(Kalina Vanderlei Silva, Maciel Henrique Silva - "Dicionário de conceitos históricos")
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De tudo e de nada, discorrendo com divagações pessoais ou reflexões de autores consagrados. Este deverá ser considerado um ficheiro divagante, sem preconceitos ou falsos pudores, sobre os assuntos mais variados, desmi(s)tificando verdades ou dogmas.
Para o professor de História, hoje, a violência é tema inevitável, tanto por sua ocorrência em todos os períodos históricos quanto pela presença muito comentada em nossa sociedade. Mas muitas vezes é difícil identificarmos a violência na História. Se os castigos corporais da escravidão e o holocausto judeu na Segunda Guerra Mundial são temas em que a violência é facilmente percebida, a imposição de valores de um povo sobre outro nos processos de colonização, o patriarcalismo da maioria das sociedades e a própria desigualdade econômica são fenômenos violentos que passam muitas vezes despercebidos. Precisamos enfatizar o caráter violento do processo histórico, levando os estudantes a perceber a violência no cotidiano para além da criminalidade, que em si é apenas um aspecto da violência econômica de nossa sociedade. O professor de História deve criticar a banalização da violência, o sensacionalismo da mídia e o próprio discurso, ingênuo, da classe média. Trata-se de um discurso que, no geral, não aprofunda os componentes sociais e econômicos da violência. O professor pode ainda trabalhar a violência em sua relação com os regimes ditatoriais, que usam da tortura física e psicológica, entre outras diversas formas de repressão, e com o etnocentrismo, que pode ser causador de numerosas formas de violência.
(Kalina Vanderlei Silva, Maciel Henrique Silva - "Dicionário de conceitos históricos")
Essa é uma realidade vivenciada hoje tanto por estudantes como por professores, e aliada a ela está a convivência cotidiana com o crescimento da marginalização dos jovens de baixa renda, pois, enquanto adolescentes e crianças de classe média alta têm acesso à internet e à cultura globalizada, crianças e adolescentes de baixa renda estão excluídos desse meio. Por outro lado, o acesso cotidiano que os jovens de classe média e alta têm à cultura mundial traz outros problemas, como a generalização da sociedade de consumo. Em ambos os casos, os profissionais em sala de aula precisam se adaptar ao tipo de realidade que encontram e procurar contornar uma exclusão social crescente, tentando evitar o preconceito social que se desenvolve no Brasil e gira em torno da posse ou não do acesso aos bens econômicos e culturais da globalização.
Kalina Vanderlei Silva, Maciel Henrique Silva - "Dicionário de conceitos históricos")
Desde o fim da União Soviética, no último quartel do século xx, e o consequente desmantelo da divisão ideológica que repartia o mundo em duas esferas, o fundamentalismo religioso tem sido apontado como o principal perigo à nova ordem mundial. Trata-se de tema que vem suscitando intensos debates e, por isso mesmo, não possui um quadro interpretativo único. O termo fundamentalismo se refere a um determinado tipo de interpretação religiosa que procura seguir à risca os preceitos fundamentais e mais tradicionais de dada religião. Há três tipos de básicos de fundamentalismos, todos ligados às grandes religiões monoteístas e imbricados entre si: o fundamentalismo islâmico, o cristão e o judaico. Em que esses tipos de fundamentalismos se aproximam ou se afastam é uma questão interessantíssima, que ajuda a elucidar o próprio conceito.
O conjunto político-ideológico do pensamento fundamentalista é bem mais complexo do que a simplificação que se vê na mídia atualmente. Mas, em geral, todas as formas de fundamentalismo contêm um caráter profundamente reacionário, que se apresenta como a busca por um retorno às origens primitivas e puras de um tempo nãcorrompido e uma rejeição a inúmeros aspectos da modernidade. Algo, por exemplo, como o que os Talibãs fizeram no Afeganistão, que a família real saudita tenta manter na Arábia, ou que diversos grupos cristãos mantêm nos Estados Unidos e na Europa.
