente a multiplicidade de características que faz de cada um de seus integrantes uma entidade única e irrepetível, diferente de todas as outras, um ser que se destaca de todos os demais membros da “mesma categoria”. 
Nós nos concentramos nos aspectos comuns a todos ou à maioria de seus integrantes em comparação com sua ausência ou relativa raridade entre os que fazem parte das outras “categorias”. É com essa condição sempre na cabeça que nos permitimos dizer que todos os nossos contemporâneos, salvo os muito mais velhos, “pertencem” a três gerações sucessivas.

A primeira geração é a dos chamados baby boomers, pessoas que nasceram entre 1946 e 1964, durante a explosão dos índices de natalidade no pós-guerra, quando os soldados que voltaram dos campos de batalha e dos campos de prisioneiros consideraram que era chegada a hora de fazer planos para o futuro, casar e ter filhos. Esses homens ainda traziam na cabeça a lembrança dos anos de desemprego, escassez e austeridade do pré-guerra, de uma vida precária sob as permanentes ameaças de privação.
Não admira que, regressando da guerra, aceitassem com alegria as ofertas de emprego que de  repente surgiam com fartura; e, embora, calejados pelas amargas experiências do passado recente, vissem nessas ofertas uma dádiva da sorte que lhes podia ser retirada a qualquer momento. Por esse motivo, dedicaram-se arduamente ao trabalho, economizando centavos para se prevenir contra um tempo de vacas magras e oferecer aos filhos a vida despreocupada que nunca puderam levar.
Seus filhos, a chamada “geração X”, que hoje tem entre 28 e 45 anos, nasceram num mundo diferente, o mundo que foi construído com a ajuda de dedicação ao trabalho, longas jornadas, prudência, parcimônia e espírito de sacrifício de seus pais. Embora em geral seguissem a estratégia e a filosofia de vida dos pais, fizeram isso com relutância – e maior impaciência, à medida que o mundo crescia em riqueza e promessas de uma vida mais segura, para ver e desfrutar as recompensas oferecidas pela existência de temperança, moderação e abnegação de seus pais e sobretudo deles próprios. A nova “geração X” preocupou-se menos que seus pais com o futuro, concentrando-se no “aqui e agora”: uma vida de prazeres ao alcance de suas mãos e de consumo imediato. Por isso foi apelidada, de forma um tanto mordaz, mas pungente, de me generation ou “geração do eu”, uma geração autocentrada.
Em seguida veio a “geração Y”– a que hoje tem entre 11 e 28 anos. Estudiosos e pesquisadores concordam em dizer que suas atitudes os diferenciam bastante das gerações dos pais e avós. Os jovens da “geração Y” nasceram num mundo que seus pais não conheceram na juventude, que lhes era difícil ou até impossível imaginar quando tinham a idade que os filhos têm hoje, e que, depois, receberam com um misto de perplexidade e desconfiança: um mundo de emprego abundante, oportunidades aparentemente infinitas de prazer, cada um mais atraente que o outro – e capaz de multiplicar esses prazeres cada vez mais sedutores, relegando as antigas satisfações a uma aposentadoria precoce e ao esquecimento final.
