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“Escrevo para apagar meu nome” — a afirmação de Georges Bataille assume um sentido quase programático quando o livro em questão é História do olho. Publicada originalmente em 1928, sob o pseudônimo de Lord Auch, a novela que marca a estreia do escritor no mundo das letras expressa, como nenhum outro texto seu, esse desejo de apagamento, já que busca dissimular de forma obstinada os traços que permitem identificar o verdadeiro nome do autor.
Não são poucas, aliás, as referências autobiográficas presentes em História do olho. A começar pelo fato de que o livro foi produzido a partir de circunstâncias puramente existenciais. Até 1926, a produção escrita de Bataille se resumia a alguns artigos assinados na qualidade de arquivista da Biblioteca Nacional e a uma única publicação literária: as Fatrasies, recriação de poemas medievais em francês moderno, que apareceram então no sexto número da revista Révolution surréaliste. Uma virada significativa nesse quadro ocorreria no decorrer do mesmo ano, quando o aspirante a escritor foi estimulado por seu psicanalista, Adrien Borel, a colocar no papel suas fantasias sexuais e obsessões de infância.

 
A primeira tentativa resultou no livro W.-C., cujo manuscrito o autor acabou destruindo sob a justificativa de que se tratava de “uma literatura um tanto louca”. Ao admitir mais tarde que esse texto sinistro “se opunha violentamente a toda dignidade”, Bataille o definiu como “um grito de horror (horror de mim, não de minha devassidão, mas da cabeça de filósofo em que desde então... Como é triste!)”. O tratamento heterodoxo de Borel, embora já desse provas de sua eficácia, ainda não permitia ao escritor reconciliar o filósofo e o devasso que abrigava dentro de si.
Bataille estava então prestes a completar trinta anos de idade, vividos em constante estado de crise. Era um homem dividido: de um lado, a vida desregrada, dedicada ao jogo, à bebida e aos bordéis; de outro, as profundas inquietações filosóficas, fomentadas sobretudo por suas leituras dos místicos, além de Nietzsche e Sade. Tal cisão só fazia realçar a solidão de uma angústia que crescia na mesma medida de suas obsessões fúnebres, relacionadas à violência erótica e ao êxtase religioso. Oscilando, como ele mesmo definiu, “entre a depressão e a excitação extrema”, passou a frequentar o consultório de Borel a partir de 1926, à procura de uma saída para seus impasses existenciais.
A intervenção do psicanalista foi decisiva. O próprio Bataille confidenciou em entrevista a Madeleine Chapsal, realizada em 1961, pouco antes de morrer: “Fiz uma psicanálise que talvez não tenha sido muito ortodoxa, porque só durou um ano. É um pouco breve, mas afinal transformou-me do ser completamente doentio que era em alguém relativamente viável”. E, ao aludir ao papel libertador do processo analítico, completou: “o primeiro livro que escrevi, só pude escrevê-lo depois da psicanálise, sim, ao sair dela. E julgo poder dizer que só liberto dessa maneira pude começar a escrever”.1 Com efeito, apesar da brevidade do tratamento, sua repercussão foi tão intensa que, ao longo de toda a vida, o autor enviou sistematicamente os primeiros exemplares de seus livros ao psicanalista, conferindo a ele um lugar de primazia entre os seus interlocutores. Não lhe faltavam razões para tal gesto.
A redação de História do olho — empreendida em meados de 1927 — representou para Bataille uma espécie de cura. Prova disso são as páginas finais do livro, que se oferecem, na qualidade de epílogo, como um equivalente textual do fim do tratamento: trata-se de uma autobiografia, que propõe uma interpretação da narrativa, estabelecendo pontos de contato entre o imaginário mobilizado na novela e certas circunstâncias da vida do autor. O sujeito que fala nessas “Reminiscências” — intituladas “Coincidências” na primeira versão da obra — já não é mais o narrador e sim uma primeira pessoa que vasculha a infância, povoada de fantasias obscenas e marcada pela figura de um pai cego e paralítico, o que corresponde perfeitamente à biografia de Bataille.
“Percebendo todas essas relações”, diz ele em certo momento dessa exegese autobiográfica, “creio ter descoberto um novo elo que liga o essencial da narrativa (considerada no seu conjunto) ao acontecimento mais grave da minha infância”. Ao expor tais relações, nas quais se reconhece a mediação do trabalho analítico, o escritor toma consciência de que suas reminiscências pessoais “só puderam tomar vida deformadas, irreconhecíveis”, ou seja, transformadas em ficção. A eficácia maior do tratamento de Borel foi, sem dúvida, a de deixar a vida repercutir — e transbordar — na literatura, deslocando as obsessões de Bataille para a escrita, derivando suas fantasias para o texto. A criação de História do olho marcou o fim de um silêncio e o nascimento de um escritor.
A análise permitiu, portanto, uma descoberta essencial para Bataille: a de que as narrativas, conforme sugere Michel Surya, “se elaboram nas paragens mais próximas da existência. Dessa existência, elas dizem qual é a determinação profunda, ao mesmo tempo que operam um sábio trabalho de descentramento e de metamorfose”.2 Uma vez vislumbrada a possibilidade “libertadora” de transformar a substância da vida em matéria textual, o autor pôde dar curso livre aos excessos de sua imaginação, realizando no plano simbólico as estranhas exigências que o atormentavam. Essa descoberta — que está na origem da História do olho — abriu para Bataille os caminhos de uma escrita sem reservas. Afinal, como ele próprio diria muitos anos mais tarde: “sendo inorgânica, a literatura é irresponsável. Nada pesa sobre ela. Pode dizer tudo”.3
 
 
Tudo o que diz a História do olho, porém, é assinado por Lord Auch, e não por Georges Bataille. E tal foi a importância desse pseudônimo para o escritor que ele nunca reivindicou a autoria do livro, reiterando seu desejo original de anonimato. Até o fim da vida, Bataille jamais consentiu que a novela fosse publicada sob seu nome, o que só veio a acontecer em edições póstumas.
Por certo, não se deve negligenciar as razões profissionais e sociais que obrigavam o autor a recorrer a um pseudônimo. Na condição de funcionário público, trabalhando na Biblioteca Nacional, sua reputação estaria ameaçada caso lhe fosse imputada a paternidade de um livro erótico, editado e vendido clandestinamente. Assim, ao apagar seu nome da novela, ele tentava se precaver contra eventuais acusações de ultraje à moral.
Mas, para além dessas razões, havia outras, não menos importantes. Um texto com tantas chaves autobiográficas também exigia o anonimato, sobretudo pela qualidade das revelações nele contidas. Assumi-las publicamente poderia significar, por exemplo, um rompimento com o irmão que solicitara o sigilo de Georges com relação aos constrangedores eventos da infância descritos nas “Reminiscências”: a difícil convivência com o pai tabético que vivia em “estado de imundície fétida”, acometido por frequentes “acessos de loucura”, as tentativas de suicídio da mãe, que “acabou perdendo igualmente a razão”... Eventos traumáticos, dos quais Bataille afirmou “ter saído desequilibrado para a vida”, em carta ao mesmo irmão a quem confidenciaria já na maturidade: “o que aconteceu há quase cinquenta anos ainda me faz tremer e não me surpreende que, um dia, eu não tenha podido encontrar outro meio de sair disso senão me expressando anonimamente”.4
O pseudônimo representava, portanto, não só a dissimulação da identidade, mas sobretudo uma “saída” para os impasses existenciais do escritor: “sair disso” significava superar os traumas de infância, o que supunha um trabalho complexo de elaboração visando a aceitar e também a ultrapassar, de alguma forma, a história familiar. Tratava-se, pois, de apagar o nome transmitido pelo pai, sem contudo deixar de reconhecer a sua marca. Para tanto, era preciso criar um outro nome.
O nome Lord Auch - diz Bataille num fragmento de 1943, significativamente intitulado W.-C. e apresentado como prefácio à História do olho — “faz referência ao hábito de um dos meus amigos: quando irritado, em vez de dizer “aux chiottes!” [à latrina], ele abreviava, dizendo “aux ch”’. Em inglês, Lord significa Deus (nas Escrituras): Lord Auch é Deus se aliviando”. A explicação não poderia ser mais clara: o pseudônimo, aludindo à figura suprema do Pai, dramatiza o pai real que “urinava em sua poltrona” e “chegava a cagar nas calças”, segundo a descrição do autor. E, exatamente por ser capaz de afirmar e ao mesmo tempo negar a herança paterna, tal estratégia determina a perspectiva do livro.
O que ocorre nessa substituição — do pai real à imagem correlata de Deus — é a passagem do caso pessoal de Bataille para um outro plano, impessoal, que excede o particular para abarcar uma circunstância comum à espécie humana. Assim, mais do que aludir a uma contingência individual, a figura imaginária de Lord Auch vem ampliar a experiência vivida pelo escritor, conferindo-lhe uma gravidade universal. E precisamente por realizar tal ampliação que o pseudônimo da História do olho pode ser considerado uma máscara, sobretudo se levarmos em conta o significado que o autor atribui a esse artifício.
Para Bataille, as máscaras representam “uma obscura encarnação do caos”: são formas “inorgânicas” que se impõem aos rostos, não para ocultá-los, mas para acrescentar-lhes um sentido profundo. Na qualidade de artifícios que se sobrepõem à face humana, com o objetivo de torná-la inumana, essas representações “fazem de cada forma noturna um espelho ameaçador do enigma insolúvel que o ser mortal vislumbra diante de si mesmo”. Por essa razão, conclui o escritor, “a máscara comunica a incerteza e a ameaça de mudanças súbitas, imprevisíveis e tão impossíveis de suportar quanto a morte”.5
Não é difícil perceber, a partir dessas considerações, as razões mais profundas que podem ter motivado o verdadeiro autor a se valer do nome Lord Auch para assinar o livro. Tudo sugere que não teria sido possível, para ele, expressar o horror dos eventos infantis a partir de uma perspectiva, digamos, realista: era preciso lançar mão de um artificio que acentuasse o caráter fantasmático desse horror, de forma a revelar — Bataille diria: “encarnar” — seus aspectos mais ameaçadores.
Sendo “inorgânica”, assim como a literatura, a máscara do pseudônimo veio a fornecer um “espelho” capaz de projetar e multiplicar as terríveis experiências do autor, a ponto de torná-las comuns a toda a humanidade, evidenciando o enigma que funda a condição mortal de cada homem. Sob a máscara trágica de Lord Auch, a História do olho se oferece como uma autobiografia sem rosto.
 