Cronologicamente, o primeiro fundamentalismo a surgir foi o cristão, que inclusive deu nome a esse tipo de pensamento e ação. Segundo Sergio Paulo Rouanet, o fundamentalismo cristão tem uma vertente católica, chamada de integrismo, caracterizada pelo conteúdo antiliberal e antimoderno do Syllabus, do papa Pio ix, encíclica datada de 1864. Mas foi no protestantismo americano que o fundamentalismo cristão floresceu. A origem do termo fundamentalista está na publicação nos eua dos doze fascículos da obra The Fundamentals (1909-1915), que postulava a virgindade de Maria, a infalibilidade da Bíblia e cujo texto afirmava a literal verdade divina, a divindade de Cristo, sua morte e ressurreição e a salvação da alma pela fé. O movimento, de caráter eminentemente conservador, ainda é bastante atuante e se opõe ao intelectualismo, chegando até mesmo a proibir, em certos Estados americanos, o ensino da teoria científica da evolução. De modo aparentemente contraditório, o movimento se expandiu com o auxílio de avançados meios tecnológicos de comunicação de massa, aumentando sua influência política. Além disso, durante a Guerra Fria, por exemplo, sobretudo a partir de 1960, esse movimento protestante combateu o Comunismo, e hoje combate o aborto e o homossexualismo. De grande força eleitoral nos eua, compõe as forças de direita que defendem um patriotismo messiânico, acreditando que a “América” (como os norte-americanos denominam os eua) é a nação eleita, e influenciando enormemente o presidente George W. Bush, que transmitiu aos seus discursos e atos contra o terrorismo um sentido cruzadístico de uma “guerra monumental do bem contra o mal”, além de internamente defender valores tradicionais quanto à sexualidade e à família.
O fundamentalismo islâmico, por sua vez, surgiu em oposição à influência modernizante e ocidentalizante implementada a partir do imperialismo europeu do século xix, tomando, assim, a forma de resistência cultural. Atualmente há várias tendências desse fundamentalismo, e entre elas há algumas mais radicais que pregam a luta armada para atingir seus objetivos. Mas, em geral, o fundamentalismo islâmico postula um retorno pacífico às origens religiosas do Islã e uma reforma dos costumes e da sociedade a partir da “sharia”, da lei do Corão. Foi no contato com o Ocidente que se originou a opção islâmica pelo retorno mítico ao passado, pela opção antimoderna e tradicional, que prega o retorno às glórias passadas de sua sofisticada civilização. Assim, o pensamento fundamentalista ganhou apoio entre vastas camadas populares, em diferentes países onde o Islã é a religião predominante, por prometer para o futuro a mesma glória do passado, por meio do reavivamento da turath – termo traduzido livremente como tradição. Esse reavivamento, no entanto, chocou-se primeiro contra o próprio pensamento árabe modernizante, que via a Europa como um desafio, e arquitetava maneiras de, sem abandonar a cultura islâmica, vencer no jogo dos europeus, desenvolvendo um processo de modernização das sociedades muçulmanas. Em seu início, o fundamentalismo islâmico teve, em sua vertente mais radical, um caráter nacionalista, como o movimento Al-Jihad, que assassinou o presidente egípcio Anwar Sadat em 1981, e o gia (Grupo Islâmico Armado, atuante na Argélia na década de 1990). Mas, em um segundo momento, o fundamentalismo extremista tomou um caráter internacional, com ramificações em diferentes Nações, como ocorre atualmente com o grupo terrorista Al Qaeda.
Já o fundamentalismo judaico configura uma ultraortodoxia que se opõe aos demais judeus liberais. Para os ultraortodoxos judeus, a lei de Deus tem valor absoluto e deve ser seguida tanto na vida pública quanto na vida privada. Eles pregam também uma visão arcaizante, que defende o retorno às glórias do passado judeu, pleiteando inclusive que o moderno Estado de Israel adote as características dos reinos hebreus da época do Antigo Testamento. O filósofo brasileiro Sergio Paulo Rouanet afirma que a tendência ao isolamento é tão forte entre os judeus ultraortodoxos que isso separa o grupo até de outras tendências do próprio Judaísmo. Essa tendência defende que se devem evitar contatos com pessoas de outras comunidades.
