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APOTEOSE DO VAGO

por Thynus, em 26.12.14
 
Poder-se-ia apreender a essência dos povos – mais ainda do que a dos indivíduos – por sua maneira de participar do vago. As evidências em que vivem só revelam seu caráter transitório, suas periferias, suas aparências.
O que um povo pode exprimir só tem um valor histórico: é seu êxito no devir; mas o que não pode exprimir, seu fracasso no eterno, é a sede infrutífera de si mesmo: seu esforço para esgotar-se na expressão, estando marcado pela impotência, ele o encobriu com certas palavras – alusões ao indizível...
Quantas vezes, em nossas peregrinações fora do intelecto, não descansamos nossas preocupações à sombra desses Sehnsucht, yearning, saudade, desses frutos sonoros abertos para corações maduros demais! Levantemos o véu dessas palavras: escondem um mesmo conteúdo? É possível que a mesma significação viva e morra nas ramificações verbais de um tronco do indefinido? Pode-se conceber que povos tão diversos sintam a nostalgia da mesma maneira?
Quem se empenhasse em encontrar a fórmula do mal do longínquo seria vítima de uma arquitetura mal construída. Para remontar-se à origem dessas expressões do vago, deve-se praticar uma regressão afetiva até sua essência, afogar-se no inefável e com os conceitos em farrapos. Uma vez a segurança teórica e o orgulho do inteligível, pode-se tentar compreender tudo, compreender tudo por si mesmo. Chega-se então a gozar no inexprimível, a passar os dias à margem do compreensível e a chafurdar no arrabalde do sublime. Para escapar à esterilidade, é preciso regozijar-se no limiar da razão...
Viver na espera, no que ainda não é, é aceitar o desequilíbrio estimulante que supõe a ideia de porvir. Toda nostalgia é uma superação do presente. Mesmo sob a forma de remorso, assume um caráter dinâmico: quer-se forçar o passado, agir retroativamente, protestar contra o irreversível. A vida só tem conteúdo pela violação do tempo. A obsessão do alhures é a impossibilidade do instante; e esta impossibilidade é a nostalgia mesma.
Que os franceses tenham se recusado a experimentar e sobretudo a cultivar a imperfeição do indefinido, não deixa de ter um tom revelador. Sob forma coletiva, esse mal não existe na França: o cafard não tem qualidade metafísica e o ennui está singularmente dirigido. Os franceses repudiam toda complacência para com o Possível; sua própria língua elimina toda cumplicidade com seus perigos. Há outro povo que se encontre mais à vontade no mundo, para quem o chez soi tenha mais sentido e mais peso, para quem a imanência ofereça mais atrativos?
Para desejar fundamentalmente outra coisa, é preciso estar destituído do espaço e do tempo, e viver em um mínimo de parentesco com o lugar e o momento. O que faz com que a história da França ofereça tão poucas descontinuidades, é esta fidelidade à sua essência que lisonjeia nossa inclinação à perfeição e decepciona a necessidade de inacabado que implica uma visão trágica. A única coisa contagiosa na França é a lucidez, o horror de ser enganado, de ser vítima do que quer que seja. Por isso um francês só aceita a aventura com plena consciência; quer ser enganado; vendam-se os olhos; o heroísmo inconsciente parece-lhe, com toda razão, uma falta de gosto, um sacrifício deselegante.
Mas o equívoco brutal da vida exige que predomine a todo instante o impulso, e não a vontade, de ser cadáver, de ser enganado metafisicamente.
Se os franceses sobrecarregaram de excessiva claridade a nostalgia, se lhe subtraíram certos prestígios íntimos e perigosos, a Sehnsucht, ao contrário, esgota o que há de insolúvel nos conflitos da alma alemã, dilacerada entre a Heimat e o Infinito.
Como poderia encontrar um apaziguamento? De um lado, a vontade de estar mergulhado na indivisão do coração e da terra; do outro, a de absorver sempre o espaço em um desejo insaciável. E como a extensão não oferece limites, e com ela cresce a tendência para novas vadiagens, a meta retrocede à medida que se avança. Daí, o gosto exótico, a paixão pelas viagens, o deleite pela paisagem enquanto paisagem, a falta de forma interior, a profundidade tortuosa, simultaneamente sedutora e repugnante. Não há solução para a tensão entre a Heimat e o Infinito: é estar enraizado e desenraizado ao mesmo tempo, não ter podido encontrar um compromisso entre o lar e o longínquo. O imperialismo, constante funesta em sua última essência, não é a tradução política e vulgarmente concreta da Sehnsucht?
Não seria demais insistir nas consequências históricas de certas aproximações interiores. A nostalgia é uma delas; impede-nos de repousar na existência ou no absoluto; obriga-nos a flutuar no indistinto, a perder nossas bases, a viver a descoberto no tempo.
Estar arrancado da terra, exilado na duração, cortado de suas raízes imediatas, é desejar uma reintegração nas fontes originais anteriores à separação e ao rompimento. A nostalgia é sentir-se eternamente longe de casa; e, fora das proporções luminosas do Tédio, e da postulação contraditória do Infinito e da Heimat, toma a forma de retorno ao finito, ao imediato, a um apelo terrestre e maternal. Do mesmo modo que o espírito, o coração forja utopias: e a mais estranha de todas é a de um universo natal, onde se descansa de si mesmo, um universo travesseiro cósmico de todas as nossas fadigas.
Na aspiração nostálgica não se deseja algo palpável, mas uma espécie de calor abstrato, heterogêneo ao tempo e próximo de um pressentimento paradisíaco. Tudo o que não aceita a existência como tal, avizinha-se da teologia. A nostalgia não é mais do que uma teologia sentimental, onde o Absoluto está construído com os elementos do desejo, onde Deus é o Indeterminado elaborado pela languidez.

(CIORAN - BREVIÁRIO DE DECOMPOSIÇÃO)

publicado às 01:26


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