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KARL JASPERS: CIDADÃO DO MUNDO?

por Thynus, em 24.09.17
.Enquanto não houvermos compreendido três coisas: que a ciência absolutizada não é verdadeira, que o mundo cognoscível é infinito e que as cifras podem servir de expressão à realidade profunda, o mundo do moderno conhecimento científico e da técnica produtiva continuará – apesar de seu grandioso brilho próprio, mas nem por isto ilimitado – a ser, para o homem, um lugar de escuridão, justo o inverso daquilo de que ele tem necessidade.
(Karl Jaspers - Ciência e Verdade) 
 

Tornou-se chocantemente óbvio que a nossa tecnologia excedeu a nossa humanidade.

Albert Einstein
 

Trocava toda minha tecnologia por uma tarde com Sócrates.

Steve Jobs  
 
 
Karl Jaspers
Ninguém pode ser cidadão do mundo quando é cidadão do seu país. Jaspers, em seu Origin and goal of history [Origem e met a da história] (1953), discute extensamente as implicações de um Estado e um império mundiais.1 Qualquer que fosse a forma que pudesse assumir um governo mundial com poder centralizado sobre todo o planeta, a própria noção de uma força soberana a governar toda a Terra, com o monopólio de todos os meios de violência, sem controle e verificação por parte de outros poderes soberanos, não é apenas um pesadelo ameaçador de tirania, mas seria o fim de toda vida política, tal como a conhecemos. Os conceitos políticos se baseiam na pluralidade, diversidade e limitações mútuas. Um cidadão é, por definição, um cidadão entre cidadãos de um país entre países. Seus direitos e deveres devem ser definidos e limitados, não só pelos de seus companheiros cidadãos, mas também pelas fronteiras de um território. A filosofia pode conceber o globo como a terra natal da humanidade e uma lei não escrita eterna e válida para todos. A política trata dos homens, nativos de muitos países e herdeiros de muitos passados; suas leis são as cercas positivamente estabelecidas que cingem, protegem e limitam o espaço onde a liberdade não é um conceito, mas uma realidade política viva. O estabelecimento de um Estado soberano mundial, longe de ser o pré-requisito da cidadania mundial, seria o fim de qualquer cidadania. Seria não o clímax da política mundial, mas seu fim absolutamente literal.
Contudo, dizer que um Estado mundial concebido à imagem do Estado soberano nacional ou um império mundial à imagem do Império Romano é perigoso (e o domínio do Império Romano sobre as partes bárbaras e civilizadas do mundo só foi suportável porque erguia-se contra o pano de fundo sombrio e atemorizador das partes desconhecidas da Terra), não resolve nosso problema político atual. A humanidade, que para todas as gerações precedentes não passava de um conceito ou um ideal, tornou-se algo dotado de uma realidade premente. A Europa, como previra Kant, prescreveu suas leis para todos os outros continentes; mas o resultado, a emergência da humanidade a partir, e lado a lado, da existência continuada de muitas nações, assumiu um aspecto totalmente diferente daquele que Kant vislumbrara ao ver a unificação da humanidade “num futuro muito distante”.2 A humanidade deve sua existência não aos sonhos dos humanistas ou ao raciocínio dos filósofos, e tampouco, pelo menos basicamente, aos acontecimentos políticos, mas quase que exclusivamente ao desenvolvimento técnico do mundo ocidental. Quando a Europa, com toda a seriedade, começou a prescrever suas “leis” a todos os outros continentes, aconteceu também que ela própria já perdera sua crença nelas. Não menos evidente que o fato de que a tecnologia uniu o mundo é o outro fato de que a Europa exportou para os quatro cantos da Terra seus processos de desintegração — que, no mundo ocidental, haviam se iniciado com o declínio das crenças metafísicas e religiosas tradicionalmente aceitas e acompanharam o grandioso desenvolvimento das ciências naturais e a vitória do Estado-nação sobre todas as outras formas de governo. As mesmas forças que levaram séculos para solapar as antigas crenças e formas de vida política, e que têm seu lugar no desenvolvimento contínuo exclusivo do Ocidente, levaram apenas umas poucas décadas para destruir, operando de fora, crenças e modos de vida de todas as outras partes do mundo.
É verdade que, pela primeira vez na história, todos os povos da Terra têm um presente comum: nenhum acontecimento de alguma importância na história de um país pode se manter como acidente marginal na história de qualquer outro. Cada país se tornou o vizinho quase imediato de todos os outros países, e cada homem sente o impacto dos acontecimentos que ocorrem no outro lado do planeta. Mas esse presente factual comum não se baseia num passado comum e não garante minimamente um futuro comum. A tecnologia, tendo proporcionado a unidade do mundo, pode destruí-la com a mesma facilidade, e os meios de comunicação global foram projetados ao lado de meios de uma possível destruição global. É difícil negar que, no momento, o símbolo mais potente da unidade da humanidade é a possibilidade remota de que as armas atômicas empregadas por um país, segundo a sabedoria política de uma minoria, finalmente constituam o término de toda vida humana na Terra. A solidariedade da humanidade a esse respeito é totalmente negativa; funda-se não só num interesse comum num acordo que proíba o uso de armas atômicas, mas talvez também — visto que tais acordos partilham com todos os outros acordos do destino incerto de se basearem na boa-fé — num desejo comum de um mundo um pouco menos unificado.
Essa solidariedade negativa, baseada no temor à destruição global, tem seu correspondente numa percepção menos articulada, mas não menos poderosa, de que a solidariedade da humanidade só pode ser significativa num sentido positivo se vier acompanhada pela responsabilidade política. Nossos conceitos políticos, segundo os quais temos de assumir responsabilidade por todos os assuntos públicos ao nosso alcance, independentemente de uma “culpa” pessoal, pois como cidadãos nos tornamos responsáveis por tudo o que nosso governo faz em nome do país, podem nos levar a uma situação intolerável de responsabilidade global. A solidariedade entre a humanidade pode muito bem se converter numa carga insuportável, e não surpreende que as reações habituais a isso sejam a apatia política, o nacionalismo isolacionista ou a rebelião desesperada contra todos os poderes, mais do que um entusiasmo ou desejo de fazer ressurgir o humanismo. O idealismo da tradição humanista do Iluminismo e seu conceito de humanidade aparecem como um otimismo temerário à luz das realidades presentes. Estas, por outro lado, na medida em que nos trouxeram a um presente global sem um passado comum, ameaçam tornar irrelevantes todas as tradições e histórias particulares do passado.
É contra esse pano de fundo de realidades políticas e espirituais, das quais Jaspers provavelmente tem mais consciência do que qualquer outro filósofo de nossa época, que se deve entender seu novo conceito de humanidade e as proposições de sua filosofia. Kant outrora convocou os historiadores de sua época a escrever uma história “com um ponto de vista cosmopolita”. Poder-se-ia facilmente “provar” que toda a obra filosófica de Jaspers, desde seu início com Psychology of world views [Psicologia das visões do mundo] (1919) até a história mundial da filosofia,3 foi concebida com “um intento voltado para a cidadania mundial”. Se a solidariedade entre a humanidade deve se basear em algo mais sólido que o medo justificado às capacidades demoníacas do homem, se a nova vizinhança universal de todos os países deve resultar em algo mais promissor do que um tremendo aumento do ódio mútuo e uma irritabilidade um tanto universal de todos contra todos, então é preciso que ocorra um processo em escala gigantesca de compreensão mútua e progressivo auto-esclarecimento. E assim como o pré-requisito para um governo mundial, na opinião de Jaspers, é a renúncia à soberania em favor de uma estrutura política confederada a nível mundial, assim também o pré-requisito para essa compreensão mútua seria a renúncia não à tradição e ao passado nacional de cada um, mas à autoridade constritora e à validade universal que sempre foram anunciadas pela tradição e pelo passado. Foi por essa ruptura, não com a tradição, mas com a autoridade da tradição, que Jaspers entrou na filosofia. Sua Psychology of world views nega o caráter absoluto de qualquer doutrina e, em seu lugar, coloca uma relatividade universal, onde cada conteúdo filosófico específico se torna um meio para o filosofar individual. Abre-se à força a couraça da autoridade tradicional, e os grandes conteúdos do passado são livre e “jocosamente” postos em comunicação entre si, na experiência de se comunicarem com um filosofar vivo presente. Nessa comunicação universal, que se mantém reunida pela experiência existencial do filósofo presente, todos os conteúdos metafísicos dogmáticos se dissolvem em processos e correntes de pensamento que, devido à sua relevância para meu existir e filosofar presentes, deixam seu lugar histórico definido na cadeia cronológica e entram num âmbito do espírito onde todos são contemporâneos. O que quer que eu pense deve se manter em comunicação constante com tudo o que já foi pensado. Não só porque, “em filosofia, a novidade é um argumento contra a verdade”, mas porque a filosofia presente não pode ser senão “a conclusão natural e necessária do pensamento ocidental até hoje, a síntese honesta realizada por um princípio suficientemente amplo para compreender tudo o que, num certo sentido, é verdadeiro”. O próprio princípio é a comunicação; a verdade, que nunca pode ser apreendida com conteúdo dogmático, surge como substância “existencial” clarificada e articulada pela razão, comunicando-se e apelando ao existir racional do outro, compreensível e capaz de compreender tudo o mais. “A Existenz só se torna clara através da razão; a razão só tem seu conteúdo através da Existenz.”4
A pertinência dessas considerações a favor de uma fundamentação filosófica da unidade da humanidade é evidente: a “comunicação ilimitada”,5 que ao mesmo tempo significa a fé na compreensibilidade de todas as verdades e a boa vontade em revelar e ouvir como condição primária de todo intercurso humano, é uma das idéias, se não a idéia central, da filosofia de Jaspers. O ponto aqui é que, pela primeira vez, a comunicação não é concebida como “expressão” de pensamentos, e portanto secundária em relação ao próprio pensamento. A própria verdade é comunicativa, ela desaparece e não pode ser concebida fora da comunicação; no âmbito “existencial”, verdade e comunicação são a mesma coisa. “A verdade é o que nos liga.”6 É apenas na comunicação — entre contemporâneos e também entre vivos e mortos — que a verdade se revela.
Uma filosofia que concebe a verdade e a comunicação como uma e mesma coisa abandonou a proverbial torre de marfim da mera contemplação. O pensamento se torna prático, ainda que não pragmático; é uma espécie de prática entre homens, não um desempenho de um indivíduo em sua solidão auto-escolhida. Jaspers, tanto quanto sei, é o primeiro e único filósofo que sempre protestou contra a solidão, para quem a solidão aparecia como “perniciosa”, e ousou questionar “todos os pensamentos, todas as experiências, todos os conteúdos” sob este único aspecto: “O que significam eles para a comunicação? São tais que podem ajudar ou impedir a comunicação? Atraem à solidão ou incitam à comunicação?”.7 A filosofia perdeu sua humildade perante a teologia e sua arrogância em relação à vida comum do homem. Converteu-se em ancilla vitae.8
Essa atitude tem uma relevância especial no interior da tradição filosófica alemã. Kant parece ter sido o último grande filósofo que ainda se sentia inteiramente confiante em ser entendido e capaz de desfazer mal-entendidos. A frase de Hegel em seu leito de morte — se non è vero, è bene trovato — tornou-se famosa: “Ninguém me entendeu, a não ser uma pessoa, e esta me entendeu mal”. Desde então, o isolamento crescente dos filósofos num mundo que não se interessa por filosofia, pois que inteiramente fascinado pela ciência, resultou na ambigüidade e obscuridade, muito conhecidas e freqüentemente denunciadas, que para muitos parecem ser típicas da filosofia alemã e que certamente constituem a marca característica de qualquer pensamento estritamente solitário e não comunicativo. Ao nível da opinião comum, significa que a clareza e a grandeza são tidas como opostas. Os numerosos pronunciamentos de Jaspers após a guerra, seus artigos, palestras, programas de rádio, todos se guiavam por uma tentativa deliberada de popularização, de se falar de filosofia sem utilizar uma terminologia técnica, isto é, com a convicção de se poder apelar à razão e ao interesse “existencial” de todos os homens. Filosoficamente isso só foi possível por se conceber a verdade e a comunicação como uma mesma coisa.
 
 
De um ponto de vista filosófico, o perigo inerente à nova realidade da humanidade parece consistir no fato de que essa unidade, baseada nos meios técnicos de comunicação e violência, destrói todas as tradições nacionais e enterra as origens autênticas de toda a existência humana. Esse processo destrutivo até mesmo pode ser considerado como pré-requisito necessário para a compreensão última entre homens de todas as culturas, civilizações, raças e nações. Isso resultaria numa superficialidade que transformaria de modo irreconhecível o homem, tal como o conhecemos em 5 mil anos de história registrada. Seria mais que mera superficialidade; seria como se toda a dimensão de profundidade, sem a qual não pode existir o pensamento humano, mesmo ao mero nível de invenção técnica, simplesmente desaparecesse. Esse nivelamento por baixo seria muito mais radical do que o nivelamento pelo mínimo denominador comum; chegaria finalmente a um denominador que hoje em dia dificilmente conseguiríamos imaginar.
Na medida em que se concebe a verdade como algo separado e diferente de sua expressão, como algo que por si mesmo é não comunicativo, não se comunica com a razão e tampouco aquela à experiência “existencial”, é quase impossível não crer que esse processo destrutivo será total e inevitavelmente acionado pelo puro automatismo da tecnologia que tornou o mundo uno e, num certo sentido, unificou a humanidade. É como se os passados históricos das nações, em sua total diversidade e disparidade, em sua estonteante variedade e desconcertante estranheza entre si, fossem apenas obstáculos no caminho para a unidade horrivelmente superficial. É claro que isso é apenas uma ilusão; se se destruísse a dimensão de profundidade a partir da qual se desenvolveram a ciência e a tecnologia modernas, o provável é que a nova unidade da humanidade não conseguiria sobreviver sequer tecnicamente. Tudo parece, então, depender da possibilidade de se pôr em comunicação mútua os passados nacionais com sua singularidade original, como única forma de alcançar o sistema global de comunicação que cubra a superfície da Terra.
É à luz de tais reflexões que Jaspers realizou a grande descoberta histórica que se converteu na pedra regular de sua filosofia da história, na sua origem e meta. A noção bíblica de que todos os homens descendem de Adão, partilham da mesma origem e caminham todos para a mesma meta de salvação e Juízo Final, é algo além do conhecimento e de provas. A filosofia cristã da história, desde Agostinho a Hegel, via no surgimento de Cristo o ponto de inflexão e o centro da história mundial. Como tal, é válida apenas para os fiéis cristãos; e se ela reivindica autoridade sobre todos, avançam tanto para uma unidade da humanidade quanto qualquer outro mito que pregue a pluralidade dos princípios e dos fins.
Contra essa e outras filosofias da história semelhantes, que abrigam o conceito de uma única história mundial a partir da experiência histórica de um só povo ou região particular do mundo, Jaspers descobriu um eixo histórico empiricamente dado que oferece a todas as nações “um arcabouço comum de autocompreensão histórica. O eixo da história mundial parece passar pelo século v a.C., em meio ao processo espiritual entre 800 e 200 a.C., — Confúcio e Lao-Tsé na China, os Upanishades e Buda na Índia, Zaratustra na Pérsia, os profetas na Palestina, Homero, os filósofos e os trágicos na Grécia.9 Os acontecimentos ocorridos nesse período apresentavam três características comuns: não tinham nenhuma conexão entre si, constituíram a origem das grandes civilizações históricas mundiais e essas origens, em sua própria diversidade, partilhavam de algo único. Essa identidade singular pode ser abordada e definida de muitas maneiras: é a época em que as mitologias vinham sendo descartadas ou utilizadas para a fundamentação das grandes religiões mundiais, com seu conceito de um Único Deus transcendente; em que a filosofia faz a sua aparição em todos os lugares: o homem descobre o Ser como um todo e a si mesmo como radicalmente diferente de todos os outros seres; em que, pela primeira vez, o homem se torna (nas palavras de Agostinho) uma questão para si mesmo, torna-se consciente da consciência, começa a pensar; em que por todas as partes aparecem grandes personalidades que, aceitas ou não como simples membros de suas respectivas comunidades, se pensam como indivíduos e projetam novos modos individuais de vida — a vida do homem sábio, a vida do profeta, a vida do ermitão que se retira de toda a sociedade e se recolhe numa interioridade e espiritualidade inteiramente novas. Todas as categorias básicas do nosso pensamento e todos os princípios básicos de nossas crenças foram criados naquele período. Foi a época em que a humanidade descobriu pela primeira vez a condição humana na Terra, de modo que, a partir daí, a mera seqüência cronológica dos eventos podia se converter numa estória e as estórias podiam ser elaboradas numa história, num objeto significativo de reflexão e compreensão. O eixo histórico da humanidade, assim, é “um período em torno de meados do último milênio a.C, para o qual tudo o que o precedera parecia ter sido uma preparação, e ao qual realmente remonta tudo o que surgiu, muitas vezes com nítida consciência. A história mundial da humanidade deriva sua estrutura desse período. Não é um eixo que poderíamos dizer permanentemente absoluto e único. Mas é o eixo da curta história mundial que teve lugar até agora, o qual poderia representar, para a consciência de todos os homens, a base da unidade histórica que reconhecem na solidariedade. Esse eixo real seria então a encarnação de um eixo ideal, em torno do qual se une a humanidade em seu movimento”.10
Nessa perspectiva, a nova unidade da humanidade poderia adquirir um passado próprio através de um sistema de comunicações, por assim dizer, onde as diferentes origens da humanidade se revelariam em sua própria identidade. Mas essa identidade está longe de ser uma uniformidade; assim como o homem e a mulher podem ser os mesmos, isto é, humanos, apenas se forem absolutamente diferentes um do outro, da mesma forma o nacional de cada país só pode entrar nessa história mundial da humanidade se permanecer e aderir obstinadamente ao que ele é. Um cidadão do mundo, vivendo sob a tirania de um império mundial, falando e pensando numa espécie de esperanto glorificado, seria tão monstruoso como um hermafrodita. O elo entre os homens, subjetivamente, é a “vontade de comunicação ilimitada” e, objetivamente, o fato da compreensibilidade universal. A unidade e a solidariedade entre a humanidade não podem consistir num acordo universal sobre uma única religião, ou uma única filosofia, ou uma única forma de governo, mas na fé de que o múltiplo aponta para um Uno, simultaneamente oculto e revelado pela diversidade.
A era axial iniciou o desenvolvimento das grandes civilizações mundiais, que, juntas, constituem o que geralmente chamamos de história mundial, e encerrou um período a que chamamos de pré-histórico, devido a esse desenvolvimento posterior. Se pensamos em nossa própria era nos termos desse plano histórico, podemos muito bem chegar à conclusão de que o surgimento da humanidade como uma realidade política tangível marca o fim daquele período da história mundial que se iniciou na era axial. Jaspers, de certa maneira, concorda com o sentimento generalizado de que nossos tempos, de alguma forma, chegaram ao fim, mas discorda da ênfase sobre a ruína que geralmente acompanha tais diagnósticos. “Vivemos como que batendo a portas que ainda estão fechadas para nós.”11 O que aparece tão nitidamente como um fim pode ser mais bem compreendido como um início cujo significado profundo ainda não conseguimos captar. Nosso presente é enfaticamente, e não apenas logicamente, a suspensão entre um não-mais e um ainda-não. O que agora se inicia, após o fim da história mundial, é a história da humanidade. O que isso será ao final, não sabemos. Podemos nos preparar para ela através de uma filosofia da humanidade cujo conceito central seria o conceito de comunicação de Jaspers. Essa filosofia não abolirá, nem sequer criticará, os grandes sistemas filosóficos do passado na Índia, na China e no Ocidente, mas os despirá de suas afirmações metafísicas dogmáticas, as dissolverá, por assim dizer, em correntes de pensamento que se encontram e se cruzam entre si, pondo-os em comunicação recíproca, e finalmente reterá apenas o que é universalmente comunicativo. Uma filosofia da humanidade se distingue de uma filosofia do homem pela sua insistência sobre o fato de que não o Homem falando consigo mesmo no diálogo da solidão, mas os homens falando e comunicando-se entre si habitam a Terra. Evidentemente, a filosofia da humanidade não pode prescrever nenhuma ação política como um dos grandes âmbitos humanos da vida, contra todos os filósofos anteriores que, desde Platão, pensavam a bios politikos como um modo inferior de vida e a política como um mal necessário ou, nas palavras de Madison, “a maior de todas as reflexões sobre a natureza humana”.12
Para apreender a relevância filosófica do conceito de humanidade e cidadania mundial de Jaspers, seria bom lembrar o conceito de humanidade de Kant e a noção de história mundial de Hegel, visto que constituem sua base tradicional adequada. Kant via a humanidade como um possível resultado final da história. A história, diz ele, não ofereceria senão a visão de uma “melancólica casualidade” (“trostloses Ungefähr”) caso não houvesse uma esperança justificada de que as ações avulsas e imprevisíveis dos homens pudessem ao final realizar a humanidade como uma comunidade politicamente unida, ao par do pleno desenvolvimento da qualidade humana do homem. O que se vê das “ações dos homens no grande quadro mundial [...] em geral [parece] tecido de loucura, vaidade pueril, muitas vezes de malícia e destrutividade pueris”, e só pode adquirir sentido se supusermos que existe um secreto “intento da natureza nesse curso sem sentido dos assuntos humanos”,13 que opera por trás dos homens. É interessante notar, e é uma característica da nossa tradição de pensamento político, que foi Kant, e não Hegel, o primeiro a conceber uma astuta força secreta, a fim de encontrar algum sentido na história política. A experiência que se encontra por trás não é senão a de Hamlet: “Nossos pensamentos são nossos, seus fins nada têm com os nossos”, exceto que essa experiência era particularmente humilhante para uma filosofia cujo núcleo era a dignidade e a autonomia do homem. A humanidade, para Kant, era aquele estado ideal num “futuro muito distante”, onde a dignidade do homem coincidiria com a condição humana na Terra. Mas esse estado ideal necessariamente poria um fim à política e à ação política, tais como as conhecemos atualmente e cujas loucuras e variedades são registradas pela história. Kant antevê um futuro muito distante em que a história passada realmente terá se convertido na “educação da humanidade”, segundo as palavras de Lessing. A história humana então não teria maior interesse que a história natural, onde consideramos o estado presente de cada espécie como o telos inerente a todo o desenvolvimento anterior, como seu fim, no duplo sentido da meta e conclusão.
A humanidade para Hegel se manifesta no “espírito universal”; em sua quintessência, ela sempre se encontra aí num dos seus estágios históricos de desenvolvimento, mas nunca pode se tornar uma realidade política. Ela também se realiza por uma astuta força secreta; mas o “ardil da razão” difere da “astúcia da natureza” de Kant na medida em que só pode ser percebida pelo olho contemplativo do filósofo, único para quem adquire sentido a cadeia de acontecimentos aparentemente arbitrários e desconexos. O clímax da história mundial não é o surgimento fático da humanidade, mas o momento em que o espírito universal adquire sua autoconsciência numa filosofia, quando o Absoluto finalmente se revela para o pensamento. A história mundial, o espírito universal e a humanidade dificilmente têm qualquer conotação política na obra hegeliana, apesar dos fortes impulsos políticos do jovem Hegel. Imediatamente, e muito apropriadamente, tornaram-se idéias dominantes nas ciências históricas, mas continuaram sem nenhuma influência notável na ciência política. Foi em Marx, que decidiu “pôr Hegel de novo sobre os pés”, isto é, transformar a interpretação da história no fazer da história, que esses conceitos mostraram sua relevância política. E essa é uma história totalmente diferente. É óbvio que, não importa quão próxima ou distante possa estar a realização da humanidade, só se pode ser um cidadão do mundo dentro da estrutura das categorias kantianas. O melhor que pode acontecer a qualquer indivíduo no sistema hegeliano de revelação histórica do espírito universal é ter a boa sorte de nascer entre as pessoas certas no momento histórico certo, de modo que o seu nascimento coincida com a revelação do espírito universal nesse período particular. Para Hegel, ser um membro da humanidade histórica significava ser um grego, e não um bárbaro, no século v a.C., um cidadão romano, e não um grego, nos primeiros séculos de nossa era, ser um cristão e não um judeu na Idade Média, etc.
Comparado com Kant, o conceito de humanidade e cidadania mundial de Jaspers é histórico; comparado com Hegel, é político. Ele de certa forma combina a profundidade da experiência histórica de Hegel com a grande sabedoria política de Kant. Contudo, o que distingue Jaspers de ambos é decisivo. Ele não crê na “casualidade melancólica” da ação política e das loucuras da história registrada, nem na existência de uma astuta força secreta que dirige o homem para a sabedoria. Abandonou o conceito kantiano de uma “boa vontade” incapaz de ação, por ser baseada na razão. 14 tanto com o desespero como com a consolação do idealismo alemão na filosofia. Se a filosofia deve se tornar ancilla vitae, não há dúvidas sobre a função que tem a preencher: nas palavras de Kant, ela terá antes de “carregar o archote à frente de sua graciosa senhora do que a cauda do seu vestido atrás”.15
A história da humanidade antevista por Jaspers não é a história universal de Hegel, onde o espírito universal usa e consome país após país, povo após povo, nos estágios de sua realização gradual. E a unidade da humanidade em sua realidade presente está longe de ser a consolação ou recompensa por toda a história passada, tal como Kant esperava. Politicamente, a nova unidade frágil realizada pelo domínio técnico sobre o mundo só pode ser assegurada dentro de um quadro de acordos mútuos universais, que finalmente levarão a uma estrutura confederada em escala mundial. Para isso, a filosofia política pouco mais pode fazer além de descrever e prescrever o novo princípio de ação política. Assim como, segundo Kant, não deveria ocorrer nada na guerra que impossibilitasse uma paz e reconciliação futuras, da mesma forma, segundo as implicações da filosofia de Jaspers, na política atual não deveria ocorrer nada contrário à solidariedade realmevnte existente entre a humanidade. A longo prazo, isso pode significar que a guerra deve ser conduzida a partir do arsenal de meios políticos, não só porque a possibilidade de uma guerra atômica ameaçaria a existência de toda a humanidade, mas porque cada guerra, por mais limitada que seja no uso dos meios e territórios, afeta imediata e diretamente toda a humanidade. A abolição da guerra, tal como a abolição de uma pluralidade de Estados soberanos, traria seus próprios perigos particulares; os vários exércitos com suas antigas tradições e códigos de honra mais ou menos respeitados seriam substituídos por forças policiais confederadas, e nossas experiências com os Estados policiais e governos totalitários modernos, onde o antigo poder do exército é eclipsado pela onipotência crescente da polícia, não nos permitem ser demasiado otimistas a respeito dessa perspectiva. Tudo isso, porém, ainda se encontra num futuro muito distante.
 
