No imaginário de José Saramago os objectos, muitas vezes, fogem de suas funções enquanto ojectos para assumir uma independência perigosa, como pode ser a fantasia. Em "Cadeira" a personagem principal é exatamente a cadeira ocupada por uma vítima sem nome que cai em câmera lenta (mas não é difícil de reconhecer o ditador português Antonio de Oliveira Salazar, que morreu pouco heroicamente por uma pequena queda da cadeira em que descansava). Em "Embargo" o protagonista não é o funcionário que está indo trabalhar de carro, mas o próprio carro, uma espécie de máquina infernal que se rebela contra o embargo do petróleo pelos árabes e leva à morte o proprietário que o conduz. Nas histórias deste livro a epidemia da independência se difunde, o elemento fantástico restitui-nos um mundo, talvez menos funcional, mas, sem dúvida, mais correspondente ao real. Pode-se atravessá-lo como um território novo.
Objecto Quase, publicado pela primeira vez em 1978, é uma coletânea de seis histórias breves e tensas do escritor português José Saramago e evidenciam as raízes do maravilhoso nesse autor. Em um gênero não muito praticado por ele, os climas são variados - podem ir do humor sarcástico ao lirismo romântico -, os personagens também, mas algo os une intimamente: o pessimismo, onde o autor espelhou não somente o presente, mas o futuro também. Vemos nesta obra o homem "coisificado" e as coisas, "humanizadas"... É simplesmente o reflexo de nossa sociedade, que se preocupa mais com a segurança dos pertences do que com o próprio cidadão!
Nos contos de Objecto Quase há dois grupos de protagonistas. No primeiro, eles são o avesso do herói, quase objetos que têm a morte indigna por destino: é o empregado que se torna vítima do próprio automóvel em “Embargo”; em “Coisas” é o sujeito que covardemente se submete às normas do mundo; em “Refluxo” é o rei que como Minos, antípoda de Teseu, foge à aventura heróica; em “Centauro” é o ser dividido entre dois mundos e, por isso, sem possibilidade de transpor mundos. No segundo grupo há a luta entre herói e vilão: em “A cadeira” – metonímia do ditador - Salazar é derrotado por um metafórico cupim, que provoca o tombo e a ruína do regime, trazendo um benefício para a sociedade; em “Desforrra”, o protagonista adolescente descobre a força de Eros, ao recusar a repressão sexual representada pela castração de um porco. Nestes casos, há uma luta e a vitória da vida.
A versatilidade de Saramago (verbal, imaginativa, observadora, refletiva) leva-o às raias do surrealismo, patente na roupagem dos "fatos", no conto "Coisas", onde os ingredientes da psicologia patológica, individual e coletiva, e da parapsicologia, são expropriados pelas palavras, cujo objetivo, constante no autor, é o homem, para o despir até à pele e deixá-lo nu na praça pública da história, em confronto com a história, que o mesmo é dizer consigo próprio, o que explica a sua toada sarcástica e a sua intenção pedagógica acerada.
Com Objeto Quase, José Saramago denuncia o estado de animalização do homem e a materialização da violência como um capítulo comum, doloroso da história de um povo.