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De tudo e de nada, discorrendo com divagações pessoais ou reflexões de autores consagrados. Este deverá ser considerado um ficheiro divagante, sem preconceitos ou falsos pudores, sobre os assuntos mais variados, desmi(s)tificando verdades ou dogmas.
Há pouco mais de cem anos, Nietzsche proclamou a morte de Deus. Desde então o mundo não é o mesmo. É certo que para Nietzsche o cristianismo é que é propriamente uma religião niilista, de tal modo que, com a proclamação da morte de Deus, é o mar infindo das novas possibilidades do sim à vida que se abre. No entanto, à morte de Deus não se seguiria a morte do homem e do sentido último de toda a realidade?
Segundo as análises de Gilles Lipovetsky, "Deus morreu, as grandes finalidades extinguem-se, mas toda a gente se está a lixar para isso (...). O vazio do sentido, a derrocada dos ideais não levaram, como se poderia esperar, a mais angústia, a mais absurdo, a mais pessimismo": isto escreveu ele em A era do vazio. Os espíritos mais atentos acham, porém, que é necessário dar antes razão a L. Kolakowski, o filósofo polaco agnóstico, quando afirma que, desde a proclamação da morte de Deus por Nietzsche, nunca mais houve ateus serenos: "Com a segurança da fé desfez-se também a segurança da incredulidade. Ao contrário de um mundo familiar, protegido por uma natureza benéfica e benigna, como era proposto pelo ateísmo iluminista, o mundo sem Deus dos nossos dias é sentido como um caos opressor, eterno. É um mundo privado de todo o sentido, de qualquer orientação, sinal de direcção, estrutura (...). De há cem anos a esta parte, (...) praticamente nunca mais vimos ateus serenos (...). A ausência de Deus tornou-se a ferida sempre aberta do espírito europeu, por maior que tenha sido o esforço feito para esquecê-la, recorrendo a toda a espécie de narcóticos (...)".
Como escreveu o filósofo Eusebi Colomer, recentemente falecido, a própria expressão "morte de Deus" não é unívoca, pois pode ter e tem múltiplos sentidos. Pode significar que Deus realmente nunca existiu, embora só recentemente tenhamos feito essa descoberta. Pode querer dizer que talvez Deus exista, mas os homens, que outrora se lhe dirigiram pela fé e pela invocação, hoje já não acreditam nele. Talvez queiramos apenas exprimir a experiência de ausência e aparente silêncio de Deus, própria do nosso tempo. Segundo a fé cristã, Deus morreu verdadeiramente no mundo na Sexta-Feira Santa histórica de há dois mil anos, e é talvez ainda em Sexta-Feira Santa que nos encontramos, de tal maneira que clamamos com Jesus do alto da cruz: "Meu Deus, meu Deus, por que é que me abandonaste?" Talvez estejamos apenas a referir-nos à necesssidade de transcender constantemente as nossas ideias acerca de Deus, e, neste sentido, a "morte de Deus" significa a morte dos ídolos fabricados por nós. Afinal, que Deus era esse que morreu? Se o Deus verdadeiro é o Deus sempre maior, que transcende sempre tudo quanto possamos pensar ou afirmar dele, então os deuses enquanto ídolos têm que morrer, para ser possível a fé no Deus verdadeiro...
Neste domínio, a pergunta essencial consiste em saber se é possível ser homem sem colocar honestamente a questão de Deus. É que ser homem é a abertura ao Infinito, e, assim, a questão do homem é a questão de Deus precisamente enquanto questão.
(Anselmo Borges - "Janela do (In)Visível")