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A noção de sujeito

por Thynus, em 03.06.15
“Agir, viver, conservar o ser, essas três palavras significam a mesma coisa.” ESPINOSA
 
“A substância viva é o ser que é sujeito em verdade.” HEGEL

 
Alteridade e unidade
ESSA É UMA NOÇÃO ao mesmo tempo evidente e misteriosa. É uma evidência perfeitamente banal, uma vez que qualquer um diz “Eu”. Quase todas as línguas têm essa primeira pessoa do singular; se não têm o pronome, têm pelo menos o verbo na primeira pessoa do singular, como em latim. E há uma segunda evidência reflexiva, revelada por Descartes: Não posso duvidar que duvido; logo, eu penso. Se penso, logo, eu sou, isto é, eu existo na primeira pessoa como sujeito. Então surge o mistério: o que é este “eu” e este “sou”, que não é simplesmente “é”?
Será uma aparência secundária ou uma realidade fundamental? É uma realidade fundamental para qualquer tradição filosófica. É o que parece, também, quando Moisés pergunta ao Ser que lhe surge sob a forma de uma sarça ardente: “Mas quem és tu?” A resposta – pelo menos tal como é traduzida em francês – é: “Eu sou aquele que é.” Significa que o Deus de Moisés é a subjetividade absoluta.
 Mas, por outro lado, quando se procura considerar a sociedade e o sujeito de forma determinista, então o sujeito desaparece.
De fato, nossa mente está dividida em dois, conforme olhemos o mundo de modo reflexivo ou compreensivo, ou de modo científico e determinista. O sujeito aparece na reflexão sobre si mesmo e conforme um modo de conhecimento intersubjetivo, de sujeito a sujeito, que podemos chamar de compreensão. Contrariamente, ele desaparece no conhecimento determinista, objetivista, reducionista sobre o homem e a sociedade. De alguma forma, a ciência expulsou o sujeito das ciências humanas, na medida em que propagou entre elas o princípio determinista e redutor. O sujeito foi expulso da Psicologia, expulso da História, expulso da Sociologia; e, pode-se dizer, o ponto comum às concepções de Althusser, Lacan, Lévi-Strauss foi o desejo de liquidar o sujeito humano.
Entretanto, entre os pensadores do ser estruturalista, houve uma volta tardia ao sujeito, como em Foucault, em Banhes; mas foi uma volta existencial, que acompanhou a volta do eros, a volta da literatura, e não uma volta do sujeito ao âmago da teoria.
O que eu gostaria de propor é uma definição do sujeito, partindo não da afetividade, não do sentimento, mas de uma base biológica.
Para esta definição, é preciso admitir um certo número de idéias que hoje começam a ser introduzidas no campo científico. Primeiramente, a idéia de autonomia inseparável da idéia de auto-organização.
A autonomia de que falo não é mais uma liberdade absoluta, emancipada de qualquer dependência, mas uma autonomia que depende de seu meio ambiente, seja ele biológico, cultural ou social. Assim, um ser vivo, para salvaguardar sua autonomia, trabalha, despende energia, e deve, obviamente, abastecer-se de energia em seu meio, do qual depende. Quanto a nós, seres culturais e sociais, só podemos ser autônomos a partir de uma dependência original em relação à cultura, em relação a uma língua, em relação a um saber. A autonomia não é possível em termos absolutos, mas em termos relacionais e relativos.
Em segundo lugar, precisamos do conceito de indivíduo como pré-requisito ao conceito de sujeito. Ora, a noção de indivíduo não é absolutamente fixa e estável. Como sabem, houve duas tendências contrárias na história do pensamento biológico: para uma delas a única realidade é o indivíduo, porque, fisicamente, vemos apenas indivíduos, nunca a espécie; para a outra, a única realidade é a espécie, já que os indivíduos não passam de amostras efêmeras. Conforme um certo olhar, o indivíduo desaparece; conforme um outro olhar, é a espécie que desaparece. Essas duas visões negam-se reciprocamente. Mas acredito que devemos tratar as duas da mesma maneira que Niels Bohr tratava a onda e o corpúsculo: são duas noções aparentemente antagônicas, que são, no entanto, complementares para dar conta de uma mesma realidade.