(Hannah Arendt - Homens em Tempos Sombrios)
 
Notas:
1 Origin and goal of history, pp. 193 e ss.
2 “Idéia de uma história universal sob o ponto de vista cosmopolita” (1784).
3 Ver The great philosophers, vol. i, 1962, vol. ii, 1966.
4 Reason and existence, Nova York, 1955, p. 67.
5 “Grenzenlose Kommunikation” é uma expressão que aparece em quase todas as obras de Jaspers.
6 Cf. “Vom lebendigen Geist der Universität” (1946) in: Rechenschaft und Ausblick (Munique, 1951), p. 185
7 Cf. “Vom lebendigen Geist der Universität” (1946) in: Rechenschaft und Ausblick (Munique, 1951), p. 185.
8 Jaspers não utiliza essa expressão. Freqüentemente menciona que o filosofar é “ação interior”, prática etc. Não posso discutir aqui a relação entre o pensar e o viver. Mas a seguinte frase pode mostrar em que sentido se justificaria meu uso interpretativo de ancilla vitae: “Was im denkenden Leben getan werden muss, dem soll ein Philosophieren dienen, das enrinnernd und vorausgreifend die Wahrheit offenbar macht” [O que deve ser feito na vida do pensamento servirá como uma maneira de filosofar que, pela lembrança e pela previsão, torne evidente a verdade]. Ibid., p. 356.
9 Origin, pp. 1 e s.
10 Ibid., pp. 262 e s.
11 “Vom Europäischen Geist” (1946), in Rechenschaft und Ausblick, p. 260.
12 The Federalist, no 51
13 “Idea for a universal history”, op. cit., Introdução.
14 “[...] a vontade geral reverenciada, mas praticamente ineficaz, que é fundada na razão”, “To eternal peace” (1795), tradução citada a partir de Carl Joachim Friedrich, ed. Modern Library.

publicado às 19:40


Pensamentos de Mark Twain

por Thynus, em 22.09.17
 


Vivamos de tal forma que, quando morrermos, até o agente funerário sinta saudades.

Em questões de Estado, cuide das formalidades e pode esquecer as moralidades.

Uma das notáveis diferenças entre o gato e a mentira é ter o gato apenas nove vidas.  

Mantenha-se afastado das pessoas que tentam depreciar sua ambição. Pessoas pequenas sempre fazem isso, mas as realmente grandes fazem você sentir que você, também, pode se tornar grande.  

A bondade é uma linguagem que o surdo consegue ouvir e o cego consegue ler.  

Daqui vinte anos você estará mais decepcionado pelas coisas que você não fez do que pelas coisas que você fez. Portanto livre-se das bolinas. Navegue longe dos portos seguros. Pegue os ventos da aventura em suas velas. Explore. Sonhe. Descubra.

O homem é o único animal que cora, ou melhor, que tem motivo para corar.

A Bíblia nos ensina a amar o próximo e também a amar nossos inimigos provavelmente porque eles são, em geral, as mesmas pessoas.

A maioria das pessoas se preocupam com passagens da Bíblia que não entendem, mas as passagens que me preocupam são as que eu entendo.

Coragem é resistência ao medo, domínio do medo, e não ausência do medo.  

Você não pode confiar em seus olhos quando sua imaginação está fora de foco.  

São necessários o inimigo e o amigo juntos para ferir-te no coração: o primeiro para caluniar-te, o segundo para vir contar-te.

Se você pega um cachorro faminto e o torna próspero, ele não morderá você. Esta é a principal diferença entre um cachorro e um homem.  

O cão é um cavalheiro, eu espero ir para o céu deles, não para o dos homens.

Sê descuidado no traje, se quiseres, mas conserva limpa a alma.

Supor é bom - descobrir é melhor.  

Uma mentira pode dar a volta ao mundo, enquanto a verdade ainda calça seus sapatos.

Para a maioria de nós, o passado é um lamento, o futuro uma experiência.

A gente não se liberta de um hábito atirando-o pela janela: é preciso fazê-lo descer a escada, degrau por degrau.  

Não te separes das ilusões. Quando elas se forem, talvez continues a existir, mas é certo que já não viverás.

A regra é perfeita: em todos os assuntos de opinião nossos adversários são insanos.  

Em certas circunstâncias, um palavrão provoca um alívio inatingível até pela oração.  

Para Adão, o paraíso era onde estava Eva.

Prefiro o paraíso pelo clima, o inferno pela companhia.  

Só os tolos não são pessimistas.

Sê virtuoso e serás excêntrico.

Primeiro apure os fatos. Depois, pode distorcê-los à vontade.  

A única maneira de conservar a saúde é comer o que não se quer, beber o que não se gosta e fazer aquilo que se preferiria não fazer.

O melhor modo de se animar é tentar animar uma outra pessoa.

Toda vez que você se encontrar do lado da maioria, é hora de parar e refletir.

Um clássico é um livro que as pessoas admiram e não lêem.

Eu sou um homem velho e conheci um grande número de preocupações, mas a maioria delas nunca aconteceu.  

Barulho não prova nada. Uma galinha bota um ovo e cacareja como se estivesse botado um asteróide.  

“Adão e Eva tiveram muitas vantagens, mas a principal foi ter escapado à primeira dentição” 



  • É melhor ficar de boca fechada e parecer um idiota do que abrir a boca e não deixar nenhuma dúvida.
  • Uma boa criação consiste em ocultar o quanto pensamos sobre nós mesmos e o quanto desdenhamos os outros.
  • Sejamos gratos aos tolos. Sem eles não teríamos sucesso!
  • Clássico: um livro que as pessoas elogiam, mas ninguém lê.
  • O homem é o único animal que fica ruborizado. Ou que tem motivos para isso.
  • Tudo o que é humano é patético. O segredo do humor não está na alegria, mas sim na tristeza. Não há humor no céu.
  • Nada precisa de mais reforma do que os hábitos dos outros.
  • Num primeiro momento Deus fez os idiotas. Só para praticar. Depois fez os conselhos escolares e os colegiados.
  • Milhares de gênios vivem e morrem sem ser descobertos — por eles mesmos ou pelos outros.

                 

publicado às 02:48

 
 
“Joie de Vivre” de Matisse
 
Revistas como a Playboy não são “revistas de sexo”. São revistas em que um bom fotógrafo expõe sua arte por meio de uma bela modelo. Quando se trata de retratar o sexo, mesmo, o melhor que temos não são as publicações que a linguagem popular, já tendendo ao chulo, chama de “revistas de mulher pelada”. E também não podemos procurar o retrato do sexo em publicações médicas ou próximas disso, em forma de medicina de autoajuda, em que o sexo é vestido de branco e está sempre na fronteira entre saúde e doença. Quando quero o melhor do retrato do sexo, no âmbito das publicações, vou direto a santo Agostinho. Não devemos negligenciar experts.
 
Santo Agostinho diz que a “luxúria” pode ser utilizada a respeito de muitas coisas, mas, quando a palavra aparece sozinha, o que nos vem à mente é somente o desejo “que excita as partes vergonhosas do corpo”. E ele continua:
Contudo, essa luxúria afirma seu poder não somente sobre o corpo inteiro, não só externamente, mas também a partir de dentro. Ela convulsiona por inteiro um homem quando a emoção em sua mente se une e combina com um sentido carnal de produzir um prazer insuperável entre todos os prazeres do corpo. O efeito disso é que no inteiro momento desse clímax há uma quase total eclipse de atenção e, enquanto ele dura, de qualquer alerta.4
 
Não tenho dúvida de que, entre os filósofos, Agostinho é daqueles que melhor escolhe as palavras para a representação de vários sentimentos e estados psicológicos. Quanto ao sexo, ele também acerta – ou quase. Todavia, ainda aqui, como em outras de suas descrições, Agostinho se esquece de que o sexo não tem a ver com sentimento e sensação apenas, mas com relação. Contudo, a maneira de Agostinho descrever o sexo fez história. Em geral, também é assim que os agentes da ciência moderna falam de sexo, como se fosse antes uma masturbação, algo da realização individual e solitária, e não uma atividade que envolve uma relação e uma parceria. Essa tradição de descrição que vem de Agostinho ganhou a conversação médica e de sexólogos, que se dedicam a fazer uma descrição do ato sexual como quem quer apenas informar um virgem ou um anorgásmico a respeito do que se trata. Isso não serve para a filosofia.
 
A descrição do ato sexual não pode se reduzir à exposição do que sente um parceiro do sexo, como se estivesse sozinho no ato sexual, ainda que tal exposição seja feita acuradamente. Trata-se de uma descrição errada, talvez produzida por uma maneira pouco sofisticada de fazer sexo, uma maneira que as mulheres de hoje poderiam classificar de “machista” ou simplesmente como a de quem deveria ser chamado de “ruim de cama”.
 
É evidente que não podemos saber o que o parceiro sente no sexo, tanto quanto em qualquer outra atividade em que ocorrem “sensações internas”, digamos assim. Mas isso não nos impede de criar inferências – se não fossem elas, o que seria de nossa capacidade de observação? Serviria para pouca coisa. Portanto, por meio da experiência, podemos atribuir ao ato sexual mais do que aquilo que está na descrição de Agostinho. Podemos falar de um progresso no processo de obter prazer, que é provocado não só pelo que ganhamos do outro em termos de afecção física, mas do que ganhamos do outro devido a seu feedback positivo. Assim, quando entramos em uma situação de prazer máximo, ou seja, de orgasmo, sabemos que iremos potencializá-lo se o parceiro nos der sinais de que também ele está em seu momento máximo. O ato sexual é sui generis, porque nele o prazer não é obtido pelo “arrancar proveito” de modo unilateral, mas pela elevação do proveito por causa do aumento do proveito do outro. Quem faz sexo regularmente verbaliza que vai chegar ao orgasmo, informando ao parceiro o que está se passando, e o faz temeroso de que os sinais corporais que está transmitindo não sejam perceptíveis ao parceiro. Faz-se isso porque é sabido, perfeitamente, que o sexo funciona na potencialização do prazer mútuo. É difícil encontrar um mecanismo na natureza mais dependente de feedbacks mútuos instantâneos que o ato sexual.
 
É tomando esse detalhe em consideração, levando-o a sério, que considero interessante observar melhor as questões a respeito da objetificação.
 
O que é objetificação? Uma boa parte das feministas, atualmente, prefere associar a denúncia da objetificação antes a Kant que a Simone de Beauvoir. O teórico liberal, menos radical que a feminista existencialista-marxista, tem se tornado o preferido do novo feminismo acadêmico norte-americano. Não penso ser errado tomar a fala de Martha Nussbaum como representativa de uma boa parte das feministas acadêmicas atuais. Nussbaum entende que a noção de objetificação é um guarda-chuva sob o qual há uma complexidade de comportamentos provocantes, mas não deixa de expor um que é atinente ao caso que nos importa aqui. Ela diz que “o que é fundamentalmente errado em um indivíduo tratar uma mulher como uma coisa sexual é o fato de que está tratando com um ser humano – que deveria ser tratado também como um fim – como um mero meio dos seus propósitos”5. Ela, de modo explícito, lança mão de Kant para justificar essa sua denúncia do erro: “Podemos divergir de Kant sobre sexo enquanto concordamos com ele sobre o problema ético central: as pessoas frequentemente usam umas às outras como meros instrumentos de suas próprias satisfações durante relações sexuais, e isto é sempre algo ruim”6.
 
Temo que essa abordagem de Nussbaum sobre Kant seja um pouco forçadamente restrita. Mas, enfim, se pudermos aceitar essa sua interpretação e ficarmos só nela, teríamos mesmo de condenar a objetificação?
 
Kant salva o sexo da objetificação por meio do amor e do casamento. Nussbaum também iria por essa via? Ela não vai aos detalhes de Kant, que, a meu ver, até ajudam nas questões de objetificação. Não fala, como Kant, no amor e no casamento como saídas para a moralização do sexo. Teria ficado com medo de falar sobre isso e, não tendo o som da voz de Kant, soar piegas e “moralista”, em um sentido pejorativo e não filosófico? Não sei. Mas sei que Nussbaum acredita que a máxima universal de Kant é boa, e ela até dá a impressão de que é suficiente, se acoplada a outros detalhes de perquirições éticas. Não tratar o outro como meio seria uma norma geral a ser cuidada.
 
Creio que essas discussões, não raro, perdem-se no verbalismo exatamente porque, implícita ou explicitamente, o que é tomado como sexo está sob a sombra da tradição descritiva de santo Agostinho. O sexo aparece como algo da ordem da masturbação, não da ordem das relações. É como se fosse possível fazer sexo, sempre, como uma forma de arrancar prazer do outro como um ato de quem rouba e maltrata. Portanto, o sexo seria moralizado em favor da proteção dos envolvidos. Kant viria com a obrigação do amor e do casamento (ver Capítulo 15). Nussbaum, por sua vez, viria com a regra da moral kantiana da “não transformação do ser humano em mero meio”. Sem essas duas regras postas como espadas na cabeça de quem faz sexo, este, o usuário da prática sexual, se transformaria em besta selvagem a se esfregar na cama; então, viveria infeliz e degradado, e, pior, talvez se imaginasse feliz e honrado. Essa imagem é exagerada, mas penso que é assim, no limite, que as sugestões de Kant e de Nussbaum terminam se levarmos a certo ponto o discurso deles. Contudo, se deixamos a descrição de Agostinho de lado e consideramos minha própria descrição do sexo como relação, tudo muda.
 
Tomo a minha descrição, não a de Agostinho, e eis como meu entendimento moral muda.
 
Acabo de fazer sexo. Posso não ter amor no sexo que acabou de ser realizado. Posso não ter o compromisso de casamento com quem, neste momento, ainda está na cama comigo. Posso não ter nenhuma guilhotina sobre a minha cabeça, nesse momento, com a inscrição “Não faça do outro um meio”. Esses três elementos podem não estar presentes e, ainda assim, eu e minha parceira sexual, muito bem conscientes, conseguimos fazer sexo e, agora, vamos sair da cama com plena convicção de que seria ridículo achar que nos prejudicamos ou que prejudicamos o mundo, que nos degradamos ou que vamos degradar o mundo. Os mecanismos de feedback do próprio ato sexual foram deixados livres; utilizamo-nos deles como experts que somos na atividade sexual, uma vez que somos adultos e com razoável maturidade sobre o que fazemos e como fazemos, e por isso nos realizamos. Então, desejamos, sempre que possível, voltar a nos encontrar sexualmente. Deveríamos, após isso, sair da cama acreditando que seríamos mais felizes se tivéssemos cedido aos apelos de Kant e Nussbaum? Teríamos sido verdadeiramente éticos se tivéssemos seguido os três mandamentos vindos deles dois? Duvido.
 
É evidente que isso, o sexo que acabamos de fazer, pode evoluir para amor, até para casamento. Mas, quanto “a fazer do outro um meio”, seria difícil não ver que o próprio mecanismo de feedback, inerente ao ato sexual, permite e proíbe que tal ocorra. Sem fazer do outro objeto sexual, em determinado nível, o outro não terá prazer, e aí sim estará sendo tratado como coisa. Mas, ao mesmo tempo, quando é tratado como coisa, ele é tocado do modo que mais quer, e, ao ser visto como coisa, desperta para o prazer e se toma, portanto, como realizado no sexo. Nessas horas há grande chance de o que entendemos modernamente como amor venha a surgir. É claro que o amor não é um sentimento somente, é uma relação, então, terminado o sexo, podemos ponderar a dois que o amor que surgiu ali, como sentimento, não pode ir além como uma relação mais complexa – e isso por uma série de motivos que extrapolam a cama. Muitas vezes, deixamos de lado todos esses motivos e permitimos que a paixão que surgiu dali comande nossas vidas. Seria um tanto esquisito, a essa altura, nessa descrição, acreditar que, agindo assim, estaríamos em dívida para com uma moral válida.
 
Talvez esteja na hora de as feministas, como Nussbaum, não se livrarem de Kant, mas se livrarem da posição acrítica com que engoliram a tradição agostiniana de descrever o sexo. Talvez seja isso que esteja atrapalhando o neokantismo de Nussbaum, fazendo-a bater na tecla de algo que nem mesmo Kant chegou a advogar com tanta restrição. Algo que daria, penso eu, uma nova ética para o sexo. E mais chances, então, para o amor e o casamento.

( Paulo Ghiraldelli Junior - Como a Filosofia pode explicar o Amor)
 

[4] Augustine. The City of God. In: Solomon, R. e Higgins, K. The Philosophy of (Erotic) Love. Kansa City: University of Press of Kansas, 1991, p. 45.
[5] Nussbaum, M. Feminism, Virtue and Objectification. In: Halwani, R. Sex and Ethics. Nova York: Palgrave McMillan, 2007, p. 50-51.
[6] Nussbaum, M. Feminism, Virtue and Objectification. In: Halwani, R. Sex and Ethics. Nova York: Palgrave McMillan, 2007, p. 51.
 