Escrita em primeira pessoa, a novela de Bataille apresenta as confissões de um jovem narrador que insiste em se manter, ao longo de todo o texto, no plano da maior objetividade. Tudo é dito de forma direta, com uma clareza que raramente cede a enunciados esquivos. Nada há, no desenvolvimento da história, que desvie a leitura dos propósitos centrais da narrativa: trata-se de um relato seco e despojado, que evita rodeios expressivos, subterfúgios psicológicos ou evasivas de qualquer outra ordem. Sob esse aspecto, o livro é rigorosamente realista.
O realismo da narração contrasta, porém, com a irrealidade das cenas narradas. A começar pelos personagens, que vivem num universo à parte, onde tudo — ou quase tudo - acontece segundo os imperativos do desejo. Recém-saídos da infância, o narrador e sua comparsa Simone parecem ainda habitar o mundo perverso e polimorfo das crianças, para quem nada é proibido. Suas brincadeiras sexuais assemelham-se a travessuras infantis, às quais se entregam com uma fúria que não conhece obstáculos. Marcela e os outros adolescentes que se juntam a eles parecem igualmente entregues aos caprichos e extravagâncias que governam as peripécias da dupla, guiadas apenas pelas exigências internas da fantasia. Em suma, como observou Vargas Llosa, os jovens que protagonizam essas cenas “não parecem seres despertos, mas sonâmbulos imersos em uma prisão onírica que lhes dá a ilusão da liberdade”.
Desse mundo soberano, os adultos não participam. Mesmo quando aparecem, estão sempre à margem dos acontecimentos, cujo sentido frequentemente lhes escapa. Assim ocorre, por exemplo, com a mãe de Simone, que, ao surpreender a filha quebrando ovos com o cu, ao lado de seu inseparável companheiro, se limita “a assistir à brincadeira sem dizer palavra”. Mais tarde, essa mesma mulher “de olhos tristes”, “extremamente doce e de “vida exemplar” testemunha outras travessuras lúbricas dos personagens em absoluto silêncio, desviando o olhar e vagando pela casa como se fosse um fantasma.
Com efeito, a presença dos adultos é muitas vezes marcada por uma certa fantasmagoria, sobretudo porque eles raramente têm direito à palavra. É o que acontece ainda com o pai do narrador, descrito como “o tipo perfeito do general caquético e católico”, cuja autoridade, na verdade bem pouco eficaz, se exerce tão-somente à distância, sem jamais tomar o primeiro plano da narrativa. Mesmo Sir Edmond, o lorde inglês que desempenha o papel de cúmplice e patrocinador das últimas aventuras dos dois jovens, costuma assistir a tudo de longe, como um voyeur que pouco participa dos acontecimentos. O mundo infantil da História do olho é decididamente egoísta e, como tal, fechado em si mesmo.
Vale lembrar que esse mundo não é muito diferente daqueles descritos nos contos de fadas, que colocam em cena personagens oníricos, vivendo em universos igualmente fechados, onde tudo acontece por encantamento. A aproximação torna-se ainda mais pertinente quando recordamos que grande parte da novela se desenrola em cenários também caros aos gêneros feéricos — em especial àqueles contos de fadas às avessas que são as novelas góticas.
Praias desertas, castelos murados, parques solitários, mansões rodeadas de jardins agrestes, florestas agitadas por grandes temporais: as paisagens que abrigam os protagonistas da novela guardam profunda afinidade com a atmosfera lúgubre dos contos de terror. São lugares secretos e quase sempre desabitados que o narrador e Simone visitam na penumbra da noite, em meio aos relâmpagos e às ventanias de furiosas tempestades. A exemplo dos cenários externos, os interiores se revelam igualmente sinistros, como os corredores frios e escuros do asilo onde Marcela é internada, abrindo-se para uma infinidade de quartos, ou ainda a austera sacristia da antiga igreja de Sevilha, que evoca uma sensualidade fúnebre. Tais espaços sombrios contribuem para a irrealidade das cenas, reiterando a dimensão fantasmagórica dessa narrativa glacial.
São essas evidências que levam Vargas Llosa à justa afirmação de que “na História do olho a diferença entre fundo e forma é flagrante e determina a soberania do texto”. A objetividade da narrativa realmente contrasta com o caráter insólito e excessivo das fantasias que vão sendo, uma a uma, relatadas, produzindo uma curiosa dialética entre continente e conteúdo. À palavra, prosaica e racional, se justapõe uma substância fantástica, cuja violência poética coloca em risco qualquer tentativa de lucidez. Reside aí, sem dúvida, a originalidade do texto de Bataille, que consegue ser, ao mesmo tempo, um frio documento de obsessões sexuais e um fabuloso conto de fadas noir.
Por certo, esse traço fundamental da novela traduz o trabalho de um imaginário que, dando voz às demandas do desejo, recusa a lógica da contradição para dar lugar às formulações ambivalentes que são próprias das fantasias eróticas. Assim como a narrativa reúne princípios antagônicos, esse imaginário também opera a fim de fundir elementos distintos, propondo inesperadas associações entre as ações dos personagens e os fenômenos da natureza, para criar uma metáfora soberana. No centro dessa metáfora está a morte.
 
 
A fusão com o cosmos é uma tópica recorrente em História do olho, e as passagens em que é tematizada correspondem às mais herméticas da novela, beirando a ausência de sentido. Em contraste com a clareza da narrativa, nesses momentos as palavras se soltam, navegando à deriva para, numa inesperada sintonia entre fundo e forma, expressar a situação vivida pelos personagens.
Quando a dupla de amigos deixa a casa de repouso onde Marcela está internada, viajando de bicicleta em plena madrugada, nus, exaustos e “no desespero de terminar aquela escalada pelo impossível”, o narrador associa sua alucinação ao “pesadelo global da sociedade humana, por exemplo, com a terra, a atmosfera e o céu”. Nesse estado de “ausência de limites”, a morte aparece como a única saída para seu erotismo trágico: “uma vez mortos Simone e eu, o universo da nossa visão pessoal seria substituído por estrelas puras, realizando a frio o que me parecia ser o fim da minha devassidão, uma incandescência geométrica (coincidência, entre outras, da vida e da morte, do ser e do nada) e perfeitamente fulgurante”.
Mais tarde, deitado na grama ao lado de sua companheira, com os olhos abertos sobre a Via Láctea, “estranho rombo de esperma astral e de urina celeste cavado na abóbada craniana das constelações”, o narrador vê a si mesmo refletido no infinito, assim como “as imagens simétricas de um ovo, de um olho furado ou do meu crânio deslumbrado, aderido à pedra”. Ao se dar conta dessas correspondências cósmicas, ele intui “a essência elevada e perfeitamente pura” de uma “devassidão que não suja apenas o meu corpo e os meus pensamentos, mas tudo o que imagino em sua presença e, sobretudo, o universo estrelado...”
Revela-se aí um desejo de intimidade com o universo que lança o excesso a seu ponto de fuga. Tudo acontece como se, no limite, as ações dos jovens devassos respondessem a uma exigência superior, anônima, inscrita nas imutáveis leis da natureza. Assim sendo, a insaciabilidade da devassidão teria como consequência lógica a desintegração dos objetos eróticos, incluindo os próprios personagens: “com o rosto contorcido sob o efeito do sol, da sede e da exasperação dos sentidos, partilhávamos entre nós aquela deliquescência morosa na qual os elementos se desagregam”, confidencia um deles na arena de Sevilha. Deliquescência que supõe a passagem do estado sólido para o líquido, produzindo a dissolução dos elementos em jogo — nesse caso, os corpos do narrador e de Simone.
A exemplo do que ocorre com o artificio do pseudônimo, essas cenas também deslocam os protagonistas da novela para um plano impessoal, operando a passagem de suas contingências particulares para uma ordem universal. Nessa passagem, os indivíduos são despojados de qualquer identidade, seja social ou psicológica, em função de uma experiência puramente orgânica, animal, que supõe uma relação íntima e imediata com o mundo. Tal é a “ausência de limites” a que se entrega o narrador da novela, evocando um estado de imanência no cosmos, que, partilhado por todos os seres vivos, só pode se revelar ao homem quando ele esconde seu rosto.
Por isso, se a afirmação de Bataille — “escrevo para apagar meu nome” — assume um sentido programático quando o livro em questão é História do olho, isso não ocorre apenas por conta dos disfarces do autor. O violento processo de despersonalização que é levado a termo ao longo da narrativa envolve todos os planos da novela, determinando desde a construção dos personagens até o foco narrativo para atingir a própria economia do texto.
A dimensão desse propósito pode ser dada pela comparação entre o texto original da novela, de 1928, e a versão corrigida por Bataille — editada com a data de 1940 mas publicada mesmo em 1945. Todas as nuanças e os artifícios de linguagem da primeira versão serão sistematicamente subtraídos na segunda, numa ascese que produz um relato mais objetivo, frio e sobretudo indeterminado. A economia de adjetivos e pronomes também concorre para essa depuração que nivela a narrativa, contaminando igualmente a figura do narrador.
Do confronto entre os dois textos, percebe-se uma clara intenção do autor no sentido de evitar a primeira pessoa do narrador, muitas vezes substituindo seus enunciados por uma voz indefinida, sustentada em terceira pessoa. Disso resulta um certo automatismo das ações do personagem que, progredindo no decorrer da narrativa, tende a descrevê-lo quase como um mecanismo impessoal. Alheios ao espírito, seus atos já não lhe pertencem. Conforme perde em interioridade psicológica, porém, ele ganha em interioridade orgânica: seu “funcionamento” é cada vez menos comandado pela consciência e mais pelo corpo que, liberto de todas as restrições, se abandona ao regime intensivo da matéria.
Uma vez apagados os traços que distinguem o rosto, restam apenas os órgãos, entregues à convulsão interna da carne, operando num corpo que prescinde da mediação do espírito. E o que se verifica também com o globo ocular: se nas primeiras brincadeiras sexuais entre o narrador e Simone o olho ainda cumpre a função erótica da visão, projetando-se em diferentes objetos, já na terrível orgia final da novela ele se apresenta tão-somente como resto material de uma mutilação a serviço do sinistro erotismo da dupla. Na qualidade de mero objeto, ostentando sua condição finita, o órgão passa pela derradeira metamorfose, anunciando a própria desintegração em meio à atmosfera funesta das últimas cenas do livro.
Por tal razão, História do olho não pode ser a autobiografia de Bataille, nem mesmo do narrador — é uma autobiografia do olho. Nela, evidencia-se uma concepção impiedosa do sexo, que insiste em afirmar a precariedade da matéria para concluir que toda experiência erótica está fundada em um princípio de dissolução.
“O sentido do erotismo é a fusão, a supressão dos limites”, confirma o autor num de seus últimos escritos, reiterando a concepção grave e sombria que traduz a angustiada devassidão dos personagens da novela. À união dos corpos corresponde a violação das identidades: nesse processo, as formas individuais se fundem e se confundem até o ponto de se tornarem indistintas umas das outras, dissolvendo-se na caótica imensidão do cosmos. Ou, como completa Bataille em O erotismo, numa passagem que poderia perfeitamente resumir seu primeiro livro: “O sentido último do erotismo é a morte”.6
 
(Georges Bataille - História do Olho)
História do Olho, Georges Bataille
 
NOTAS
1 Madeleine Chapsal, “Georges Bataille”, in Os escritores e a literatura (Lisboa; Dom Quixote, 1986), p. 200.
2 Michel Surya, Georges Bataille, la mort à l’oeuvrc (Paris: Gallimard, 1992), p. 126.
3 Georges Bataille, La Littérature et le Mal, in Oeuvres complètes (Paris: Gallimard, 1979), tomo IX, p. 182.
4 Citado em Marie-Magdeleine Lessana, De Borel à Blanchot, une joyeuse chance, Georges Bataille (Paris: Pauvert-Fayard, 2001), p. 53.
5 Georges Bataille, “Le masque”, in Oeuvres completes (Paris: Gallimard, 1970), tomo II, pp. 403-406.
Ibid., p, 26.
6 Georges Bataille, L'Erotisme, in Oeuvres complètes (Paris: Gallimard, 1987), tomo X, pp. 129 e 143.

publicado às 11:09


Olho

por Thynus, em 29.01.17
Guloseima canibal. Sabemos que o homem civilizado se caracteriza pela acuidade de horrores muitas vezes inexplicáveis. O temor dos insetos é, sem dúvida, um dos mais singulares e mais desenvolvidos dentre eles, entre os quais nos surpreende que se acrescente o horror ao olho. Com efeito, a respeito do olho parece impossível pronunciar outra palavra que não seja sedução, pois nada é tão atraente quanto ele no corpo dos animais e dos homens. Porém, a sedução extrema está provavelmente no limite do horror.
Nesse sentido, o olho poderia ser aproximado do corte, cujo aspecto provoca igualmente reações agudas e contraditórias: é isso que decerto provaram, de forma terrível e obscura, os autores de O cão andaluz quando, nas primeiras imagens do filme, determinaram os amores sangrentos desses dois seres.1 Uma lâmina que corta a sangue frio o fascinante olho de uma mulher jovem e bela será justamente o objeto da admiração insana de um rapaz que, observado por um gatinho deitado e tendo por acaso uma colher de café na mão, tem um desejo súbito de apanhar o olho com ela.
Singular desejo, evidentemente, da parte de um branco para quem os olhos dos bois, dos cordeiros e dos porcos que ele come sempre foram postos de lado. Pois o olho, guloseima canibal, segundo a maravilhosa expressão de Stevenson, produz uma tal inquietação que não conseguimos mordê-lo. O olho chega a ocupar uma posição extremamente elevada no horror por ser, entre outros, o olho da consciência. É bastante conhecido o poema de Victor Hugo, o olho obsessivo e lúgubre, olho vivo e pavorosamente imaginado por Grandville durante um pesadelo ocorrido um pouco antes de sua morte2: o criminoso “sonha que acaba de atingir um homem num bosque sombrio [...] sangue humano foi derramado e, segundo uma expressão que nos brinda o espírito com uma imagem feroz, fez um carvalho suar. Com efeito, não se trata de um homem mas de um tronco de árvore... sangrento... que se mexe e debate... sob a arma assassina. Erguem-se as mãos da vítima, suplicantes, mas inutilmente. O sangue continua a correr”. É nessa altura que aparece o olho enorme que se abre num céu negro, perseguindo o criminoso através do espaço, até o fundo dos mares, onde o devora, depois de tomar a forma de um peixe. Inúmeros olhos se multiplicam, enquanto isso, sob as ondas.
Grandville escreve a respeito: “Seriam os mil olhos da multidão atraída pelo espetáculo do suplício prestes a ocorrer?”. Mas por que motivo esses olhos absurdos seriam atraídos, como uma nuvem de moscas, por algo que é repugnante? Por que, igualmente, à cabeça de um semanário ilustrado, perfeitamente sádico, que apareceu em Paris de 1907 a 1924, figura regularmente um olho sobre fundo vermelho que antecede espetáculos sangrentos? Por que O olho da polícia, parecido com o olho da justiça humana no pesadelo de Grandville, no final das contas nada mais é que a expressão de uma cega sede de sangue? Parecido ainda com o olho de Crampon, um condenado à morte que, abordado pelo capelão um momento antes do golpe do cutelo, o repeliu, mas arrancou um olho e o ofereceu como jovial presente, pois o olho era de vidro.