Eis, portanto, uma perspectiva que nos leva a procurar um elo complexo entre indivíduo e espécie; e podemos aplicar o mesmo raciocínio à relação indivíduo/sociedade.
Do ponto de vista biológico, o indivíduo é o produto de um ciclo de reprodução; mas este produto é, ele próprio, reprodutor em seu ciclo, já que é o indivíduo que, ao se acasalar com indivíduo de outro sexo, produz esse ciclo. Somos, portanto, produtos e produtores, ao mesmo tempo. Assim também, quando se considera o fenômeno social, são as interações entre indivíduos que produzem a sociedade; mas a sociedade, com sua cultura, suas normas, retroage sobre os indivíduos humanos e os produz enquanto indivíduos sociais dotados de uma cultura.
Assim, temos agora uma noção bastante complexa da autonomia e do indivíduo; falta-nos a noção de sujeito. Para chegar à noção de sujeito, é preciso pensar que toda organização biológica necessita de uma dimensão cognitiva. Os genes constituem um patrimônio hereditário de natureza cognitiva/informacional da célula. Da mesma maneira, o ser vivo, seja ele dotado ou não de um sistema neuro-cerebral, retira informações de seu meio ambiente e exerce uma atividade cognitiva inseparável de sua prática de ser vivo. Ou seja, a dimensão cognitiva é indispensável à vida.
Essa dimensão cognitiva pode ser chamada de computacional. A computação é o tratamento de estímulos, de dados, de signos, de símbolos, de mensagens, que nos permite agir dentro do universo exterior, assim como de nosso universo interior, e conhecê-los.
E isto é fundamental: a natureza da noção do sujeito tem a ver com a natureza singular de sua computação, desconhecida por qualquer computador artificial que possamos fabricar. Essa computação do ser individual é a computação que cada um faz de si mesmo, por si mesmo e para si mesmo. É um cômputo. O cômputo é o ato pelo qual o sujeito se constitui posicionando-se no centro de seu mundo para lidar com ele, considerá-lo, realizar nele todos os atos de preservação, proteção, defesa etc
Eu diria, portanto, que a primeira definição do sujeito seria o egocentrismo, no sentido literal do termo: posicionar-se no centro de seu mundo. De resto, o “Eu”, como já observamos várias vezes, é o pronome que qualquer um pode dizer, mas ninguém pode dizê-lo em meu lugar. O “Eu” é o ato de ocupação de um espaço que se torna centro do mundo. E, quanto a isso, diria que há um princípio “logístico” de identidade, que pode ser resumido na fórmula: “Eu [je] sou eu [moi]” (No original, Je suis moi. A escola francesa de Psicanálise costuma utilizar o je no sentido de instância psicanalítica encarregada de funções; o moi refere-se precisamente a uma representação da imagem que o sujeito tem de “si mesmo” (ou de seu sentimento de identidade), o ego. Aqui utilizamos “Eu” e “eu” para traduzir, respectivamente, je e moi). “Eu” [je] é o ato de ocupação do espaço egocêntrico; “eu” [moi] é a objetivação do ser que ocupa esse espaço. “Eu [jé] sou eu [moi] é o princípio que permite estabelecer, a um só tempo, a diferença entre o “Eu” (subjetivo) e o “eu” (sujeito objetivado), e sua indissolúvel identidade. Ou seja, a identidade do sujeito comporta um princípio de distinção, de diferenciação e de reunificação. Esse princípio bastante complexo é absolutamente indispensável, pois permite qualquer tratamento objetivo de si mesmo. Quando uma bactéria trata de suas moléculas, ela as trata como objetos, mas trata como objetos que lhe pertencem. E trata de si mesma, para si mesma.