Tudo o que nos é fácil, constante e fartamente acessível tende a ser óbvio demais para ser notado, quanto mais para nos fazer pensar. Sem ar para respirar, não sobrevivemos mais que um ou dois minutos. Mas se nos pedissem para fazer uma lista das coisas que consideramos “essenciais à vida”, dificilmente nos lembraríamos de mencionar o ar. Na hipótese improvável de incluí-lo, ele aparecerá no fim da lista. Simplesmente presumimos, sem pensar, que o ar está presente a qualquer hora, em qualquer lugar; tudo o que temos de fazer é inspirá-lo na quantidade que nossos pulmões permitem.
Até cerca de um ano atrás, o trabalho (pelo menos em nossa parte do mundo) era como o ar para nós: sempre disponível toda vez que precisávamos dele; se por acaso nos faltasse por um instante (como o ar fresco numa sala apinhada de gente), bastava um pequeno esforço (como abrir uma janela) para que as coisas “voltassem ao normal”. Por incrível que pudesse parecer aos membros da geração dos baby boomers ou mesmo aos da “geração X”, não admira que, segundo inúmeros pesquisadores, o “trabalho” apareça nos últimos lugares da lista “de itens indispensáveis ao bem viver” dos membros da “geração Y”. Se lhes pedirmos para justificar a razão dessa negligência, eles tendem a responder: “Trabalho? Sem dúvida é indispensável (como o ar) para nos manter vivos. Mas por si só não torna a vida boa de ser vivida. Ao contrário, pode torná-la um fardo tedioso, monótono, desinteressante, vazio – em que nada acontece, nada que desperte a imaginação, que estimule os sentidos. Se um trabalho nos dá pouco prazer, não se transforma em obstáculo para as coisas que realmente importam? A maior parte do tempo livre fora do escritório, da loja ou da fábrica, os dias de folga, quando algo mais interessante aflora em outro lugar qualquer, viajar, estar nos lugares e entre os amigos que a gente escolhe – tudo isso tem um aspecto em comum: tende a ocorrer fora do local de trabalho. A vida está em outro lugar!”
Fossem quais fossem os projetos de vida que os integrantes da “geração Y” cultivassem e se empenhassem em realizar, eles dificilmente envolviam um emprego – menos ainda um trabalho regular que os comprometesse para todo o sempre. A última coisa de que gostariam é de um emprego com estabilidade eterna.
Pesquisas revelam que as mais conceituadas agências de recrutamento e seleção de jovens talentos para o mercado de trabalho estavam perfeitamente informadas sobre as prioridades e fobias da “geração Y”. Suas campanhas de alistamento de candidatos empenhavam-se em acentuar as promessas de liberdade do emprego oferecido: jornadas de trabalho flexíveis, trabalho em casa, períodos sabáticos de afastamento, licenças de longa duração sem perda de vínculo empregatício e oportunidades de diversão e lazer durante o expediente e no próprio local de trabalho. As agências de emprego compreenderam que, se o trabalho parecesse desinteressante, os recém-chegados ao mercado simplesmente largavam o emprego e iam procurar outra coisa. Como a expectativa de desemprego – esse cruel, desumano e eficiente patrulheiro da estabilidade da mão de obra – já não assustava ninguém, não restava muito para prendê-los.