Beleza e desejo sexual

publicado às 18:30


Diário de Eva

por Thynus, em 21.09.17
Traduzido do original
 

Sábado Estou com quase um dia de vida agora. Cheguei ontem. Ao menos é o que parece. E deve ser isso mesmo, pois se houve um dia antes do de ontem eu não estava lá para ver, ou me lembraria dele. Mas pode ser, claro, que tenha havido um dia antes de ontem e eu simplesmente não tenha notado. Muito bem; vou ficar de olho, e se algum dia antes de ontem acontecer, vou tomar nota. É melhor começar direito e não deixar os registros ficarem confusos, meu instinto me diz que esses detalhes ainda vão ser importantes para os historiadores um dia. Me sinto como um experimento, exatamente como um experimento; seria impossível alguém se sentir mais como um experimento do que eu. Por isso começo a ficar convencida de que é exatamente isso que eu sou — um experimento e nada mais.
Se eu for mesmo um experimento, será que sou o único? Não, acho que não. Acho que o resto faz parte também. Sou a principal, mas acho que o resto também tem a ver com o assunto. Será que a minha posição está assegurada, ou devo ficar de olho e tomar cuidado? Prefiro ficar de olho. O instinto me diz que a vigilância eterna é o preço da supremacia. (Acho que essa é uma boa frase para alguém tão jovem como eu.)
Tudo está mais bonito hoje do que ontem. Na pressa de terminar ontem, as montanhas ficaram um pouco picotadas, e algumas planícies ficaram tão abarrotadas de lixo e sobras que o aspecto ficou meio desolador. Peças de arte nobres e belas não devem ficar sujeitas à pressa; e este majestoso novo mundo é mesmo um nobre e belo trabalho. E certamente maravilhoso, chegando quase à perfeição, apesar de ter sido feito em tão pouco tempo. Há estrelas demais em algumas partes e de menos em outras, mas isso pode ser remediado logo, sem dúvida. A lua se soltou ontem, e caiu fora do esquema — uma grande perda; me corta o coração pensar nisso. Não há nada entre os ornamentos e decorações comparável a sua beleza e acabamento. Devia ter sido mais bem fixada. Ah, se conseguíssemos pegá-la de volta.
Mas não dá para saber onde foi parar. Além do mais, quem a pegar vai escondê-la; sei disso porque faria o mesmo. Acho que poderia ser honesta em relação a tudo o mais, mas já descobri que a essência e o centro da minha natureza é o amor pelo belo, uma paixão pelo belo, e que não seria seguro confiar em mim em posse de uma lua que pertencesse a outra pessoa que não soubesse que ela estava comigo. Eu poderia abrir mão de uma lua que eu achasse durante o dia, pois teria medo de que alguém estivesse vendo; mas, se eu a achasse na escuridão, tenho certeza de que inventaria uma desculpa para não ter que dizer nada a respeito. Porque eu adoro as luas, elas são tão lindas, tão românticas. Gostaria que tivéssemos cinco ou seis delas; eu nunca mais iria dormir; não me cansaria nunca de ficar deitada sobre os musgos, olhando para elas.
As estrelas são bacanas também. Gostaria de ter algumas para pôr no cabelo. Mas acho que nunca vou conseguir. Você ficaria surpreso de saber como elas estão longe daqui, apesar de não parecerem tão distantes. Quando elas apareceram pela primeira vez, ontem à noite, tentei derrubar algumas usando um bambu, mas não era comprido o bastante, o que me deixou surpresa; então tentei atirar uns torrões nelas, até cansar, mas não consegui derrubar nenhuma. Deve ser porque sou canhota e não arremesso bem. Mesmo quando mirei numa outra, para ver se acertava finalmente a que queria, não consegui. Vi a mancha preta do torrão passar bem no meio daquele conglomerado dourado; fiz isso umas quarenta ou cinquenta vezes, mas passava de raspão; se tivesse aguentado um pouco mais, talvez conseguisse acertar uma em cheio.
Por isso chorei um pouco, o que é natural, suponho, para alguém da minha idade, e depois de descansar acabei pegando uma cesta e fui caminhando em direção à borda do círculo, lá onde as estrelas ficam perto do solo, achei que poderia pegar com as mãos. Isso seria melhor, daria para reuni-las com cuidado, de modo que não quebrassem. Mas era mais longe do que eu pensava, e acabei desistindo; estava tão cansada que não conseguia dar mais nem um passo. Além disso, tinha os pés muito inchados e doloridos.
Não pude voltar para casa; era muito longe, estava esfriando, mas achei uns tigres e me aninhei entre eles; foi adoravelmente confortável, seu hálito era doce e agradável, porque só comem moranguinhos. Nunca tinha visto um tigre antes, mas conheci logo pelas listras. Se conseguisse uma dessas peles, faria um belo vestido para mim.
Hoje já tenho uma noção melhor das distâncias. Andava tão louca para pegar tudo que achava bonito, tentava alcançar, ávida, mas quando algumas dessas coisas estavam fora do meu alcance ou, ao contrário, quando pareciam estar só a uns dois metros de distância — mas entre espinhos —, foi aí que aprendi uma lição. Fiz até um axioma, de cabeça — o meu primeiro: o experimento arranhado evita o espinho. Acho que está muito bom para alguém da minha idade.
Segui o outro experimento por aí, ontem à tarde, a distância, para tentar entender para que ele tinha sido feito. Mas não consegui descobrir. Acho que é um homem. Nunca tinha visto um, mas parecia ser, e tenho quase certeza de que era mesmo. Sinto que tenho mais curiosidade com relação a ele do que com relação aos outros répteis. Suponho que seja um, pois tem cabelo desgrenhado e olhos azuis e se parece com um réptil. Não tem ancas, se afina como uma cenoura, se abre como um guindaste; acho que é um réptil, mas pode também ser uma obra arquitetônica.
No começo tinha medo dele, e corria cada vez que ele se virava, com medo de que me perseguisse; aos poucos fui notando que a criatura só queria fugir; depois, quando minha timidez diminuiu, eu o segui por horas e horas, sempre uns vinte metros atrás, o que o deixou nervoso e infeliz. A certa altura, ele estava bastante preocupado e subiu numa árvore. Esperei um bom tempo, mas acabei desistindo e fui para casa.
Hoje, a mesma coisa. Por minha causa, subiu outra vez na árvore.
Domingo Esse ser ainda está lá em cima. Descansando, parece. Mas isso é um pretexto: domingo não é dia de descanso. O sábado é que foi escolhido para isso. Ele demonstra estar mais interessado em descansar do que em qualquer outra coisa. Eu ficaria cansada de tanto descansar. Me canso só de ficar sentada olhando para a árvore. Me pergunto para que afinal ele serve. Nunca o vejo fazendo coisa nenhuma.
Eles devolveram a lua ontem à noite, fiquei tão contente! Acho que foi muito honesto da parte deles. Ela escorregou e caiu de novo, mas não me incomodei; não é preciso se preocupar quando se tem vizinhos assim; eles vão pegar de volta. Gostaria de poder fazer alguma coisa para expressar minha gratidão. Gostaria de mandar algumas estrelas para eles, temos muito mais do que precisamos. Quer dizer, eu, não nós, pois dá para perceber que aquele réptil não se interessa por nada disso.
Ele não tem gostos refinados, nem mesmo é gentil. Quando fui lá ontem à noite, na hora do crepúsculo, ele tinha descido e estava tentando pegar aqueles peixinhos manchados que brincam no lago; tive que afugentá-lo com torrões para que subisse na árvore outra vez e os deixasse em paz. Fico pensando se é para isso que ele serve. Será que não tem coração? Não tem compaixão por essas pequenas criaturas? Será que foi projetado para um trabalho tão desumano? Parece que sim. Um dos torrões o atingiu atrás da orelha, e ele fez uso da linguagem. Fiquei emocionada, foi a primeira vez que ouvi alguém falar, além de mim. Não entendi as palavras, mas pareciam bem expressivas.
Quando descobri que sabia falar, fiquei mais interessada nele, pois eu adoro falar; falo o dia inteiro, até quando estou dormindo. Sou muito interessante, mas se tivesse alguém com quem conversar poderia ser duplamente interessante, e não pararia nunca se ele também quisesse conversar.
Se esse réptil for mesmo um homem, não poderá mais ser chamado de coisa, isso não seria gramatical, seria? Isso seria um ele. Pelo menos é o que eu acho. Nesse caso, teríamos que chamá-lo assim: no nominativo, ele; no dativo, lhe; no possessivo, seu. Bom, vou considerá-lo um homem e chamá-lo de ele até descobrir o que é de verdade. É mais prático do que ficar em dúvida.
Domingo da semana seguinte Passei a semana na cola dele, para nos conhecermos melhor. Eu é que tinha que ficar puxando conversa, porque ele era tímido, mas não me importei. Ele parecia feliz por eu estar próxima, e usei bastante o sociável “nós”, porque ele parecia gostar de se sentir incluído.
Quarta-feira Agora estamos nos acertando muito bem mesmo, e nos conhecendo cada vez mais. Ele não me evita mais como antes, o que é um bom sinal; demonstra que gosta de me ter por perto. Isso me agrada, eu me esforço para ser útil no que puder, de modo que seu apreço por mim aumente. Durante os últimos dois dias assumi a tarefa de nomear as coisas, o que lhe trouxe muito alívio, porque ele não leva muito jeito para isso. Evidentemente está muito grato. Não consegue pensar em nenhum nome racional para desmentir essa impressão de que lhe falta talento. Mas não deixo que perceba que estou ciente desse seu defeito. Sempre que aparece uma nova criatura eu já dou um nome, antes que ele tenha tempo de se expor com aquele silêncio desconcertante. Assim, já o poupei de muitos embaraços. Eu não tenho um defeito como esse. No momento em que ponho os olhos num animal, já sei o que é. Não preciso refletir nem por um segundo; o nome certo vem instantaneamente, como uma inspiração, e é isso que deve ser, uma inspiração, pois tenho certeza de que não estava dentro de mim nem meio minuto antes. Parece que só pelo formato da criatura e pelo jeito como ela age sei que animal é.
Quando o dodô apareceu, ele pensou que fosse um gato selvagem — eu vi nos seus olhos. Mas eu o poupei. Fui cuidadosa em fazer isso de maneira que não ferisse seu orgulho. Simplesmente falei de um jeito bem natural, como uma surpresa agradável, e não como se estivesse querendo lhe passar uma informação: “Ora, veja se não é um dodô!”. Então expliquei — sem que parecesse uma explicação — como eu sabia que era um dodô, e, mesmo percebendo que ele estava um pouco incomodado por eu saber que criatura era aquela, ficou evidente que ele me admirava. Que sensação prazerosa! E fiquei me lembrando disso, antes de dormir, com enorme satisfação. Como algo tão insignificante pode nos deixar tão felizes, especialmente quando nos sentimos merecedores.
Quinta-feira Minha primeira mágoa. Ontem ele me evitou e pareceu querer que eu não falasse mais com ele. Não pude acreditar, pensei que havia algum engano, eu adorava ficar com ele, e adorava ouvi-lo falar, por isso não conseguia entender por que tanta antipatia em relação a mim quando eu não havia feito nada. Mas essa sensação acabou se confirmando, então decidi ir embora e me sentei sozinha naquele lugar de onde o avistei pela primeira vez naquela manhã em que fomos feitos e eu não sabia ainda o que ele era e fiquei indiferente; mas agora esse lugar estava carregado de tristeza, e tudo ali me fazia lembrar dele; meu coração estava sofrendo. Eu não sabia muito bem por quê, pois era um sentimento novo, que eu jamais havia sentido, era um mistério que eu não conseguia decifrar.
Quando a noite chegou, não suportei mais a solidão e fui ao novo abrigo que ele construiu para perguntar o que eu tinha feito de errado e como repará-lo e fazer com que fosse amável comigo de novo. Mas ele me pôs para fora, na chuva; e foi essa a minha primeira mágoa.
Domingo Está tudo bem de novo e estou feliz; mas aqueles foram dias bem difíceis, e evito pensar neles.
Tentei pegar umas daquelas maçãs para ele, mas minha mira não é muito boa. Fracassei, mas acho que a boa intenção o agradou. Elas são proibidas, e ele diz que isso vai me prejudicar, mas se vou me prejudicar tentando agradá-lo, por que devo me importar com esse tipo de dano?
Segunda-feira Esta manhã eu lhe disse meu nome, na esperança de que ficasse interessado, mas ele não deu a mínima. É estranho. Se me dissesse seu nome, eu me interessaria. Acho que o som do nome dele seria mais agradável para meus ouvidos do que qualquer outro som.
Ele fala bem pouco. Talvez seja porque não é muito inteligente e, como é muito sensível com relação a isso, tenta disfarçar. É uma pena que se sinta assim, porque inteligência não é nada; é no coração que estão os valores. Gostaria de poder fazê-lo entender que um coração amoroso é riqueza mais que suficiente, e que sem isso o intelecto é pobreza.
Embora fale tão pouco, tem um vocabulário considerável. Esta manhã usou uma palavra surpreendentemente boa. Ele, claro, se deu conta disso, pois a usou duas vezes depois, tentando aparentar casualidade. Não se saiu muito bem, mas ainda assim demonstrou possuir alguma percepção. Sem dúvida essa semente pode germinar, se cultivada.
De onde ele tirou aquela palavra? Não me lembro de tê-la usado alguma vez.
Não, ele não mostrou o menor interesse pelo meu nome. Tentei disfarçar minha decepção, mas acho que não consegui. Saí e me sentei num montículo de musgos, com os pés na água. É para lá que eu vou quando necessito de companhia, quando quero ver alguém, conversar um pouco. Aquele lindo corpo branco pintado na água não é suficiente — mas é melhor que nada, é melhor que a solidão absoluta. Ele fala quando eu falo; fica triste quando eu fico; me conforta com sua compaixão; diz: “Não fique abatida, pobre menina sem amigos”. Ela é uma boa amiga para mim, minha única amiga, ela é minha irmã.
Na vou esquecer nunca, nunca mesmo, da primeira vez que ela me abandonou. Meu coração estava como chumbo dentro do corpo. “Ela era tudo o que eu tinha, e foi embora!” Em desespero eu disse: “Você parte meu coração; não consigo mais suportar esta vida!”, e escondi o rosto entre as mãos, desconsolada. Quando retirei as mãos do rosto, depois de um tempo, ali estava ela novamente, branca, brilhante e bonita, e eu me joguei em seus braços!
Senti então a felicidade plena; eu já conhecia a felicidade, mas nunca daquele modo, aquele êxtase. Nunca mais duvidei dela depois disso. Às vezes, ela ficava distante — talvez uma hora, às vezes o dia inteiro, mas eu esperava e não duvidava; eu dizia: “Ela deve estar ocupada, ou viajando, mas voltará”. De fato: ela sempre voltava. À noite, se estivesse escuro, não voltava, pois era uma criaturinha tímida, mas quando a lua aparecia ela vinha. Não tenho medo da noite, mas ela é mais jovem do que eu, nasceu depois de mim. Foram muitas as visitas que lhe fiz; ela é meu consolo e refúgio quando a vida está difícil — é isso que ela é.
Terça-feira Passei a manhã toda trabalhando para melhorar a propriedade, e fiquei longe dele de propósito, na esperança de que se sentisse sozinho e viesse ao meu encontro. E nada.
Ao meio-dia dei minhas atividades por encerradas e me entretive saltitando com as abelhas e as borboletas e me divertindo entre as flores, essas maravilhosas criaturas que captam o sorriso de Deus e o preservam! Eu as colhi e trancei em coroas e guirlandas e me vesti com elas enquanto lanchava — maçãs, obviamente; depois me sentei à sombra, ansiosa, esperando. Mas ele não apareceu.
Não faz mal. Não teria dado em nada mesmo, pois ele não gosta de flores. Ele as chama de lixo, e não consegue distinguir umas das outras, acha que por ser assim é superior. Não gosta de mim, não gosta de flores, não gosta da pintura do céu ao anoitecer — será que há algo de que ele goste afora construir cabanas onde se enfiar para se proteger da chuva boa e límpida, apalpar melões e selecionar uvas, para ver como esses frutos estão se desenvolvendo?
Coloquei um galho seco no chão e tentei fazer um buraco com a ajuda de outro galho, para testar uma ideia. De repente levei um susto. Uma película transparente e azulada surgiu do buraco; larguei tudo e corri! Achei que fosse um espírito, fiquei muito assustada! Olhei para trás, ele não estava me seguindo; então me escorei numa pedra e descansei, ofegante, e esperei até minhas pernas pararem de tremer, aí voltei com cuidado, alerta, olhando tudo, pronta para correr se fosse o caso; quando cheguei perto, afastei uns galhos de roseiras e espiei — desejando que o homem estivesse por ali, pois eu estava tão linda e atraente —, mas o espírito tinha desaparecido. Fui até lá; havia um punhado de um pó delicado, cor-de-rosa, no buraco. Coloquei o dedo nele para sentir a textura, gritei ai! e retirei o dedo. A dor foi cruel. Pus o dedo na boca e, pisando primeiro num pé, depois noutro, gemendo, eu logo aliviei a dor; então, cheia de interesse, comecei a examinar aquilo de novo.
Estava curiosa para descobrir o que era esse pó rosa. De repente o nome me ocorreu, embora nunca o tivesse ouvido. Era fogo! Impossível alguém estar mais certo sobre qualquer coisa neste mundo do que eu estava naquele momento. Então, sem hesitar, chamei aquilo de fogo.
Tinha criado algo que não existia antes; acrescentei algo novo aos inúmeros bens deste mundo; me dei conta disso e fiquei orgulhosa da minha invenção, queria correr e encontrá-lo para falar dela, talvez subisse em seu conceito — mas refleti e acabei desistindo. Não, ele não se interessaria. Ele perguntaria para que serve, e o que eu poderia responder, já que não era bom para nada, era apenas belo, meramente belo.
E assim suspirei e não fui. Pois não servia para nada; não servia para construir uma cabana, não ajudaria no desenvolvimento dos melões, não apressaria a colheita dos frutos; não tinha utilidade, era pura bobagem e vaidade; ele desprezaria minha invenção e diria palavras rudes. Mas para mim não era algo desprezível. Eu disse: “Oh, fogo, eu te amo, delicada criatura rosa, por ser belo — e basta!”, e quase o acolhi em meu peito. Mas me contive. E então me veio à cabeça outra máxima. Mas, como era tão parecida com a primeira, tive medo de que não passasse de plágio: “O Experimento queimado evita o fogo”.
Voltei à labuta, e quando obtive bastante pó de fogo outra vez, despejei sobre minha mão coberta com grama seca, na intenção de assim poder carregá-lo até em casa, para tê-lo sempre ao meu lado e poder brincar com ele; mas uma brisa atiçou o fogo, espalhando-o em minha direção; larguei tudo e corri. Quando me voltei, o espírito azul estava se elevando, se esticando e se espalhando como uma nuvem, e na hora pensei em um nome para ele — fumaça! —, e, palavra de honra, nunca tinha ouvido falar em fumaça.
Logo labaredas amarelas e vermelhas brilhantes ascendiam por entre a fumaça, e imediatamente eu as batizei de chamas, e eu estava certa de novo, apesar de serem as primeiras que surgiram no mundo. Elas subiram pelas árvores e flamejaram esplendidamente para dentro e para fora daquele vasto e crescente volume de fumaça; e só me restava bater palmas, rir e dançar em meu êxtase; era tudo tão novo e estranho, tão maravilhoso e belo!
Ele veio correndo, parou e olhou, mas não disse uma palavra.
E assim suspirei e não fui. Pois não servia para nada; não servia para construir uma cabana, não ajudaria no desenvolvimento dos melões, não apressaria a colheita dos frutos; não tinha utilidade, era pura bobagem e vaidade; ele desprezaria minha invenção e diria palavras rudes. Mas para mim não era algo desprezível. Eu disse: “Oh, fogo, eu te amo, delicada criatura rosa, por ser belo — e basta!”, e quase o acolhi em meu peito. Mas me contive. E então me veio à cabeça outra máxima. Mas, como era tão parecida com a primeira, tive medo de que não passasse de plágio: “O Experimento queimado evita o fogo”.
Voltei à labuta, e quando obtive bastante pó de fogo outra vez, despejei sobre minha mão coberta com grama seca, na intenção de assim poder carregá-lo até em casa, para tê-lo sempre ao meu lado e poder brincar com ele; mas uma brisa atiçou o fogo, espalhando-o em minha direção; larguei tudo e corri. Quando me voltei, o espírito azul estava se elevando, se esticando e se espalhando como uma nuvem, e na hora pensei em um nome para ele — fumaça! —, e, palavra de honra, nunca tinha ouvido falar em fumaça.
Logo labaredas amarelas e vermelhas brilhantes ascendiam por entre a fumaça, e imediatamente eu as batizei de chamas, e eu estava certa de novo, apesar de serem as primeiras que surgiram no mundo. Elas subiram pelas árvores e flamejaram esplendidamente para dentro e para fora daquele vasto e crescente volume de fumaça; e só me restava bater palmas, rir e dançar em meu êxtase; era tudo tão novo e estranho, tão maravilhoso e belo!
Ele veio correndo, parou e olhou, mas não disse uma palavra por vários minutos. Depois perguntou o que era. Ah, foi lamentável ele ter perguntado de modo tão direto. Tive de responder, claro, e respondi. Disse a ele que era fogo. Se ele se incomodou por eu saber e ele ter de perguntar, não foi culpa minha; eu não tinha a menor intenção de aborrecê-lo. Depois de uma pausa ele perguntou:
“Como foi que apareceu?”
Outra pergunta direta, mais uma resposta direta.
“Fui eu que inventei.”
O fogo se espalhava cada vez mais. Ele foi até a beira do lugar que estava em chamas e, olhando para baixo, disse:
“E o que é isso?”
“São pedaços de carvão.”
Pegou um para examinar, mas mudou de ideia e colocou de volta no chão. Foi embora. Não tem interesse por nada mesmo.
Eu, porém, estava interessada. Havia cinzas — de uma cor meio cinza e suave, delicadas e bonitas —, e de imediato eu sabia o que eram. E as brasas; eu conhecia as brasas também. Achei minhas maçãs e ajuntei-as, estava contente, porque ainda sou muito jovem e meu apetite é grande. Mas fiquei frustrada, elas tinham estourado e estavam podres. Aparentemente podres; mas na verdade não, estavam até melhores do que as cruas. O fogo é lindo; e acho que algum dia ainda vai ser útil.
Sexta-feira Eu o vi novamente, por alguns instantes; na segunda-feira passada, ao anoitecer, também, mas só por um momento. Esperava que ele me elogiasse por tentar melhorar a propriedade, minhas intenções eram as melhores e eu me esforcei bastante. Mas ele não estava satisfeito, deu meia-volta e foi embora. Ele também estava chateado por outra razão; tentei mais uma vez convencê-lo a não atravessar mais as cataratas. Isso porque o fogo me revelou uma nova paixão — bem nova mesmo, e marcadamente diferente do amor, da tristeza, e desses outros sentimentos que eu já conhecia — o medo. Era horrível! — queria nunca ter descoberto, me traz momentos obscuros, estraga a minha felicidade, me dá arrepios, tremores. Mas não consegui dissuadi-lo, ele ainda não descobrira o medo, e assim não tinha como me entender.

(Mark Twain - Diários de Adão e Eva) 
 

publicado às 15:42


Fragmentos do diário de Adão

por Thynus, em 21.09.17
A primeira menção autêntica às cataratas do Niágara
traduzido do manuscrito original por Mark Twain
 