No Oriente Médio da segunda metade do século xx e início do xxi, os fundamentalistas judeus e muçulmanos entraram em conflito aberto, dificultando enormemente qualquer processo de paz na região, que vive assolada por disputas políticas e territoriais. Como os partidos ultraortodoxos têm peso eleitoral, as forças de direita tendem a imperar em Israel, que luta pela restauração das fronteiras bíblicas de um Estado que existiu apenas na Antiguidade, em detrimento do povo palestino, de religião muçulmana. Por outro lado, os fundamentalistas islâmicos, que têm enorme influência em países como a Arábia Saudita, fazem também ferrenha oposição a quaisquer diálogos com o Estado de Israel. Tudo isso contribui para que uma disputa, que em sua origem nada tinha de religiosa, hoje gere inimizades entre duas das mais significativas religiões do mundo, que no passado já vivenciaram, em diferentes momentos, relações pacíficas e de cooperação.
Entre os três fundamentalismos, há um conjunto de semelhanças. Apesar da pregação antimoderna em seus discursos, os fundamentalistas não abrem mão dos recursos da ciência moderna quando lhes convêm: há décadas que os aiatolás do Irã, por exemplo, mantêm programas atômicos, tanto energéticos quanto militares; nos anos 1980, o exército iraniano, em guerra contra o Iraque, mostrou-se muito bem armado. O fundamentalismo cristão nos eua, por sua vez, faz uso de numerosos canais de tv e emissoras de rádio para expor suas ideias contrárias à teoria da evolução e em defesa de uma leitura literal do livro bíblico do Gênesis na discussão sobre a origem do homem e do universo. Sem falar na influência que a direita religiosa exerce na vida política norte-americana e no uso do monumental aparato militar do Estado norte-americano para atender à defesa da chamada “nação eleita”. A tendência fundamentalista judaica, por outro lado, entende muito bem dos circuitos financeiros do Capitalismo moderno. Logo, como argumenta Rouanet, todos os fundamentalismos aceitam a modernidade técnico-científica. Outra semelhança profunda entre eles é a rejeição da modernidade política e cultural, chocando-se com o pluralismo político e o respeito aos direitos humanos. Do ponto de vista cultural, repudiam a visão secular do mundo – fruto do avanço da modernidade –, e buscam uma ressacralização da sociedade a partir de um sentido teocrático. Em comum, os três fundamentalismos defendem também pontos de vista tradicionais em questões morais e uma posição misógina em relação à mulher.
Há algumas divergências entre os estudiosos do tema quanto ao caráter e ao sentido histórico do fundamentalismo. Para alguns autores, como Michael Hardt e Antonio Negri, as diferentes correntes fundamentalistas estão ligadas pelo fato de serem vistas interna e externamente como movimentos antimodernos, como ressurreições de identidades e valores primordiais que antecedem e se opõem à modernidade e à modernização. Para esses autores, o fundamentalismo é um tipo paradoxal de teoria pósmoderna, tendo surgido cronologicamente após a modernidade. Já Rouanet considera que apenas alguns aspectos da modernidade são repudiados pelos fundamentalismos, enquanto a modernidade técnico-científica é utilizada por eles para fins antimodernos. Robert Kurz, por sua vez, apresenta uma visão semelhante à de Rouanet ao afirmar que tanto os grupos terroristas quanto a sociedade ocidental e seu totalitarismo econômico são adeptos da chamada “razão instrumental”, típica da modernidade técnica e científica. Para Rouanet e Kurz, ao que parece, o fundamentalismo é um sintoma da própria modernidade, não um fenômeno constitutivo da pós-modernidade, e muito menos (como querem os fundamentalistas) uma volta ao passado.
Tema bastante polêmico, o fundamentalismo religioso deve ser objeto de pesquisas entre estudantes dos níveis Fundamental e Médio. O material a ser analisado é fértil: jornais, revistas, programas de televisão, sites etc. Incentiva-se, assim, que, no cotidiano, eles passem a ver com um olhar mais crítico as informações que a mídia transmite. Além disso, é preciso abordar os efeitos políticos, sociais e culturais que o radicalismo e o irracionalismo cego, inerentes aos fundamentalismos, exercem sobre o mundo atual, escapando de generalizações enganosas do tipo “todo fundamentalista é muçulmano e terrorista”. Essa afirmação é um preconceito etnocêntrico, repassado pela mídia ocidental, baseada na atual política norte-americana. Atentando para esses cuidados, o fundamentalismo é um tema que traz grandes contribuições para uma compreensão mais ampla de assuntos como ética, liberdade, resistência cultural, respeito à diversidade cultural e globalização.