Se esse é de fato o tipo de estratégia e filosofia de vida que costumava distinguir a “geração Y” das que a precederam, a juventude de hoje está fadada a despertar para uma triste realidade. Os países mais prósperos da Europa já dão como certo o ressurgimento de um longo período de desemprego em massa que até então parecia esquecido e relegado ao exílio permanente. Se as premonições mais tenebrosas se concretizarem, estão prestes a desaparecer as infinitas escolhas, a liberdade de movimento e de mudança que os jovens contemporâneos se acostumaram a visualizar (ou melhor, que nasceram para ver) como parte da natureza; e, com elas, o crédito aparentemente ilimitado com o qual esperavam se sustentar em situações de (breve e temporária) adversidade, e que resolveria qualquer (breve e temporária ) falta de solução imediata e satisfatória para seus problemas.

(Zygmunt Bauman - "44 cartas do mundo líquido moderno")

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publicado às 01:10


Como fazem os pássaros

por Thynus, em 23.03.13
“Twitter” (gorjear) é o que os pássaros fazem quando tweet (gorjeiam). Como nos dizem os especialistas em pássaros, o canto melodioso desempenha duas funções em aparência opostas, mas igualmente essenciais, na vida das aves: permite manter contato uns com os outros (isto é, não deixa que fiquem perdidos ou percam a pista dos parceiros no ninho ou do restante do grupo) e evita que outros pássaros, sobretudo os da mesma espécie, invadam o território que reservaram para eles. O gorjeio dos pássaros não transmite nenhuma outra mensagem, de modo que seus “conteúdos” (mesmo que houvesse algum, o que não é o caso) são irrelevantes; o que conta é que se produz o som melodioso e que ele seja (muito provavelmente será) ouvido.
Não sei dizer se Jack Dorsey, que criou o website chamado Twitter em 2006, quando ainda era estudante universitário, inspirou-se ou não no hábito milenar dos pássaros. Mas os 55 milhões de visitantes mensais desse site da internet parecem ter seguido esse hábito – sabedores disso ou não. Ao que parece, eles o consideram muito útil para suas necessidades e objetivos. Segundo cálculos de Peder Zane, do News and Observer, em 15 de março de 2009, o número de usuários do Twitter cresceu 900% entre 2008 e 2009 (enquanto o número de usuários do Facebook cresceu “apenas” 228%, de acordo com a Wikipedia). Os administradores do Twitter convidam e encorajam novos usuários a se juntarem ao poderoso exército de 55 milhões de usuários atuais afirmando que o “Twitter é um serviço ideal para a comunicação e conexão entre amigos, parentes e colegas de trabalho pela troca rápida de respostas a uma única pergunta: ‘O que você está fazendo?’” As respostas, como o leitor provavelmente sabe, devem ser rápidas e frequentes, mas também fáceis de digerir, e isso significa que devem ser muito, muito concisas e curtas (tal como a melodia do gorjeio de um pássaro) – nunca podem exceder os 140 caracteres.

Desse modo, o “fazer” sobre o qual se escrevem mensagens no Twitter talvez não signifique mais que dizer “estou comendo pizza aos quatro queijos”, ou “estou olhando pela janela”, ou “com sono e indo pra cama”, ou “morto de tédio”. Por cortesia da administração do Twitter, nossa notória mas envergonhada reticência e falta de jeito para relatar os motivos e objetivos de nossos atos – e os sentimentos que os acompanham – deixaram de ser uma desvantagem e subiram ao pódio das virtudes. O que nós e todos os nossos iguais somos levados a compreender é que a única coisa que importa é saber e contar aos demais o que estamos fazendo – neste momento ou em qualquer outro; o que importa é “ser visto”. Não tem importância alguma saber por que fazemos tal coisa, o que estamos pensando, desejando, sonhando, o que nos alegra ou entristece quando a fazemos, ou mesmo outras razões que nos inspiraram a usar o Twitter, além de manifestar nossa presença.

O contato face a face é substituído pelo contato tela a tela dos monitores; as superfícies é que entram em contato. Por gentileza do Twitter, “surfar”, o meio de locomoção preferido em nossa vida agitada, cheia de oportunidades que nascem e logo se extinguem, afinal chegou à comunicação interhumana. O que se perde é a intimidade, a profundidade e durabilidade da relação e dos laços humanos.

Os defensores e entusiastas dos “contatos” (mais exatamente, a reconfirmação de “estar conectado”) rápidos, fáceis e sem problemas tentam nos convencer de que os ganhos compensam em muito as perdas. Sob o título de “usos” do Twitter, o site da Wikepedia nos informa que, “durante os ataques de Mumbai, em 2008, testemunhas oculares enviaram cerca de oitenta mensagens por segundo relatando a tragédia. Os usuários que estavam no local ajudaram a compilar uma lista de mortos e feridos”; que, em “janeiro de 2009, o voo 1549 da companhia aérea US Airways sofreu múltiplos ataques de aves e teve de aterrissar em pleno rio Hudson após a decolagem do aeroporto de La Guardia, em Nova York. Janis Krums, passageiro de um dos barcos que prestou socorro, tirou uma foto do avião dentro do rio enquanto os passageiros ainda eram retirados da aeronave e enviou-a por Twitter antes que a mídia tradicional chegasse ao lugar”; ou que, “em fevereiro de 2009, a Country Fire Authority australiana usou o Twitter para divulgar alertas regulares e atualizações a respeito dos incêndios florestais de 2009 na região de Victoria”. Mas noticiar esses casos é como tentar convencer futuros apostadores dos benefícios universais a comprar bilhetes de loteria publicando de tempos em tempos a sorte grande dos poucos vencedores – enquanto evitam mencionar os milhões de frustrados perdedores.