Segunda-feira Esta nova criatura de cabelos longos está sempre no meu caminho e me seguindo para cima e para baixo. Não gosto disso, não estou acostumado a ter companhia. Preferiria que ficasse com os outros animais… Hoje está nublado e o vento sopra do leste; acho que nós vamos ter chuva… Nós? De onde tirei essa palavra? Ah, me lembro agora, é a nova criatura que a usa.
Terça-feira Andei examinando as enormes cachoeiras. É o que há de mais bonito na propriedade, acho. A nova criatura as chama de cataratas do Niágara — por quê? Eu é que não sei. Ela diz que se parecem com as cataratas do Niágara. Isso não é explicação que se dê; é puro capricho e imbecilidade. Não tenho chance de dar nome a nada. A nova criatura dá nome a tudo que lhe aparece na frente, antes mesmo de eu poder protestar. E usa sempre o mesmo pretexto de que se parece com a coisa. O dodô, por exemplo. Ela diz que é só olhar para ele que a gente vê que “ele se parece com um dodô”. Vai ter de ficar com esse nome, sem dúvida. Me cansa ficar remoendo isso, até porque não me faz bem. Dodô! Não se parece mais com um dodô do que eu!
Quarta-feira Construí uma cabana para me proteger da chuva, mas não pude ficar com ela só para mim, em paz. A nova criatura já se enfiou aqui. Quando tentei expulsá-la, começou a jorrar água por aqueles dois buracos por onde ela olha, e enxugava com o dorso das patas, fazendo um barulho que mais parecia o de animais quando estão inquietos. Eu queria que essa coisa não falasse; fica o tempo todo falando. Parece um golpe baixo contra a pobre criatura, um insulto, mas não é isso que quero dizer. É que até agora eu nunca tinha ouvido a voz humana, e qualquer som novo ou estranho se impondo aqui sobre a solene tranquilidade dessas sonhadoras solidões fere meu ouvido e parece desafinado. E esse novo som está tão próximo de mim, sobre meu ombro, bem no meu ouvido, primeiro de um lado, depois do outro, e só estou acostumado a sons que estejam mais distantes de mim.
Sexta-feira Essa mania de dar nome às coisas continua sem parar, independente do que eu fizer. Eu tinha um ótimo nome para este lugar, era musical e bonito — jardim do éden. Pessoalmente, continuo a chamá-lo assim, mas não em público. A nova criatura diz que é cheio de florestas, rochedos e paisagens, e portanto não lembra um jardim. Diz que se parece mais com um parque e só. Por causa disso, sem me consultar, o rebatizou de Parque das cataratas do Niágara. Bastante pretensioso, na minha opinião. E já tem até uma placa:
não pise na grama
Minha vida agora já não é tão feliz quanto antes.
Sábado Essa nova criatura come frutas demais. Desse jeito nós vamos ficar sem. “Nós” de novo — palavra dela; minha, agora, também, de tanto ouvir. Bastante neblina nesta manhã. Não saio sozinho com neblina, ela sim. Sai independente do tempo e volta com os pés cheios de lama. E fala sem parar! Costumava ser tão agradável e calmo antes.
Domingo Aguentei firme. Esse dia está ficando cada vez mais difícil. Foi escolhido, em novembro passado, para ser o dia de descanso. Eu já tinha seis desses dias por semana. Esta manhã, encontrei a nova criatura tentando apanhar maçãs da árvore proibida.
Segunda-feira Essa coisa diz que seu nome é Eva. Para mim tanto faz, não tenho nada contra. Diz que é para eu chamá-la assim, quando quiser que se aproxime. Eu disse que achava supérfluo. Essa palavra, evidentemente, fez meu prestígio aumentar; e, de fato, é uma palavra grande, boa, vai pegar logo. Diz que não é uma coisa, mas uma mulher. Isso é meio duvidoso; para mim dá na mesma; o que ela é não me importa, desde que fique na dela e não fale mais.
Terça-feira Ela sujou a propriedade inteira com seus nomes execráveis e plaquinhas ofensivas:
- por aqui para a piscina de hidro
- por aqui para a ilha das cabras
- caverna dos ventos por aqui
Ela diz que esse parque daria um belo resort de verão se tivéssemos esse costume. Resort de verão — outra de suas invenções — somente palavras, sem significado algum. O que é um resort de verão? Mas é melhor não perguntar, ela detesta dar explicações.
Sexta-feira Agora fica implorando para eu não caminhar pelas pedras das cataratas. Que mal pode haver? Diz que dá calafrios nela. Me pergunto por quê; sempre fiz isso… sempre gostei dessas quedas e dessa sensação gostosa. Achei que era para isso que as cataratas serviam. Não vejo outra utilidade nelas, e para alguma coisa devem ter sido feitas. Ela diz que foram criadas apenas para servir de paisagem… como os rinocerontes e o mastodonte.
Atravessei as cataratas dentro de um barril, isso não foi bom o suficiente para ela. Fui até o outro lado dentro de uma tina, ainda não estava bom. Atravessei o redemoinho e as quedas num traje de folhas de figo. Rasgou todo. Daí em diante, só reclamações chatas sobre minha extravagância. Sou importunado demais por aqui. O que eu preciso é de uma mudança de ares.
Sábado Escapei na terça passada à noite e viajei por dois dias; construí outra cabana para mim em um lugar recluso, apagando minhas pegadas tão bem quanto pude, mas ela me achou com a ajuda de um bicho que domesticou e chamou de lobo, e se aproximou fazendo aquele som penoso de novo, com água saindo daqueles buracos com que ela olha. Fui obrigado a voltar com ela, mas acho que vou dar no pé outra vez assim que tiver uma chance. Ela se ocupa com um monte de bobagens; entre outras coisas, estudar por que os animais chamados leões e tigres se alimentam de grama e flores, quando, como ela diz, seus dentes indicam que eles foram feitos para comer uns aos outros. Isso é uma tolice, porque fazer isso significaria matar um ao outro, o que acabaria introduzindo, a meu ver, o que se chama de “morte”; e a morte, como me foi dito, ainda não entrou no parque. O que de certo modo é uma pena.
Domingo Aguentei firme.
Segunda-feira Acho que agora entendo para que serve a semana: é para ter tempo de se recuperar do cansaço do domingo. Parece uma boa ideia… Ela anda subindo de novo naquela árvore. Joguei torrões nela até ela descer. Ela disse que não tinha ninguém olhando. Parece achar que isso é uma justificativa boa o bastante para ficar se arriscando desse jeito. Eu disse isso a ela. A palavra “justificativa” elevou sua admiração por mim ainda mais, e a inveja também, pensei. É boa essa palavra.
Terça-feira Ela disse que foi feita a partir de uma costela do meu corpo. Isso é no mínimo duvidoso, se não coisa pior. Não estou sentindo falta de costela nenhuma… Ela está bem aflita por causa daquele abutre; diz que grama não lhe cai bem; está com medo que não poder criá-lo porque acha que é da natureza dele alimentar-se de carne estragada. O abutre tem que se virar da melhor forma possível com o que tem por aqui. Não podemos subverter a ordem das coisas só para o bem dele.
Sábado Ontem ela caiu no lago enquanto se admirava. Coisa que ela faz o tempo todo. Quase se afogou e disse que a sensação não foi nada boa. Isso fez que começasse a ter pena das criaturas que vivem lá no fundo, que decidiu chamar de peixes. Aliás, ela continua pondo nomes nas coisas, inclusive nas que não precisam de nome, até porque elas nem atendem quando são chamadas. Mas ela não se importa, é uma tonta mesmo; e assim acabou pegando um monte desses peixes ontem à noite e os enfiou na cama para ficarem quentinhos. Fiquei observando-os o dia inteiro, e acho que não estão mais felizes aqui do que estavam antes, só mais quietos. À noite vou botar todos para fora. Não vou dormir com eles de novo, são pegajosos, e é nojento ficar deitado sem roupa ao lado deles.
Domingo Aguentei firme.
Terça-feira Agora ela anda às voltas com uma cobra. Os outros animais estão felizes, pois ela estava sempre incomodando e fazendo experiências com eles, e eu fico feliz porque a cobra fala, e isso me dá uma folga.
Sexta-feira Ela disse que foi a cobra quem a instigou a comer da fruta daquela árvore alegando que o resultado seria uma grande, bela e nobre aprendizagem. Eu disse que isso teria outras consequências também… introduziria a morte no mundo. Que burrada, teria sido melhor guardar esse comentário só para mim; acabei dando uma ideia a ela… achou que poderia salvar o abutre doente e também fornecer carne fresca para os leões e os tigres desesperados. Mandei-a ficar longe daquela árvore. Ela disse que não. Vejo problemas à frente. Vou cair fora outra vez.
Quarta-feira Foi bem movimentada. Escapei ontem e cavalguei a noite toda, o mais rápido que meu cavalo pôde, na esperança de conseguir ficar bem longe do parque e me esconder em outra região, antes que começassem os problemas; mas não era para ser. Mais ou menos uma hora depois de o sol nascer, quando eu cavalgava por uma relva florida onde milhares de animais pastavam, dormiam, ou brincavam uns com os outros, de acordo com seu desejo, de repente eles irromperam em grunhidos e a planície foi tomada por uma comoção frenética, e os animais começaram a atacar uns aos outros. Eu sabia o que era — Eva tinha comido da fruta, e a morte adentrava nosso mundo… Os tigres comeram meu cavalo, me ignoraram quando mandei que parassem, e teriam me devorado também se eu tivesse ficado — o que não fiz, pois saí correndo… Encontrei esse lugar fora do parque. Foi até confortável por alguns dias, mas ela me descobriu. Me encontrou e logo chamou o lugar de Tonawanda — porque, para variar, achava que parecia com Tonawanda. Para falar a verdade, não fiquei chateado por ela ter aparecido porque aqui tem pouca coisa para colher, e ela trouxe algumas maçãs. Fui obrigado a comê-las, estava morto de fome. Era contra os meus princípios, mas quando a gente está com fome os princípios não contam muito… Ela veio coberta de galhos e ramos de folhas, e quando perguntei o que pretendia com isso e arranquei tudo e joguei fora, ela ficou meio sem graça e corou. Nunca tinha visto uma pessoa ficar sem graça e corar, e aquilo me pareceu inadequado e idiota. Ela disse que logo eu saberia por quê. Ela tinha razão. Faminto como eu estava, larguei a metade da maçã que estava comendo — certamente a melhor que eu provara, considerando que já findava a estação — e me cobri com os galhos e ramos jogados fora, e lhe falei com autoridade, mandei que pegasse mais alguns e que não fizesse um espetáculo. Ela obedeceu, e depois disso rastejamos até o lugar onde a guerra dos animais selvagens tinha acontecido e recolhemos algumas peles, com as quais mandei que ela fizesse roupas mais apropriadas para ocasiões públicas. São um pouco desconfortáveis, é verdade, mas têm estilo, e isso é que importa quando se trata de roupas… Acho que ela é uma bela de uma companheira. Percebi que ficaria um tanto solitário e deprimido sem ela agora que perdi minha propriedade. Outra coisa: ela disse que nos mandaram trabalhar para o nosso sustento de agora em diante. Ela vai ser útil. Eu vou supervisionar.
Dez dias depois Ela me acusa de ser a causa do nosso desastre! Diz, com aparente sinceridade e verdade, que a Serpente garantiu que a fruta proibida não era maçã e sim castanha. Eu disse que então era inocente, pois não tinha comido nenhuma castanha. Ela disse que a Serpente lhe informara que “castanha” era um termo figurado que significava piada velha e bolorenta. Fiquei sem graça, pois fiz muitas piadas para passar o tempo, apesar de achar, honestamente, que eram novas quando pensei nelas. Ela me perguntou se tinha feito alguma bem no momento da catástrofe. Fui obrigado a admitir que fiz uma para mim mesmo, mas não em voz alta. Era assim: estava pensando sobre as Quedas e disse: “Que maravilha é ver um imenso corpo d’água caindo!”. Então, em um instante, num pensamento brilhante que me passou pela cabeça, eu o soltei, dizendo: “Seria muito melhor vê-lo subindo até aqui!”… e eu estava quase morrendo de tanto rir quando a natureza inteira irrompeu em guerra e morte e tive que fugir para não arriscar minha vida. “Isso”, disse ela triunfante, “é bem isso; a Serpente mencionou exatamente essa piada, e chamou-a de ‘A Primeira Castanha’, e disse que coincidia com a criação.” Ai de mim, de fato a culpa é toda minha. Quem dera não fosse tão espirituoso; ah, se não tivesse tido um pensamento tão brilhante!
No ano seguinte Chamamos essa criaturinha de Caim. Eva a pegou enquanto eu estava fora, armando redes na costa norte do lago Erie; apanhou-a na floresta a uns três, quatro quilômetros da nossa caverna… pode também ter sido a uns seis, sete quilômetros, ela não sabe bem ao certo. Ele se parece um pouco com a gente, e pode até ser um parente. Isso é o que Eva acha, mas penso que está enganada. A diferença em tamanho reforça a conclusão de que se trata de uma nova espécie de animal… um peixe, talvez, apesar de que, quando o joguei na água para ter certeza, ele afundou, e ela se atirou na água e o pegou antes que desse tempo de ver se meu experimento confirmava minha suspeita. Continuo achando que é um peixe, mas ela não se importa com o que seja, e não me deixa pegá-lo para fazer novas tentativas. Não entendo isso. Com a chegada dessa nova criatura, parece que a natureza dela mudou completamente, ela ficou irracional com relação aos experimentos. Pensa nele mais do que em qualquer outro animal, mas não sabe dizer por quê. Sua mente está confusa, desordenada; tudo confirma isso. Às vezes, quando esse peixe choraminga e quer ir para a água, ela fica com ele nos braços quase a noite toda. Nesses momentos, a água vem de dentro daqueles buracos por onde ela olha, e ela faz carinho nas costas dele e uns sons bem suaves com a boca para acalmá-lo. Tenta demonstrar de mil maneiras que o entende e que tem pena dele. Nunca a vi fazer isso com nenhum outro peixe, e isso me incomoda muito. Ela costumava carregar os filhotes de tigre do mesmo modo, e brincava com eles, antes de perdermos a propriedade, mas era só brincadeira; não se preocupava tanto com eles quando a comida não lhes caía bem.
Domingo Ela não trabalha aos domingos, fica por aí deitada, fatigada, e gosta de ver o peixe revolvendo-se por cima dela de um lado para outro. Emite uns sons abobalhados para entretê-lo, faz de conta que está mordiscando suas patinhas para ele rir. Eu nunca tinha visto um peixe que conseguisse rir. Isso me faz duvidar… Comecei a gostar dos domingos também. Ficar supervisionando a semana inteira deixa o corpo cansado. Deveria ter mais domingos. Antigamente eles eram quase insuportáveis, mas agora eles vêm a calhar.
Quarta-feira Esse ser não é um peixe. Ainda não descobri exatamente o que é. Faz uns sons horrorosos quando não está satisfeito, mas quando está, diz “gugu, dadá”. Não é um dos nossos, já que não sabe caminhar; não é um pássaro, não sabe voar; não é um sapo, porque não sabe saltar; não é uma cobra, pois não rasteja. Tenho certeza de que não é um peixe, mas não encontro chance de descobrir se consegue ou não nadar. Passa o tempo todo deitado, em geral de costas, de pernas para o ar. Nunca vi outro animal fazer isso. Eu disse que achava isso um enigma; mas ela apenas admirou a palavra, sem entender. A meu ver, ou é um enigma, ou é um tipo de inseto. Se ele morrer, vou desmembrá-lo para ver como é que ele funciona. Nunca uma coisa me deixou tão perplexo.
Três meses depois A perplexidade aumenta em vez de diminuir. Durmo bem pouco. Ele parou de ficar só deitado, agora também fica esperneando. Mas difere dos outros animais de quatro patas porque as da frente são bem mais curtas, e por causa disso a parte principal do corpo dele fica apontando desconfortavelmente para cima, e isso não é nada atraente. Foi construído como nós, mas a sua maneira de se movimentar mostra que não é da nossa espécie. As pernas da frente curtas e as traseiras compridas indicam que deve ser da família dos cangurus, mas de uma espécie diferente, pois os verdadeiros cangurus pulam e esse não. Mesmo assim é de uma variedade bem curiosa e interessante, que ainda não foi catalogada. Como eu a descobri, me sinto no direito de assegurar que o crédito da descoberta seja associado ao meu nome. Assim, chamei-o de Kangaroorum adamiensis… Deve ter sido jovem quando veio, pois nesse meio-tempo cresceu excessivamente. Está umas cinco vezes maior do que quando chegou, e quando está descontente é capaz de produzir de vinte e duas a trinta e cinco vezes mais ruídos do que no início. Coerção não muda isso, na verdade tem o efeito contrário. Por essa razão, desisti de analisar seu mecanismo. Ela o acalma por meio da persuasão e dando-lhe coisas que antes tinha me proibido de dar. Como falei, eu não estava em casa quando ele apareceu, mas ela jurou que o encontrou na floresta. Parece estranho que seja o único, mas deve ser isso mesmo, pois cansei de procurar nessas últimas semanas tentando encontrar outro para juntar à minha coleção e para que ele tenha com quem brincar. Isso certamente o faria acalmar-se e conseguiríamos domesticá-lo mais facilmente. Mas não encontro vestígio de outro igual, e o mais estranho é que não há pegadas. Ele deve viver na superfície, não consegue se cuidar sozinho; mas como se movimenta sem deixar rastro? Armei dezenas de armadilhas, que não deram em nada. Peguei tudo que é tipo de animal pequeno, exceto esse; animais que entram na armadilha por pura curiosidade, para ver por que o leite está lá, sem tomar nem um gole sequer.
Três meses depois O canguru continua a crescer, o que é muito estranho e intrigante. Nunca imaginei que a fase de crescimento dele poderia ser tão longa. Agora está com pelos na cabeça. É diferente do pelo dos cangurus e exatamente igual ao nosso cabelo, que é muito mais fino e macio, e em vez de ser preto é vermelho. Estou pasmo com o desenvolvimento imprevisível dessa aberração zoológica inclassificável. Ah se eu conseguisse pegar mais um, mas não tenho esperanças; é uma nova variedade e a única amostra; é isso. Mas consegui agarrar um legítimo canguru e o trouxe para cá pensando que este, estando sozinho, preferiria ter aquele como companhia a não ter ninguém de sua espécie. Ou pelo menos outro animal de que poderia se sentir próximo e que se compadecesse dele nessa condição de abandono, entre estranhos, que não conhecem seus jeitos e hábitos e não sabem o que fazer para que se sinta entre amigos. Mas foi um erro. Ele teve um ataque quando viu o canguru, tanto que me convenci de que ele realmente nunca tinha visto um. Tenho pena desse pobre e ruidoso animalzinho, mas não há nada que possa fazer para deixá-lo feliz. Ah se eu conseguisse domesticá-lo… mas isso está fora de questão; quanto mais tento, pior ele fica. Me parte o coração vê-lo assim, em seus tormentos de tristeza e paixão. Quero soltá-lo, só que ela não quer nem ouvir falar disso. Parece cruel e atípico, mas ela pode estar certa. Ele pode estar mais solitário do que nunca, pois se eu não consigo encontrar nenhum dos seus semelhantes, que dirá ele?
Cinco meses depois Não é um canguru. Não, porque se firma segurando no dedo dela e assim consegue dar alguns passos com as pernas traseiras, antes de cair. Deve ser um tipo de urso; apesar de não ter uma cauda… pelo menos não ainda… nem pelo, exceto na cabeça. Ele continua crescendo. E isso é muito curioso, pois ursos atingem a fase adulta antes. Ursos são perigosos desde a catástrofe, e eu não vou ficar satisfeito com ele fuçando por aqui sem uma focinheira. Eu lhe ofereci um canguru se ela deixasse ele ir, mas não adiantou. Eva parece disposta a nos colocar em tudo quanto que é situação de risco. Ela não era assim antes de perder o juízo.
Duas semanas depois Examinei sua boca. Ainda não apresenta perigo: tem apenas um dente. E ele ainda não tem cauda. Faz mais barulho agora do que antes, principalmente à noite. Eu me mudei dali. Mas voltarei sempre pelas manhãs, para o café e para verificar se já tem mais dentes. Se sua boca ficar cheia de dentes, será a hora de ele ir, com ou sem cauda, pois um urso não precisa de uma para se tornar perigoso.
Quatro meses depois Me ausentei por um mês para caçar e pescar lá naquela região que ela chama de Buffalo; não sei bem por quê, a não ser que seja por não ter búfalos por lá. Nesse meio-tempo, o urso aprendeu a andar por aí sozinho, somente nas pernas traseiras, e diz “papá” e “mamá”. Certamente trata-se de uma nova espécie. Essa semelhança no uso de palavras pode ser puramente acidental, é claro, e pode não ter propósito ou significado nenhum; mas mesmo nesse caso é extraordinário, pois os ursos não sabem fazer isso. Essa imitação da fala, a falta geral de pelos e a completa ausência de cauda são indicação suficiente de que deve ser um novo tipo de urso. Um estudo mais aprofundado desse animal haveria de ser bem interessante. Enquanto isso, partirei numa expedição distante para as florestas do norte a fim de fazer uma pesquisa exaustiva. Deve haver outro em algum lugar, e esse talvez vá se tornar menos perigoso se estiver na companhia de outros de sua espécie. Vou sair imediatamente, mas não sem antes colocar uma focinheira nele.
Três meses depois A caçada foi muito, muito cansativa e sem sucesso. Enquanto estive fora, sem sair da propriedade, ela conseguiu pegar outro! Eu nunca tive essa sorte. Mesmo que tivesse caçado por essas florestas durante uns cem anos, nunca toparia com outro desses.
No dia seguinte Comparei o antigo com o mais novo, e ficou claro que pertencem à mesma espécie. Queria empalhar um para minha coleção, mas ela é contra por uma razão ou por outra, então acabei desistindo da ideia, apesar de achar que é um erro. Seria uma perda irreparável para a ciência se eles desaparecessem. O mais velho está mais domesticado do que antes e ri e fala como um papagaio, tendo aprendido isso, é claro, por ter passado tanto tempo na companhia de um e por ter a faculdade imitativa bem desenvolvida. Ficarei muito surpreso se for comprovado que é um novo tipo de papagaio; por outro lado, não deveria ficar tão surpreso assim, pois ele já foi de tudo quanto era espécie desde os primeiros dias, quando ainda parecia ser um peixe. O mais novo é tão feio quanto o primeiro era no começo; a mesma cor de enxofre e carne crua e aquela cabeça com formato meio estranho, sem nenhum pelo. Ela o chama de Abel.
Dez anos depois Eles são meninos; descobrimos há muito tempo. Era a forma como eles chegavam, tão pequenos e imaturos, que nos baratinava. Também já temos umas meninas. Abel é um bom menino, mas se Caim tivesse permanecido um urso teria se aperfeiçoado mais. Depois de todos esses anos, me dei conta de que no começo estava errado sobre Eva; é melhor viver fora do Jardim com ela, do que nele sem ela. No começo achava que ela falava demais; mas hoje ficaria mal se não falasse ou se saísse da minha vida. Abençoada seja a castanha que nos aproximou e que me ensinou a ver a bondade do seu coração e a doçura do seu espírito!
fim
 
(Mark Twain - Diários de Adão e Eva)

publicado às 15:06


Da religião

por Thynus, em 19.09.17
„O medo do poder invisível, fingido pela mente, ou imaginado a partir de contos publicamente permitidos, é religião, se não permitidos, é superstição. E quando o poder é verdadeiramente imaginado, como nós imaginamos, é a verdadeira religião.“ 
 .
 