Eis, portanto, um princípio que, por esta separação/unificação do “Eu” subjetivo e do “eu” objetivo, permite efetivamente todas as operações. Este princípio comporta a capacidade de se referir ao mesmo tempo a “si” (auto-referência) e ao mundo exterior (exo-referência) – de distinguir, portanto, o que é exterior a si. “Auto-exo-referência” quer dizer que eu posso distinguir entre o “eu” e o “não-eu”, o “Eu” e o “não-Eu”, bem como entre o “eu” e os outros “eu”, o “Eu” e os outros “Eu”. Aliás, nós, humanos, temos dois níveis de subjetividade: temos nossa subjetividade cerebral, mental, da qual vou falar; e temos a subjetividade de nosso organismo, protegida por nosso sistema imunológico. O sistema imunológico opera a distinção entre o “si” e o “não-si”; quer dizer, entre as entidades moleculares que não têm a carteira de identidade singular do indivíduo e são rejeitadas, perseguidas, vencidas, enquanto as que possuem a carteira de identidade são aceitas, reconhecidas e protegidas. Portanto, a distinção radical imediata do “si”, do “não-si”, do “eu” e dos “outros” distribui valores concomitantemente: tudo o que vem do “eu”, do “si”, do “Eu” é valorizado e deve ser protegido, defendido; o resto é indiferente ou combatido. Eis o primeiro princípio de identidade do sujeito que permite a unidade subjetiva/objetiva do “Eu sou eu” e a distinção entre o exterior e o interior.
Há um segundo princípio de identidade, inseparável, que é: “Eu” continua o mesmo a despeito das modificações internas do “eu” (mudança de caráter, de humor), do “si mesmo” (modificações físicas devidas à idade). De fato, o indivíduo modifica-se somaticamente do nascimento à morte. Todas as suas moléculas são substituídas inúmeras vezes, assim como a maioria de suas células. Há modificações extremas no interior do “eu”, e chegarei a elas. A despeito disso tudo, o sujeito continua o mesmo. Ele diz simplesmente: “Eu era criança”, “Eu estava irado”, mas é sempre o mesmo “Eu”, ao passo que os caracteres exteriores ou físicos do indivíduo se modificam. Aí está o segundo princípio de identidade, esta permanência da auto-referência, apesar das transformações e através das transformações.
A esse respeito, chegaremos a um terceiro e a um quarto princípios: um princípio de exclusão e um princípio de inclusão, que estão ligados de forma inseparável. O princípio de exclusão pode ser assim enunciado: se pouco importa quem possa dizer “Eu”, ninguém pode dizê-lo em meu lugar. Portanto o “Eu” é único para cada um. Vemos isso no caso dos gêmeos homozigotos: não há qualquer singularidade somática que os diferencie, são exatamente idênticos geneticamente, mas são não só dois indivíduos, mas também dois sujeitos distintos. É confortável ter uma cumplicidade, um código comum, intuições recíprocas, mas nenhum dos gêmeos diz “Eu” no lugar do outro. Este é o princípio de exclusão.
O encontro com a diferença
 
Já o princípio de inclusão é, ao mesmo tempo, complementar e antagônico. Posso inscrever um “nós” em meu “Eu”, como eu posso incluir meu “Eu” em um “nós”: assim, posso introduzir, em minha subjetividade e minhas finalidades, os meus, meus parentes, meus filhos, minha família, minha pátria. Posso incluir em minha subjetividade aquela (aquele) que amo e dedicar meu “Eu” ao amor, seja à pessoa amada, seja à pátria comum. Evidentemente, existe antagonismo entre inclusão e exclusão. Como exemplo, temos as mães que se sacrificam por sua prole e dão suas vidas para salvá-la e as mães que abandonam ou comem seus filhos para salvar a si próprias. Temos o patriota que vai sacrificar-se por sua pátria e temos o desertor que vai salvar sua própria pele. Ou seja, temos todos, em nós, este duplo princípio que pode ser diferentemente modulado, distribuído; ou seja, o sujeito oscila entre o egocentrismo absoluto e a devoção absoluta.
O princípio de inclusão é tão fundamental quanto os outros princípios. Supõe, para os humanos, a possibilidade de comunicação entre os sujeitos de uma mesma espécie, de uma mesma cultura, de uma mesma sociedade.