Kalina Vanderlei Silva, Maciel Henrique Silva - "Dicionário de conceitos históricos")
No filme de Robert Bresson, O diabo, provavelmente (1977), os heróis de uma era em que não havia nem sinal da tecnologia de PCs, celulares, iPods e outros meios maravilhosos de socializar/separar, contatar/isolar, conectar/desconectar, são jovens confusos que buscam desesperadamente encontrar um objetivo para suas vidas, para o lugar que lhes foi assinalado e para o significado desse lugar. Eles não recebiam ajuda alguma dos mais velhos. Na verdade, não se vê adulto algum durante os 95 minutos do filme, até seu trágico desfecho. Apenas uma vez, ao longo de toda a projeção, os jovens, completamente absortos no aflitivo e vão esforço de se comunicar uns com os outros, registram a existência de adultos: quando, extenuados de tantas proezas, a rapaziada cheia de fome se reúne ao redor de uma geladeira abarrotada de comida providenciada para tal eventualidade pelos pais, até então personagens ignorados e invisíveis.
As três décadas posteriores ao lançamento do filme serviram para demonstrar e confirmar o caráter profético da obra de Bresson. O cineasta percebeu as verdadeiras consequências da “grande transformação” que ele e seus contemporâneos testemunhavam, embora poucos tivessem perspicácia suficiente para notá-las, sabedoria para examiná-las a fundo e paixão necessária para registrá-las no cinema: a passagem de uma sociedade de produtores – trabalhadores e soldados – para uma sociedade de consumidores – completamente individualizados e, tal como decretado por sua localização histórica, entusiastas de ideias, perspectivas e tarefas de curto prazo.
Na sociedade “sólida moderna”, de produtores e soldados, o papel dos pais consistia em incutir nos filhos, a todo custo, a autodisciplina permanente necessária para suportar a monótona rotina de uma fábrica ou de uma caserna; ao mesmo tempo, os pais tinham a função de representar para os jovens modelos exemplares desse comportamento “regulado por normas”. Michel Foucault analisou a sexualidade infantil e o “medo da masturbação” nos séculos XIX e XX como um exemplo do arsenal de armas disponíveis para a legitimação e o fomento do controle rígido e da vigilância em tempo integral que, naquele tempo, esperava-se dos pais.
Mais que as velhas formas de interdição, essa forma de poder [do papel parental] exige, para se exercer, presenças constantes, atentas e também curiosas; ela implica proximidade; procede por exames e observações insistentes; requer um intercâmbio de discursos por meio de perguntas que extorquem confissões e confidências que superam a Inquisição. Ela envolve uma
aproximação física e um jogo de sensações intensas. (História da sexualidade, v.1, A vontade de saber)
Foucault lembra que, na eterna campanha para fortalecer o papel parental e seu efeito disciplinador, o “vício da criança” era menos um inimigo que um suporte: “Em todo canto onde houvesse o risco de se manifestar, instalaram-se dispositivos de vigilância, construíram-se armadilhas para forçar confissões, impuseram-se discursos inesgotáveis e corretivos.” Os banheiros e os quartos de dormir foram estigmatizados como locais de grande perigo, os terrenos mais férteis para o cultivo das inclinações sexuais mórbidas da criança – por isso mesmo, esses lugares impunham uma vigilância severa, íntima, incessante e, naturalmente, a presença e a intervenção invasiva e atenta dos pais.
Em nossa era de modernidade líquida, a masturbação foi absolvida de seus supostos pecados, e o medo da masturbação substituído pelo medo da agressão sexual ou do “abuso sexual”. A ameaça velada, causa do novo medo, não se localizou na sexualidade das crianças, mas na dos pais. Banheiros e quartos de dormir continuam a ser vistos como antros de vício repugnante, mas hoje os acusados da agressão são os pais (e os adultos em geral, todos suspeitos de serem potenciais molestadores de crianças). Quer de maneira aberta e manifesta, quer de modo latente ou tácito, o fim da guerra declarada aos novos e perseguidos vilões é um abrandamento do controle parental; a renúncia à presença ubíqua e invasiva nas vidas dos filhos; o estabelecimento e manutenção de uma distância entre o “velho” e o “novo”, tanto no âmbito da família quanto nos círculos dos amigos.