A Bíblia também fala que Deus enviará Bebemoth para matar Leviatã
 
Verificando que só no homem encontramos sinais, ou frutos da religião, não há motivo para duvidar que a semente da religião se encontra também apenas no homem, e consiste em alguma qualidade peculiar, ou pelo menos em algum grau eminente dessa qualidade, que não se encontra nas outras criaturas vivas. Em primeiro lugar, é peculiar à natureza do homem investigar as causas dos eventos a que assiste, uns mais, outros menos, mas todos os homens o suficiente para terem a curiosidade de procurar as causas de sua própria boa ou má fortuna.
Em segundo lugar, é-lhe também peculiar, perante toda e qualquer coisa que tenha sido um começo, pensar que ela teve também uma causa, que determinou esse começo no momento em que o fez, nem mais cedo nem mais tarde.
Em terceiro lugar, enquanto para os animais a única felicidade é o gozo de seus alimentos, repouso e prazeres cotidianos, pois de pouca ou nenhuma previsão dos tempos vindouros são capazes, por falta de observação e de memória da ordem, conseqüência e dependência das coisas que vêem; enquanto isso, por seu lado o homem observa como um evento foi produzido por outro, e recorda seus antecedentes e conseqüências. E quando se vê na impossibilidade de descobrir as verdadeiras causas das coisas (dado que as causas da boa e da má sorte são em sua maior parte invisíveis) supõe causas para elas, quer as que lhe são sugeridas por sua própria fantasia, quer as que aceita da autoridade de outros homens, aos quais considera seus amigos e mais sábios do que ele próprio.
Os dois primeiros motivos dão origem à ansiedade. Pois quando se está certo de que existem causas para todas as coisas que aconteceram até agora ou no futuro virão a acontecer, é impossível a alguém que constantemente se esforça por se garantir contra os males que receia, e por obter o bem que deseja, não se encontrar em eterna preocupação com os tempos vindouros. De modo que todos os homens, sobretudo os que são extremamente previdentes, se encontram numa situação semelhante à de Prometeu. Porque tal como Prometeu (nome que quer dizer homem prudente) foi acorrentado ao monte Cáucaso, um lugar de ampla perspectiva, onde uma águia se alimentava de seu gado, devorando de dia o que tinha voltado a crescer durante a noite, assim também o homem que olha demasiado longe, preocupado com os tempos futuros, tem durante todo o dia seu coração ameaçado pelo medo da morte, da pobreza ou de outras calamidades, e não encontra repouso nem paz para sua ansiedade a não ser no sono.
Este medo perpétuo que acompanha os homens ignorantes das causas, como se estivessem no escuro, deve necessariamente ter um objeto. Quando portanto não há nada que possa ser visto, nada acusam, quer da boa quer da má sorte, a não ser algum poder ou agente invisível. Foi talvez neste sentido que alguns dos antigos poetas disseram que os deuses foram criados pelo medo dos homens, o que quando aplicado aos deuses (quer dizer, aos muitos deuses dos gentios) é muito verdadeiro. Mas o reconhecimento de um único Deus eterno, infinito e onipotente pode ser derivado do desejo que os homens sentem de conhecer as causas dos corpos naturais, e suas diversas virtudes e operações, mais facilmente que do medo do que possa vir a acontecer-lhes nos tempos vindouros. Pois aquele que de qualquer efeito que vê ocorrer infira a causa próxima e imediata desse efeito, e depois a causa dessa causa, e mergulhe profundamente na investigação das causas, deverá finalmente concluir que necessariamente existe (como até os filósofos pagãos confessavam) um primeiro motor. Isto é, uma primeira e eterna causa de todas as coisas, que é o que os homens significam com o nome de Deus. E tudo isto sem levar em conta a sorte, por cuja preocupação se produz nos homens uma tendência para o medo, desviando-os, ao mesmo tempo, da investigação das causas das outras coisas, dando-lhes assim ocasião de inventar tantos deuses quantos forem os homens que os inventem. E quanto à matéria ou substância dos agentes invisíveis assim imaginados, seria impossível que por cogitação natural se fosse cair num outro conceito, a não ser que é a mesma da alma do homem, e que a alma do homem é da mesma substância que aparece nos sonhos, àqueles que dormem, ou nos espelhos, aos que estão despertos. As quais os homens, como não sabem que tais aparições não passam de criaturas da fantasia, pensam que são substâncias externas e reais, e assim lhes chamam fantasmas, como os latinos lhes chamavam imagines e umbrae, pensando que são espíritos, ou seja, tênues corpos aéreos. E pensam que são semelhantes àqueles agentes invisíveis que temem, salvo que estes aparecem e desaparecem quando lhes apraz. Mas a opinião de que tais espíritos são incorpóreos e imateriais jamais poderia entrar, por natureza, na mente de qualquer homem porque, embora os homens sejam capazes de reunir palavras de significação contraditória, como espírito e incorpóreo, jamais serão capazes de ter a imaginação de alguma coisa que lhes corresponda. Portanto os homens que, através de sua própria meditação, acabam por reconhecer um Deus infinito, onipotente e eterno, preferem antes confessar que ele é incompreensível e se encontra acima de seu entendimento, em vez de definir sua natureza pelas palavras espírito incorpóreo, para depois confessar que sua definição é ininteligível. Ou, se lhe atribuem esse título, não é dogmaticamente, com a intenção de tornar entendida a natureza divina, mas piosamente, para honrá-lo com atributos ou significações o mais longínquo que seja possível da solidez dos corpos visíveis.
Além disso, quanto à maneira como pensam que esses agentes invisíveis produziram seus efeitos, quer dizer, quais as causas imediatas que eles usaram para fazer que as coisas ocorram, os homens que não conhecem o que chamamos causar (isto é, quase todos os homens) não dispõem de outra regra para descobrilas senão observando, e recordando aquilo que viram preceder o mesmo efeito em alguma outra ocasião ou ocasiões anteriores, sem verem entre o antecedente e o evento conseqüente qualquer espécie de dependência ou conexão. Portanto, de coisas idênticas no passado esperam coisas idênticas no futuro, e supersticiosamente ficam esperando a boa ou má sorte de coisas que nada tiveram a ver com a produção dos efeitos. Do mesmo modo que os atenienses, para sua batalha de Lepanto, pediam um novo Fórmio, e o partido de Pompeu, para sua guerra na África, pedia um novo Capitão, e outros também fizeram em diversas ocasiões desde então, atribuíram sua fortuna a alguém que simplesmente se encontrava presente, a um lugar que daria sorte ou azar, ou a palavras proferidas, especialmente se entre elas estivesse o nome de Deus, como as frases cabalísticas e esconjuros (a liturgia das bruxas), tal como poderiam acreditar que têm o poder de transformar uma pedra em pão, de transformar o pão num homem, ou qualquer coisa em qualquer coisa. Em terceiro lugar, a adoração naturalmente manifestada pelos homens para com os poderes invisíveis só pode usar as mesmas expressões de reverência que se usam em relação aos homens, como oferendas, petições, agradecimentos, submissão do corpo, súplicas respeitosas, comportamento sóbrio, palavras meditadas, juras (isto é, garantia mútua das promessas), ao invocar esses poderes. Além disso a razão nada sugere, permitindo aos homens que a isso se limitem ou que, através de outras cerimônias, confiem naqueles que consideram mais sábios que eles próprios.
Por último, quanto à maneira como esses poderes invisíveis comunicam aos homens as coisas que futuramente virão a ocorrer, sobretudo quanto à boa e à má fortuna em geral, ou o bom ou mau sucesso em qualquer empreendimento particular, os homens se encontram naturalmente numa situação de perplexidade. Salvo que, fazendo a partir do tempo passado conjeturas sobre o tempo futuro, estão extremamente sujeitos, não apenas a tomar coisas acidentais, depois de uma ou duas ocorrências, por prognósticos de que o mesmo sempre ocorrerá no futuro, mas também a acreditar em idênticos prognósticos feitos por outros homens, dos quais conceberam uma opinião favorável.
E é nestas quatro coisas, a crença nos fantasmas, a ignorância das causas segundas, a devoção pelo que se teme e a aceitação de coisas acidentais como prognósticos, que consiste a semente natural da religião. A qual, devido às diferenças da imaginação, julgamento e paixões dos diversos homens, se desenvolveu em cerimônias tão diferentes que as que são praticadas por um homem são em sua maior parte consideradas ridículas por outro.
Porque estas sementes foram cultivadas por duas espécies de homens. Uma espécie foi a daqueles que as alimentaram e ordenaram segundo sua própria invenção. A outra foi a dos que o fizeram sob o mando e direção de Deus. Mas ambas as espécies o fizeram com o objetivo de fazer os que neles confiavam tender mais para a obediência, as leis, a paz, a caridade e a sociedade civil. De modo que a religião da primeira espécie constitui parte da política humana, e ensina parte do dever que os reis terrenos exigem de seus súditos. A religião da segunda espécie é a política divina, que encerra preceitos para aqueles que se erigiram como súditos do reino de Deus. Da primeira espécie são todos os fundadores de Estados e legisladores dos gentios. Da segunda espécie são Abraão, Moisés e nosso abençoado Salvador, dos quais chegaram até nós as leis do reino de Deus.
Quanto àquela parte da religião que consiste nas opiniões relativas à natureza dos poderes invisíveis, quase nada há com um nome que não tenha sido considerado entre os gentios, em um ou outro lugar, como um deus ou um demônio, ou imaginado pelos poetas como animado, habitado ou possuído por um ou outro espírito.
A matéria informe do mundo era um deus com o nome de Caos.
O céu, o oceano, os planetas, o fogo, a terra, os ventos, eram outros tantos deuses. Os homens, as mulheres, um pássaro, um crocodilo, uma vaca, um cão, uma cobra, uma cebola, um alho-porro foram divinizados. Além disso, encheram quase todos os lugares com espíritos chamados daemons; as planícies, com Pan, e panises, ou sátiros; os bosques, com faunos e ninfas; o mar, com tritões, e outras ninfas; cada rio e cada fonte, com um fantasma do mesmo nome, e com ninfas; cada casa com seus lares ou familiares; cada homem com seu gênio; o inferno, com fantasmas e acólitos espirituais como Caronte, Cérbero e as Fúrias; e de noite todos os lugares com larvas, lêmures, fantasmas de homens falecidos, e todo um reino de fadas e duendes. Também atribuíram divindade e dedicaram templos a meros acidentes e qualidades, como o tempo, a noite, o dia, a paz, a concórdia, o amor, o ódio, a virtude, a honra, a saúde, a corrupção, a febre, e outros semelhantes. E em suas preces, a favor ou contra, a eles oravam, como se houvesse fantasmas com esses nomes pairando sobre suas cabeças, os quais deixariam cair, ou impediriam de cair, aquele bem ou mal a favor do qual, ou contra o qual oravam. Invocavam também seu próprio engenho, sob o nome de Musas; sua própria ignorância, sob o nome de Fortuna; seu próprio desejo sob o nome de Cupido; sua própria raiva sob o nome de Fúrias; seu próprio membro viril sob o nome de Príapo; atribuíam suas propuções a Íncubos e Súcubos; de modo tal que nada que um poeta pudesse introduzir como pessoa em seu poema deixavam de fazer um deus, ou um demônio. 
Os mesmos autores da religião dos gentios, observando o segundo fundamento da religião, que é a ignorância que os homens têm das causas, e consequentemente sua tendência para atribuir sua sorte a causas das quais ela em nada aparenta depender, aproveitaram para impor à sua ignorância, em vez das causas secundárias, uma espécie de deuses secundários e ministeriais, atribuindo a causa da fecundidade a Vênus, a causa das artesa Apolo, a da sutileza e sagacidade a Mercúrio, a das tormentas e tempestades a Éolo, e as de outros efeitos a outros deuses. De modo tal que havia entre os pagãos quase tão grande variedade de deuses como de atividades.
E às formas de veneração que os homens naturalmente consideravam próprias para oferecer a seus deuses, tais como sacrifícios, orações e ações de graças, além das acima referidas, os mesmos legisladores dos gentios acrescentaram suas imagens, tanto em pintura como em escultura. A fim de que os mais ignorantes (quer isto dizer, a maior parte, ou a generalidade do povo),pensando que os deuses em cuja representação tais imagens eram feitas nelas realmente estavam incluídos, como se nelas estivessem alojados, pudessem sentir perante elas ainda mais medo. E dotaram-nos com terras e casas, funcionários e rendas, separadas de todos os outros usos humanos, isto é, santificadas e consagradas a esses seus ídolos; tais como cavernas, grutas, bosques e montanhas, e também ilhas inteiras; e atribuíram-lhes, não apenas as formas, umas de homens, outras de animais, e outras de monstros, mas também as faculdades e paixões de homens e animais, como a sensação, a linguagem, o sexo, o desejo, a geração (e isto não apenas misturando-se uns com os outros, para propagar a raça dos deuses, mas misturando-se também com os homens e as mulheres, produzindo deuses híbridos, e simples moradores dos céus, como Baco, Hércules e outros); e além dessas também o ódio e a vingança, e outras paixões das criaturas vivas, assim como as ações delas derivadas, como a fraude, o roubo, o adultério, a sodomia, e todo e qualquer vício que possa ser tomado como efeito do poder, e causa do prazer; e todos aqueles vícios que entre os homens são considerados mais como contrários à lei do que contrários à
honra.
E por último, aos prognósticos dos tempos vindouros, que naturalmente não passam de conjeturas baseadas na experiência dos tempos passados, e sobrenaturalmente não são mais do que revelação divina, os mesmos autores da religião dos gentios, baseando-se em parte numa pretensa experiência, e em parte numa pretensa revelação, acrescentaram inúmeras outras supersticiosas maneiras de adivinhação. E fizeram os homens acreditar que descobririam sua sorte, às vezes nas respostas ambíguas ou destituídas de sentido dos sacerdotes de Delfos, Delos, e Amon, e outros famosos oráculos, respostas que eram propositadamente ambíguas, para dar conta do evento de ambas as maneiras, ou absurdas, pelas intoxicantes emanações do lugar, o que é muito freqüente em cavernas sulfurosas. Às vezes nas folhas das sibilas, sobre cujas profecias (como talvez as de Nostradamus, pois os fragmentos atualmente existentes parecem ser invenção de uma época posterior) havia alguns livros que gozavam de grande reputação no tempo da República Romana. Às vezes nos insignificantes discursos de loucos, supostamente possuídos por um espírito divino, ao que chamavam entusiasmo, e a estas maneiras de predizer acontecimentos se chamava teomancia ou profecia. Às vezes no aspecto apresentado pelas estrelas ao nascer, o que se chamava horoscopia, e era considerado parte da astrologia judicial. Às vezes em suas próprias esperanças e temores, o que se chamava tumomancia ou presságio. Às vezes nas predições dos bruxos, que pretendiam comunicar-se com os mortos, o que se chama necromancia, esconjuro e feitiçaria, e não passa de um misto de impostura e fraude. Às vezes no vôo ou forma de se alimentar casual das aves, o que se chamava augúrio. Às vezes nas entranhas de um animal sacrificado, o que se chamava aruspicina. Às vezes nos sonhos. Às vezes no crocitar dos corvos ou no canto dos pássaros. Às vezes nas linhas do rosto, o que se chamava metoposcopia, ou pela palmistria nas linhas da mão, ou em palavras casuais, o que se chamava omina. Às vezes em monstros ou acidentes invulgares, como eclipses, cometas, meteoros raros, terremotos, inundações, nascimentos prematuros e coisas semelhantes, a que chamavam portento e ostenta, porque pensavam que eles prediziam ou pressagiavam alguma grande calamidade futura. Às vezes no simples acaso, como no jogo de cara ou coroa, ou na contagem do número de orifícios de um crivo, ou no jogo de escolher versos de Homero e Virgílio, e em inúmeras outras vãs invenções do gênero. Tão fácil é os homens serem levados a acreditar em a qualquer coisa por aqueles que gozam de crédito junto deles, que podem com cuidado e destreza tirar partido de seu medo e ignorância. Portanto os primeiros fundadores e legisladores de Estados entre os gentios, cujo objetivo era apenas manter o povo em obediência e paz, em todos os lugares tiveram os seguintes cuidados. Primeiro, o de incutir em suas mentes a crença de que os preceitos que ditavam a respeito da religião não deviam ser considerados como provenientes de sua própria invenção, mas como os ditames de algum deus, ou outro espírito, ou então de que eles próprios eram de natureza superior à dos simples mortais, a fim de que suas leis fossem mais facilmente aceites. Assim, Numa Pompílio pretendia ter recebido da ninfa Egéria as cerimônias que instituiu entre os romanos; o primeiro rei e fundador do reino do Peru pretendia que ele e sua esposa eram filhos do Sol; e Maomé, para estabelecer sua nova religião, pretendia falar com o Espírito Santo, sob a forma de uma pomba. Em segundo lugar, tiveram o cuidado de fazer acreditar que aos deuses desagradavam as mesmas coisas que eram proibidas pelas leis. Em terceiro lugar, o de prescrever cerimônias, suplicações, sacrifícios e festivais, os quais se-devia acreditar capazes de aplacar a ira dos deuses; assim como que da ira dos deuses resultava o insucesso na guerra, grandes doenças contagiosas, terremotos,, e a desgraça de cada indivíduo; e que essa ira provinha da falta de cuidado com sua veneração, e do esquecimento ou do equívoco em qualquer aspecto das cerimônias exigidas. E, embora entre os antigos romanos não fosse proibido negar aquilo que nos poetas está escrito sobre os sofrimentos e os prazeres depois desta vida, que foram abertamente satirizados por vários indivíduos de grande autoridade e peso nesse Estado, apesar disso essa crença sempre foi mais aceita do que rejeitada.
E através destas e outras instituições semelhantes conseguiam, a serviço de seu objetivo (que era a paz do Estado), que o vulgo, em ocasiões de desgraça, atribuísse a culpa à falta de cuidado, ou ao cometimento de erros, em suas cerimônias, ou à sua própria desobediência às leis, tornando-se assim menos capaz de rebelarse contra seus governantes. Entretido pela pompa e pela distração dos festivais e jogos públicos, celebrados em honra dos deuses, nada mais necessitava do que pão, para se manter afastado do descontentamento, de murmúrios e protestos contra o Estado. Portanto os romanos, que tinham conquistado a maior parte do mundo então conhecido, não tinham escrúpulos em tolerar qualquer religião que fosse, mesmo na própria cidade de Roma, a não ser que nela houvesse alguma coisa incompatível com o governo civil. E não há notícia de que lá
alguma religião fosse proibida, a não ser a dos judeus, os quais (por serem o próprio reino de Deus) consideravam ilegítimo reconhecer sujeição a qualquer rei mortal ou a qualquer Estado. E assim se vê como a religião dos gentios fazia parte de sua política.
Mas quando foi o próprio Deus, através da revelação sobrenatural, que implantou a religião, nesse momento ele estabeleceu também para si mesmo um reino particular, e não ditou apenas leis relativas ao comportamento para consigo próprio, mas também de uns para com os outros. E dessa maneira no reino de Deus a política e as leis civis fazem parte da religião, não tendo portanto lugar a distinção entre a dominação temporal e a espiritual. $ certo que Deus é o rei de toda a Terra, mas mesmo assim pode ser rei de uma nação peculiar e escolhida. Pois não há nisso maior incongruência do que no fato de aquele que detém o comando geral de todo o exército ter também um regimento ou companhia que lhe pertença em particular. Deus é rei de toda a Terra por seu poder, mas de seu povo escolhido é rei em virtude de um pacto. Mas para falar mais longamente do reino de Deus, tanto por natureza como por pacto, reservei no subseqüente discurso um outro lugar.
Tendo em conta a maneira como a religião se propagou, não é difícil compreender as causas devido às quais toda ela se resolve em suas primeiras sementes ou princípios. Os quais são apenas a crença numa divindade e em poderes invisíveis e sobrenaturais, que jamais poderá ser extirpada da natureza humana a tal ponto que novas religiões deixem de brotar dela, mediante a ação daqueles homens que têm reputação suficiente para esse efeito.
Pois verificando que toda religião estabelecida assenta inicialmente na fé de uma multidão em determinada pessoa, que se acredita não apenas ser um sábio, e esforçar-se por conseguir a felicidade de todos, mas também ser um santo, a quem o próprio Deus decidiu declarar sobrenaturalmente sua vontade, segue-se necessariamente que, quando aqueles que têm o governo da religião se tornam suspeitos quanto a sua sabedoria, sua sinceridade ou seu amor, ou quando se mostram incapazes de apresentar qualquer sinal provável da revelação divina, nesse caso a religião que eles desejam manter se torna igualmente suspeita e (sem o medo da espada civil) contradita e rejeitada.
Aquilo que faz perder a reputação de sabedoria, naquele que estabelece uma religião, ou lhe acrescenta algo depois de já estabelecida, é a imposição de crenças contraditórias. Porque não é possível que sejam verdadeiras ambas as partes de uma contradição, portanto impor a crença nelas é um argumento de ignorância, que nisso denuncia seu autor, e o desacredita em todas as outras coisas que ele venha a propor como revelação sobrenatural, a qual revelação certamente se pode receber sobre muitas coisas acima da razão natural, mas nunca contra ela.
Aquilo que faz perder a reputação de sinceridade é fazer ou dizer coisas que pareçam ser sinais de que não se acredita nas coisas em que se exige que os outros acreditem. Todos esses atos e palavras são portanto considerados escandalosos, porque são obstáculos que fazem os homens cair, em vez de seguir o caminho da religião, como por exemplo a injustiça, a crueldade, a hipocrisia, a avareza e a luxúria. Pois quem pode acreditar que aquele que pratica ordinariamente as ações que derivam de qualquer destas raízes pode acreditar que existe e deve ser temido aquele poder invisível com que pretende atemorizar os outros, por faltas menores?
Aquilo que faz perder a reputação de amor é deixar transparecer ambições pessoais, quando a crença que se exige dos outros conduz ou parece conduzir à aquisição de domínio, riquezas, dignidade, ou à garantia de prazeres, apenas ou especialmente para si próprio. Porque aquilo de que os homens tiram benefícios próprios se considera que o fazem por si mesmos, não por amor aos outros. Por último, o testemunho que os homens podem apresentar de eleição divina não pode ser outro senão a realização de milagres, ou de profecias verdadeiras (o que é também um milagre), ou de extraordinária felicidade. Portanto àqueles pontos de religião, que foram recebidos dos que realizaram tais milagres, os pontos que forem acrescentados por aqueles que não provam sua eleição através de algum milagre, não conquistam maior crença do que aquela que os costumes e as leis dos lugares onde foram educados lhes proporcionam. Pois tal como nas coisas naturais os homens judiciosos exigem sinais e argumentos naturais, assim também nas coisas sobrenaturais exigem sinais sobrenaturais (que são os milagres) antes de aquiescerem em seu íntimo, e do fundo do coração.
Todas estas causas do debilitamento da fé dos homens aparecem manifestamente nos exemplos que se seguem. Em primeiro lugar temos o exemplo dos filhos de Israel que, quando Moisés, que tinha provado sua eleição através de milagres, assim como da maneira feliz como os tirou do Egito, se ausentou por apenas quarenta dias, se revoltaram contra a veneração do verdadeiro Deus, que por ele lhes fora recomendado, e, estabelecendo' como seu deus um bezerro de ouro, caíram na idolatria dos egípcios, dos quais tão pouco tempo antes haviam sido libertados. Por outro lado, depois que Moisés, Aarão e Josué, e a geração que tinha assistido às grandes obras de Deus em Israel' morreram, surgiu uma outra geração que adorou a Baal. De modo que quando faltaram os milagres faltou também a fé.
E também quando os filhos de Samuel, depois de instituídos por seu pai como juízes em Bersabé, aceitaram suborno e julgaram injustamente, o povo de Israel recusou continuar a ter Deus como seu rei, a não ser da mesma maneira como era rei dos outros povos, exigindo portanto de Samuel que lhes escolhesse um rei à maneira das nações. De modo que quando falta a justiça a fé falta também, a ponto de os ter levado a depor seu Deus da soberania que tinha sobre eles.
E enquanto no momento da implantação da religião cristã os oráculos cessaram em todas as partes do Império Romano, e o número de cristãos aumentava maravilhosamente todos os dias e em todos os lugares, devido à pregação dos Apóstolos e Evangelistas, uma grande parte desse sucesso pode razoavelmente ser atribuída ao desprezo que os sacerdotes dos gentios dessa época haviam atraído sobre si mesmos, devido a sua impureza, sua avareza e seus manejos com os príncipes. Também a religião da Igreja de Roma foi, em parte pela mesma razão, abolida na Inglaterra, e em muitas outras partes da cristandade, na medida em que a falta de virtude dos pastores provocou no povo a falta de fé; e em parte porque a filosofia e doutrina de Aristóteles foi levada para a religião pelos homens das Escolas, do que surgiram tantas contradições e absurdos que acarretaram para o clero uma reputação tanto de ignorância como de intenção fraudulenta, e levaram o povo a tender para a revolta contra eles, tanto contra a vontade de seus próprios príncipes, como na França e na Holanda, quanto de acordo com sua vontade, como na Inglaterra.
Por último, entre os pontos que a Igreja de Roma declarou necessários para a salvação existe um tão grande número que redunda manifestamente em vantagem do Papa, e de seus súditos espirituais que residem nos territórios de outros príncipes cristãos, que se não fosse a recíproca emulação desses príncipes eles te riam podido, sem guerras nem perturbações, recusar toda autoridade exterior, tão facilmente como ela foi recusada pela Inglaterra. Pois haverá alguém que não seja capaz de ver para beneficio de quem contribuía acreditar-se que um rei só recebe de Cristo sua autoridade no caso de ser coroado por um bispo? Que um rei, se for sacerdote, não pode casar-se? Que se um príncipe nasceu de um casamento legítimo ou não é assunto que deve ser decidido pela autoridade de Roma? Que os súditos podem ser libertos de seu dever de sujeição, se a corte de Roma tiver condenado o rei como herege? Que um rei (como Chilperico da França) pode ser deposto por um Papa (como o Papa Zacarias), sem motivo algum, sendo seu reino dado a um de seus súditos? Que o clero secular e regular, seja em que país for, se encontra isento da autoridade de seu reino, em casos criminais? E quem não vê em proveito de quem redundam os emolumentos das missas particulares e dos vales do Purgatório, juntamente com outros sinais de interesse pessoal, suficientes para mortificar a mais viva fé, se (conforme disse) o magistrado civil e os costumes deixassem de a sustentar mais do que qualquer opinião que tenham da santidade, sabedoria e probidade de seus mestres? De modo que posso atribuir todas as mudanças de religião do mundo a uma e à mesma causa, isto é, sacerdotes desprezíveis, e isto não apenas entre os católicos, mas até naquela Igreja que mais presumiu de Reforma.

(Thomas Hobbes de Malmesbury - LEVIATÃ ou MATÉRIA, FORMA E PODER DE UM
ESTADO ECLESIÁSTICO E CIVIL)

publicado às 14:00


Tabuleta do Dilúvio

por Thynus, em 16.09.17
Tabuleta de argila para escrever, de Nínive (perto de Mossul), norte do Iraque
700-600 A.C.
 
A história bíblica de Noé, sua arca e o Dilúvio está de tal maneira integrada à nossa linguagem que qualquer criança sabe dizer que os animais entraram aos pares. Mas a história do Dilúvio é bem anterior à Bíblia, e comum a muitas outras sociedades. Isso leva a uma grande indagação: temos conhecimento do Dilúvio porque alguém, há muito tempo, registrou a história por escrito — mas quando surgiu a ideia inicial de registrar uma história por escrito?
 
 

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Moradores de Bloomsbury têm o hábito de dar uma passada no British Museum. Pouco mais de 140 anos atrás, um deles, um homem chamado George Smith, costumava visitá-lo no horário do almoço. Aprendiz de uma gráfica não muito distante, ele ficou fascinado com a coleção de tabuletas de argila da antiga Mesopotâmia. Mergulhou tanto no assunto que aprendeu a ler a escrita cuneiforme das tabuletas e com o passar do tempo tornou-se um dos maiores especialistas em escrita cuneiforme de sua época. Em 1872, Smith estudou uma tabuleta de Nínive (hoje no Iraque), e é ela que quero examinar agora.
A biblioteca onde mantemos as tabuletas de argila da Mesopotâmia — existem cerca de 130 mil — é uma sala repleta de prateleiras do chão ao teto, com uma estreita bandeja de madeira em cada prateleira contendo até doze tabuletas, a maioria em fragmentos. O pedaço que chamou a atenção de George Smith em 1872 tem aproximadamente quinze centímetros de altura, é feito de argila marrom-escura e está coberto por um texto denso e organizado em duas colunas apertadas. De longe, lembra um pouco pequenos anúncios de um jornal antigo. Originalmente deve ter sido retangular, mas ao longo do tempo partes se desprenderam. Quando George Smith compreendeu o que este fragmento significava, descobriu que abalaria os alicerces de uma das grandes histórias do Antigo Testamento, levantando importantes dúvidas sobre o papel da escritura e sua relação com a verdade.
Nossa tabuleta é sobre um dilúvio — sobre um homem que recebe uma ordem de seu deus para construir um barco e carregá-lo com sua família e animais, pois uma inundação está prestes a liquidar a humanidade da face da Terra. A história gravada na tabuleta era fantasticamente familiar para George Smith, porque, enquanto lia e decifrava, ficava claro que o que ele tinha diante de si era um mito antigo que correspondia à história de Noé e sua arca e — o mais importante — era anterior a ela. Apenas para lembrar, eis aqui alguns fragmentos da história de Noé contada pela Bíblia (Gênesis, 6:14-7:4):
Faze para ti uma arca (…) e de tudo o que vive, de toda a carne, dois de cada espécie, farás entrar na arca (…) farei chover sobre a terra quarenta dias e quarenta noites; e desfarei de sobre a face da terra toda a substância que fiz.
E aqui vai um pequeno extrato do que George Smith leu na tabuleta de argila:
Demole a casa e constrói um barco! Abandona a riqueza e busca sobreviver. Despreza a propriedade, salva a vida. Leva para dentro a semente de todas as coisas vivas! O barco que construirás, suas dimensões devem ser todas iguais: o comprimento e a largura devem ser os mesmos. Cobre-o com um teto, como o oceano embaixo, e ele te enviará chuva abundante.
O fato de uma história da Bíblia hebraica já ter sido contada em uma tabuleta de argila da Mesopotâmia era uma descoberta assombrosa, e Smith sabia disso, como demonstra um relatório da época:
Smith pegou a tabuleta e pôs-se a ler as linhas que o conservador com que a limpara fizera aparecer; e, quando viu que continha uma parte da lenda que esperara encontrar, disse: “Sou o primeiro homem a ler isto após dois mil anos de esquecimento.” Pondo a tabuleta na mesa, saiu pulando e correndo pela sala, na maior agitação, e, para espanto dos presentes, começou a tirar a roupa!
Era mesmo uma descoberta pela qual valia a pena tirar a roupa. A tabuleta, que se tornaria universalmente conhecida como Tabuleta do Dilúvio, foi escrita onde hoje é o Iraque, no século VII a.C., mais ou menos quatrocentos anos antes da última versão conhecida da narrativa bíblica. Seria possível que a narrativa bíblica, longe de ser uma revelação especialmente privilegiada, fosse apenas parte de uma reserva comum de lendas compartilhada por todo o Oriente Médio?
Foi um dos grandes momentos de revisão radical da história do mundo no século XIX. George Smith só divulgou a tabuleta doze anos após a publicação de A origem das espécies, de Charles Darwin. E, com isso, abriu uma caixa de Pandora religiosa. O professor David Damrosch, da Universidade de Columbia, mede o impacto sísmico da Tabuleta do Dilúvio:
Na década de 1870, as pessoas viviam obcecadas por histórias bíblicas, e a veracidade das narrativas bíblicas era um assunto muito controverso. Por isso foi uma sensação quando George Smith encontrou essa versão antiga da história do Dilúvio, obviamente muito mais velha do que a versão bíblica. O primeiro-ministro Gladstone foi ouvir a palestra de Smith sobre sua nova tradução, noticiada em primeira página no mundo inteiro, incluindo um artigo no New York Times, no qual já se dizia que a tabuleta poderia ser interpretada de duas maneiras bem diferentes: isso prova que a Bíblia é verdade ou mostra que é tudo lenda? E a descoberta de Smith deu mais munição para os dois lados do debate sobre a veracidade do relato bíblico e sobre Darwin, evolução e geologia.
Que efeito tem, em nossa percepção sobre um texto religioso, a descoberta de que ele vem de uma sociedade mais antiga, com um conjunto diferente de crenças? Perguntei ao rabino-chefe do Reino Unido, Jonathan Sacks:
Existe claramente um acontecimento central por trás das duas narrativas, que foi uma grande enchente, parte da memória folclórica de todos os povos daquela região. O que as antigas narrativas sobre o Dilúvio fazem é, essencialmente, falar das grandes forças da natureza controladas por divindades que não gostam muito dos seres humanos e para as quais tudo se resolve pela força. A Bíblia aparece e conta a história mais uma vez, mas de forma diferente: Deus envia o Dilúvio porque há muita violência no mundo, e o resultado é que a história ganha sentido moral, o que é parte do projeto da Bíblia. É um salto radical do politeísmo para o monoteísmo: para um mundo em que as pessoas cultuavam o poder, para a insistência bíblica em que o poder tem de ser justo e às vezes compassivo, e de um mundo no qual há muitas forças, muitos deuses, lutando uns contra os outros, para outro em que todo o universo é resultado de uma única vontade criadora racional. Portanto, quanto mais se entende o que a Bíblia combate, mais profunda é nossa compreensão dela.
No entanto, a Tabuleta do Dilúvio era importante não apenas para a história da religião; é também um documento vital na história da literatura. A tabuleta de Smith vem do século VII a.C., mas agora sabemos que a história do Dilúvio foi escrita originalmente mil anos antes. Só mais tarde o relato do Dilúvio foi inserido por contadores de história na famosa epopeia de Gilgamesh, o primeiro grande poema épico da literatura mundial. Gilgamesh é um herói que parte em busca da imortalidade e do autoconhecimento. Enfrenta demônios e monstros, sobrevive a todos os perigos e, por fim, como todos os heróis posteriores, vê-se diante do maior desafio de todos: sua própria natureza e sua própria mortalidade. A tabuleta de Smith é apenas o décimo primeiro capítulo da história. A epopeia de Gilgamesh tem todos os elementos de um ótimo conto, mas é também um momento decisivo na história na escrita.
A escrita no Oriente Médio começou como pouco mais do que uma forma de fazer contabilidade: criada essencialmente para burocratas a fim de manter registros. Foi usada, acima de tudo, para as tarefas práticas do Estado. Já as histórias eram em geral contadas ou cantadas e aprendidas de cor. Porém, aos poucos, mais ou menos há quatro mil anos, histórias como a de Gilgamesh começaram a ser registradas por escrito. Intuições sobre as esperanças e os temores do herói agora podiam ser ajustadas, refinadas e fixadas; o autor teria certeza de que sua visão particular da narrativa e seu entendimento pessoal da história poderiam ser transmitidos diretamente, e não alterados o tempo todo por outros contadores de história. A escrita transferiu a autoria da comunidade para o indivíduo. Não menos importante, um texto escrito podia ser traduzido, e a forma particular de uma história poderia, agora, passar facilmente para várias línguas. A literatura registrada por escrito tornava-se, assim, literatura mundial. David Damrosch explica esse contexto:
Gilgamesh agora é muitas vezes apontada nos cursos de literatura como a primeiríssima obra, e isso mostra uma espécie de globalização precoce. É a primeira obra da literatura mundial que circula amplamente no mundo antigo. O mais notável, quando se observa Gilgamesh hoje, é ver que, recuando o suficiente no tempo, não houve choque de civilizações entre o Oriente Médio e o Ocidente. Descobrimos em Gilgamesh as origens de uma cultura comum — seus rebentos aparecem em Homero, em As mil e uma noites e na Bíblia —, portanto ele é, de fato, uma espécie de fio condutor comum na nossa cultura global.
Com a epopeia de Gilgamesh, representada aqui pela Tabuleta do Dilúvio de Smith, o ato de escrever deixou de ser um meio de registrar fatos e passou a ser um meio de investigar ideias. Sofreu uma mudança em sua natureza. E mudou a “nossa” natureza: uma literatura como a de Gilgamesh nos permite não apenas explorar nossos próprios pensamentos, mas habitar o mundo da imaginação de outros. Essa, obviamente, é também a ideia do British Museum e, na verdade, dos objetos que compõem este fio condutor da história da humanidade que tento traçar aqui: eles nos oferecem a possibilidade de outras existências.
 