(Georges Bataille - História do Olho)

publicado às 11:07

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La crucifixión, Pablo Picasso
Cristo será finalmente assassinado, no ano 30. Não porque ele tenha sido bom ou mau, porque tenha traído o seu povo, ou desafiado os talmudistas do Sinédrio, nem porque um zeloso governante do imperador tenha interpretado mal as suas palavras e visto nele o «Rei dos Judeus»; não porque se tenha revoltado contra a ocupação romana, ou porque tenha vindo para morrer na cruz e resgatar os Pecados do Homem. Ele não é tampouco um simples mito que a hierarquia cristã tenha criado para «reinar mais facilmente sobre a alma dos homens». Cristo não é o resultado da evolução económica numa certa fase da sociedade; ele poderia viver em todos os países, em qualquer situação e sob quaisquer condições sociais. Ele seria sempre morto da mesma maneira. Ele teria de morrer, qualquer que fosse o tempo ou o lugar. Aí está ainda a significação emocional de Cristo.
O mito de Cristo extrai a sua força de realidades cruéis mas bem disfarçadas na existência do homem couraçado. Em Cristo, o homem tem procurado, durante dois mil anos, a chave da sua própria natureza e do seu próprio destino. Em Cristo, o homem descobriu a esperança da solução possível da tragédia humana. Cristo tinha sido assassinado mesmo antes de ter nascido. E ele continua a ser morto todos os dias do ano e a todas as horas do dia. O massacre continuará sem parar enquanto não se tiver compreendido de maneira total e concreta o destino de Cristo. O destino de Cristo representa o segredo da tragédia do animal humano.
Cristo devia morrer ao longo dos séculos, e continua a morrer porque ele é Vida. Existe, tanto no passado como no presente, um ABISMO intransponível entre o sonho da Vida e a capacidade do homem de viver a VIDA. Cristo devia morrer porque o homem ama a Vida mais do que a sua própria estrutura lhe permite. Ele é completamente incapaz de receber a Vida tal como ela é criada por Deus, regida pelas leis da Energia Vital Cósmica.
Uma mulher feia, que se vê sempre bonita num espelho, como desejaria ser e como seria se as condições do seu crescimento tivessem sido diferentes, será levada a quebrar a imagem reflectida pelo espelho. Ninguém, nenhum ser vivo poderia suportar uma existência feia se tivesse sempre diante dos olhos, andando sobre duas graciosas pernas, a personificação das suas potencialidades plenamente desenvolvidas.
Pode-se continuar a ter esperança de salvação enquanto a salvação consistir apenas numa interpretação estéril do Talmude, enquanto ela for apenas uma simples idéia expressa num cântico ou numa prece. Nesse caso, até será apreciada a própria esperança, a espera vibrante de um dia futuro em que tudo será como nos nossos sonhos. A esperança dá forças e faz irradiar um doce fogo interior; é como uma bebida alcoólica tomada durante uma subida difícil, num atalho escarpado.
Com a esperança orientada para um futuro longínquo, desligada de toda a obrigação de realizar essa esperança passo a passo, em todas as horas da vida, de transformar essa esperança em Vida, podemos instalar-nos no imobilismo em que permanecemos há vinte, trinta ou cinco mil anos.
INSTALAR-SE é a conseqüência lógica da imobilização humana. Desde o início da vida que cada um se prepara para se instalar tão confortavelmente quanto possível. A rapariga atravessa rapidamente o período em que sonha com um herói louro num cavalo branco que a arrancará da sua servidão, ou que a acordará do seu sono milenar para a desposar e tornar feliz para sempre. Todos os filmes lhe mostram a maneira de chegar a uma situação repensante. Ninguém lhe explica o que acontece depois de o rapaz ter casado com a rapariga. Nunca. Isso suscitaria uma intensa emoção e, com ela, a acção.
A pessoa instala-se como empregado, como médico do interior, como fiscal, como tintureiro chinês, mesmo que tenha vindo da China para os Estados Unidos, ou como restaurateur judeu, vendendo aos clientes de Nova Iorque o mesmo «gefilte fish» ({Corruptela do alemão, gefüllte Fisch, peixe recheado}) que em Minsk. O imobilismo favorece a qualificação profissional e o trabalho, que, por sua vez, lhe garantem maior segurança. Tudo isto não é repreensível; é até absolutamente necessário. Sem tal imobilidade, o homem não poderia, dadas as actuáis condições de vida, assegurar a sua subsistência e a da sua família. Sem se instalar no imobilismo, o homem não poderia ser um bom engenheiro de pontes ou um bom desenhador. Ele não poderia, se não se habituasse a um género de vida imóvel, exercer a função de mineiro, de coveiro, de pedreiro, de montador de chapas de metal. A necessidade absoluta de se acomodar aparece claramente tanto na existência de um lavador de janelas nova-iorquino como na de um chinês que puxa o seu riquexó.
É, assim, perfeitamente coerente que toda a evolução social tenha sido feita até hoje sob a pressão de uma comoção exterior, de guerras ou de revoluções, que tiraram as pessoas das posições em que se haviam instalado. Até hoje, não houve nenhum desenvolvimento que partisse de um movimento interno dos homens. Todos os movimentos sociais sempre foram de ordem política, quer dizer, artificiais, impostos pelo exterior, e não produtos de dentro do homem. Para que o homem seja capaz de um movimento da sua própria decisão, ele deverá primeiro despertar internamente, sem ser levado por estímulos exteriores. O impulso para se mover, para modificar o que o cerca, para acabar com o seu eterno imobilismo, deveria ser inculcado na estrutura do homem desde o início e habilmente desenvolvido como uma característica básica do seu ser, como aconteceu, por necessidade, no caso dos pioneiros americanos ou dos antigos povos nómadas.
Nenhum veado, nenhum urso, nenhum elefante, nenhuma baleia, nenhum pássaro se poderia instalar no imobilismo como o fazem os homens. Eles imediatamente definhariam e morreriam. Uma visita ao jardim zoológico mostrar-nos-á os efeitos da imobilidade sobre os animais selvagens.
A imobilização provocada pela couraça física e emocional não só toma o homem capaz de se instalar como suscita nele o desejo de se instalar. Quando a alma e o corpo se tornam rígidos, todo o movimento é penoso. Pode observar os seus vizinhos durante dez anos, vendo que as mesmas pessoas fazem as mesmas coisas, nas mesmas horas do dia, ano após ano. O imobilismo enfraquece o metabolismo energético, impede toda a excitação viva. Ele facilita as relações de «boa vizinhança» com as pessoas, predispõe à amabilidade, à aceitação da rotina de todos os dias, a uma filosofia que não se perturba com os grandes ou pequenos problemas da vida. O imobilismo é, para o homem couraçado, civilizado, um «dom de Deus». Permanecer instalado no lugar é uma das aquisições, um dos hábitos mais preciosos da humanidade.
O imobilismo do homem couraçado resulta no imobilismo das nações e das culturas. A China manteve-se imóvel durante milênios, complacentemente, como um oceano levemente ondulado e com tempestades ocasionais, que provocam ondas de cinqüenta a cem pés de altura. Mas que são essas ondas comparadas a uma profundidade de quatro milhas? Nada. Nada poderia atrapalhar a meditação de um oceano, e nada poderia perturbar ou confundir as culturas milenares do homem couraçado. É verdade que as culturas nascem e morrem, que as civilizações se criam e desaparecem. Mas isto não tem grande importância à luz da tragédia fundamental da humanidade, que culmina no Assassinato permanente de Cristo. É verdade que as civilizações desapareceriam se os seus filhos se cansassem de suportar o imobilismo. Eles organizam então pequenas ou grandes revoluções, declaram guerra às outras nações mas, no fim das conta% tudo regressa à ordem; depois de ter destruído com grande clamor alguma cultura milenar, a nova nação ou nova cultura, ao fim de alguns decênios, volta a assemelhar-se àquela que suplantou, agindo exactamente da mesma forma. Basta pensar nas poucas mudanças que se produziram entre a Primeira e a Terceira Guerra Mundial.
Tudo depende do ponto de vista em que nos colocamos para julgar tais acontecimentos. Afinal, um pássaro assemelha-se, nas suas linhas gerais, a uma baleia. Se observarmos o pássaro em relação à árvore em que ele fez o ninho, tudo o que ele empreende está de acordo com as proporções das folhas e do verme que traz aos filhotes. Mas isto perde a sua pormenorizada grandeza se for observado do ponto de vista de uma baleia.
As discussões filosóficas sobre a ciência e a moral, que se ouvem em certas reuniões universitárias, são complicadas e não lhes falta grandeza na precisão minuciosa da linguagem e do pensamento. Mas comparadas com a importância do problema da existência humana, que EVITAM, perdem grande parte do seu significado. A distância entre o que É e o que DEVERIA SER é importante. Aí entram as soluções pelo esmagamento e matança das massas. Mas o mistério da história de Cristo, que detém a chave da existência cósmica do homem, é infinitamente mais sério. De seu ponto de vista, o É e O DEVERIA SER não são um problema. O É e o DEVERIA SER estão ligados à solução da questão cósmica.
Todas estas discussões não se distinguem muito dos diálogos de Platão ou das discussões de Sócrates com os seus discípulos. Evidentemente, há diferenças, uma vez que tantas coisas mudaram em dois mil e quinhentos anos. Mas, basicamente, são a mesma coisa, e descobre-se com surpresa que desde o início da história escrita da humanidade tudo permaneceu imóvel, no mesmo lugar.
Evidentemente, é sensível a diferença entre um automóvel que circula em 1950 nos Estados Unidos e um camelo que atravessa a Palestina no ano 30 d. C. As pessoas viviam e pensavam de outra maneira, tinham outros problemas, outros costumes e outras habitações. Mas a época não nos é tão estranha como a superfície da Lua. E mesmo a superfície da Lua deve parecer-se um pouco com os Dolomites italianos.
O problema de Cristo é muito mais abrangente. Ele diz respeito ao conflito entre o movimento e as estruturas congeladas. Só o movimento é infinito. A estrutura é finita e estreita. No fundo, há identidade entre aquilo que o homem faz e o destino que enfrenta. A história, de certa forma, permaneceu imóvel porque o homem, que a escreve, está imóvel. O Assassinato de Cristo poderia acontecer e acontece nos nossos dias como aconteceu então. Os actuáis conflitos económicos e sociais reflectem exactamente os conflitos daquele tempo: imperadores e governadores estrangeiros, uma nação dominada, impostos fiscais esmagadores, ódio nacional, zelo religioso, a colaboração dos líderes do povo oprimido com o opressor, etc. Para compreender a história de Cristo, é preciso começar a pensar em dimensões cósmicas.
De alguma forma. Cristo não se enquadra nisto. Ele não se enquadrava já na sua época; não se enquadraria há seis mil anos, como não se enquadraria hoje. Pode imaginar Cristo vivo na catedral de Santo Estevão ou de São Pedro, a andar e falar como falou, a comer e viver com pecadores e prostitutas como ele fez? Isto é impossível. Apesar disso, estas catedrais foram construídas em sua honra. Porque não poderia ele andar nestas catedrais? Não é porque, como se diz, o homem tenha degenerado ou esquecido Cristo, ou porque os pastores se tenham corrompido. Temos boas razões para acreditar que o povo e os pastores e as suas emoções, esperanças e temores não mudaram muito desde o tempo em que adoravam Cristo em pessoa até hoje, quando adoram o seu espírito. Também isto permaneceu imóvel.
Não, não é a posterior degeneração da Igreja que fez o homem esquecer Cristo, mas é, hoje como há milhares de anos, o GRANDE ABISMO entre a grande esperança e o Eu verdadeiro e real; entre a fantasia do Eu e a realidade do Eu; entre a energia móvel e produtiva e a energia congelada.
Quando Cristo começou a sua missão, aos trinta anos, não perturbava nada nem ninguém. Ele apenas andava, cheio de graça, por entre as pessoas e elas gostavam de olhar as suas esperanças nesse espelho. O Assassinato principiou a desenvolver-se quando a esperança começou a provocar movimento. Cristo era móvel de mais. Não demasiado móvel no sentido de Vida viva. Pelo contrário, às vezes tem-se a impressão, a partir do que nos conta o evangelho, de que nesse ponto ele era um pouco exigente, fixando-se um pouco de mais em princípios. Ele tinha de o ser, é claro, e logo veremos porque é que a Vida viva desenvolve no homem - e porque é que tem de desenvolver−princípios rígidos e uma seriedade exagerada, se ela se pretende colocar contra a natureza imóvel do homem.