Sejamos realistas: os impactos das novas tecnologias de comunicação são como os feitos da economia liderada pelos bancos, em que os ganhos tendem a ser privatizados, e as perdas socializadas. Em ambos os casos, “os danos colaterais” tendem a ser desproporcionalmente maiores, mais profundos e insidiosos que os eventuais e raros benefícios.

Existe, no entanto, um benefício de outro tipo, muito mais generalizado, que parece ser o principal atrativo do Twitter. Já há algum tempo, a famosa “prova da existência” de Descartes, “Penso, logo existo”, tem sido substituída e rejeitada por uma versão atualizada para nossa era da comunicação de massas: “Sou visto, logo existo.” Quanto mais pessoas podem escolher me ver, mais convincente é a prova de que estou aqui.

O padrão é estabelecido pelas celebridades. Não se mede o peso e a importância da existência dos “famosos” pela relevância do que eles fizeram, isto é, pelo peso de seus feitos (de qualquer modo, não dá para avaliar corretamente essas qualidades e confiar o bastante nos resultados para sustentar uma opinião). Sem dúvida as “celebridades” só têm importância pela visibilidade de sua presença: elas têm de ser olhadas e vistas por uma multiplicidade de pessoas, nas bancas de jornais, nas primeiras páginas dos tabloides, nas capas de revistas de amenidades, nas telas dos aparelhos de televisão. Se muita gente as olha, vigia cada passo que dão, se muitos dão ouvidos às fofocas a respeito de suas últimas aventuras, maldades e travessuras, se muita gente fala delas, então deve haver “algo nelas” – afinal, tantos não poderiam estar tão errados ao mesmo tempo!

Daniel Boorstin sintetizou tudo isso de maneira admirável: “A celebridade é uma pessoa famosa por ser famosa.” Conclusão (não necessariamente verdadeira, mas de todo modo crível): quanto maior é a frequência das minhas mensagens, quanto mais pessoas visitam meu Twitter, mais chances terei de ingressar nas fileiras dos famosos. Tal como as celebridades, o assunto das mensagens é completamente irrelevante. Afinal, o que lemos e ouvimos sobre as celebridades, no mais das vezes, trata do que elas comeram no café da manhã, de seus casos amorosos e incursões nos shoppings.

Como o peso da presença de uma pessoa no mundo é medido por sua “fama”, minhas mensagens lançadas ao mundo também são um meio de incrementar minha importância espiritual (uma espécie de dieta às avessas – considerando que fazer dieta é um método de diminuir nosso peso corporal). Pelo menos é o que parece. Tudo isso pode não passar de ilusão. Mas, para muitos de nossos contemporâneos, é uma ilusão bem-vinda. Bem-vinda para aqueles treinados e educados para crer que só conta ser visto, mas que não tiveram acesso às revistas de amenidades e aos jornais sensacionalistas, as verdadeiras fontes do poder de dividir as pessoas entre os “que são vistos” e os invisíveis, e de mantê-los do lado “visualizável” da divisão.

O Twitter é, para nós, pessoas comuns, o que as capas de revistas semanais e mensais representam para os poucos que são proclamados extraordinários. Nosso Twitter é uma espécie de réplica das butiques de alta-costura no comércio popular: o substituto da igualdade para os destituídos. Aos que estão condenados a comprar nas lojas populares, o Twitter atenua as crises da humilhação causada pela falta de acesso às lojas exclusivas.

(Zygmunt Bauman - "44 cartas do mundo líquido moderno")

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publicado às 16:37



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