 
 
(Neil MacGregor - A História do Mudo em 100 Objetos)

publicado às 00:33


A “RAZÃO” NA FILOSOFIA

por Thynus, em 13.09.17
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O ser humano sempre sentiu necessidade de entender o mundo e suas manifestações. Se, até determinado momento, o mito era a explicação suficiente, o a evolução natural passou a não mais responder aos anseios de entendimento do homem. Como se deu essa passagem? Na Grécia Antiga, a explicação religiosa de mundo (por nós chamada de mito) declina quando os primeiros sábios põem em discussão a ordem humana e a traduzem em fórmulas acessíveis à inteligência dos homens. Mas por que e como isso acontece?

Mito é o conjunto de explicações reunidas em narrativas que buscam dar um sentido à realidade. Hoje parece fácil, mas há cerca de 30 séculos, entender o que está por trás dos fenômenos meteorológicos, por exemplo, não era nada óbvio. O mito é sempre uma explicação simbólica em todos os povos. O mito grego tem uma especificidade: possui alegorias inteligentes e razoáveis. 

Marly Netto Peres

.
A passagem do mito à razão
 
1.
 

Vocês me perguntam o que é idiossincrasia nos filósofos?... Por exemplo, sua falta de sentido histórico, seu ódio à noção mesma do vir-a-ser, seu egipcismo.31 Eles acreditam fazer uma honra a uma coisa quando a des-historicizam, sub specie aeterni [sob a perspectiva da eternidade] — quando fazem dela uma múmia. Tudo o que os filósofos manejaram, por milênios, foram conceitos-múmias; nada realmente vivo saiu de suas mãos. Eles matam, eles empalham quando adoram, esses idólatras de conceitos — tornam-se um perigo mortal para todos, quando adoram. A morte, a mudança, a idade, assim como a procriação e o crescimento, são para eles objeções — até mesmo refutações. O que é não se torna; o que se torna não é... Agora todos eles crêem, com desespero até, no ser. Mas, como dele não se apoderam, buscam os motivos pelos quais lhes é negado. “Deve haver uma aparência, um engano, que nos impede de perceber o ser: onde está o enganador?” — “Já o temos”, gritam felizes, “é a sensualidade! Esses sentidos, já tão imorais em outros aspectos, enganam-nos acerca do verdadeiro mundo. Moral: desembaraçar-se do engano dos sentidos, do vir-a-ser, da história, da mentira — história não é senão crença nos sentidos, crença na mentira. Moral: dizer não a tudo o que crê nos sentidos, a todo o resto da humanidade: tudo isso é ‘povo’. Ser filósofo, ser múmia, representar o ‘monotonoteísmo’ com mímica de coveiro! — E, sobretudo, fora com o corpo, essa deplorável idée fixe dos sentidos! acometido de todos os erros da lógica, refutado, até mesmo impossível, embora insolente o bastante para portar-se como se fosse real!...”

 

 

2.

 

Ponho de lado, com grande reverência, o nome de Heráclito. Se o resto dos filósofos rejeitava o testemunho dos sentidos porque estes mostravam multiplicidade e mudança, ele o rejeitou porque mostravam as coisas como se elas tivessem duração e unidade. Também Heráclito foi injusto com os sentidos. Eles não mentem nem do modo como os eleatas pensavam, nem como ele pensava — eles não mentem.32 O que fazemos do seu testemunho é que introduz a mentira; por exemplo, a mentira da unidade, a mentira da materialidade, da substância, da duração... A “razão” é a causa de falsificarmos o testemunho dos sentidos. Na medida em que mostram o vir-a-ser, o decorrer, a transformação, os sentidos não mentem... Mas Heráclito sempre terá razão em que o ser é uma ficção vazia. O mundo “aparente” é o único: o “mundo verdadeiro” é apenas acrescentado mendazmente...

 

 

3.

 

— E que finos instrumentos de observação temos em nossos sentidos! Esse nariz, por exemplo, do qual nenhum filósofo falou ainda com respeito e gratidão, é, por ora, o mais delicado instrumento à nossa disposição: ele pode constatar diferenças mínimas de movimento, que nem mesmo o espectroscópio constata. Nós possuímos ciência, hoje, exatamente na medida em que resolvemos aceitar o testemunho dos sentidos — em que aprendemos a ainda aguçá-los, armá-los, pensá-los até o fim. O restante é aborto e ciência-ainda-não: isto é, metafísica, teologia, psicologia, teoria do conhecimento. Ou ciência formal, teoria dos signos: como a lógica e essa lógica aplicada que é a matemática. Nelas a realidade não aparece, nem mesmo como problema; e tampouco a questão de que valor tem uma tal convenção de signos como a lógica. —

 

 

4.

 

A outra idiossincrasia dos filósofos não é menos perigosa: ela consiste em confundir o último e o primeiro. O que vem no final — infelizmente, pois não deveria jamais vir! —, os “conceitos mais elevados”, isto é, os conceitos mais gerais, mais vazios, eles põem no começo, como começo. Novamente, isto é apenas expressão de seu modo de venerar: o mais elevado não pode ter se desenvolvido a partir do mais baixo, não pode ter se desenvolvido absolutamente... Moral: tudo o que é de primeira ordem tem de ser causa sui [causa de si mesmo]. A procedência de algo mais é tida como objeção, como questionamento do valor. Todos os valores mais altos são de primeira ordem, todos os conceitos mais elevados, o ser, o incondicionado, o bem, o verdadeiro, o perfeito — nenhum deles pode ter se tornado, tem de ser causa sui. Mas também não pode ser dissimilar um do outro, não pode estar em contradição consigo... Assim os filósofos chegam ao seu estupendo conceito de “Deus”... O último, mais tênue, mais vazio é posto como primeiro, como causa em si, como ens realissimum [ente realíssimo]... E pensar que a humanidade teve de levar a sério as fantasias doentes desses tecedores de teias!33 — E pagou caro por isso!...
 

 

5.

 

— Vamos contrapor a isso, finalmente, de que outra maneira nós (— digo “nós” por cortesia...) abordamos o problema do erro e da aparência. Antes se tomava a mudança, a transformação, o vir-a-ser como prova da aparência, como sinal de que aí deve haver algo que nos induz ao erro. Hoje, ao contrário, e justamente na medida em que o preconceito da razão nos obriga a estipular unidade, identidade, duração, substância, causa, materialidade, ser, vemo-nos enredados de certo modo no erro, forçados ao erro; tão seguros estamos nós, com base em rigoroso exame, que aqui está o erro. Não é diferente do que sucede com os movimentos do grande astro: no caso deles, o erro tem nosso olho como permanente advogado, e aqui, tem nossa linguagem. A linguagem pertence, por sua origem, à época da mais rudimentar forma de psicologia: penetramos um âmbito de cru fetichismo, ao trazermos à consciência os pressupostos básicos da metafísica da linguagem, isto é, da razão. É isso que em toda parte vê agentes e atos: acredita na vontade como causa; acredita no “Eu”,34 no Eu como ser, no Eu como substância, e projeta a crença no Eu-substância em todas as coisas — apenas então cria o conceito de “coisa”... Em toda parte o ser é acrescentado pelo pensamento como causa, introduzido furtivamente; apenas da concepção “Eu” se segue, como derivado, o conceito de “ser”... No início está o enorme e fatídico erro de que a vontade é algo que atua — de que vontade é uma faculdade... Hoje sabemos que é apenas uma palavra... Muito tempo depois, num mundo mil vezes mais esclarecido, chegou à consciência dos filósofos, com surpresa, a segurança, a subjetiva certeza no manejo das categorias da razão: eles concluíram que estas não podiam proceder do mundo empírico — todo o mundo empírico as contradiz. De onde procedem, então? — E na Índia, como na Grécia,35 foi cometido o mesmo erro: “Devemos já ter habitado um mundo mais elevado (— em vez de um bem mais baixo: o que teria sido a verdade!), devemos ter sido divinos, pois temos a razão!”... Na realidade, nada, até o presente, teve uma força de persuasão mais ingênua do que o erro do ser, tal como foi formulado pelos eleatas, por exemplo: afinal, ele tem a seu favor cada palavra, cada frase que falamos! — Também os opositores dos eleatas estavam sujeitos à sedução de seu conceito do ser: Demócrito,36 entre outros, ao inventar seu átomo... A “razão” na linguagem: oh, que velha e enganadora senhora! Receio que não nos livraremos de Deus, pois ainda cremos na gramática...

 

 

6.

 

Serei alvo de gratidão, se resumir uma visão tão nova e tão essencial em quatro teses: assim facilito a compreensão, e também desafio a contestação.

Primeira tese. As razões que fizeram “este” mundo ser designado como aparente justificam, isto sim, a sua realidade — uma outra espécie de realidade é absolutamente indemonstrável.

Segunda tese. As características dadas ao “verdadeiro ser” das coisas são as características do não-ser, do nada — construiu-se o “mundo verdadeiro” a partir da contradição ao mundo real: um mundo aparente, de fato, na medida em que é apenas uma ilusão ótico-moral.

Terceira tese. Não há sentido em fabular acerca de um “outro” mundo, a menos que um instinto de calúnia, apequenamento e suspeição da vida seja poderoso em nós: nesse caso, vingamo-nos da vida com a fantasmagoria de uma vida “outra”, “melhor”.

Quarta tese. Dividir o mundo em um “verdadeiro” e um “aparente”, seja à maneira do cristianismo, seja à maneira de Kant (um cristão insidioso, afinal de contas), é apenas uma sugestão da décadence — um sintoma da vida que declina... O fato de o artista estimar a aparência mais que a realidade não é objeção a essa tese. Pois “a aparência” significa, nesse caso, novamente a realidade, mas numa seleção, correção, reforço... O artista trágico não é um pessimista — ele diz justamente Sim a tudo questionável e mesmo terrível, ele é dionisíaco...



(Friedrich Nietzsche - Crepúsculo dos Ídolos)
 
Notas:

31. “egipcismo”: segundo nota de Sánchez Pascual, “tendencia a la permanencia estática, a la intemporalidad, a la petrificación”.
32. “eleatas”: filósofos gregos da escola de Eléia, como Xenófanes, Parmênides e Zenão (sécs. vi-v a. C.), que defendiam a unidade e imutabilidade do ser, diferentemente de Heráclito (c. 550-480 a. C.), que enfatizava o vir-a-ser e a multiplicidade. Na frase seguinte, “materialidade” é a tradução que aqui foi dada a Dinglichkeit, substantivo cunhado a partir de Ding, “coisa”; os outros tradutores usaram: “coisidade”, idem, coiseidad, cosali, réali, thinghood, materiality, idem.
33. “as fantasias doentes desses tecedores de teias”: die Gehirnleiden kranker Spinneweber. A palavra Gehirn (ou Hirn) significa “cérebro”; o verbo spinnen tem os sentidos de “girar”, “tecer”, “fantasiar”, “estar maluco”; uma Spinne é uma aranha; chama-se Hirngespinst algo que foi tramado doentiamente no cérebro. A maioria das versões consultadas é literal: “os sofrimentos cerebrais de doentes tecedores de teias de aranha”; “as dores cerebrais desses doentes, desses tecelões de teias de aranha”; las dolencias cerebrales de unos enfermos tejedores de telarañas; le cerebrali sofferenze di questi malati tessitori di ragnatele; les maux de cerveaux de ces malades tisseurs de toiles daraignées; the brain afflictions of sick web-spinners; the brainsick fancies of morbid cobweb-spinners; the brain-feverish fantasies spun out by the sick. Sobre a imagem da aranha, ver a universelle araignée, em Genealogia da moral, iii, 9, e A gaia ciência, seção 358.
34. Transcrevemos/traduzimos a nota de Duncan Large: “Deve ser notado, nesse contexto, que Sigmund Freud (1856-1939) também usa o termo das Ich (the I [o Eu]) para o que geralmente é traduzido em inglês como ‘o ego’. Tanto a crítica do ‘Eu’ como construto, que aqui faz Nietzsche, como a noção de ‘projeção’, mais adiante (vi, 3; ix, 15), seriam desenvolvidas posteriormente por Freud”.
35. Alusão à doutrina budista da reencarnação e à doutrina platônica da migração da alma para o reino das idéias, após a morte.
36. Demócrito (460-370 a. C.): filósofo grego, principal autor da doutrina atomista na Antigüidade.

publicado às 20:48


O QUE DEVO AOS ANTIGOS

por Thynus, em 13.09.17

O tempo é muito lento para os que esperam
Muito rápido para os que têm medo
Muito longo para os que lamentam
Muito curto para os que festejam
Mas, para os que amam, o tempo é eterno.

Henry Van Dyke
 
"E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: "Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência - e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez, e tu com ela, poeirinha da poeira!". Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderias: "Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!" Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de cada coisa: "Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?" pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?" 
 
F. Nietzsche (A Gaia Ciência)
 
1.
 
Por fim, uma palavra a respeito desse mundo para o qual busquei acessos, para o qual talvez tenha encontrado um novo acesso — o mundo antigo. Meu gosto, que pode ser o contrário de um gosto transigente, também nisso está longe de dizer Sim totalmente: em geral ele não gosta de dizer Sim, acha melhor Não, preferivelmente Nada... Isso vale para culturas inteiras, isso vale para livros — vale também para lugares e paisagens. No fundo, é um número pequeno de livros antigos que conta em minha vida; os mais famosos não se acham entre eles. Meu sentido para o estilo, para o epigrama como estilo, despertou quase instantaneamente no contato com Salústio.140 Não esqueço o espanto de meu caro professor Corssen,141 quando teve que dar a melhor nota ao seu pior aluno de latim — fiz tudo de um só fôlego. Conciso, austero, com a maior substância possível no fundo, uma fria malícia para com a “palavra bela”, o “belo sentimento” também — nisso me descobri.142 Em mim se reconhecerá uma ambição muito séria de estilo romano, de “aere perennius”,143 até em meu Zaratustra. — Não foi diferente no primeiro contato com Horácio. Até hoje não senti com outro poeta o arrebatamento artístico que uma ode de Horácio me proporcionou desde o início. Em algumas línguas, o que ali foi alcançado não pode nem ser desejado. Aquele mosaico de palavras, em que cada palavra, como som, como lugar, como conceito, irradia sua força para a direita, para a esquerda e sobre o conjunto, aquele mínimo em extensão e número de signos, e o máximo que obtém na energia dos signos — tudo isso é romano e, se acreditarem em mim, nobre por excelência. Todo o restante da poesia se torna popular demais em comparação — apenas tagarelice sentimental...
 
 
2.
 
Aos gregos não devo, de forma alguma, impressões assim tão fortes; e, para dizer francamente, eles não podem ser, para nós, o que são os romanos. Não se aprende com os gregos — sua maneira é muito alheia, também muito fluida, para ter efeito imperativo, “clássico”. Quem teria aprendido a escrever com um grego? Quem teria aprendido sem os romanos?... Não me lembrem Platão em objeção a isto. A respeito de Platão sou fundamentalmente cético e jamais pude partilhar a admiração pelo artista Platão, tradicional entre os eruditos. E nisso estão do meu lado os mais refinados juízes do gosto entre os próprios antigos. Platão, assim me parece, junta confusamente todas as formas de estilo, é o primeiro décadent do estilo: carrega uma culpa semelhante à dos cínicos que inventaram a satura Menippea.144 Para achar graça no diálogo platônico, esse tipo de dialética espantosamente presunçoso e infantil, é preciso jamais ter lido os bons franceses — Fontenelle,145 por exemplo. Platão é entediante. — Minha desconfiança de Platão vai fundo, afinal: acho-o tão desviado dos instintos fundamentais dos helenos, tão impregnado de moral, tão cristão anteriormente ao cristianismo — ele já adota o conceito “bom” como conceito supremo —, que eu utilizaria, para o fenômeno Platão, a dura expressão “embuste superior” ou, se soar melhor, idealismo, antes que qualquer outra palavra. Pagou-se caro pelo fato de esse ateniense haver freqüentado a escola dos egípcios (— ou dos judeus no Egito?...). Na grande fatalidade que foi o cristianismo, Platão é aquela ambigüidade e fascinação chamada de “ideal”, que possibilitou às naturezas mais nobres da Antigüidade entenderem mal a si próprias e tomarem a ponte que levou à “cruz”... E quanto de Platão ainda se acha no conceito “Igreja”, na construção, no sistema, na prática da Igreja! — Meu descanso, minha predileção, minha cura de todo platonismo sempre foi Tucídides.146 Tucídides e, talvez, o principe [príncipe] de Maquiavel147 são os mais próximos a mim mesmo, pela incondicional vontade de não se iludir e enxergar a razão na realidadenão na “razão”, e menos ainda na “moral”... Desse lamentável embelezamento e idealização dos gregos, que o jovem de “formação clássica” leva para a vida como prêmio por seu treino ginasial, disso nada cura tão radicalmente como Tucídides. É preciso revirá-lo linha por linha e ler seus pensamentos ocultos tanto quanto suas palavras: há poucos pensadores tão pródigos em pensamentos ocultos. Nele acha expressão consumada a cultura dos sofistas, quero dizer, a cultura dos realistas: esse inestimável movimento em meio ao embuste moral e ideal das escolas socráticas, que então irrompia em toda parte. A filosofia grega como a décadence do instinto grego; Tucídides como a grande suma, a revelação última da forte, austera, dura factualidade148 que havia no instinto dos velhos helenos. A coragem ante a realidade é o que distingue, afinal, naturezas como Tucídides e Platão: Platão é um covarde perante a realidade — portanto, refugia-se no
ideal; Tucídides tem a si sob controle; portanto, mantém as coisas também sob controle...
 
 
3.
 
Vislumbrar nos gregos “almas belas”,149 “áurea moderação” e outras perfeições, ou neles admirar a calma na grandeza, a mentalidade ideal, a elevada ingenuidade150 — dessa “elevada ingenuidade”, uma niaiserie allemande [bobagem alemã], afinal, fui protegido pelo psicólogo que há em mim. Eu vi seu mais forte instinto, a vontade de poder, eu os vi tremendo ante a indomável força desse instinto — eu vi todas as suas instituições nascerem de medidas preventivas para resguardarem uns aos outros de seu íntimo material explosivo. A enorme tensão no interior descarregava-se em terrível e implacável inimizade com o exterior: as cidades dilaceravam umas às outras, para que os cidadãos de cada uma encontrassem paz diante de si mesmos. Era necessário ser forte: o perigo estava próximo — espreitava em toda parte. A magnífica destreza dos corpos, o audacioso realismo e imoralismo peculiar aos helenos, foi uma necessidade, não uma “natureza”. Veio depois, não existiu desde o começo. E com festas e artes eles não queriam outra coisa senão sentir-se lá em cima, mostrar-se lá em cima: são meios de glorificar a si mesmo, às vezes de inspirar temor a si mesmo... Julgar os gregos, à maneira alemã, por seus filósofos, servir-se do bom-mocismo151 das escolas socráticas para tirar conclusões sobre o que é, no fundo, helênico!... Mas os filósofos são os décadents do helenismo, o antimovimento contra o gosto antigo e nobre (— contra o instinto agonal, contra a pólis, contra o valor da raça, contra a autoridade da tradição). As virtudes socráticas foram pregadas porque haviam sido perdidas pelos gregos: suscetíveis, temerosos, inconstantes, todos eles comediantes, tinham razões de sobra para deixar que lhes pregassem moral. Não que isso ajudasse alguma coisa: mas palavras e atitudes grandes ficam tão bem em décadents...
 
O eterno retorno
 
4.
 
Fui o primeiro que levou a sério, para a compreensão do velho, ainda rico e até transbordante instinto helênico, esse maravilhoso fenômeno que leva o nome de Dionísio: ele é explicável apenas por um excesso de força. Quem se ocupa dos gregos, como Jacob Burckhardt, da Basiléia, o mais profundo conhecedor atual de sua cultura, soube de imediato que isso era uma realização: Burckhardt acrescentou à sua Cultura dos gregos152 uma seção específica sobre o fenômeno. Querendo-se o oposto, veja-se a quase divertida pobreza de instinto dos filólogos alemães, quando se aproximam do dionisíaco. Sobretudo o famoso Lobeck,153 que, com a venerável segurança de um verme que sempre viveu entre os livros, penetrou nesse mundo de estados misteriosos e se convenceu de que era científico, sendo leviano e pueril ad nauseam — Lobeck deu a entender, com o máximo de erudição, que todas essas curiosidades não significavam realmente grande coisa. De fato, os sacerdotes podem ter informado aos participantes daquelas orgias algo não inteiramente sem valor; por exemplo, que o vinho incita ao prazer, que o ser humano pode viver de frutos em determinadas circunstâncias, que as plantas florescem na primavera e murcham no outono. No tocante àquela surpreendente riqueza de ritos, símbolos e mitos de procedência orgiástica, de que o mundo antigo está literalmente coberto, Lobeck vê nisso a oportunidade de ser ainda mais engenhoso. “Os gregos”, diz ele (Aglaophamus, i, 672), “se não tinham outras coisas a fazer, riam, pulavam, corriam, ou, como o ser humano também se inclina a isso, sentavam-se, choravam, lamentavam. Vieram outros, depois, e buscaram algum motivo para o estranho modo de ser; e assim surgiram, para explicação desses costumes, inúmeras lendas festivas e mitos. Por outro lado, acreditou-se que a burlesca atividade que ocorria durante as festas pertencia necessariamente à celebração, e ela foi mantida como parte indispensável do culto religioso.” — Isto não passa de deplorável garrulice, nem por um instante podemos levar a sério este Lobeck.
Somos impressionados de forma bem diferente ao examinar o conceito de “grego” desenvolvido por Goethe e Winckelmann,154 e o achamos incompatível com aquele elemento do qual nasce a arte dionisíaca — o orgiástico. Realmente não duvido que Goethe, por princípio, tenha excluído algo semelhante das possibilidades da alma grega. Portanto, Goethe não compreendeu os gregos. Pois somente nos mistérios dionisíacos, na psicologia do estado dionisíaco, expressa-se o fato fundamental do instinto helênico — sua “vontade de vida”. Que garantia o heleno para si com esses mistérios? A vida eterna, o eterno retorno da vida; o futuro, prometido e consagrado no passado; o triunfante Sim à vida, acima da morte e da mudança; a verdadeira vida, como continuação geral mediante a procriação, mediante os mistérios da sexualidade. Para os gregos, então, o símbolo sexual era o símbolo venerável em si, o autêntico sentido profundo no interior da antiga religiosidade. Todo pormenor no ato da surpreendente riqueza de ritos, símbolos e mitos de procedência orgiástica, de que o mundo antigo está literalmente coberto, Lobeck vê nisso a oportunidade de ser ainda mais engenhoso. “Os gregos”, diz ele (Aglaophamus, i, 672), “se não tinham outras coisas a fazer, riam, pulavam, corriam, ou, como o ser humano também se inclina a isso, sentavam-se, choravam, lamentavam. Vieram outros, depois, e buscaram algum motivo para o estranho modo de ser; e assim surgiram, para explicação desses costumes, inúmeras lendas festivas e mitos. Por outro lado, acreditou-se que a burlesca atividade que ocorria durante as festas pertencia necessariamente à celebração, e ela foi mantida como parte indispensável do culto religioso.” — Isto não passa de deplorável garrulice, nem por um instante podemos levar a sério este Lobeck.
Somos impressionados de forma bem diferente ao examinar o conceito de “grego” desenvolvido por Goethe e Winckelmann,154 e o achamos incompatível com aquele elemento do qual nasce a arte dionisíaca — o orgiástico. Realmente não duvido que Goethe, por princípio, tenha excluído algo semelhante das possibilidades da alma grega. Portanto, Goethe não compreendeu os gregos. Pois somente nos mistérios dionisíacos, na psicologia do estado dionisíaco, expressa-se o fato fundamental do instinto helênico — sua “vontade de vida”. Que garantia o heleno para si com esses mistérios? A vida eterna, o eterno retorno da vida; o futuro, prometido e consagrado no passado; o triunfante Sim à vida, acima da morte e da mudança; a verdadeira vida, como continuação geral mediante a procriação, mediante os mistérios da sexualidade. Para os gregos, então, o símbolo sexual era o símbolo venerável em si, o autêntico sentido profundo no interior da antiga religiosidade. Todo pormenor no ato da procriação, da gravidez, do nascimento despertava os mais elevados e solenes sentimentos. Na doutrina dos mistérios a dor é santificada: as “dores da mulher no parto” santificam a dor em geral — todo vir-a-ser e crescer, tudo o que garante o futuro implica a dor... Para que haja o eterno prazer da criação, para que a vontade de vida afirme eternamente a si própria, tem de haver também eternamente a “dor da mulher que pare”... A palavra “Dionísio” significa tudo isso: não conheço simbolismo mais elevado que esse simbolismo grego, o das dionisíacas.155 O mais profundo instinto da vida, aquele voltado para o futuro da vida, a eternidade da vida, é nele sentido religiosamente — e o caminho mesmo para a vida, a procriação, como o caminho sagrado... Só o cristianismo, com seu fundamental ressentimento contra a vida, fez da sexualidade algo impuro: jogou imundície no começo, no pressuposto de nossa vida...
 
 
5.
 