Mas Cristo, em toda a sua ingenuidade, pretendia acção. Ele tomava-se tão a sério quanto um veado o faz. «Eu sou a Vida, é claro! Que mais poderia eu ser?», ouvimo-lo dizer.
Cristo recusava-se a ficar em casa com os seus irmãos e irmãs e com a mãe, embora os amasse ternamente. Preferia passear pelo campo, saudar o Sol que se levantava no horizonte com o seu clarão róseo. Gostava de ver pessoas em diferentes lugares, apesar de nunca ter deixado a Palestina. Nada nos permite supor que Cristo, no início das suas peregrinações, sentisse que era um salvador da humanidade. Mas a história da sua vida e de tudo o que sabemos da actividade humana em geral mostra-nos que a princípio ele era diferente dos outros e que se sentia diferente dos outros, visto que era incapaz de se acomodar. Não tencionava passar o resto da vida amarrado a um banco de carpinteiro. Amava as pessoas. Sentia-se benevolente para com elas. A sua família era um campo muito restrito para a sua actividade transbordante e − podemos supô-lo − para a sua visão da vida. Sabemos que a mãe o reprovava por não se restringir mais ao âmbito da família. Não tinha muito boas relações com os irmãos e irmãs. Mais tarde, quando se deixou seduzir pelo papel de líder messiânico, convidava os seus discípulos a deixarem os irmãos e irmãs, os pais e mães para o seguirem.  Ele sabia que a vida familiar compulsória impede qualquer movimento que ultrapasse os seus limites.
Isto também se compreende quando se leva em conta a contradição entre a Vida em marcha e a Vida imóvel. Se a Vida é verdadeiramente Vida, lança-se ao desconhecido, mas não gosta de caminhar sozinha. Ela não tem necessidade de discípulos, de adeptos, de submissos, de admiradores, de aduladores. O que lhe é necessário, o que não lhe pode faltar, é o companheirismo, a camaradagem, a amizade, a familiaridade, a intimidade, o encorajamento de uma alma compreensiva, a possibilidade de comunicar com alguém e de abrir o coração. Não há, em tudo isto, nada de sobrenatural ou extraordinário. É simplesmente a expressão da vida autêntica, da natureza social dos homens. Ninguém gosta ou pode viver no isolamento, sem se arriscar a enlouquecer.
Mas esse anseio profundo pelo companheirismo tende a tornar-se amargo, quer dizer, transformar-se numa exigência; incompatível com a Vida viva, se os amigos e os companheiros permaneceram ligados às suas famílias, às suas mulheres, aos seus filhos, ao seu trabalho. Todas essas ligações têm sobre eles o efeito de um freio. Elas retêm-nos no momento em que é necessário dar um grande salto. Todos os grandes líderes conheceram essa dificuldade. Pedem aos seus fiéis que abandonem tudo e os sigam, só a eles. Foi assim, e será sempre assim, tanto na Igreja Católica como no Fascismo Vermelho. A mesma regra aplica-se a qualquer capitão e à sua tripulação. Ela aplica-se a qualquer chefe militar, a qualquer chefe de equipa encarregado de um trabalho que exija movimento e uma grande liberdade de acção.
A diferença entre o apelo de Cristo e as exigências dos outros acima mencionados reside em que estes dispõem de unidades constituídas e organizadas segundo um esquema rígido, implicando a renúncia a toda a forma de imobilismo, ao passo que Cristo não tinha, no início, a intenção de fundar uma igreja ou um movimento político. Ele apenas quer cercar-se de amigos nas suas peregrinações, e descobre que eles são insignificantes, incómodos, que o atrasam e impedem a sua alegria de viver. Isto não teria muita importância se os seus amigos não o tivessem cativado para ser um futuro Messias. Pouco a pouco, são eles, os seus amigos, que se transformam em admiradores e adeptos. A princípio são os adeptos que determinam as regras que os líderes lhes impõem, e nunca o inverso. Não há nada no nosso mundo social, e nada pode haver, que não seja fundamentalmente e principalmente determinado pelo carácter e comportamento do povo. Não há excepção para esta regra, seja para onde for que se olhe.
Para começar, são os amigos de Cristo, agora seus admiradores, que o induzem a exigir que eles abandonem os seus familiares e as suas actividades profissionais. Não porque Cristo seja excepcional no seu comportamento, mas porque a Vida viva agirá sempre, em todas as épocas, seja em que contexto social for, se tiver o desejo de avançar resolutamente para o desconhecido sem ficar isolada.
Desta maneira, a vida transforma-se em dominação, regra, exigência, ordem, restrição, sacrifício, assim que enfrenta o imobilismo da multidão, da «cultura», da «civilização», das opiniões estabelecidas na ciência, na tecnologia, na educação, na medicina. Se todas as pessoas se movessem, não haveria razão para tudo isso. Elas gostariam de fazer os seus próprios movimentos. E seriam elas, e não alguns líderes ou grupos, que carregariam o fardo do progresso.
A grande maioria dos homens, em qualquer época ou fase da história, nunca saiu da sua cidade natal. Alguns não viajam porque são pobres. Mas a maioria fica no mesmo lugar porque mover-se lhes é penoso. A sua energia Vital só lhes chega para se alimentarem e às suas famílias. Apenas alguns comerciantes e alguns boêmios viajam. Somente a partir dos meados do século xx é que as viagens se tornaram um produto de consumo de massas e as pessoas começaram a ir «ao estrangeiro». Mas a imensa maioria passa os seus Verões em Nova Iorque, Chicago ou outras cidades como essas. Não é certo falar de povo que viaja, se apenas uma minoria o faz, porque é a maioria que determina tudo o que acontece. E mesmo que toda a gente viajasse, isto não modificaria em nada a estrutura fundamental da humanidade.
Não é porque viajar seja salutar e proveitoso que se viaja hoje em dia, mas sim porque «está na moda», porque o vizinho olharia de lado se você não tivesse visto os mesmos países que os Jones. Também se viaja porque «na Europa pode-se comprar tanto com dólares». Continua a ser imobilismo.
Se Cristo vai à Europa, não é porque lá o dólar compra mais coisas do que nos Estados Unidos. Ele vai para conhecer os povos europeus. Visita os museus como toda a gente. Mas não os visita «por visitar», ou «porque se deve ver» este ou aquele quadro. Vai simplesmente para ver a pintura. E não é isso o que geralmente se faz, da mesma forma que geralmente não se abraça um homem ou uma mulher pelo simples prazer do abraço, mas para fazer filhos. Essa atitude é estranha a Cristo. Por isso ele será, e terá de ser, assassinado no final.
O imobilismo acompanha o viajante aonde quer que vá. Por isso, se admira e venera os que se movem realmente. Nas suas viagens. Cristo evita relacionar-se com outras pessoas, apesar de encontrar muitas pessoas. Ele viaja só, com raros companheiros. E mesmo quando está com os seus companheiros, distancia-se um pouco deles, precedendo-os de cinqüenta ou cem passos, ou isolando-se na floresta para meditar. Os seus discípulos meditam muito raramente. Na maior parte do tempo, falam do Mestre, interrogam-se sobre o que ele faz e porque pode fazer isto ou aquilo. Assim, eles seguem a sua própria imagem num espelho, a imagem do que gostariam de ser mas não conseguem ser.
Nos seus sonhos, eles vêem nele o líder que, com o seu poder e a sua cólera divina, expulsará um dia os Romanos da cidade santa. Por enquanto, ele espera e prepara o golpe. Mas o dia da vingança virá certamente. Não é ele um líder? Não é o seu líder? Eles estão dispostos a passar pela prova de fogo; por enquanto, o pensamento de passar com ele a prova de fogo anima-os. Mas, no fim, abandoná-lo-ão.
Tentam persuadi-lo a fazer milagres, a fazer demonstrações do seu poder divino. Para eles, o poder divino é o raio e o trovão, é o estrondo de milhares de fanfarras e de canhões, é o céu que estremece e a cortina do templo que se rasga. Os mortos sairão das suas tumbas e o maior dos milagres produzir-se-á: as almas juntar-se-ão aos corpos e andarão de novo, como fizeram há mil anos. Isto é o mínimo que Cristo pode fazer por eles.
Na sua futura religião não haverá mais lugar para o Cristo autêntico, mas unicamente para os raios e o trovão no céu e o tremor de terra, juntamente com o retorno dos mortos.
Cristo não sabe nada disso; nunca falou, nunca prometeu enviar trovões, raios, tremores de terra ou rasgar cortinas. Ele vive e viaja noutro mundo. A idéia de uma revolta nunca germinou no seu espírito. O Reino que sente em si mesmo não é deste mundo: é o que ele lhes explicará pouco antes da sua morte. Mas ninguém compreende o que ele diz. Eles entendem-no literalmente. Um reino é um reino, não é verdade? E quem diz reino, diz rei, marchas, trombetas, cercos e conquistas de cidades. Um líder dispõe de poderes e exerce-os sobre os outros.
Eis o que esperam de Jesus Cristo. Por enquanto, ele ainda se esconde. Não quis ainda revelar a sua verdadeira natureza. E instigam-no constantemente a revelar-se, a dar-lhes um sinal.
Cristo pede-lhes para não falarem aos outros da sua influência benéfica sobre as pessoas e os doentes. Ele nunca fala de milagres. Mas no fim, cem anos depois da sua morte, os milagres ocuparão o primeiro plano, e não se falará mais da sua recusa em fazer o papel de taumaturgo.
Cristo é contra a revolta armada. Recusa-se a dirigir tal revolta. Prega a revolução espiritual, a revelação das profundezas da alma. Cristo sabe que, se as profundezas da alma não forem libertadas e tomadas úteis, a sua geração não tardará a ver o dia do Juizo Final. Cristo sente, mais do que sabe, que o homem deve encontrar e amar o ÂMAGO do seu ser se quiser sobreviver e instaurar o Reino dos Céus.
Pouco a pouco, Cristo apreende o abismo que separa a sua maneira- de ser da dos outros. Dolorosamente começa a perceber que deverá morrer, mais cedo ou mais tarde, e prepara os seus amigos para essa eventualidade. Sabe que deverá morrer, porque, apesar de cada pássaro ter o seu ninho, não há lugar neste mundo onde o Filho de Deus possa descansar o corpo.
Se ele pegasse na espada, como os seus discípulos lhe pediam, não seria morto ou então seria morto honrosamente, combatendo, e não ignominiosamente, na cruz entre dois ladrões. Cristo sabe que deve morrer, porque não há lugar para ele no coração ou no espírito dos homens. Não sabem absolutamente do que ele lhes fala. E ele não se exprime em parábolas misteriosas. Os seus propósitos são claros, como as coisas que ele evoca. Mas eles não têm ouvidos para o ouvir, ou pior, enganar-se-ão quanto ao sentido das palavras dele, e por isso deverá morrer.
Ele cita Isaías, que disse:
«Este povo honra-me com os lábios, Mas o seu coração está longe de mim; em vão, pois, me honram,
ensinando como doutrinas os mandamentos que vêm dos homens.»
(Mateus, 14:8,9)
Ele sabe que a catástrofe não tardará a abater-se sobre ele, que é inevitável. E ninguém virá em seu socorro, porque, como disse Isaías:
«Vós ouvireis com os ouvidos, e não entendêreis; e vereis com os olhos, e não vereis. Porque o coração deste povo tornou-se insensível, e os seus ouvidos fizeram-se surdos, e eles fecharam os olhos, para não suceder que vejam com os olhos, e ouçam com os ouvidos, e entendam com o coração, e se convertam, e eu os sare.»
(Mateus, 13:14,15)
Esta é a COURAÇA: eles não ouvem, nem vêem, nem sentem com o coração o que vêem, escutam e percebem. Não compreenderão jamais, e as palavras de todos os profetas de todos os tempos ecoaram neles em vão. Os mártires foram mortos em vão, os santos foram queimados em vão, o Assassinato de Cristo continua vitorioso.
Tudo o que o coração do homem concebeu, e o pensamento humano abordou, tudo o que o sofrimento humano revelou do segredo trágico do homem foi pura perda. Os livros foram empilhados num canto ou castrados por uma vã admiração. Os homens só querem ser preenchidos onde se sentem vazios. Nada pode preenchê-los. Deus foi irremediavelmente sepultado neles. Só será reencontrado nas suas crianças recém-nascidas, se evitarmos que sejam injuriadas pelas mãos dos couraçados. Ora, Cristo tem de morrer, porque viu de muito perto o segredo deles, porque se recusou a aceitar a interpretação errada que eles faziam do Reino dos Céus, porque permaneceu fiel ao que sentia.
E este foi o modo como eles acabaram por entregá-lo aos seus inimigos.
Ele resistiu às tentações do mal e do demônio. Resistiu à atracção do poder. Mas estava perante uma difícil escolha, perante um dilema doloroso: como ser líder do povo sem sucumbir aos vícios dos líderes do povo? Sabia que o poder não resolveria o problema, não podia resolvê-lo.