Além disso, há a tomada de posse do sujeito por um “superego”. Aqui, uso como imagem esta tese de Julian Jaynes, em La Naissance de la conscience dans l’effondrement de l’esprit bicameral1 (O nascimento da consciência no desmoronamento da mente bicameral). Segundo sua teoria, os indivíduos dos impérios da Antigüidade possuíam duas câmaras em suas mentes. Uma câmara era a da subjetividade pessoal, das ocupações, da família, dos filhos, de tudo o que lhes concernia enquanto indivíduos privados. A outra câmara era ocupada pelo poder teocrático-político, pelo rei, pelo império, e, quando o poder falava, o indivíduo-sujeito era possuído e obedecia às injunções desta segunda câmara. E, segundo Jaynes, a consciência nasce no momento em que se abre uma brecha entre as duas câmaras, que, assim, podem se comunicar. Então, o indivíduo sujeito pode dizer a si mesmo: “Mas o que é a cidade, o que é a política?” E, eventualmente, tornar-se cidadão.
É preciso destacar, aqui, algo de muito importante: no “Eu sou eu” já existe uma dualidade implícita – em seu ego, o sujeito é potencialmente outro, sendo, ao mesmo tempo, ele mesmo. É porque o sujeito traz em si mesmo a alteridade que ele pode comunicar-se com outrem. É por ser o produto unitário de uma dualidade (reprodução por cisão, nos unicelulares; por encontro de dois seres de sexos diferentes, na maioria dos seres vivos) que ele traz em si a atração por um outro ego. A compreensão permite considerar a outro não apenas como ego alter, um outro indivíduo sujeito, mas também como alter ego, um outro eu mesmo, com quem me comunico, simpatizo, comungo. O princípio de comunicação está, pois, incluído no princípio de identidade e manifesta-se no princípio de inclusão.
Como conseqüência do princípio de exclusão, há sempre uma incomunicabilidade do que existe de mais subjetivo em nós; mas, graças à linguagem, podemos comunicar, pelo menos, nossa incomunicabilidade.
Podemos, pois, enunciar que a qualidade própria a todo indivíduo sujeito não poderia ser reduzida ao egoísmo; ao contrário, ela permite a comunicação e o altruísmo.
Claro, o sujeito possui também um caráter existencial, porque é inseparável do indivíduo, que vive de maneira incerta, aleatória, e acha-se, do nascimento à morte, em um meio ambiente incerto, muitas vezes ameaçador e hostil.
Agora, posso me referir a esta idéia de MacLean sobre o cérebro do ser humano. É um cérebro triúnico; tal como na Santíssima Trindade há três seres que são distintos, sendo, simultaneamente, o mesmo; tal como possuímos um cérebro réptil ou paleocéfalo, que é a sede de nossos impulsos mais elementares: a agressividade, o cio; possuímos um cérebro mamífero, com o sistema límbico, que permite o desenvolvimento da afetividade; enfim, temos o córtex e, sobretudo, o neocórtex, que desenvolveu incrivelmente o cérebro do Homo sapiens e é a sede das operações da racionalidade. Temos, portanto, essas três instâncias. O interessante é que não há hierarquia estável entre as três: não é a razão que comanda os sentimentos e controla os impulsos. Podemos ter uma permuta de hierarquias e talvez nossa agressividade utilize nossas capacidades racionais para atingir seus fins. Há uma extraordinária instabilidade, uma hierarquia permutativa entre as três instâncias, mas o notável é que o “Eu” ora é ocupado pelo doutor Jekyll, ora por Mister Hyde. Nos casos de duplicação de personalidade, temos duas pessoas inteiramente diferentes, que têm escritas diferentes, caracteres diferentes, às vezes até doenças diferentes, e a pessoa que domina é a que diz “Eu”, isto é, a que ocupa o lugar do sujeito. E digo mais: o que chamamos de nossas mudanças de humor são modificações de personalidade. Não apenas desempenhamos papéis diferentes, mas também somos tomados por personalidades diferentes durante todo o percurso de nossa vida. Cada um de nós é uma sociedade de várias personalidades. Mas há este “Eu” subjetivo, esta espécie de ponto fixo, que é ocupado ora por uma, ora por outra. Quando se observa a concepção clássica do “eu” [moi] (ego) segundo Freud, esse “eu” nasceu da dialética entre o “isso” instintivo, que vem das entranhas biológicas, e o “superego”, que, para Freud, é a autoridade paterna, mas que pode transformar-se em um “superego” mais amplo, o da pátria, da sociedade. Esse “eu” está em incessante dialética com o “isso” e o “superego”. Aí também há um problema de ocupação. Quando somos possuídos pelo “superego”, continuamos a dizer “Eu”, da mesma maneira que dizemos “Eu” quando perseguimos fins meramente egoístas. Vocês dizem “Eu” quando estão mergulhados nas mais austeras operações intelectuais e dizem igualmente “Eu” quando se entregam às mais desbragadas brincadeiras eróticas.