A psicologia do orgiástico como sentimento transbordante de vida e força, no interior do qual mesmo a dor age como estimulante, deu-me a chave para o conceito do sentimento trágico, que foi mal compreendido tanto por Aristóteles como, sobretudo, por nossos pessimistas. A tragédia está tão longe de provar algo sobre o pessimismo dos helenos, no sentido de Schopenhauer, que deve ser considerada, isto sim, a decisiva rejeição e instância contrária dele. O dizer Sim à vida, mesmo em seus problemas mais duros e estranhos; a vontade de vida, alegrando-se da própria inesgotabilidade no sacrifício de seus mais elevados tipos — a isso chamei dionisíaco, nisso vislumbrei a ponte para a psicologia do poeta trágico. Não para livrar-se do pavor e da compaixão, não para purificar-se de um perigoso afeto mediante sua veemente descarga — assim o compreendeu Aristóteles156 —: mas para, além do pavor e da compaixão, ser em si mesmo o eterno prazer do vir-a-ser — esse prazer que traz em si também o prazer no destruir... E com isso toco novamente no ponto do qual uma vez parti — o Nascimento da tragédia foi minha primeira tresvaloração de todos os valores: com isso estou de volta ao terreno em que medra meu querer, meu saber — eu, o último discípulo do filósofo Dionísio — eu, o mestre do eterno retorno...
 
(Friedrich Nietzsche - Crepúsculo dos Ídolos)
 
Notas:
 
140. Gaio Salústio Crispo (86-35 a. C.): historiador romano que tomou Tucídides por modelo e é notório pela concisão de seu estilo.
141. Wilhelm Corssen (1820-75): filólogo clássico que ensinou em Pforta, a respeitada escola que Nietzsche freqüentou entre 1858 e 1864.
142. “nisso me descobri”: daran erriet ich mich — o verbo erraten não tem equivalente exato em português, sendo algo como “adivinhar, intuir, perceber, decifrar, descobrir”; e o seu uso pronominal dificulta ainda mais a tarefa dos tradutores: “tudo isso me entusiasmou”, “nisto desvendei a mim mesmo”, en esto me adiviné a mí mismo, in ciò divinai me stesso, cest à toutes ces qualités que je me suis deviné, here I found myself, in that I knew myself, I sensed myself here.
143. “aere perennius”: “mais duradouro que o bronze” — citação do poeta romano Horácio (65-8 a. C.), do verso que diz: “Ergui um monumento mais duradouro que o bronze (Odes, iii, 30, 1); é uma das citações favoritas de Nietzsche: cf. Humano, demasiado humano, seção 22; Aurora, Pr3, seção 71.
144. satura Menippea: sátira menipéia — gênero literário romano que se inspirou em Menipo de Gadara (séc. iii a. C.), cínico grego que satirizou os contemporâneos numa mistura de prosa e verso. Nenhum dos seus treze livros chegou até nós, mas o romano Varrão (116-27 a. C.) imitou-o nas Saturae Menippeae.
145. Bernard Le Bovier de Fontenelle (1657-1757): escritor e filósofo francês; conhecido pela perspicácia e pela elegância de estilo, sobretudo com os Nouveaux dialogues des morts (1683).
146. Tucídides (c. 460-400 a. C.): historiador grego, autor da Hisria da Guerra do Peloponeso, sobre o conflito entre Atenas e Esparta pelo domínio da Grécia, entre 431 e 404 a. C.
147. Nicolau Maquiavel (1469-1527): político e escritor florentino, famoso por seu tratado O príncipe (1513).
148. “factualidade”: tradução aqui dada a Tatsächlichkeit, substantivação do adjetivo tatlich, que significa “efetivo, real”, formado a partir de Tatsache, “fato” (que traz em si Tat, “ato”, e Sache, “coisa”). As outras versões oferecem: “objectividade”, “facticidade”, objetividad, oggettivi, esprit des réalités, factuality, matter-of-factness, actuality.
149. “almas belas”: expressão de Winckelmann popularizada por Goethe, cujo romance Anos de aprendizado de Wilhelm Meister (1795) tem um capítulo intitulado “Confissões de uma alma bela”.
150. “calma na grandeza [...] elevada ingenuidade”: Ruhe in der Größe [...] hohe Einfalt — Nietzsche zomba das palavras célebres que Winckelmann aplicou à arte grega, edle Einfalt und stille Größe, “nobre ingenuidade [ou simplicidade] e tranqüila grandeza”, que sintetizaram a idealização dos gregos por parte dos alemães.
151. “bom-mocismo”: tradução aqui dada a Biedermännerei — as traduções consultadas preferiram: “as ingenuidades”, “a lengalenga dos bons homens”, la mojigatería, latteggiamento benpensante, la lourde honnêteté, the Philistine moralism, the philistinism, the smugness; cf. Além do bem e do mal, nota 147.
152. Cultura dos gregos: na verdade, um livro que Burckhardt não chegou a publicar. Nietzsche assistiu a algumas das aulas dele sobre o tema, quando vivia na Basiléia, e tinha cópias de anotações feitas por estudantes. O texto dessas aulas foi publicado postumamente com o título de Griechische Kulturgeschichte (“História da cultura grega”, 1930-31).
153. Christian August Lobeck (1781-1860): filólogo clássico alemão, foi professor em Wittenberg e Königsberg; sua obra principal, citada e criticada em seguida por Nietzsche, trata dos antigos cultos de mistérios. Na mesma frase, “um verme que sempre viveu entre os livros” alude à expressão Bücherwurm (“verme de livros”, “traça”), que os alemães empregam também para designar os viciados em ler ou colecionar livros.
154. Johann Joachim Winckelmann (1717-68): arqueólogo e historiador da arte antiga, cf. notas 147 e 148.
155. “dionisíacas”: festas para o deus Dionísio realizadas em Atenas; incluíam sacrifícios, apresentações dramáticas, prova do novo vinho, desfile de esculturas fálicas, casamentos simbólicos e orgias.
156. “assim o compreendeu Aristóteles”: cf. Poética, 6, sobre a catarse na tragédia.

publicado às 16:06


M+3=15

por Thynus, em 04.09.17
Antes de me julgar, pense em toda merda que você já fez.
 

Uma grande amizade tem que ser igual a bunda: tão unida que merda nenhuma separa.
Rafael Pires 
 

Nunca conte uma mentira se você pode conseguir as coisas falando merda."
(E. Ambler.- Dirty Story)   
 
Sinceridade nada mais é do que falar merda!
(Harry G. Frankfurt, - Sobre Falar Merda)  
 
 
Um dos traços mais notáveis de nossa cultura é que se fale tanta merda. Todos sabem disso. Cada um de nós contribui com sua parte. Mas tendemos a não perceber essa situação. A maioria das pessoas confia muito em sua capacidade de reconhecer quando se está falando merda e de evitar se envolver. Assim, o fenômeno nunca despertou preocupações especiais nem induziu uma investigação sistemática.
Por causa disso, não temos uma idéia clara do que é falar merda, da razão para que se fale tanta ou para que serve. E nos falta também uma avaliação conscienciosa do que isso significa para nós. Em outras palavras, não dispomos de uma teoria. Proponho iniciar o desenvolvimento de uma compreensão teórica do que significa falar merda, oferecendo algumas análises experimentais e exploratórias.
Não vou considerar seus usos e abusos retóricos. Meu objetivo é apenas fornecer uma descrição aproximada do que é falar merda e do que não é — ou (em outros termos) articular, de uma forma mais ou menos resumida, a estrutura desse conceito.
Qualquer sugestão sobre as condições logicamente necessárias e suficientes para constituir o ato de falar merda está destinada a ser arbitrária. Por um lado, a expressão falar merda é empregada livremente — como um termo ofensivo genérico, sem um significado literal muito especifico. Por outro, o fenômeno é tão vasto e amorfo que nenhuma análise concisa e perspicaz de seu conceito consegue deixar de ser procustiana. Entretanto, deve ser possível dizer algo de útil, mesmo sem muita probabilidade de que seja conclusivo Até as questões mais básicas e preliminares sobre o que é falar merda não apenas permanecem sem resposta como nem sequer são perguntadas.
Até onde sei, pouquíssimos trabalhos foram desenvolvidos sobre o assunto. Não empreendi um levantamento sobre sua literatura, em grande parte porque não saberia como fazê-lo. É certo que há um lugar muito óbvio para se dar uma olhada — o Oxford English Dictionary. O OED tem um verbete para falação de merda, nos volumes suplementares, e também outros para vários usos pertinentes de falação e de outros termos relacionados. Farei considerações sobre alguns desses verbetes no devido momento. Não consultei dicionários de outras línguas que não o inglês, porque não conheço as palavras para falação de merda ou falação em qualquer outro idioma. Outra fonte importante é o titulo do ensaio The Prevalence of Jiumbug [A predominância da impostura], de Max Black.{1} Não estou seguro quanto à proximidade de significado entre a palavra impostura e a expressão falar merda. É claro que essas palavras não são completa e livremente intercambiáveis; são com certeza usadas de formas diferentes. Porém, essa diferença parece ter, no todo, mais a ver com questões de boas maneiras, e com alguns outros parâmetros retóricos, do que com as formas estritamente literais de significado nas quais estou interessado. É mais educado, e menos pesado, dizer “impostura” do que “merda”. No caso desta discussão, vou supor que não há nenhuma outra diferença importante entre os dois termos.
Black sugere uma série de sinônimos para impostura, como os seguintes: embuste, deturpação, lengalenga, conversa fiada, lorota, tapeação e charlatanice. Essa lista singular de equivalentes não é muito útil. Entretanto, Black enfrenta mais diretamente o problema de estabelecer o conceito do que é impostura e oferece a seguinte definição formal:
 
IMPOSTURA: embuste enganador próximo da mentira, em especial por meio de palavra ou ato pretensioso, em relação aos próprios pensamentos, sentimentos ou atitudes.{2}
 
Uma formulação bastante similar poderia ser plausivelmente oferecida para enunciar as características essenciais de falar merda.
Como uma preliminar para o desenvolvimento de uma descrição independente dessas características, vou comentar os vários elementos da definição de Black.
Embuste enganador: Isso pode soar pleonástico. Sem dúvida, o que Black tem em mente é que a impostura pretende ou tenciona necessariamente enganar, que seu embuste não é algo inadvertido. Em outras palavras, trata-se de uma coisa deliberada. Assim, se, por uma questão de necessidade conceitual, a intenção de enganar é uma característica invariável da impostura, então a qualidade de ser impostura depende, ao menos em parte, do estado de espírito de seu perpetrador. Esse estado de espírito não pode, portanto, ser idêntico a qualquer propriedade seja inerente ou relacional — do discurso por meio do qual a impostura é perpetrada.
Sob esse aspecto, a propriedade de ser impostura é semelhante à da mentira, que não é idêntica nem à falsidade nem a nenhuma das outras propriedades contidas na afirmação do mentiroso, mas que requer que ele a faça num determinado estado de espírito a saber, com a intenção de enganar.

Uma questão adicional é se há alguma característica essencial à impostura ou à mentira que não dependa das intenções e das crenças da pessoa responsável por ambas, ou se, pelo contrário, é possível que algum tipo de afirmação se torne — uma vez que o falante se encontre num determinado estado de espírito - um veículo para a impostura ou a mentira. Em certas descrições do ato de mentir, não existe mentira nenhuma a menos que uma declaração falsa seja feita; em outras, o indivíduo pode estar mentindo mesmo que sua afirmação seja verdadeira, contanto que ele acredite que a mesma é inverídica e que pretenda, ao fazê-la, enganar. E sobre criar imposturas e falar merda? Pode alguma espécie de afirmação ser qualificada como impostura ou merda, desde que (por assim dizer) o estado de espírito do falante seja o correto, ou o enunciado deve também ter características próprias?

Próxima da mentira: Tem de ser parte do argumento dizer que a impostura encontra-se “próxima da mentira”, que, embora tendo algumas de suas características eminentes, há outras que lhe faltam. Contudo, isso não pode constituir-se no todo do argumento. Afinal de contas, qualquer uso da linguagem, sem exceção, revela não todos mas alguns dos traços característicos da mentira nem que seja ao menos o aspecto de ser um uso da linguagem. Entretanto, seria certamente incorreto descrever qualquer uso da linguagem como próximo da mentira. A expressão de Black evoca a noção de algum tipo de contínuo, em que a mentira se situa num certo segmento enquanto a impostura está localizada exclusivamente em posições anteriores. Que contínuo poderia ser esse, ao longo do qual a impostura só fosse encontrada antes da mentira? Ambas são formas de embuste. Num primeiro olhar, não fica claro como a diferença entre essas variedades de embuste poderia ser interpretada como uma diferença de grau.
Em especial por meio de palavra ou ato pretensioso: Existem dois pontos a serem observados aqui. Primeiro, Black identifica a impostura não apenas como uma categoria do discurso, mas da ação também; ela pode dar-se tanto por palavras quanto por atos. Segundo, seu uso do qualificativo “em especial” indica que Black não considera a pretensão como característica essencial, ou totalmente indispensável, da impostura. Sem dúvida, muitas imposturas são pretensiosas. Além do mais, no que concerne a falar merda, “pretensão de merda” encontra-se muito próximo de ser um lugar-comum. Contudo, inclino-me a pensar que, quando a merda é pretensiosa, isso acontece porque a pretensão é mais um motivo que um elemento constitutivo de sua essência. O fato de uma pessoa comportar-se pretensiosamente não é, parece-me, parte do que é exigido para tornar seu discurso uma ocorrência de falar merda. Isso é o que justifica, muitas vezes, a enunciação desse discurso. Todavia, não se deve presumir que falar merda tenha sempre e necessariamente a pretensão como motivo.
Embuste (…) em relação aos próprios pensamentos, sentimentos ou atitudes: Essa cláusula de que o perpetrador da impostura está criando uma deturpação de si levanta algumas questões muito centrais. Para começar, toda vez que uma pessoa deturpa de moto próprio qualquer coisa, ela está inevitavelmente deturpando o próprio estado de espírito. É possível para uma pessoa deturpar apenas este último por exemplo, fingindo experimentar um desejo ou um sentimento que na verdade não tem. Mas suponhamos que o indivíduo, seja ao contar uma mentira ou de outra forma qualquer, deturpe alguma outra coisa. Nesse caso, ele está necessariamente deturpando duas coisas: o que está dizendo -- ou seja, o estado de coisas que é o tópico ou o referente do seu discurso e, ao fazer isso, não pode impedir-se de deturpar o próprio espírito também. Assim, alguém que mente sobre quanto dinheiro tem no bolso ao mesmo tempo dá essa informação e transmite a ideia de acreditar nela. Se a mentira funciona, a vítima é então duas vezes enganada, ao acreditar falsamente no conteúdo do bolso do mentiroso e no que vai em sua mente.
Ora, não e provável que Black deseje que o referente da impostura seja, em todos os casos, o estado de espírito do falante. Não há uma razão particular, afinal de contas, para que a impostura não seja a respeito de outras coisas. É provável que Black queira dizer que ela não se propõe basicamente a dar ao seu público uma idéia falsa do estado de coisas do tópico, seja qual for, mas que sua intenção principal é, antes, oferecer a esse público uma falsa impressão do que se passa no espírito do falante. Na medida em que se trata de uma impostura, criar essa impressão é seu propósito e objetivo essencial.

Entender Black ao longo dessas linhas sugere uma hipótese que explica sua caracterização da impostura como “próxima da mentira”. Se minto a respeito de quanto dinheiro tenho, então não estou fazendo uma afirmação explícita com relação às minhas crenças. Portanto, pode-se com alguma credibilidade afirmar que, embora ao mentir eu esteja deturpando o que se passa em minha cabeça, essa deturpação — diferente daquela sobre a quantia em meu bolso - não é exatamente uma mentira. Pois não estou propalando por aí qualquer afirmação sobre o que se passa em minha cabeça. Nem a afirmação que faço — por exemplo, “tenho vinte dólares no bolso” implica qualquer declaração que me atribua uma crença. Por outro lado, é inquestionável que, ao fazer a afirmação, forneço uma boa base para se fazerem certos julgamentos sobre o que acredito. Em particular, ofereço um fundamento razoável para que se suponha que eu creio ter vinte dólares no bolso. Já que essa suposição é por hipótese falsa, ao mentir, estou enganando os outros com relação ao que se passa em meu espírito, mesmo que não esteja na verdade mentindo sobre isso. Visto sob esse aspecto, não parece artificial ou impróprio considerar que estou deturpando minhas crenças de uma forma que é “próxima da mentira”.

É fácil pensar em situações familiares pelas quais a descrição de Black sobre a impostura parece confirmar-se sem problemas. Imagine um orador do Quatro de Julho que discursa bombásticamente sobre “nosso grande e abençoado país, cujos fundadores, sob orientação divina, criaram um novo começo para a humanidade”. É com certeza uma impostura. Como a descrição de Black sugere, o orador não está mentindo. Ele só estaria fazendo isso se tivesse a intenção de provocar na platéia crenças que considerasse falsas, a respeito de questões como se nosso país é grande, se é abençoado, se os fundadores receberam orientação divina e se o que eles fizeram foi de fato criar um novo começo para a humanidade. Contudo, o orador não se importa na verdade com o que a platéia pensa sobre os fundadores ou sobre o papel da divindade na história de nosso país ou algo equivalente. O que motiva seu discurso não é o interesse no que qualquer um pensa sobre essas questões.
O que torna o discurso do Quatro de Julho uma impostura não é que o orador considere suas afirmações falsas. Pelo contrário, como sugere a descrição de Black, o orador pretende que essas afirmações transmitam uma certa impressão dele. Ele não está tentando enganar ninguém sobre a história americana. A opinião das pessoas sobre ele é que o preocupa. Ele quer ser considerado um patriota, alguém com idéias e sentimentos profundos sobre as origens e a missão de nosso pais, alguém que aprecia a importância da religião, que é sensível à grandeza de nossa história, cujo orgulho dessa história combina com a humildade perante Deus, e assim por diante.
A descrição que Black faz da impostura parece, assim, adaptar-se confortavelmente a certos paradigmas. Entretanto, não creio que apreenda de modo adequado ou com precisão o caráter essencial do falar merda. Como ele diz sobre a impostura, é correto afirmar que falar merda encontra-se próximo da mentira e que aqueles que falam estão, de certo modo, deturpando-se. Contudo, a descrição feita por Black desses dois aspectos encontra-se significativamente longe da verdade. Tentarei fazer agora, analisando um material biográfico referente a Ludwig Wittgenstein, uma avaliação preliminar, porém de foco mais preciso, das características fundamentais do falar merda.
Wittgenstein disse uma vez que o fragmento de verso a seguir, de Longfellow, poderia servir-lhe de mote.{3}
 
Nos tempos antigos da arte
Os construtores com todo cuidado trabalhavam
Cada minúscula e invisível parte,
Pois os deuses em todo lugar se encontravam.
 
O significado dessas linhas é claro. Antigamente, os profissionais não se poupavam trabalho. Labutavam com atenção e tinham cuidado com os menores aspectos de sua lida. Todas as partes do produto eram consideradas, e cada uma delas projetada e feita para ser tal como deveria. Esses profissionais não relaxavam em sua zelosa autodisciplina, mesmo em relação àqueles detalhes de sua ocupação que não eram comumente visíveis, Embora ninguém fosse reparar se eles não estivessem precisamente corretos, os artífices seriam incomodados por suas consciências. Dessa forma, não se varria nada para baixo do tapete. Ou, pode-se também dizer, não se fazia merda.
É fácil produzir artigos feitos sem cuidado, de qualidade inferior, que revelam semelhanças, até certo ponto, com o falar merda. Mas de que modo? Será essa semelhança a de que falar merda sempre ocorre de maneira descuidada ou comodista, de que jamais é uma enunciação elegante, que em sua expressão nunca há aquele delicado e atencioso desvelo com os detalhes ao qual Longfellow alude? Será o falador de merda, pela própria natureza, um idiota desmiolado? Será o seu produto necessariamente sujo ou grosseiro? A palavra merda com certeza sugere isso. O excremento não é de modo algum projetado ou elaborado; é apenas emitido ou descarregado. Pode ter uma forma mais ou menos coesa ou não, mas não é decerto trabalhado.
A noção de se falar merda com cuidadoso apuro envolve, assim, um certo esforço interior, Uma atenção ponderada aos detalhes requer disciplina e objetividade. Ela acarreta a aceitação de padrões e limites que proíbem a tolerância com impulsos e caprichos. É essa abnegação, em relação a falar merda, que nos parece inadequada. Ela não está, entretanto, fora de questão. A área da propaganda e das relações públicas e, hoje em dia, a intimamente ligada área da política estão repletas de exemplos tão consumados de falar merda que podem servir como os paradigmas mais inquestionáveis e clássicos do conceito. E, nessas áreas, existem profissionais extremamente sofisticados que — com o auxilio de técnicas avançadas e requisitadas de pesquisa de mercado, de levantamentos da opinião pública, de testes psicológicos e por aí afora — se dedicam de forma incansável a usar cada palavra e imagem que produzem da maneira mais correta.

Entretanto, há algo mais a se dizer sobre isso. Embora o falador de merda se conduza da forma mais estudada e conscienciosa possível, continua sendo verdade que está tentando levar alguma coisa. Há com certeza em seu trabalho, como no do profissional relapso, um tipo de relaxamento que resiste ou engana as exigências de uma disciplina desinteressada e austera. O modo pertinente de relaxamento não pode ser comparado, evidentemente, à simples negligência ou desatenção com os detalhes. Tentarei no momento oportuno localizar isso com mais exatidão.

Wittgenstein dedicou grande parte de suas energias filosóficas a identificar e combater o que via como formas insidiosamente nocivas de “contra-senso”. Ao que tudo indica, ele era assim na vida pessoal também. Isso é demonstrado num caso relatado por Fania Pascal, que o conheceu em Cambridge na década de 1930:
 
Fiz uma operação para retirar as amígdalas e estava na Casa de Enfermagem Evelyn, sentindo-me triste. Wittgenstein fez-me uma visita. Eu resmunguei “Sinto-me como um cachorro atropelado.” Ele ficou contrariado: “Você não sabe como um cachorro atropelado se sente.{4}
 
Ora, quem sabe o que aconteceu na verdade? Parece extraordinário, quase inacreditável, que alguém possa fazer objeções a sério ao que Pascal relata ter dito. Essa caracterização de seus sentimentos — tão inocentemente próxima à expressão mais que corriqueira “cachorro doente” — não é provocativa o bastante para despertar uma reação tão vívida ou intensa como a contrariedade. Se a comparação de Pascal é ofensiva, então que usos figurativos ou alusivos da língua não o seriam?
Talvez isso não tenha de fato ocorrido da forma como Pascal diz. Pode ser que Wittgenstein estivesse tentando fazer uma pequena piada, e esta não tenha funcionado. Ele estaria apenas fingindo repreender Pascal, só pelo prazer de uma hipérbole; e ela compreendeu seu tom e intenção de forma errada, achando que Wittgenstein ficou contrariado com sua observação, quando na verdade ele só estava tentando reanimá-la com uma critica ou brincadeira jocosamente exagerada. Nesse caso, o incidente não é nem um pouco incrível ou estranho.
Mas, se Pascal não conseguiu reconhecer que Wittgenstein estava apenas provocando, talvez então a possibilidade de que ele estivesse falando sério não fosse tão fora de propósito. Ela o conhecia e sabia o que esperar dele; sabia como ele a fazia sentir-se. O modo de entender ou não a observação dele tinha, assim, grandes probabilidades de não ser de todo incompatível com sua opinião de como ele era. Podemos até supor que, mesmo se seu relato do incidente não for absolutamente fiel à intenção de Wittgenstein, ele é fiel o bastante à idéia de Pascal sobre Wittgenstein a ponto de ter feito sentido para ela. Para os propósitos desta discussão, aceitarei o relato de Pascal literalmente, supondo que, quando se tratou de usar uma linguagem alusiva ou figurativa, Wittgenstein foi na verdade tão despropositado como ela o descreve.
Então, o que o Wittgenstein do relato dela considera tão censurável? Vamos supor que ele esteja correto sobre os fatos: ou seja, Pascal não sabe de fato como um cachorro atropelado se sente. Mesmo assim, quando diz o que pensa, ela claramente não está mentindo. Mentiria se, ao fazer sua afirmação, estivesse na verdade passando muito bem. Pois, por menos que ela soubesse sobre a vida dos cachorros, deveria com certeza estar claro para Pascal que, quando eles são atropelados, não se sentem bem. Assim, se ela estivesse de fato passando bem, teria sido uma mentira afirmar que se sentia como um cachorro atropelado.
O Wittgenstein de Pascal pretende acusá-la não de mentir, mas de outro tipo de deturpação. Ela caracteriza seu sentimento como “a sensação de um cachorro atropelado”. Ela não está na verdade familiarizada com o sentimento ao qual essa frase se refere. Naturalmente que a frase está longe de significar para ela um contra-senso absoluto; Pascal não está falando disparates. O que diz tem uma conotação inteligível, que ela com certeza entende. Além disso, Pascal de fato sabe alguma coisa sobre a natureza da sensação a que a frase se refere: sabe ao menos que ela é indesejável e desagradável, uma sensação ruim. O problema com sua afirmação é que ela pretende transmitir algo mais que o simples não estar bem. Sua caracterização do sentimento é muito específica; é excessivamente particular. O que ela experimenta não é uma sensação ruim qualquer, mas, de acordo com seu relato, o tipo inconfundível de sensação ruim que um cachorro tem quando é atropelado. Para o Wittgenstein da história de Pascal, a julgar por sua resposta, isso é falar merda.
Ora, supondo-se que Wittgenstein considera, de fato, que a caracterização de Pascal sobre como se sente é um exemplo de falar merda, por que isso o impressiona dessa forma? A resposta, acredito eu, é que ele percebe uma falta de preocupação, digamos assim, com a verdade no discurso de Pascal. Sua afirmação não está ligada à iniciativa de descrever a realidade. Ela nem sequer pensa que sabe, a não ser de uma maneira muito vaga, como um cachorro atropelado se sente. Sua descrição desse sentimento é, portanto, algo que ela está simplesmente inventando.