O poder é, em última análise, o resultado do desamparo do povo. Ou os líderes tomam o poder pela força, ou então é o próprio povo que os leva a reinar sobre ele. Um Calígula, um Hitler, um Djugashvilli mostraram um desprezo evidente pelo povo ao tomar o poder, porque tinham compreendido o que os homens são e o que fazem. Todo o poder deste gênero pode instalar-se graças à inércia, à cumplicidade ou mesmo à admiração do povo.
O outro tipo de poder, a sedução dos líderes para posições de poder, é urna realização dos homens vazios e incapazes. Os homens transformam as novas verdades libertadoras num novo poder do homem sobre os homens. Isto parece inacreditável. No entanto, toma-se evidente quando nos livramos da atitude de comiseração e idolatria do povo e dos homens em geral. Essa comiseração e essa idolatria estão entre os meios mais eficazes com que a peste generalizada se protege. Enquanto nos condoermos das pessoas, as elogiarmos e nos recusarmos a vê-las como são, nunca descobriremos o atalho escondido que conduz à compreensão de uma montanha de misérias vetustas. A história de Cristo só descobre este segredo porque Cristo não sucumbiu à sedução do poder.
Eis os métodos que o povo usa para seduzir os seus grandes líderes a exercer poderes perniciosos.
Para começar, as pessoas reverenciam as idéias daquilo a que chamamos «progresso», saudando os promotores de tais idéias, mas permanecendo, elas próprias, instaladas no imobilismo. Se não mataram imediatamente a nova idéia, resta-lhes caluniar ou, então, torturar o pioneiro até ã morte. O abismo entre a capacidade de ter esperança e a capacidade de agir levará, de qualquer forma, a sentirem a nova idéia como um fardo, como uma lembrança constante da sua inércia, do seu imobilismo. Essa sensação de estar sempre a travar dará origem a um sentimento de ódio a tudo o que é novo, mutável e excitante. Visto por este ângulo, o ódio a tudo o que vive é uma manifestação racional por parte do homem arruinado. A idéia nova, dinâmica, faz tremer os hábitos de segurança e conforto emocional. Neste caso, a atitude conservadora torna-se uma atitude racional. Esta segurança, apesar de ir matando o homem aos poucos, é indispensável à sua existência. Sem ela, ele pereceria. O alarde dos bufões e vendilhões da liberdade não deveria desviar a atenção deste facto. O bufão da liberdade que, por simples ignorância ou falta de espírito de responsabilidade, reclama a liberdade porque quer fazer o que bem entende −com a intenção de fazer o mal −após ter morto o conservador que defende o statu quo, seria absolutamente incapaz de assegurar o funcionamento das estruturas sociais e utilizará, para salvar a pele, procedimentos ainda mais cruéis e violentos para suprimir a Vida viva do que os imaginados pelos piores conservadores.
Os imperialistas russos do século xx, que vieram das camadas populares, fomecem-nos um exemplo histórico deste facto que custou muitas vidas humanas.
Dadas as condições em que vivem, os homens são e precisam de ser conservadores. De nada serve abandonar a sua cidade e enfrentar o desconhecido se não tem agasalho para se proteger do frio, nem pão para comer. Mais vale, nessas condições, ficar instalado onde está, com uma pequena horta atrás da casa. Pela mesma razão, as pessoas odeiam e devem odiar os que perturbam a sua segurança emocional. Ao fazer esta constatação, torno-me advogado do diabo, mas é pouco útil combater o diabo, a não ser que se saiba primeiro porque está o mundo povoado de diabos.
O perturbador dos seguros hábitos do imobilismo pode tomar-se vítima da aclamação da sua grandeza e instalar-se também no imobilismo. Isto acontece muito freqüentemente. Neste caso nenhum avanço real terá sido realizado. Alguns homens e mulheres terão sentido uma pequena comoção, um pequeno estremecimento nos seus órgãos genitais adormecidos, mas nada aconteceu que pudesse perturbar a paz da comunidade. Observe um pouco os orientais «instalados» e compreenderá e verá o que quero dizer.
Pode também acontecer que o perturbador da segurança emocional não sucumba à pressão do imobilismo do homem. Neste caso, ele será perseguido, terá de ser perseguido como um animal selvagem. Ou então morre, e não impedirá mais o arrastar-se da rotina. Uma vez mais, a situação da comunidade não sofrerá muitas mudanças; um pouco de poeira será levantada na estrada, ou durante uma briga sem importância em alguma taberna.
A existência do homem estará seriamente ameaçada se o inovador ou profeta não aceitar instalar-se com os outros, nem morrer em silêncio. O perigo real decorre do sucesso do profeta. Eis as etapas para o desastre social geral:
1. A massa de homens inertes agarra-se, por intermédio de alguns pequenos grandes homens, a uma grande esperança transmitida por uma nova mensagem.
2. Esses pequenos grandes homens não estão tão inertes como o resto do rebanho humano. Eles estão vivos, empreendedores, ávidos de sucesso e de poder; não de poder sobre as pessoas, como até então.
3. Os profetas, que condenaram a vida pecaminosa e viram novas terras, mantêm as suas promessas sem verem que criam assim os fundamentos de um novo poder maléfico que eles teriam sido os primeiros a condenar. A menos que eles tenham atingido um alto grau de abnegação e de sagacidade que lhes permita ver com toda a clareza o abismo que separa, no homem, a esperança do acto, a catástrofe social será inevitável.
4. Os pequenos grandes homens agarrar-se-ão à nova idéia. Ficarão embriagados com as potencialidades da nova visão. Não terão a experiência, nem a paciência necessária para perceber o perigo, nem para adquirir o conhecimento necessário para manejar a nova visão. A grande visão torná-los-á inevitavelmente embriagados com sonhos de poder, e eles conhecerão a embriaguês do poder. Esses pequenos grandes homens não vão querer o poder de imediato. A embriaguez do poder é o resultado involuntário, mas certo, da mistura de grandes visões e pouco conhecimento. Desta forma, um mal novo e pior é criado a partir da esplêndida visão de redenção. Essa transformação da visão em embriaguez de poder ganhou importância ao longo dos séculos, à medida que o número de profetas aumentava e mais indivíduos que abandonavam o rebanho apareciam no cenário social. O imobilismo do homem, a visão do profeta e a transformação da visão em embriaguês do poder nos pequenos apóstolos dos grandes profetas é a tríade donde procede toda a miséria humana.
Esta passagem da visão ao poder sobre os homens é inevitável; produzir-se-á enquanto durar o abismo entre o grande sonho e a impotência efectiva do homem. João e Caifás, o Cristo e o Inquisidor surgem desse abismo na natureza do homem.
É o dinamismo deste círculo vicioso que fez de cada líder socialista da primeira metade do século xx um burocrata do poder estatal sobre os homens. A seqüência destes acontecimentos é inevitável enquanto o abismo não for fechado. A embriaguez do poder não é culpa de ninguém, mas é da responsabilidade de todos. Não há maior perigo para os povos futuros do que a comiseração e a piedade. A piedade não removerá no homem o abismo que separa o sonho da acção. Ela só o fará perpetuar. No sentido da perpetuação da miséria do homem, os socialistas são inimigos dos homens. O conservador não tem a pretensão de melhorar a sorte do homem. Ele proclama abertamente que é a favor do statu quo. O socialista apresenta-se como o «líder progressista» que aspira à «liberdade». Na realidade, ele é o artífice da escravidão: não porque fosse esta a sua intenção, mas porque ele sucumbe à atracção do poder; ele é vítima das massas humanas místicamente esperançosas, mas, de facto, impotentes.
Os sentimentos socialistas conduzem necessariamente à estatização. Assim aconteceu em todos os lugares onde a idéia socialista foi tomada a sério. Nos lugares onde o socialismo foi somente um ideal humanitário, como nos países escandinavos no século xx, a estatização não surgiu como conseqüência. Mas na Inglaterra o socialismo naufragou; foi uma catástrofe na Rússia, na mesma proporção em que o ideal socialista foi tomado a sério.
Ninguém culparia um líder socialista por não ver o abismo ou por confundir a esperança do povo de alcançar a liberdade com a sua capacidade de construir esta liberdade. Mas podemos culpá-los de oprimir, de maltratar e de matar todos os que apontaram o abismo e propuseram medidas − boas ou más − para o fechar. Isto aplica-se, em primeiro lugar, aos imperialistas russos. Para eles, o imobilismo patológico do povo significa uma «sabotagem» consciente dos interesses do Estado. A abominável crueldade dos imperialistas russos em relação ao homem só pode ser explicada pelo choque que lhes causou a descoberta da inércia humana, no momento em que tinham partido para construir «o céu sobre a Terra». Não são as esperanças da humanidade que diferenciam o credo dos Católicos Romanos do dos imperialistas russos, nem a degeneração de uma doutrina nobre num mísero engano. O que distingue os dois sistemas é a sua diferente atitude face à fraqueza humana. No entanto, durante a Idade Média, o Catolicismo apresentou as mesmas características do fascismo do século XX.
É evidente que tudo isto é trágico. O facto de ser mais agradável para o homem NÃO levar a sério os seus ideais do que levá-los a sério é apenas mais um dos muitos paradoxos criados pela grande contradição na estrutura humana, a contradição entre os desejos do homem e a sua inércia.
Cristo não sucumbe à solicitação do rebanho que lhe propõe levá-lo ao poder. Ele não cria, durante a sua vida, nenhum grande movimento, e nem sequer abandona o Judaísmo. Não transforma sequer a sua profecia em embriaguez do poder. Este será o papel de Paulo de Tarso. Na época moderna, Estaline está para Marx, assim como Paulo está para Cristo. Lenine está fora disso. Não suportou a dor de ver abortar o sonho russo que ele vivera no início. Teve um ataque apopléctico, assim como Franklin D. Roosevelt em 1945, quando compreendeu o que o Modju de Moscovo fizera com as suas atitudes amigáveis. O verdadeiro Paulo do Fascismo Vermelho é Estaline, o astuto Modju da Geórgia, Rússia, até nos detalhes de linguagem, doutrinação, crueldade, e da conversão de Saulo em Paulo. Para Estaline, sucumbir à embriaguez do poder foi mais fácil do que para Paulo, porque não havia, no tempo de Paulo, milhões de homens implicados no desastre. Mas ambos mostraram, cada um a seu modo, a mesma crueldade.
Cristo nunca organizou facções nos diferentes países. Não pretende converter os pagãos ao Cristianismo; apenas inclui os pagãos entre os filhos de Deus, e nunca teve a menor intenção de converter as pessoas contra a vontade delas. Ele não leva o Cristianismo às pessoas. Espera que as pessoas venham a ele. Então diz simplesmente que o Reino dos Céus NA TERRA é possível e está próximo. Ele crê − como o farão os liberais e os socialistas, dois mil anos mais tarde − que o homem é bom, e que são apenas as forças exteriores que o esmagam e impedem de viver a sua bondade, Ele crê  − como farão muitos depois dele − que o Reino virá se o homem se obstinar em rezar séria e verdadeiramente. Comete  − como muitos antes e depois dele − o erro de pensar que a massa humana pode ser subjugada pelos poucos imperadores e escribas talmudistas, contra a sua vontade. Ignora completamente o facto de que são os próprios homens que procedem à supressão da vida. Séculos de crueldade, de morte, de desespero, de erros e de crimes hediondos transcorrerão antes que uma ínfima minoria comece a tomar consciência de que o homem é emocionalmente doente. E, mesmo então, os poucos que o sabem irão aderir ao erro e recusar-se a ver a verdade clara, face a face. Acreditarão que os mentalmente doentes o são por hereditariedade, como os seus predecessores acreditaram que eram possuídos pelo demônio e, como tal, deveriam ser queimados vivos.
A grande evasiva de Cristo, que é Vida, trará biliões de crimes através dos tempos. Converterão nações estrangeiras ao Cristianismo pela força, ignorando o que Cristo quis dizer quando falou do Reino dos Céus dentro de nós. Em nome do Cristianismo, com o fim de evitar Cristo, o sangue será derramado, enforcados penderão das árvores, gritos ecoarão pelos muros espessos das prisões, e os insanos, que conservam o contacto com Cristo, serão encarcerados para sempre, tudo em nome de Cristo.
