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“O erotismo é uma das bases do conhecimento de nós próprios, tão indispensável como a poesia.”

Disse Nietzsche que tudo seria permitido se Deus não existisse, e eu respondo que precisamente por causa e em nome de Deus é que se tem permitido e justificado tudo, principalmente o pior, principalmente o mais horrendo e cruel. Durante séculos a Inquisição foi, ela também, como hoje os talebanes, uma organização terrorista que se dedicou a interpretar perversamente textos sagrados que deveriam merecer o respeito de quem neles dizia crer, um monstruoso conúbio pactuado entre a religião e o Estado contra a liberdade de consciência e contra o mais humano dos direitos: o direito a dizer não, o direito à heresia, o direito a escolher outra coisa, que isso só a palavra heresia significa.

(José Saramago: O fator Deus)

 

 

No encontro sexual ocorre fusão e dissolução, como vimos em Leiris. Mas Bataille acredita que, neste caso, quem se desagrega é essencialmente a parte feminina, por ser passiva. O homem despe a mulher, retira-lhe a descontinuidade embutida em suas roupas, descarrega-a dela. A mulher torna-se, assim, despossuída, deixa de ser impenetrável, o homem a penetra (Bataille, 1957, p. 141). Basicamente, é a parte feminina que é aqui desagregada e o homem é aquele que participa dessa desagregação. Ela prepara a fusão, na qual se misturarão os dois seres, que, juntos, chegam ao ponto de dissolução. Esse ponto é o que Bataille chama de “crise”. É quando homem e mulher tornam-se contínuos, “comunicam-se” (no sentido que ele deu acima a esta palavra) e cada ser contribui para a negação que o outro faz de si mesmo. É uma autonegação que, contudo, não leva ao reconhecimento do parceiro. De cada lado, temos um movimento interno que faz com que o ser saia fora de si segundo diferentes velocidades: a mulher mais lentamente, o homem de forma fulminante.

O que os projeta para fora de si é a pletora sexual. Nessa acepção, a posição de Bataille é próxima à de Emmanuel Lévinas: Eros não tem nada a ver com o amor, ele é exclusivamente não-fusão, o outro é aquilo que eu não sou, é assimétrico e irredutível. Igual a Bataille, Lévinas acredita que a perda do controle pode se dar na morte ou na alteridade do Eros, momento em que o outro tem a liberdade exterior à minha.
Erotismo e sennsualidade
Os corpos, quando se desfazem das roupas, conduzem à continuidade. A nudez opõe-se ao estado fechado e é uma forma de comunicação que está além do retratar-se a si mesmo. Diz Bataille que os corpos se abrem para a continuidade por meio desses “condutos secretos” que nos provocam o sentimento de obscenidade. Aqui também vemos um paralelismo com Lévinas.
Para este, a nudez é abertura ao transcendente, à alteridade do outro. Com a vestimenta, o ser criou uma face através da qual ele passou a se anunciar; já na nudez, o ser está retirado do mundo, transferiu sua experiência para outro lugar. Em Lévinas, a relação com a nudez é a verdadeira experiência da alteridade do outro (Lévinas, 1947, p. 61).
Mas a nudez de Lévinas é distinta da de Bataille. Um rosto, para Lévinas, pode ser uma forma de nudez, nudez sem defesa, lugar em que o Infinito se mostra. E o carinho, que pode representar os “condutos secretos” de Bataille, jamais é um desnudamento do ser: a ternura da pele é o próprio desencontro entre aproximação e aproximado, é antes des-ordem, diacronia, prazer sem presente (Lévinas, 1971, p. 143-4).
Os corpos abrem-se para a continuidade por meio de condutos secretos que provocam a sensação de obscenidade, uma sensação incômoda, pois, o obsceno é algo semelhante à posse de si mesmo, àquilo que trava a abertura ao outro, um inibidor, portanto. E a abertura só se dá com a despossessão, com o jogo dos órgãos que se derramam na renovação da fusão, como diz Bataille, que é semelhante ao vai-e-vem das ondas que se penetram e se perdem umas nas outras. Também aqui a abertura no erotismo dos corpos é o mesmo que comunicação.
Ao despir uma mulher, o homem não apenas descarrega-a de sua descontinuidade, ele quer também profanar sua beleza. A beleza da mulher é uma recusa da sua animalidade e o homem deseja apaixonadamente essa beleza para poder sujá-la, profaná-la, nela introduzir sua sujeira animal. Leonardo da Vinci dizia que o ato da cópula era muito feio e que somente os belos rostos o salvavam. Mas Bataille refuta essa opinião dizendo que um rosto belo anuncia um corpo belo sob as roupas, e é preciso profanar esse rosto, essa beleza. O erotismo é o contrário disso, é sujeira, animalidade, profanação. Por isso, a feiúra não atrai, ela não pode ser profanada.
Na união do erotismo dos corpos com o erotismo dos corações, do ponto de vista do amante, apenas o ser amado pode realizar a plena fusão dos seres. Desta maneira, à fusão erótica junta-se o sofrimento, que é o mesmo que paixão. A intensidade do sofrimento revela a importância do ser amado. Nestes casos, o movimento do amor, no extremo, é um movimento de morte, a paixão faz apelo à morte, ao desejo de matar ou de suicídio. Se o amante não pode possuir o ser amado, pensa às vezes em matá-lo: prefere matá-lo a perdê-lo.

O erotismo do sacrifício já é de outra natureza. Como nos demais, ele provoca a sensação de dissolução do um no todo, portanto, a comunicação. Num rito solene, uma pessoa – um ser descontínuo – é escolhida para a cerimônia. O ato de sacrifício permite que se crie a continuidade desse ser, continuidade essa que é passada a todos aqueles que participam do rito solene, dedicando-lhe sua atenção. A vítima é subtraída do conjunto dos seres e ofertada à divindade para algum tipo de conciliação. Na linguagem de Bataille, ela é um excedente retirado da riqueza útil, que é consumida sem lucro, destruída para sempre. É o que ele denomina parte maldita, aquele ser que é escolhido e prometido ao consumo violento. No sacrifício, a vítima torna-se contínua, ilimitada, próxima ao Infinito.

(Ciro Marcondes Filho - Paixão, erotismo e comunicação. Contribuições de um filósofo maldito, Georges Bataille)
Rembrandt, Sacrifício de Isaac, 1635

publicado às 22:24


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