Pascal cria isso do nada; ou, se o ouviu de alguém, repete-o de forma displicente e sem a menor consideração pelas coisas como realmente são.

É por essa displicência que o Wittgenstein de Pascal a censura. O que o deixa contrariado é o fato de ela nem sequer se preocupar se sua afirmação está ou não correta. Existe uma grande probabilidade, é claro, de que ela esteja dizendo o que diz apenas como um esforço desajeitado para falar com vivacidade, ou de parecer jovial e bem-humorada; e não há dúvida de que a reação de Wittgenstein — do modo como ela vê — é absurdamente intolerante. Seja como for, seu significado parece claro. Ele reage como se percebesse que Pascal fala sem pensar, sem dedicar uma atenção conscienciosa aos fatos pertinentes. Sua afirmação não vem “elaborada com todo o esmero”. Ela a enuncia sem nem sequer preocupar-se em levar em conta sua exatidão.
A circunstância que aborrece Wittgenstein não é que Pascal tenha errado em sua descrição de como se sente. Nem que ela tenha cometido esse erro por descuido. Seu desleixo, ou falta de cuidado, não foi ter permitido que um erro escapasse em sua fala por causa de um lapso negligente, inadvertido ou momentâneo da atenção que dedicava a entender as coisas da maneira certa. Pelo contrário, a questão é que, até onde Wittgenstein pode perceber. Pascal oferece a descrição de um certo estado de coisas sem se submeter às restrições que a tentativa de fornecer uma representação precisa da realidade impõe. Seu erro não é que ela não tenha conseguido entender as coisas, mas que nem ao menos tentasse fazê-lo.
Isso é importante para Wittgenstein porque, justificadamente ou não, ele toma o que Pascal diz a sério, como uma declaração que pretende dar uma descrição informativa de como ela se sente. Ele a vê envolvida numa atividade para a qual a distinção entre verdadeiro e falso é crucial e, no entanto, como se não se importasse se o que diz é verdadeiro ou falso. É nesse sentido que a afirmação de Pascal não está ligada a uma preocupação com a verdade: ela não se importa com o valor de verdade do que diz. É por isso que não pode ser observada como se estivesse mentindo; porque ela não presume conhecer a verdade e, portanto, não pode estar difundindo por querer uma proposição que supõe ser falsa: Sua afirmação não está baseada nem na crença de que é verdadeira, como uma mentira deve estar, nem de que não é verdadeira. E essa falta de preocupação com a verdade — essa indiferença em relação ao modo como as coisas realmente são - que considero a essência do falar merda.
Farei agora algumas considerações (muito seletivas) sobre certos itens, no Oxford English Dictionary, que são pertinentes ao esclarecimento da expressão falar merda. O OED define falação como “uma conversa ou discussão informal”. A característica desse tipo de discussão informal que constitui uma falação é, segundo me parece, algo assim: embora a conversa possa ser intensa e significativa, ela não é de certa forma “para valer”.
Os tópicos característicos de uma falação têm a ver com aspectos da vida bastante pessoais e carregados de emoção - como religião, política ou sexo. Em geral, as pessoas relutam em falar muito abertamente sobre esses assuntos quando supõem que podem ser levadas a sério. O que costuma acontecer numa falação é os participantes manifestarem várias idéias e atitudes, a fim de ver como é ouvir a si mesmos falando essas coisas e descobrir como os outros reagem, sem que se presuma que estejam comprometidos com o que dizem: numa falação todos entendem que as afirmações feitas pelas pessoas não revelam necessariamente suas crenças ou sentimentos verdadeiros. O principal é possibilitar um alto nível de franqueza e uma abordagem experimental ou algo aventureira dos assuntos em questão. Portanto, providências são tomadas para que se goze de uma certa irresponsabilidade, de forma a encorajar as pessoas a comunicarem o que vai em suas mentes, sem muita ansiedade quanto a serem cobradas por isso.
Cada um dos participantes de uma falação se fia, em outras palavras, num reconhecimento geral de que aquilo que ele expressou ou disse não é para ser entendido como sendo o que pensa de verdade ou acredita de coração. O propósito da conversa não é transmitir crenças. Assim, as costumeiras hipóteses sobre a relação entre o que as pessoas dizem e aquilo em que acreditam ficam eliminadas. As afirmações proferidas numa falação são diferentes de falar merda porque não há a pretensão de que essa relação esteja sendo mantida. Elas se assemelham a falar merda em razão de não serem, de forma alguma, restringidas por uma preocupação com a verdade. Essa similaridade entre falação e falar merda é também sugerida pela expressão metendo o malho, que se refere a um tipo de conversa que também caracteriza as falações e na qual o termo malho é, muito provavelmente, um substituto mais higiênico para merda.
Um tema semelhante é discernível num uso britânico de falação, no qual, de acordo com o OED, o termo refere-se a “tarefas ou cerimoniais de rotina desnecessários; disciplina excessiva ou ‘cuspir e polir ’; — formalidades”. O dicionário fornece os seguintes exemplos deste uso:
 
O pelotão (…) sentiu-se molestado com toda aquela falação que ecoava pela estação (i. Gleed, Arise to Conquer. VI 51, 1942); Eles nos removendo a guarda, nos marchando em linha reta sob seus olhos, toda aquela falação (A Baron, Humem Kind. XXIV. 178, 1953); a maçada e a “falação” na vida de um membro do parlamento (Economist, 8 de fevereiro, 470/471, 1958)
 
Aqui o termo falação se refere evidentemente a tarefas inúteis, visto que não têm muito a ver com a intenção básica ou com o propósito que justifica o empreendimento que as requer. Cuspir e polir e formalidades não contribuem, é de se supor, para os “verdadeiros” propósitos de militares ou de funcionários do governo, apesar de serem coisas impostas por órgãos ou agentes que pretendem conscienciosamente dedicar-se a esses propósitos. Portanto, as “tarefas ou cerimoniais de rotina desnecessários” que constituem a falação não têm ligação com os motivos legitimadores da atividade na qual se intrometem, da mesma forma que as coisas ditas pelas pessoas numa falação não estão ligadas a suas convicções estabelecidas, nem a falação a uma preocupação com a verdade.
O termo falação é também empregado, num uso muito mais disseminado e familiar, como um equivalente pouco menos vulgar de falar merda. No verbete para falação com esse sentido, o OED sugere o seguinte como definitivo: “conversa ou escrita trivial, insincera ou falsa; contra-senso” Assim, não parece característico da falação que ela deva ser necessariamente carente de significado ou sem importância; de forma que “contra-senso” e “trivial”, além de sua imprecisão, parecem estar na pista errada. O foco sobre “insincera” ou “falsa” é melhor, mas precisa ser aguçado.{5}
O verbete era questão também fornece as duas seguintes definições:
 
1914, Notas Dialetais, IV, 162: Falação, conversa sem propósito: “papo furado.”
1932, Suplemento Literário, Times, 8 de dezembro, 933/3. “Falação” é o termo de gíria para uma combinação de blefe, bravata, “papo furado” e o que se costuma chamar no Exército de “zombando da tropa”.
 
“Sem propósito” e apropriado, mas muito amplo em seu alcance é algo impreciso. Engloba digressões e irrelevâncias inocentes, que não são invariavelmente exemplos de falação; além disso, dizer que a falação é sem propósito não deixa claro que propósito se pretende. A referência, em ambas as definições, a “papo furado” é mais útil.
Quando caracterizamos uma conversa como papo furado, queremos dizer que o que sai da boca do falante é apenas isso. Mero vapor. A fala é vazia, sem substância ou conteúdo. O uso da linguagem não contribui, portanto, para o propósito ao qual pretende servir. Nenhuma informação a mais é comunicada, como se o falante tivesse apenas exalado. A propósito, há certas semelhanças entre papo furado e excremento que fazem papo furado parecer um equivalente especialmente apropriado de falar merda Da mesma forma que papo furado é uma fala que foi esvaziada de todo conteúdo informativo, excremento é matéria da qual foram removidos todos os nutrientes. Ele pode ser visto como o cadáver dos nutrientes, o que resta quando os elementos vitais da comida foram exauridos.
Desse ponto de vista, o excremento é uma representação da morte que geramos e, na verdade, que não podemos impedir de gerar no processo de manutenção de nossa vida. Talvez seja por tornarmos a morte tão íntima que consideramos o excremento repugnante. De qualquer forma, ele não serve mais ao propósito da manutenção do que o papo furado ao da comunicação.
Consideremos agora essas linhas do Canto LXXIV, de Pound, que o OED cita em seu verbete para falar merda:
 
Ei. Snag, o que tem na Bíblia?
Quais são os livros da Bíblia?
Diz, não tala merda pra MIM.
 
Isso e uma avaliação dos fatos. A pessoa interpelada e evidentemente vista como tendo, de alguma forma, afirmado conhecer a bíblia ou interessar-se por ela. O falante suspeita que isso eram apenas palavras vazias e exige que a declaração seja apoiada por fatos. Ele não vai aceitar uma mera descrição; ele insiste em ver a coisa em si. Ou seja, não quer um blefe. A ligação entre falar merda e blefar é declarada explicitamente na definição com a qual as linhas de Pound estão associadas:
 
Falar besteira; ( ..) também, blefar para conseguir as coisas falando besteira
 
De fato, parece que falar merda envolve algum tipo de blefe. Encontra-se, certamente, mais próximo de blefar que de contar uma mentira. Mas o que se deduz de sua natureza pelo fato de ter mais semelhanças com aquele do que com este? Qual é a diferença relevante aqui entre o blefe e a mentira?

Mentir e blefar são formas de embuste ou de logro. Assim, o conceito mais fundamental que caracteriza uma mentira é o de falsidade: o mentiroso é, em essência, alguém que divulga de propósito uma falsidade. O blefe, também, transmite uma coisa falsa. Entretanto, de forma diferente da mentira pura e simples, ele é mais um caso de tapeação que de falsidade. Isso é o que o torna próximo do falar merda. Pois a essência de falar merda não é algo falso, mas adulterado. De forma a avaliar essa distinção, deve-se reconhecer que um embuste ou uma adulteração não precisam ser, de modo algum (à parte a autenticidade em si), inferiores à coisa verdadeira. Aquilo que não é genuíno não precisa ser defeituoso por causa disso. Pode ser, apesar de tudo, uma cópia exata. O problema de uma imitação não é a aparência, mas o modo como foi feita. Isso aponta para um aspecto similar e fundamental da natureza intrínseca de falar merda: embora se origine sem preocupação com a verdade, não precisa ser algo falso. O falador de merda está camuflando as coisas. Porém, isso não significa que ele as entenda erradamente.

No romance Dirty Story, de Eric Ambler, um personagem chamado Arthur Abdel Simpson lembra-se do conselho recebido do pai quando criança:
 
Embora tivesse apenas sete anos quando meu pai foi morto, ainda me lembro muito bem dele e de algumas coisas que costumava dizer (…) Uma das primeiras lições que ele me ensinou foi:
 
Nunca conte uma mentira se você pode conseguir as coisas falando merda.{6}
 
Isso supõe não apenas que há uma diferença importante entre mentir e falar merda, mas que este é preferível àquele. Ora, o Simpson pai não julgava, certamente, que falar merda fosse superior a mentir em termos morais. Nem é provável que considerasse mentir sempre menos eficaz que falar merda, na obtenção dos propósitos para os quais algum desses dois expedientes fosse empregado. Afinal de contas, uma mentira elaborada com inteligência pode fazer seu trabalho com absoluto sucesso. Talvez Simpson julgasse ser mais fácil obter êxito falando merda do que mentindo. Ou então pensasse que, embora o risco de ser pego seja mais ou menos o mesmo nos dois casos, as consequências do flagrante pudessem ser menos severas para o falador de merda do que para o mentiroso. Na verdade, as pessoas tendem de fato a ser mais tolerantes com a falação de merda do que com a mentira, talvez porque sejamos menos propensos a tomar aquela como uma afronta pessoal. É possível que tentemos nos distanciar da falação de merda, porém somos mais inclinados a dar-lhe as costas com um simples encolher de ombros, com impaciência e irritação, do que com o sentimento de ultraje ou de indignação que a mentira quase sempre inspira. O problema de se compreender por que nossa atitude em relação a falar merda é, em geral, mais generosa do que em relação a mentir é muito importante, o que deixarei como um exercício para o leitor.
A comparação pertinente não está, todavia, entre contar uma mentira e originar uma ocorrência específica de falar merda. O Simpson pai vê “conseguir as coisas falando merda” como alternativa a contar uma mentira. Isso não envolve apenas originar uma ocorrência de falar merda; envolve um programa de produção de merda em todo e qualquer âmbito que as circunstâncias possam requerer. Essa talvez seja uma explicação para sua preferência. Contar uma mentira é um ato com enfoque muito preciso, projetado para inserir uma determinada falsidade num ponto específico de um conjunto ou de um sistema de convicções, a fim de evitar as consequências de se ter aquele ponto ocupado pela verdade. Isso requer um grau de perícia no qual o contador da mentira se submete a constrangimentos objetivos, impostos por aquilo que ele tem como sendo a verdade. O mentiroso é incondicionalmente afetado pelos valores de verdade. Para inventar uma mentira qualquer, ele tem de pensar que conhece a verdade e, a fim de inventar uma mentira eficaz, precisa elaborar sua falsidade sob a orientação daquela verdade.
Por outro lado, a pessoa que tenta conseguir as coisas falando merda goza de muito mais liberdade. Seu enfoque e panorâmico em vez de particular. Ela não se limita a inserir determinada falsidade num ponto específico e, dessa forma, não se vê restringida pelas verdades que rodeiam esse ponto ou que o atravessam. Ela está preparada, tanto quanto é preciso, para camuflar o contexto também. Essa liberdade em relação às restrições a que o mentiroso tem de se submeter não significa necessariamente que sua tarefa seja mais fácil que a dele. Porém, a forma de criatividade na qual se fia é menos analítica e refletida do que aquela mobilizada na mentira; é mais extensa e independente, com oportunidades mais amplas para a improvisação, a nuance e o jogo imaginativo. Isso é menos uma questão de habilidade que de arte. Daí o conceito familiar do “artista de merda”. Minha opinião é que a recomendação oferecida pelo pai de Arthur Simpson reflete o fato de que ele se sentia muito mais atraído por essa forma de criatividade, sem levar em conta seu relativo mérito ou efetividade, do que pelas exigências mais austeras e rigorosas da mentira.

O que o falar merda deturpa, essencialmente, não é o estado de coisas ao qual se refere – que a mentira deturpa por ser falso — nem as crenças do falante em relação a esse estado de coisas. Uma vez que falar merda não envolve falsidade, difere das mentiras em seu intento deturpador. O falador de merda pode não nos enganar, ou nem ao menos querer fazê-lo, sobre os fatos ou sua interpretação deles. E sobre sua intenção que ele tenta necessariamente nos enganar. Sua única característica distintiva é que, de certa forma, ele deturpa seu objetivo.

Esse é o ponto crucial da distinção entre ele e o mentiroso. Ambos representam a si mesmos de modo falso, como se tentassem comunicar a verdade. O sucesso de cada um depende de eles nos enganarem a respeito disso. O fato ocultado pelo mentiroso é sua tentativa de nos afastar de uma apreensão correta da realidade; nós não podemos saber sobre seu desejo de que acreditemos numa coisa que ele supõe falsa. O fato que o falador de merda oculta sobre si, por outro lado, é que o valor de verdade de suas afirmações não tem um interesse fundamental para ele; o que não devemos descobrir é que sua intenção não é relatar a verdade nem ocultá-la. Isso não significa que seu discurso seja anarquicamente impulsivo, mas que o motivo a orientá-lo e controlá-lo está pouco interessado em saber como são de fato as coisas que ele fala.
É impossível para alguém mentir a menos que julgue conhecer a verdade. Falar merda não requer essa convicção. Uma pessoa que mente está reagindo a verdade e tem, até certo ponto, respeito por ela. Quando um homem honesto fala, diz apenas o que acredita ser a verdade; enquanto, para o mentiroso, é indispensável que ele considere suas afirmações falsas. Entretanto, no caso do falador de merda, essas coisas não contam: ele não está nem do lado do verdadeiro nem do falso. Seu enfoque não é sobre os fatos, como o do homem honesto e do mentiroso, a não ser que sirvam a seu interesse de se safar com o que diz. Ele não se importa se as coisas que fala descrevem a realidade corretamente. Apenas as escolhe ou inventa para satisfazer seu propósito.
Em seu ensaio De Mendacio [Sobre a mentira], santo Agostinho distingue oito tipos de mentira, classificadas de acordo com a intenção ou justificativa com que é contada. Mentiras de sete tipos são ditas apenas porque se supõe que sejam meios indispensáveis para algum fim que não a mera invenção de falsas convicções. Em outras palavras, não é a falsidade em si que atrai o mentiroso para elas. Uma vez que são ditas somente em virtude de sua suposta necessidade com relação a um objetivo que não é o logro, santo Agostinho as considera como ditas contra a vontade: o que a pessoa deseja de fato não é contar a mentira, mas conseguir seu objetivo. Não se trata, em sua opinião, de mentiras reais, e aqueles que as dizem não são mentirosos, no sentido mais estrito da palavra. E a categoria restante a que contém o que ele identifica como “a mentira contada apenas pelo prazer de mentir e enganar, ou seja, a verdadeira mentira”.{7} As mentiras dessa categoria não têm outro objetivo a não ser a propagação da falsidade. Elas são ditas simplesmente por dizer - isto e, por puro amor ao logro:
 
Há uma distinção entre a pessoa que conta uma mentira e o mentiroso. Aquela mente contra a vontade, enquanto este ama a mentira e passa o tempo desfrutando seu prazer (…) compraz-se nela, exultando com a própria falsidade.{8}
 
O que Agostinho chama de “mentiroso” e de “verdadeira mentira” é algo raro e extraordinário. Todos mentem por vezes, mas há muito poucas pessoas para quem ocorreria com frequência (ou mesmo sempre) mentir exclusivamente por amor à falsidade ou ao logro.
Para a maioria dos indivíduos, o fato de uma afirmação ser falsa já constitui em si uma razão, por mais fraca e facilmente superável que seja, para não ser feita. No caso do mentiroso genuíno de santo Agostinho, essa é uma razão a favor de se fazê-la. Para o falador de merda, não é algo a favor nem contra. Tanto ao mentir quanto ao falar a verdade, as pessoas são guiadas por suas crenças a respeito de como as coisas são. Isso as orienta quando tentam descrever o mundo de forma correta ou descrevê-lo enganosamente. Por essa razão, mentir incapacita uma pessoa a dizer a verdade da mesma forma que falar merda tende a fazer. Por um excesso de satisfação nesta última atividade, que envolve fazer afirmações sem se preocupar com nada, exceto com aquilo que convém a alguém dizer, o hábito normal de se atinar com a realidade das coisas pode atenuar-se ou até perder-se. Tanto quem mente quanto quem fala a verdade atuam em campos opostos do mesmo jogo, por assim dizer. Cada um reage aos fatos como os entende, embora a reação de um seja guiada pela autoridade da verdade, enquanto a reação do outro desafia essa autoridade e se recusa a satisfazer suas exigências. O falador de merda as ignora como um todo. Ele não rejeita a autoridade da verdade, como faz o mentiroso, e opõe-se a ela; simplesmente, não lhe dá a menor atenção. Em virtude disso, falar merda é um inimigo muito pior da verdade do que mentir.

Aquele que se preocupa em relatar ou ocultar fatos supõe, de alguma forma, que alguns deles são distintos e reconhecíveis. O interesse em dizer a verdade ou em mentir pressupõe que existe uma diferença entre entender as coisas de forma errada e de forma certa, e que pelo menos às vezes é possível perceber essa diferença. Quem pára de acreditar na possibilidade de identificar certas afirmações como verdadeiras e outras como falsas tem apenas duas opções. A primeira seria abrir mão de dizer a verdade e de enganar. Isso significaria abster-se de proferir qualquer afirmação sobre os fatos. A segunda opção seria continuar fazendo afirmações que pretendessem descrever o modo como as coisas são, mas isso não seria outra coisa senão falar merda.

Por que se fala tanta merda? É claro que é impossível saber se hoje se fala relativamente mais merda que no passado. Há mais comunicação de todo tipo em nossa época do que já houve antes, mas a parte que equivale a falar merda pode não ter aumentado. Sem pressupor que sua incidência seja maior agora, vou mencionar algumas considerações que ajudam a justificar o fato de que isso seja algo tão notável nos dias de hoje.
É inevitável falar merda toda vez que as circunstâncias exijam de alguém falar sem saber o que está dizendo. Assim, a produção de merda é estimulada sempre que as obrigações ou oportunidades que uma pessoa tem de se manifestar sobre algum tópico excederem seu conhecimento dos fatos pertinentes. Essa discrepância é comum na vida pública, em que os indivíduos são com frequência impelidos — seja pelas próprias inclinações ou por exigência de outrem - a falar sobre questões em que são até certo ponto ignorantes. Exemplos intimamente relacionados se originam de uma convicção generalizada de que é dever do cidadão, numa democracia, ter opiniões sobre tudo ou, pelo menos, tudo aquilo que diga respeito à condução das questões de seu pais. A falta de um nexo significativo entre as opiniões de uma pessoa e sua apreensão da realidade vai tornar-se ainda mais grave, é desnecessário dizer, para alguém que acredite ser seu dever, como agente moral consciencioso, avaliar acontecimentos e condições de todas as partes do mundo.
A atual proliferação do ato de falar merda tem também raízes muito profundas em várias formas de ceticismo, que negam o fato de que possamos ter acesso confiável a uma realidade objetiva e rejeitam, portanto, a possibilidade de sabermos como as coisas na verdade são. Essas doutrinas “ante-realistas” minam a validade de todo esforço desinteressado para se determinar o que é verdadeiro e o que é falso, e até a falta de inteligibilidade da noção de investigação objetiva. Uma das reações a essa perda de confiança tem sido o afastamento da disciplina requerida pelo ideal da correção em direção a um tipo de disciplina completamente diferente, que é imposto pela perseguição a um ideal alternativo de sinceridade. Em vez de buscar chegar primeiramente a representações precisas do mundo comum, o indivíduo se volta para a tentativa de oferecer representações honestas de si. Convencida de que a realidade não tem nenhuma natureza inerente, que ela pudesse ter esperanças de identificar com a verdade sobre as coisas, a pessoa dedica-se a ser fiel à sua natureza. E como se percebesse que, uma vez que não faz sentido tentar ser fiel aos fatos, deve, em vez disso, esforçar-se para ser fiel a si mesma.
Porém é absurdo imaginar que somos determinados e daí suscetíveis a descrições corretas e incorretas, embora supondo que a atribuição de determinação a tudo o mais tenha sido exposta como um erro. Como seres conscientes, existimos apenas em resposta a outras coisas e não podemos conhecer a nós mesmos, de modo algum, sem conhecê-las. Além disso, não existe nada na teoria, e certamente nada na prática, que sustente a opinião singular de que a verdade sobre si é mais fácil de saber. Os fatos a nosso respeito não são particularmente sólidos e resistentes contra uma dissolução cética. Nossa natureza é, na verdade, enganosamente sem substância — muito menos estável e inerente que a natureza das outras coisas. E, já que o caso é esse, sinceridade nada mais é do que falar merda.
 
(Harry G. Frankfurt, - Sobre Falar Merda)
 
Notas
{1} Max Black, The Prawleticc of I lumbug (Itliaca: Cornell University Press. 1985)
{2} Ibíd.. p. 143.
{3} Isso é relatado por Norman Malcolm em sua introdução a Recollections of Wittgenstein, R Rhees (org.), (Oxford, Oxford University Press. 1984). p. XIII.
{4} Fania Pascal, “Wittgenstein. A Personal Memoir,” in Rhees. Recollections. p 28-29
{5} Deve-se notar que a inclusão da insinceridade entre suas condições essenciais implica que a falação não pode se originar inadvertidamente; pois não parece possível ser inadvertidamente insincero.
{6} E. Ambler. Dirty Story (1967). 1, III, 25. A citação é mencionada no mesmo verbete do OED que contém a passagem de Pound. A proximidade da relação entre falar merda e blefar torna-se flagrante, parece-me, no paralelismo das expressões: “falar merda para conseguir as coisas” e “blefar para conseguir as coisas.”
{7} “De Mendacio” [Lying], in Treatises on Various Subjects, in Fathers of the Church, R. J. Deferrari (org), vol. 16 (Nova York Fathers of the Church. 1952), p. 109. Santo Agostinho sustenta que contar uma mentira desse tipo é um pecado menos sério do que fazê-lo em três das categorias e mais sério que contá-la nas outras quatro.
{8} Ibid, p. 79

Você tira o país da merda, mas não tira a merda do país

 
 

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