O “Eu”, enquanto “Eu”, emerge tardiamente na experiência da humanidade. Como sabem, as crianças falam primeiro na terceira pessoa. Podemos dar um valor, pelo menos simbólico, ao que Lacan chamara de o “estádio do espelho”, momento muito importante para a constituição da identidade do sujeito: ele objetiva um “eu” [moi] que não é outro senão o “Eu” que olha, e, nesse estádio, opera-se a ligação entre a imagem objetiva e o ser subjetivo. Em meu livro O homem e a morte, insisti na forte presença do “duplo” na humanidade arcaica: o duplo, espectro objetivo e imaterial de seu próprio ser, acompanha-o incessantemente e é reconhecido na sombra, no reflexo. É o duplo que perambula nos sonhos enquanto o corpo fica imóvel. Esse duplo é, pois, uma experiência da vida quotidiana antes de ser o ghost (fantasma), que vai se libertar com a morte, enquanto o corpo vai se decompor. O duplo é um modo cristalizado da experiência do “Eu sou eu”, em que o “eu” assume, a princípio, justamente a forma desse gêmeo real, mas imaterial. Esse duplo vai interiorizar-se; nas sociedades históricas, dará nascimento à alma, sendo a alma, aliás, muito freqüentemente relacionada ao sopro, como entre os gregos e os hebreus. A “alma”, o “espírito” são maneiras de nomear, de representar a interioridade subjetiva em termos que designam uma realidade objetiva específica. Podemos dizer de qualquer um: “Ele não tem alma”, e compreende-se o que isso quer dizer. Portanto, temos diferentes modos de nomear essa realidade subjetiva, que, para nós, não está estritamente limitada ao “Eu” e ao “eu”, mas, justamente nesta dialética entre o “Eu” e o “eu”, assume a forma de alma e de espírito, e ressurge com o que chamamos de a “consciência”.
E é aí que a definição de sujeito, que lhes proponho, é inteiramente diversa da que define o sujeito pela consciência. A consciência, em minha concepção, é a emergência última da qualidade do sujeito. É uma emergência reflexiva, que permite o retorno da mente a si mesma, em circuito. A consciência é a qualidade humana última e, sem dúvida, a mais preciosa, pois o que é último é, ao mesmo tempo, o que há de melhor e de mais frágil. E, de fato, a consciência é extremamente frágil e, em sua fragilidade, pode enganar-se muitas vezes.
Claro, a afetividade para nós está estreitamente ligada à subjetividade. A afetividade se desenvolve nos mamíferos dos quais herdamos a extrema instabilidade: os macacos, por exemplo, têm temperamentos muito violentos, passam da cólera à mansidão etc. Somos herdeiros da afetividade dos mamíferos e a desenvolvemos. A afetividade, portanto, está humanamente ligada à idéia de sujeito, mas esta não é a qualidade originária. Contudo, acredita-se – na falta de uma teoria bio-lógica do sujeito – que a subjetividade seja um componente afetivo que deva ser abolido para se chegar a um conhecimento correto. Mas a subjetividade humana não é redutível à afetividade que ela comporta, tanto quanto não é redutível à consciência.
Agora, é preciso examinar o elo entre a idéia de sujeito e a idéia de liberdade. A liberdade supõe, ao mesmo tempo, a capacidade cerebral ou intelectual de conceber e fazer escolhas, e a possibilidade de operar essas escolhas dentro do meio exterior. Sem dúvida há casos em que se pode perder toda a liberdade exterior, estar numa prisão, mas conservar a liberdade intelectual.
O sujeito pode, eventualmente, dispor de liberdade e exercer liberdades. Mas existe toda uma parte do sujeito que não é apenas dependente, mas submissa. E, de resto, não sabemos realmente quando somos livres.