E o pesadelo continuará sob outro nome, desta vez sob o disfarce do Anticristo que pretenderá exterminar a fé cristã pela sua crueldade e ignorância, ao mesmo tempo que ultrapassará, quanto ao método e ao número, qualquer coisa que qualquer inquisidor jamais possa ter imaginado fazer. Oito anos foram necessários para levar Giordano Bruno à fogueira; hoje, algumas horas são suficientes para fuzilar centenas de homens e mulheres inocentes.
O ódio reinará no mundo, ao mesmo tempo que palavras de amor e paz sairão de lábios frios. Cristo nada sabe do ódio estrutural, conseqüência do sentimento de frustração do homem. Serão necessárias centenas de anos, e centenas de santos e de sábios, para esconder o facto de que alguém poderia pôr um fim ao pesadelo, fazendo parar o Assassinato de Cristo no ventre de biliões de mulheres sedentas de amor que geram crianças.
A catástrofe é grande de mais, estúpida de mais e odiosa de mais na sua monstruosidade para que mesmo Cristo tenha tido consciência das suas dimensões. Ele ama demasiado as pessoas. Acredita demasiado nelas. Com um amor tão profundo e sincero no coração, não é possível conceber o homem como um ser rancoroso, abominador. O homem não mostra abertamente o seu ódio. Dissimula-o e vive-o, clandestinamente, de maneira magistral. O seu ódio é bem disfarçado sob a forma de ódio ao inimigo eterno, ao imperador, ao inimigo estrangeiro, de maneira que nenhuma alma cheia de amor e confiança queira ou possa sonhar que esse ódio exista no homem virtuoso. Não é menos verdade que o amor possessivo da mãe pelo seu filho é verdadeiro ódio; que a fidelidade rígida da mulher ao seu marido é verdadeiro ódio; na realidade, ela está cheia de desejo por outros homens. O cuidado solícito dos homens pelas suas famílias é verdadeiro ódio. A admiração das multidões pelos seus líderes bem-amados é autêntico ódio, é um assassinato em potência. Deixemos o redentor virar as costas ao seu rebanho, deixemos o pastor abandonar as suas ovelhas por um só dia, e elas transformar-se-ão em lobos famintos e despedaçarão o pastor.
Tudo isto é demasiado inacreditável para que possa ser concebido e manejado. Mas é real. É tão real que suspeitamos, com boas razões, que isto seja o clímax da grande evasiva de toda e qualquer verdade, grande ou pequena. Para chegar à verdade, esta grande mentira tem de ser descoberta. E descobrir esta grande mentira significa desastre para todas as almas envolvidas.
O grande ódio está muito bem escondido e controlado na superfície, para que não possa fazer mal de imediato. A criança emocionalmente mutilada pela mãe na primeira infância só a acusará das conseqüências quando, já homem, se encontrar perante a tarefa de amar uma mulher, ou, sendo mulher, enfrentar os problemas da educação do seu filho.
A distorção da graça natural de uma rapariga pela mãe frígida e horrível só se desvendará quando ela for mãe e tiver feito o seu homem e os seus filhos infelizes para sempre. O último pensamento de tal mãe, até ao seu leito de morte, será a preocupação pela virgindade da filha.
Isso é apenas uma pequena amostra dos bastidores da miséria humana. O grande ódio só será visível para o homem ou a mulher que lutar pela sobrevivência decente do seu amor e da sua vida-. Isto só será acessível ao cirurgião de emoções que saiba abrir a alma humana sem matar o corpo com uma onda de ódio; A forma e a aparência do ódio variarão de milhares de maneiras, mas este permanecerá sempre escondido. Na verdade, todas as regras de boa conduta e cortesia na sociedade derivam da necessidade de esconder esse imenso ódio. Certa camada social desenvolverá através dos tempos uma etiqueta especial para enganar toda a gente, levando-a a esquecer a existência desse ódio estrutural. Os diplomatas do fim da era pós-cristã irão a uma conferência de paz sabendo que estão a enfrentar um ódio implacável, prontos a enganar, pois sabem que esta é a única maneira de controlar o grande ódio. Ninguém terá confiança em ninguém, e cada um saberá o que se passa no espírito dos outros. Mas ninguém o mencionará. Nas grandes convenções dos grandes conselhos de higiene mental, cada homem e cada mulher saberá da miséria da puberdade através da sua própria experiência e através da massa miserável que encontram nos seus consultórios e centros médicos. Cada educador conhece muito bem as causas da delinqüência juvenil e a sua profunda significação: A PRIVAÇÃO SEXUAL NO APOGEU DO DESENVOLVIMENTO GENITAL. Mas ninguém o menciona. O grande ódio está entre a miséria da juventude e os seus potenciais saneadores. E todos fingem não ver esse ódio no imenso engano da polidez e das convenções sociais, porque todos têm medo uns dos outros. E, do mesmo modo, continuam a dar palmadas nas costas uns dos outros, como se estivessem a amansar animais selvagens.
Tudo isto é a conseqüência inevitável do Assassinato permanente de Cristo.
O Assassinato de Cristo é inevitável, não por causa do ódio, mas porque eles o amam demasiado, de uma maneira que ele não pode satisfazer.
Cristo não quer reconhecer quanto é diferente deles. O seu amor pelo próximo impossibilita-o de tomar consciência da sua diferença, de que possui o que eles não têm, de que resolve facilmente as coisas que eles tentam em vão resolver. Ele é assim porque sente e vive a Vida naturalmente, seguindo o seu curso, enquanto eles primeiro matam a vida dentro de si próprios para depois tentar trazê-la de volta pela força. A Vida não pode ser forçada. Não se pode forçar uma árvore a crescer, esta é a grande esperança contra os ditadores do mal.
Cristo continua muito perto dos seus companheiros. Ele continua a fazer o bem aos outros. Os homens e as mulheres que o acompanham continuam a aceitar as suas dádivas e habituam-se de tal modo que o facto de estar perto dele se torna uma espécie de segunda natureza.
A sua contínua presença e a sua intimidade farão comi que eles o matem. Se ele fosse remoto, distante por altivez! ou falsa dignidade, estaria salvo. Mas ele estava sempre ali, humilde e simples, facilmente acessível a todos, dia e noite a qualquer hora, um homem como os outros no meio dá multidão. Secretamente eles interrogavam-se: por que razão o Mestre permite que nós, que tão pouco sabemos e fazemos da sua mensagem, fiquemos sempre à sua volta? Ele é esplêndido, mas um pouco pesado para suportar. Ser solene sempre e viver a vida de Deus a toda a hora é nobre mas incómodo. É verdade que o Mestre brinca de vez em quando, diz gracejos quando caminhamos por montes e vales, e vemos muitas pessoas e crianças juntarem-se a nós, e ficarem curiosas a nosso respeito, mas não somos o que parecemos ser. Nós não somos santos, nem suficientemente perfeitos; não somos discípulos verdadeiramente dignos dele. Já alguém o ouviu contar uma piada suja? Nunca. No entanto, ele dá-se com prostitutas e cobradores de impostos. Ele é tão amável com toda a gente; um pouco de dignidade, de reserva não faria mal. O homem mais reservado será certamente o seu sucessor e representante após a sua morte.
Nada sabemos sobre a sua vida amorosa. Ele nunca fala sobre isso, e é impossível saber com quem anda. As mulheres amam-no, ele é muito atraente e viril. Alguma vez o viu beijar ou cortejar uma mulher? Nunca. Ele veio certamente do céu.
Não pode ser um simples mortal. Os mortais brincam, bebem, e às vezes ficam bêbados, e contam histórias picantes sobre os seus casos amorosos; fodem a torto e a direito e têm os seus pequenos segredos dos quais toda a gente sabe e fala. De vez em quando vão a algum sítio longínquo e divertem-se a valer, para voltarem a ser, depois, inteiramente virtuosos. Só vivem para as suas mulheres e filhos. Sim, sabemos que muitos detestam esse tipo de vida, mas aí ficam, cultivando os seus jardins, fazendo as colheitas, e durante a estação das chuvas não fazem grande coisa, conversam um pouco, sonham ou dormem a sesta. Desconfiam uns dos outros e desprezam-se, mas são sempre amáveis. De vez em quando apedrejam uma mulher que ousou amar um homem que não era o seu, mas, no todo, a sua vida é calma e ordenada.
Porque não tem o Mestre uma mulher? Deixou a sua família e pediu aos outros que deixassem as suas e o seguissem. Ele sempre nos desvia desta nossa vida. É penoso deixar o nosso mundo familiar e habitual para entrar no seu.. Gostamos das emoções fortes que nos proporciona, mas quando é que ele se vai revelar, quando será o nosso líder, quando dará um sinal, quando esmagará os nossos inimigos? Ele mantém sempre silêncio sobre isso. Devia começar a fazer alguma coisa. Alguma coisa grande. Mostrar ao mundo a sua grandeza. Então, ser seu discípulo seria muito mais fácil e próximo da nossa maneira de viver. Não podemos continuar para sempre a andar pelos campos, confortando os pobres e levando um pouco de felicidade aos doentes aqui e ali. Somos vistos como um grupo esquisito, estranho. Precisamos de alguma coisa grande, barulhenta, alguma coisa como fanfarras, marchas, bandeiras e gritos, e mostraremos aos Romanos que somos seus inimigos.
O contínuo amar, dar e preencher os seus egos vazios de nada serviu. Eles querem viver à maneira deles. E Cristo não se apercebeu disso. Conseguiram convencê-lo de que devia fazer alguma coisa grande, estrondosa, impressionante, para ser reconhecido como o Filho de Deus. E ele, que resistiu à tentação do pecado e do poder, deixa-se levar numa «Marcha sobre Jerusalém». E como Cristo é muito diferente de Mussolini, que marchará dois mil anos mais tarde sobre Roma, e como esta marcha está em completa contradição com a sua verdadeira natureza, morrerá miseravelmente na cruz.
Por causa do seu grande amor pelos homens. Cristo não compreende inteiramente o homem. Ele sente-se como um líder que nunca deveria abandonar o seu rebanho. Pressente uma catástrofe iminente. Sente que a sua vida é incompatível com o curso normal das coisas. Nada sabe sobre a peste no homem, e durante dois mil anos ninguém perceberá a peste que ameaça o homem. E então ele cedeu. Os seus inimigos só esperavam uma oportunidade para o matar. Estava a salvo enquanto viveu a vida da Vida. Perdeu-se no momento em que começou a misturar a sua vida com a vida deles.
Modestamente, ele monta um burro e marcha na frente de um punhado de discípulos para a grande cidade, com o grande templo dominado por poderosos sacerdotes, e para a fortaleza do governador. Sabe que vai morrer. «Eis que aqui vamos para Jerusalém; e o Pilho do Homem será entregue aos príncipes dos sacerdotes, e aos escribas, que o condenarão à morte. E entregá-lo-ão aos gentios para ser escarnecido e crucificado, mas ao terceiro dia ressurgirá.» (Mateus, 20:18,19.) Ele sabe-o, mas vai, mesmo assim. Ele diz-lhes que vai ser capturado e morto, mas eles não sabem do que ele lhes fala. Para eles, trata-se apenas de mais uma emoção. Um desses misteriosos ditos que os enchem de uma alegria ansiosa por um dia ou dois, até que ele lhes dê outra emoção. Ninguém lhe diz para não ir. Ninguém o retém. Ele já está abandonado, embora ninguém tenha ainda percebido. Não tem um único amigo com quem possa contar. Os amigos teriam compreendido a situação, e não a teriam desejado. Os amigos teriam compreendido que os seus modos não são os deste mundo de talmudismo e conquista, e que uma cidade imensa não poderia ser tomada de assalto pela Vida, montada num burro. Os amigos ter-lhe-iam dito que tal iniciativa era ridícula e que assim pareceria aos olhos de todos; que a multidão viria vê-lo passar, arrastada por uma curiosidade mórbida, como se assistisse a um espectáculo de circo. Alguns gritariam «Hossana nas Alturas», mas isso não alteraria muito.
Dois mil anos mais tarde, políticos organizarão marchas da fome com os pobres das grandes cidades, durante o Inverno gelado, para exibir os futuros proletários que regularão a sociedade. Alguns cantarão hinos à liberdade, outros gritarão «Abaixo a burguesia», enquanto alguns espectadores indiferentes se irão juntando nas calçadas para ver desfilar essa procissão de fracasso, de pobreza e de misérias. Alguns dos participantes na Marcha da Fome tentarão em vão imitar a marcha de uma grande parada militar. Terão mesmo batedores à sua frente, e alguns tambores marcarão o ritmo da marcha miserável. Soldados bem armados, em fila, dos dois lados da coluna, protegerão os miseráveis do ódio da maioria. Um dia, a nação inteira encher-se-á de piedade pelos infelizes... e o fim disto tudo será:
 
