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De tudo e de nada, discorrendo com divagações pessoais ou reflexões de autores consagrados. Este deverá ser considerado um ficheiro divagante, sem preconceitos ou falsos pudores, sobre os assuntos mais variados, desmi(s)tificando verdades ou dogmas.
O relato bíblico sobre a origem humana possui duas versões diferentes no livro da Gênese. Numa delas, Deus criou o mundo em seis dias, descansando no sétimo. Os humanos foram criados no sexto dia, coroando a obra da Criação. É dito que Deus criou os humanos ”à sua imagem e semelhança”, abençoou-os e lhes disse: ”Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a”. Nesse relato, nada sugere nem prepara o pecado original, pois se este estiver relacionado com a descoberta do sexo, o relato narra que Deus fez os humanos fecundos e, portanto, abençoou a sexualidade; e se o pecado for o desejo de dominar o mundo, também não aparece no relato, visto que Deus disse aos humanos que submetessem a terra e tudo que nela existe, dando-lhes poder. Os que redigiram esse relato, ao que consta, segundo os estudos bíblicos, também redigiram a narrativa do Dilúvio e a iniciam dizendo que Deus olhou a terra e a viu toda pervertida, sem que houvesse explicação para o fato. Tanto assim que, desgostoso, prepara-se para destruir sua obra, só não o fazendo integralmente em decorrência dos rogos de Noé. Curiosamente, as perversidades e perversões vistas por Deus são todas sexuais.
Em contrapartida, o segundo relato, feito no mesmo livro, mas, ao que parece, escrito por autores que possuíam uma perspectiva messiânica, isto é, de que o povo de Deus, ainda que perdendo o rumo certo, seria salvo pelo Enviado Divino (Messias), está centrado no advento do pecado original. É o relato mais conhecido: Deus faz o primeiro homem (Adão) modelando-o no barro, faz a primeira mulher (Eva) retirando uma costela do homem, oferece-lhes o jardim do Éden para que dele vivessem, dá-lhes o direito de comer o fruto da árvore da vida (da imortalidade) e os proíbe de comer o fruto da árvore do bem e do mal (prova da inocência originária, pois inocente (não ciente) é aquele que desconhece o bem e o mal, sendo naturalmente bom).
Tanto assim, narra o autor bíblico, que estavam nus e não se envergonhavam. Adão e Eva são sexuados, pois Adão afirma não haver maior alegria e delícia do que homem e mulher se tornarem ”uma só carne”. Afirmação que será transformada num dos mais belos trechos do poema Paraíso Perdido, escrito pelo poeta inglês Milton.
A questão que os dois relatos bíblicos nos deixam é a seguinte: se Deus fez os humanos sexuados, se o prazer sexual existe no Paraíso como uma de suas delícias (talvez a maior), como entender a condenação do sexo pelo cristianismo? Para tentar respondê-la, examinemos o pecado original.
O pecado original possui duas faces: é o deixar-se seduzir (tentação) pela promessa de bens maiores do que os possuídos (como se houvesse alguém mais potente do que Deus para distribuí-los) e é transgressão de um interdito concernente ao conhecimento do bem e do mal. Seu primeiro efeito: a descoberta da nudez e o sentimento da vergonha, de um lado, e o medo do castigo, de outro. Seu segundo efeito: a perda do Paraíso.
(Marilena Chaui – “Repressão Sexual”)