Então, há um primeiro princípio de incerteza, que seria o seguinte: eu falo, mas, quando falo, quem fala? Sou “Eu” só quem fala? Será que, por intermédio do meu “eu”, é um “nós” que fala (a coletividade calorosa, o grupo, a pátria, o partido a que pertenço)?
Será um “pronome indefinido” que fala (a coletividade fria, a organização social, a organização cultural que dita meu pensamento, sem que eu saiba, por meio de seus paradigmas, seus princípios de controle do discurso que aceito inconscientemente)? Ou é um “isso”, uma máquina anônima infrapessoal, que fala e me dá a ilusão de que fala de mim mesmo? Nunca se sabe até que ponto “Eu” falo, até que ponto “Eu” faço um discurso pessoal e autônomo, ou até que ponto, sob a aparência que acredito ser pessoal e autônoma, não faço mais que repetir idéias impressas em mim.
Contrariamente aos dois dogmas em oposição – para um, o sujeito é nada; para o outro, o sujeito é tudo –, o sujeito oscila entre o tudo e o nada. Eu sou tudo para mim, não serei nada no Universo. O princípio do egocentrismo é o princípio pelo qual eu sou tudo; mas já que todo o meu mundo se desintegrará com a minha morte, justamente por essa mortalidade, eu sou nada. O “Eu” é um privilégio inaudito e, ao mesmo tempo, a coisa mais banal, porquanto todo mundo pode dizer “Eu”. Da mesma forma, o sujeito oscila entre o egoísmo e o altruísmo. No egoísmo, eu sou tudo, e os outros são nada; mas, no altruísmo, eu me dou, me devoto, sou inteiramente secundário para aqueles aos quais me dou. O indivíduo sujeito recusa a morte que o devora; e, no entanto, é capaz de oferecer sua vida por suas idéias, pela pátria ou pela humanidade. Aí está a complexidade própria da noção de sujeito.
Uma grande parte, a parte mais importante, a mais rica, a mais ardorosa da vida social, vem das relações intersubjetivas. Cabe até dizer que o caráter intersubjetivo das interações no meio da sociedade, o qual tece a própria vida dessa sociedade, é fundamental. Para conhecer o que é humano, individual, interindividual e social, é preciso unir explicação e compreensão. O próprio sociólogo não é uma mente apenas objetiva; ele faz parte do tecido intersubjetivo. Ao mesmo tempo, é preciso reconhecer que, potencialmente, todo sujeito é não apenas ator, mas autor, capaz de cognição/escolha/decisão. A sociedade não está entregue somente, sequer principalmente, a determinismos materiais; ela é um mecanismo de confronto/cooperação entre indivíduos sujeitos, entre os “nós” e os “Eu”.
Para concluir, o sujeito não é uma essência, não é uma substância, mas não é uma ilusão. Acredito que o reconhecimento do sujeito exige uma reorganização conceptual que rompa com o princípio determinista clássico, tal como ainda é utilizado nas ciências humanas, notadamente, sociológicas. No quadro de uma psicologia behaviorista, é impossível, claro, conceber um sujeito. Portanto, precisa-se de uma reconstrução, precisa-se das noções de autonomia/dependência; da noção de individualidade, da noção de autoprodução, da concepção de um elo recorrente, onde estejam, ao mesmo tempo, o produto e o produtor. É preciso também associar noções antagônicas, como o princípio de inclusão e exclusão. É preciso conceber o sujeito como aquele que dá unidade e invariância a uma pluralidade de personagens, de caracteres, de potencialidades. Isso, porque, se estamos sob a dominação do paradigma cognitivo, que prevalece no mundo científico, o sujeito é invisível, e sua existência é negada. No mundo filosófico, ao contrário, o sujeito torna-se transcendental, escapa à experiência, vem do puro intelecto e não pode ser concebido em suas dependências, em suas fraquezas, em suas incertezas. Em ambos os casos, suas ambivalências, suas contradições não podem ser pensadas nem sua centralidade e sua insuficiência, seu sentido e sua insignificância, seu caráter de tudo e nada a um só tempo. Precisamos, portanto, de uma concepção complexa do sujeito.

(EDGAR MORIN - A CABEÇA BEM-FEITA)

publicado às 16:20



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