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 Contra a ingenuidade igualitária é preciso fazer notar que a jerarquização é o impulso essencial da socialização. Onde há cinco homens em estado normal produz-se automaticamente uma estrutura jerarquizada. Qual seja o princípio desta é outra questão. Mas algum terá de existir sempre. Se os normais faltam, um pseudo princípio se encarrega de modelar a jerarquia e definir as classes. Durante um momento - o século XVII - na Holanda, o homem mais invejado era aquele que possuía certa tulipa rara. A fantasia humana, fustigada por esse instinto irreprimível de jerarquia, inventa sempre algum novo tema de desigualdade.
Mas, ainda limitando de tal sorte a frase inicial que dá ocasião a esta nota, eu me pergunto se há alguma razão para afirmar que em nosso tempo goza o dinheiro de um poder social maior que em tempo algum do passado. Também esta curiosidade é exposta e difícil de satisfazer. Se nos envaidecemos, tudo que acontece em nossa hora parecer-nos-á único e excepcional na série dos tempos. Há, entretanto, a meu juízo, uma razão que dá probabilidade clara à suspeita de ser nosso tempo o mais crematístico de quantos foram. É também idade de crise: os prestígios há anos ainda vigentes perderam sua eficiência. Nem a religião nem a moral dominam a vida social nem o coração da multidão. A cultura intelectual e artística é avaliada menos que há vinte anos. Resta só o dinheiro. Mas, como indiquei, isto aconteceu várias vezes na história. O novo, o exclusivo do presente é esta outra conjuntura. O dinheiro teve, para seu poder, um limite automático em sua própria essência. O dinheiro é apenas um meio para comprar coisas. Se há poucas coisas para comprar, por muito dinheiro que haja e por muito livre que se encontre sua ação de conflitos com outras potências, seu influxo será escasso. Isto nos permite formar uma escala com as épocas de crematismo e dizer: o poder social do dinheiro - ceteris paribus - será tanto maior quantas mais coisas haja para comprar, não quanto maior seja a quantidade do dinheiro mesmo. Ora bem: não há dúvida que o industrialismo moderno, em sua combinação com os fabulosos progressos da técnica, produziu nestes anos um cúmulo tal de objetos mercáveis, de tantas classes e qualidades, que o dinheiro pode desenvolver fantasticamente sua essência: o comprar.
No século XVIII existiam também grandes fortunas, mas havia pouco para comprar. O rico, se queria algo mais que o breve repertório de mercadorias existente, tinha de inventar um apetite e o objeto que o satisfaria, tinha de buscar o artífice que o realizasse e dar tempo a sua fabricação. Em todo este intrincamento intercalado entre o dinheiro e objeto complicava-se aquele com outras forças espirituais - fantasia criadora de desejos no rico, seleção do artífice, trabalho técnico deste, etc. - de que se fazia, sem querer, dependente.
Agora um homem chega a uma cidade e aos quatro dias pode ser o mais famoso e invejado habitante dela sem mais trabalho que passear ante as vitrinas, escolher os objetos melhores - o melhor automóvel, o melhor chapéu, o melhor isqueiro, etc. - e comprá-los. Caberia imaginar um autômato provido de um bolso em que metesse mecanicamente a mão e chegasse a ser o personagem mais ilustre da urbe.

(José Ortega y Gasset - "A rebelião das massas")

publicado às 15:51



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