 
e isto continuará
 
Assim como Cristo sabia bem que marchava para a morte, também esses «libertadores» da humanidade saberão (e di-lo-ão em voz alta) que marcham ao encontro do nada, e que caminham para estabelecer um outro governo ainda mais cruel, mais infernal que o precedente. Organizarão marchas da miséria, plenamente conscientes da inutilidade do empreendimento. Marcharão porque não há mais nada a fazer, dadas as regras que, actualmente, governam a conduta humana.
Serão contra a revolta, como Cristo o fora dois mil anos antes deles. Saberão muito bem que «aquilo» está «dentro deles», para ser libertado das suas vidas oprimidas, e não para ser obtido através de marchas. Mas os seus líderes não conhecerão nenhum caminho melhor. Será feito da maneira usual. Para fora, ao invés de para dentro.
 
(Wilhelm Reich - O Assassinato de Cristo)
Cristo crucificado vivo (Michelangelo)

publicado às 17:07


O REINO DOS CÉUS NA TERRA

por Thynus, em 25.01.17
O mito de Jesus Cristo mostra as qualidades de «Deus», ou melhor, da Energia Vital inata e dada pela natureza de uma maneira quase perfeita. O que não se sabe ou não se reconhece é que o Mal, o Diabo, é um Deus pervertido, resultado da SUPRESSÃO de tudo o que é divino. Esta falta de conhecimento é uma das causas profundas da tragédia humana.
No Orgonomic Infant Research Center, vimos essas características «divinas» naturais nas crianças pequenas, características essas que têm sido consideradas, até agora, como o objective idealizado e inacessível de toda a religião e de toda a moral. Da mesma maneira, todas as religiões que nasceram nas grandes sociedades asiáticas descreveram sempre o animal humano como essencialmente mau, pecador, ruim; todos os filósofos de inspiração religiosa visaram um único objectivo através de toda a história da humanidade: todos procuram o meio de penetrar nas trevas, de descobrir a origem do Mal e um remédio contra a Maldade do homem. Os esforços e os pensamentos filosóficos sempre tenderam, basicamente, a esclarecer o enigma do Mal e a aboli-lo.
Como pode o Mal provir da criação de Deus? Em qualquer criança recém-nascida, Deus está presente para sentir, ver, amar, proteger, desenvolver. E, até hoje, em cada criança recém-nascida. Deus é reprimido, contido, abolido, sufocado, odiado. Este é apenas um dos aspectos do crónico Assassinato de Cristo. O Pecado, (o Mal) é uma criação do próprio homem. Isto ficou sempre escondido,
O Reino de Deus está dentro de nós. Ele nasceu connosco. Mas estamos em falta com Deus, como nos dizem todas as religiões. Nós não o reconhecemos, traímo-lo, somos desleais para com ele, somos pecadores enquanto não regressarmos a Deus. Durante esse tempo estamos" expostos às tentações do Diabo e devemos rezar para resistir à tentação. Como é possível que o homem não veja Deus à sua frente?
As características do sistema vital orgonótico funcionando livremente e a observação de crianças que crescem livres nos seus direitos naturais confirmam a suspeita de que uma verdade básica foi revestida de religiosidade mistificada. Sublinhamos que o nosso propósito não é explicar a crença religiosa ou preconizar uma vida religiosa. O que principalmente nos interessa é saber até que ponto o Homem teve conhecimento, ao longo dos séculos, da verdade biológica, e até que ponto foi capaz de a encarar, tendo em conta o seu medo e o seu ódio à vida. Cristo representa esse conhecimento do homem. Por isso ele deve morrer.
Do passado emergirão as Crianças do Futuro. A rapidez e a eficácia da mudança dependerão, em larga escala, de quanto pôde ser salvo da antecipação de um futuro melhor nos sonhos da humanidade e de quanto foi distorcido durante o conflito entre o Diabo e a moral. Se esta orientação fundamental não for seguida, todo o esforço pedagógico está destinado ao fracasso. Se queremos descobrir o homem, é preciso tomar consciência da tendência de todo o homem couraçado: o ódio ao Vivo:
Jesus sabia que as crianças possuíam «ALGO». Amava as crianças e ele próprio se assemelhava a uma delas. Era sábio, mas ingênuo; confiante, mas prudente; transbordante de amor e gentileza, mas sabia ser duro; era forte e, apesar disso, doce, como será a criança do futuro. Não se trata de uma visão idealizada. Temos plena consciência de que a menor idealização dessas crianças equivaleria a ver a realidade através de um espelho onde ela não poderia ser apreendida.
Ser semelhante a Deus não é ser simplesmente vingativo e severo, nem ser simplesmente bom e indulgente, dando sempre a outra face ao inimigo. Ser semelhante a Deus é conhecer todas as expressões da vida. As emoções orgonóticas são benevolentes e doces quando a benevolência e a doçura se impõem. São duras e rudes quando a Vida é traída ou ofendida. A Vida é capaz de acessos de cólera, como Cristo demonstrou expulsando os mercadores do templo de Deus. Ela não condena o corpo, ela compreende até a prostituta e a mulher que é infiel ao seu marido. Ela não persegue nem condena a prostituta e a mulher adúltera. Quando fala de «adultério», a palavra não tem o mesmo significado que tem na boca dos animais humanos, sedentos de sexualidade, maus, endurecidos, estereotipados, que encontramos nalgumas cidades superpovoadas.
Deus é Vida. O seu símbolo na religião cristã, Jesus Cristo, é uma criatura de intensa irradiação. Ele atrai as pessoas, que se agrupam em torno dele e o amam. Este amor é, na realidade, sede de amor; transforma-se rapidamente em ódio quando não é gratificado.
As criaturas que irradiam vida nasceram para dirigir os povos. São líderes sem esforço, sem se proclamarem líderes do povo, como o fazem os líderes da peste emocional.
As crianças irradiantes de felicidade são também líderes natos para as outras crianças. Estas agrupam-se em tomo daquelas, amam-nas, admiram-nas, buscam os seus elogios e conselhos. Esta relação entre líder e seguidores desenvolve-se espontaneamente durante as conversas e as brincadeiras. A criança do futuro é gentil, amável, natural e alegremente generosa. Os seus movimentos são harmoniosos, a sua voz melodiosa. Os seus olhos brilham com uma luz doce e lançam um olhar profundo e calmo sobre o mundo. O seu contacto é suave. Quem é tocado passa a irradiar a sua própria energia vital. Este é o «poder curativo» de Jesus Cristo, tão mal interpretado. A maioria das pessoas, incluindo as criancinhas couraçadas, são frias e têm a pele húmida, o seu campo energético é pequeno, não irradiam, não comunicam nenhuma força aos outros. Elas próprias têm necessidade de energia e sugam-na onde a encontram. Bebem a energia e a beleza irradiante de Cristo, como o homem a morrer de sede vai beber ao poço.
Cristo dá livremente. Pode dar de mãos abertas, pois o seu poder de absorver a energia vital do universo é ilimitado. Cristo não pensa estar a fazer demasiado ao dar a sua força aos outros. Fá-lo com satisfação. Mais ainda, tem necessidade de se dar assim; ele transborda energia. Nada perde ao dar generosamente aos outros. Pelo contrário, é dando aos outros que ele aumenta a sua força e riqueza. Não dá apenas pelo prazer de dar; floresce com as suas doações, pois a sua generosidade acelera o metabolismo das suas energias; quanto mais esbanja a sua força e o seu amor, mais força obtém do universo; quanto mais intenso o seu contacto com a natureza que o cerca, mais aguda é a sua percepção de Deus e da Natureza, dos pássaros e das flores, do ar e dos animais, dos quais está próximo, apreendendo-os com o seu Primeiro Sentido orgonótico; seguro nas suas reacções, harmónico na sua auto-regulação e independente de todos os «deves» e «não deves» obsoletos. Ele não se apercebe de que outros «deves» e «não deves» surgirão mais tarde, da maneira mais trágica, e assassinarão Cristo em cada criança.
O «poder curativo» de Cristo, que os homens couraçados mais tarde deformaram, transformando-o em mediocridade interesseira, é, na realidade, um atributo perfeitamente compreensível e facilmente observável em todos os homens e mulheres naturalmente dotados das qualidades de líder. Os seus poderosos campos orgono-energéticos são capazes de estimular os sistemas energéticos inertes e «mortos» dos miseráveis e dos «infelizes». Esse estímulo do sistema vital exaurido é sentido como um relaxamento da tensão e da angústia, relaxamento esse devido à dilatação do sistema nervoso, que se traduz por uma faísca de amor verdadeiro num organismo cheio de ódio. A excitação da bioenergia no ser fraco é capaz de dilatar os seus vasos sanguíneos, de irrigar melhor os tecidos, de acelerar a cura das feridas, de contrariar os efeitos parausantes e degeneradores da energia vital estagnada.
O próprio Cristo não se preocupava com os seus dons de curador. Nenhum grande médico se vangloria de saber curar. Nenhuma criança saudável tem consciência do seu poder de redenção. É a função da vida que age neles. Ela faz parte da expressão vital de Cristo nas crianças, no autêntico médico, no próprio Deus. Cristo vai ao extremo de proibir os seus místicos adeptos e pasmados admiradores de revelarem aos outros o seu poder de curar. Alguns historiadores do Cristianismo, mal informados, interpretarão essa atitude de Cristo como uma «retirada diante dos inimigos» ou «medo de ser acusado de bruxaria». Na realidade, esta questão nada tem a ver com inimigos ou bruxaria, embora Cristo também seja mais tarde atacado pela peste, pelas mesmas razões. A verdade é que ele não presta muita atenção aos seus poderes curativos. Eles fazem parte integrante do seu ser, a ponto de não lhe suscitarem mais interesse ou orgulho do que a sua maneira de andar, de amar, de comer, de pensar ou de dar. Esta é uma das características básicas do CARÁCTER GENITAL.
Cristo disse aos seus companheiros: O Reino dos Céus está em vós. Está também para além de vós, em toda a eternidade. Se tomardes consciência disto, se viverdes conforme as suas leis e objectives, sentiréis Deus e conhecê-lo-eis. ESTA é a vossa redenção, este é o vosso salvador.
Mas eles não compreendem Cristo. De que fala ele? Onde estão os «sinais»? Porque não lhes diz se é ou não o Messias? Ele é o Messias? Deve prová-lo, fazendo milagres. Ele não fala. Ele próprio é um mistério. É preciso que se faça luz sobre ele, que o véu do seu segredo seja levantado.
Cristo não é um mistério. Se ele nada disse, foi porque nada tinha a dizer que pudesse satisfazer-lhes as aspirações místicas. Cristo É. Ele vive a sua vida. Ele não tem consciência de que é tão diferente de todos os outros.
Para Cristo, que é natureza, a Natureza e Deus são uma só coisa. As crianças sabem isso, disse ele aos seus amigos. E crê que todos são Crianças em Deus. Para ele. Deus é Crescimento e Crescimento é Deus.
Mesmo assim, eles não entendem aquilo de que Cristo lhes fala. Para eles. Deus é um pai barbudo, colérico, vingativo. Por isso. Cristo parece falar-lhes por parábolas veladas. Para eles. Deus faz o crescimento. E eles não se sentem crianças em Deus, mas os servos de um Deus raivoso. Para eles, a Natureza foi criada por Deus em sete dias a partir do nada. Como pode, então. Deus ser a Natureza?
Cristo não ignora a moral inata e a sociabilidade natural da vida. Nos seus sermões, ele evoca a bondade inerente aos pobres e aos infelizes. Os pobres assemelham-se às crianças. A fé é força. A fé pode mover montanhas. A fé dá energia. A fé é o sentimento de Deus, ou da Vida, em nós. Ela é confiança em si, energia, dinamismo.
Eles não entendem aquilo de que Cristo lhes fala. Estão tristemente privados da sua própria natureza. É preciso ameaçá-los para que observem as leis da moralidade e da sociabilidade. Eles perderam o Reino de Deus e guardam com eles a nostalgia do paraíso. Imaginam o paraíso como uma terra em que não é obrigatório trabalhar para criar abelhas que dêem mel. Ali o mel corre em grandes rios, sem que ninguém precise de mover um dedo. O leite também é obtido, claro, sem o menor esforço. Ele também corre nos rios.