Quanto ao pânico atual, o último relatório do Institut National de la Démographie mostra que, entre 2000 e 2006, o número de mulheres e homens entrevistados que se recordavam de situações de abuso sexual quase triplicou (de 2,7% para 7,3% – 16% de mulheres e 5% e homens –, com uma tendência à aceleração) (“Les victimes de violences sexuelles en parlent de plus en plus”, Le Monde, 30 mai 2008). Os autores do relatório sublinham que “o aumento verificado não prova um crescimento da incidência da agressão, mas uma crescente inclinação a relatar casos de estupro em pesquisas científicas, o que reflete um rebaixamento do limite de tolerância à violência”. Mas eu não resisto a acrescentar que isso também é um reflexo, provavelmente mais forte ainda, das deficiências lógicas e dos problemas das supostas ou reais experiências de assédio e molestamento sexual na infância, e dos complexos de Édipo e de Electra.
Convém deixar claro que a questão não é quantos pais, com ou sem a cumplicidade de outros adultos, realmente tratam os filhos como objetos sexuais e até que ponto eles extrapolam seu poder para tirar proveito da fragilidade das crianças, assim como antigamente o problema não era quantas dessas crianças cediam aos impulsos masturbatórios. O que de fato importa, o que é grave e relevante, é que todos eles foram pública e ruidosamente advertidos de que estreitar a distância que são instruídos a manter entre si e outros adultos e seus filhos pode vir a ser (deve ser e será) interpretado como propício à liberação – aberta, sub-reptícia ou subconsciente – de impulsos pedófilos endêmicos.
A primeira vítima do medo da masturbação foi a autonomia do jovem. Desde a primeira infância, os futuros adultos tinham de ser protegidos contra os próprios instintos e impulsos mórbidos e potencialmente desastrosos (caso não controlados). As principais baixas do pânico do abuso sexual são, ao contrário, os vínculos e a intimidade entre as gerações. Se o medo da masturbação destacou o adulto como melhor amigo, anjo da guarda, guia confiável e sobretudo como guardião dos jovens, o medo do abuso sexual definiu os adultos como “suspeitos habituais”, culpados a priori de crimes que ele ou ela devem ter tido a intenção de cometer, ou pelo menos foram levados a praticar pelo instinto, com ou sem intenção maldosa.
O primeiro pânico teve como consequência um grande fortalecimento do poder parental; mas, por outro lado, induziu os adultos a reconhecerem sua responsabilidade com e para os jovens, a cumprirem com zelo os deveres correspondentes. O novo pânico do abuso sexual, para variar, libera os adultos de seus deveres – ao apresentá-los a priori como agentes responsáveis por um real ou potencial abuso de poder.
Esse novo pânico acrescenta um lustro legitimador a um já adiantado processo de comercialização da relação entre pais e filhos – que por força situa essa relação como se fosse mediada pelo mercado de consumo. Os mercados se propõem a reprimir qualquer remanescente de escrúpulo moral que resista após o recuo dos pais em relação à sua presença atenta e cuidadosa na família; fazem isso pela transformação de cada comemoração familiar, de cada feriado religioso e nacional em ocasião para distribuir presentes caros e luxuosos, com isso ajudando e incentivando, dia após dia, a demonstração de superioridade dos filhos, por meio da violenta competição de sinais adquiridos no comércio da distinção social.
Recorrer à ajuda de uma sedutora indústria de bens de consumo pode ser, no entanto, uma forma de “comprar uma solução para a preocupação” que acaba mais criando do que resolvendo os problemas. Comentando a “desqualificação” dos adultos em sua tarefa de exercer uma autoridade adulta, o professor Frank Furedi indaga: “Se não se confia nos adultos para acompanhar seus filhos de perto, não surpreende que alguns cheguem à conclusão de que, na realidade, não se espera que eles assumam a responsabilidade pelo bem-estar das crianças em sua comunidade?” (“Thou shalt not hug”).“Thou shalt not hug”.
(Zygmunt Bauman - "44 cartas do mundo líquido moderno")