Se é verdade que Deus se preocupa com cada criatura do universo, por que razão não tomaria conta delas no paraíso? Então, nada de trabalho, nada de esforços, nada de preocupações: apenas o leite e o mel a correr nos rios. E o maná também cairia do céu sobre a terra. Bastaria abaixar-se, apanhá-lo e pô-lo na boca. Mas acontece que o maná não cai do céu, e que é necessário trabalhar muito para obter leite e mel. E é assim porque Deus ainda não enviou o seu Messias para as redimir. Moisés já tinha prometido aos seus uma terra onde teriam leite e mel em abundância. Mas foi um sonho que acabou por se transformar em pesadelo com a ocupação romana, as taxas, a escravidão, as perseguições. No entanto, o Messias está a chegar. Cristo é tão diferente deles. Ele tem uma linguagem e vive uma vida que não compreendem. Isso confirma a sua opinião de que ele é o Messias que veio para os salvar. As pessoas temem e admiram o que não compreendem. Sentem-se felizes quando estão perto dele. As crianças amam-no e cercam-no como se ele fosse Deus em pessoa. Naquela época, ainda não se adquirira o hábito de mandar crianças vestidas de branco entregar flores aos homens de Estado. Esse hábito foi instituído cerca de dois mil anos mais tarde.
Cristo não percebe muito bem o que lhe está a acontecer. Ele não se revela, porque nada tem a revelar. Ele apenas vive à sua maneira. E como vê e sente quanto eles são infelizes e diferentes dele, tenta ajudá-los. Tenta inculcar-lhes os seus próprios sentimentos de simplicidade, de franqueza, de intimidade com a natureza. Ele ama as mulheres; rodeia-se de mulheres, assim como de homens, vive o seu corpo «no corpo», como. Deus o criou. Não vive a sua carne, mas o seu corpo. O sentimento vivo que ele tem de Deus é muito diferente do que têm os escribas e os talmujistas. Estes perderam Deus dentro de si, e procuram Deus com sofreguidão, interrogam Deus nas suas preces, implorando Àquele-que-nunca-conheceram que Se lhes revele. São obrigados a pregar a fé porque não têm fé. São obrigados a pregar a obediência às leis de Deus, porque os homens já não se assemelham a Deus. Deus é para eles um estranho colérico e duro. Outrora Ele castigou-os, expulsando-os do paraíso. Depois colocou um anjo na entrada, com uma espada de fogo. Eles tornaram-se vítimas do demônio.
O Demônio é a doença, a luxuria da carne, a avidez, o assassinato, a deslealdade para com os semelhantes, a farsa, a mentira, a caça ao dinheiro. Eles perderam Deus e já não o conhecem. Durante séculos, muitos profetas exortaram-nos a regressar a Deus, mas ninguém ousou reconhecer Deus tal como ele vive e age no homem. A carne suplantou completamente o corpo. Mesmo os recém-nascidos já não se assemelhavam a Deus, mas saíam pálidos, doentes e infelizes do ventre materno contraído, frio e murcho.
Evidentemente, Deus continuava neles; mas encontrava-se oculto e deformado, a ponto de ninguém o reconhecer. O sentimento de Deus habitando neles estava intimamente ligado a um sentimento de angústia. De certo modo impunha-se a convicção de que não se devia conhecer Deus, apesar de a Lei ordenar que seja reconhecido e que se viva segundo a Sua vontade. Como se pode viver segundo a vontade de alguém que se não conhece e que jamais se conhecerá? Ninguém lhes diz. Ninguém lhes pode dizer. Tudo o que se relaciona com Deus é transportado para um futuro longínquo, para uma grande e terrível esperança, para uma miragem em direcção à qual os homens estendem desesperadamente os braços. E, entretanto. Deus encontra-se no fundo deles, inacessível, protegido do seu contacto pelo medo e pela angústia. Um anjo assustador protege os anjos contra eles próprios.
Cristo sabe que os homens são infelizes, mas não sabe exactamente como, pois é diferente deles e não conhece a infelicidade. Acredita que os homens são feitos como ele. Não é irmão deles? Não cresceu no meio deles? Não brincou com eles, em criança, partilhando as alegrias e as tristezas? Sendo assim, como podia ele saber que era tão diferente? Se tivesse tido consciência disso, ter-se-ia isolado, separado dos outros, teria procurado a solidão, não teria partilhado com as outras crianças as suas alegrias e tristezas infantis.
No entanto. Cristo era tão diferente de todos os outros que só a ausência flagrante neles das coisas que ele possuía em abundância poderia revelar a diferença.
Cristo não se julgava santo. Ele simplesmente vivia o que os seus companheiros pensavam ser a vida de um santo. Uma flor vive «como se» fosse uma flor? Um veado, «como se» fosse um veado? Uma flor ou um veado andam por aí a dizer «sou uma flor» ou «sou um veado»? Eles são como são. Vivem a vida. Preenchem uma função. Existem, sendo de maneira ininterrupta a realidade que representam, sem pensar nela ou fazer perguntas. Se alguém resolvesse dizer a uma flor ou a um veado: «Escuta, tu és maravilhosa, és uma flor (um veado)», eles olhariam para o seu interlocutor com surpresa. «Que está a dizer? Não compreendo. Evidentemente que sou uma flor (um veado). Que queria que eu fosse?»
E os admiradores místicos não compreenderiam o que o veado e a flor tinham tentado dizer-lhes. Ficariam mudos de admiração diante do milagre. Gostariam de ser como a flor ou o veado. E, finalmente, colheriam a flor e matariam o veado. Este é o desenlace inevitável, dado o estado das coisas.
Eles amam Jesus porque ele é o que eles não são e nunca poderão ser. Tentam imbuir-se da sua força, da sua simplicidade, da sua beleza espontânea. Mas não conseguem. Não podem assemelhar-se a ele, nem absorvê-lo. Para se sentirem melhor, mais fortes, mais sábios, diferentes do que são, bastaria que olhassem para ele, escutassem o que ele diz, que dessem ouvidos à simples e estranha verdade que sai da sua boca e vai directamente, sem nunca errar, ao alvo. Cristo não erra o alvo porque mantém um contacto perfeito com o que se passa à sua volta. Ele pode ver o que eles não vêem porque está aberto para ver. Ele contempla uma paisagem e apercebe-se da unidade que ali reina. Ele não vê, como eles, árvores isoladas, montanhas isoladas, lagos isolados. Ele vê árvores, lagos e montanhas como são na realidade: elementos integrados de um fluxo total e unitário de ocorrências cósmicas. Ele vê, ouve e toca todas as coisas com a totalidade do seu ser, derramando nelas as suas energias vitais, e recebendo das árvores, flores e montanhas a mesma energia, mas centuplicada. Ele não retém a sua força nem se apega a ela. Dá generosamente, sem nunca perguntar se, ao agir assim, se empobrece. Ele não se empobrece, antes se enriquece ao dar. A Vida devolve em metabolismos ricamente transbordantes o que recebe. Receber e dar nunca são actos de sentido único. É sempre uma troca, um vai e vera.
Uma vez mais, eles não sabem do que Cristo lhes fala. Para eles, dar é empobrecer-se. Perceber é juntar forças, encher o vazio, preencher um abismo no mais profundo do ser. Eles só podem receber, não podem dar. Quem dá é, aos olhos deles, um louco ou um bom fruto para ser espremido, para ser explorado. Assim desencorajam muitos seres generosos, condenam à solidão muitas almas bondosas. E o mundo fica cada vez mais pobre.
Cristo, que ama o povo, vive sozinho. Aqueles que se detestam, assim como detestam todos os outros, vivem solitários e abandonados no meio da multidão. Têm medo uns dos outros. Dão palmadinhas nas costas uns dos outros e fazem sorrisos grotescos que lhes parecem amáveis. São obrigados a representar uma comédia, com medo de se degolarem uns aos outros. E sabem que todos se estão a enganar uns aos outros. Reúnem-se em congressos, como há dois mil anos, para conseguir a «paz definitiva», mas sabem muito bem que se estão a enganar uns aos outros com subterfúgios e formalismos. Ninguém diz o que realmente pensa. Cristo, ele sim, diz o que pensa. Ele não é formal, não finge, nem faz esforço para não fingir. Simplesmente não finge. As vezes cala-se, mas ignora a mentira deliberada e maldosa. Quanto aos outros, não dizem a verdade, pela simples razão de que a verdade não pode ser dita; neles, o órgão que faz dizer a verdade morreu dentro deles quando perderam a corrente da Vida e do viver sincero.
Assim, honram a verdade e vivem na mentira. A verdade está indissoluvelmente ligada às correntes da Vida no organismo e na sua percepção. A vida não é verdadeira porque deve ser ou porque foi feita para ser verdadeira; porém, em cada um dos seus movimentos está expressa a verdade. A expressão do corpo é incapaz de mentira. Poderemos ler a verdade se soubermos ler a linguagem expressiva dos movimentos do rosto ou do modo de andar de cada homem. O corpo diz a verdade, mesmo que tenha de dizer que mente habitualmente e que esconde as suas mentiras sob um verniz de atitudes dúbias. Assim, a Vida «interpreta os sinais» como os Homens julgaram que Cristo era incapaz de interpretar. No entanto, em certos contextos em que a própria existência da raça está em jogo, também acontece que a verdade não possa ser expressa, permanecendo escondida.
O macaco que existe no homem manifesta-se raramente. Isso também se aplica às origens do homem, a partir do funcionamento da segmentação vermicular dos seres vivos. Embora a história de um acontecimento esteja sempre de algum modo presente no instante em que o consideramos, é necessário ter conhecimentos de anatomia e fisiologia para compreender bem certas verdades que ultrapassam as possibilidades comuns dos homens. O significado cósmico que os homens atribuíram a Cristo, numa óptica mística, residia na expressão verídica da Vida, na completa coordenação do corpo e das emoções, no imediatismo do seu contacto com as coisas. Assim, colocava-se para além das possibilidades do homem que, com a sua couraça, se acha confinado num domínio estritamente «humano». É essa couraça que envolve o homem no mundo dos problemas estritamente humanos que o impede de alcançar o universo, de compreender a vida à sua volta e nas suas crianças recém-nascidas, de desenvolver a sua sociedade de acordo com um saber que ultrapassa a sua própria biologia. Encerrado num estreito espaço, ele é obrigado a desenvolver sonhos e utopias que nunca entrarão no domínio do possível.
Ora, todas as experiências humanas se fazem a partir de dentro do espaço estreito em que o homem está confinado, e ele será incapaz de julgar a sua existência a não ser opondo a sua miserável realidade a alguma realidade transcendente de ordem mística. Ele será incapaz de mudar a primeira e discernir a verdadeira natureza da segunda. A vida, que se desenrola fora do seu espaço estreito, parecer-lhe-á inevitavelmente incompreensível e inacessível.
A exploração das estruturas profundas do homem pela análise do carácter mostrou que são os seus problemas genitais, que é a sua impotência orgástica, que o atiram para a sua estreita prisão. Então é perfeitamente lógico que não haja nada que ele persiga e reprove com mais ardor, que ele mais deteste, do que os aspectos bons da potência orgástica, quer dizer, a Vida ou o Cristo, ou seja, a sua própria origem cósmica e potencialidades actuáis. A primeira, ele interpreta-a, erradamente, mas com uma coerência inexorável, como uma simples foda desprovida de amor, as segundas são transferidas para sempre para o domínio dos sonhos irrealizáveis.
Desta confusão sem remédio deriva o Assassinato de Cristo. O caminho que leva ao assassinato final é longo; as formas que ele toma são muitas; no entanto, até este século XX, o assassinato acabou por nunca deixar de ocorrer. Uma das suas características fundamentais é o facto de ter permanecido tão secreto e tão inacessível.
O núcleo bioenergético da vida e o seu sentido cósmico exprimem-se na função do orgasmo, isto é, na convulsão involuntária de todo o organismo vivo durante o abraço do macho e da fêmea, com o fim de comunicar reciprocamente as suas cargas bioenergéticas. Se não houvesse outros meios de identificar a função da Vida com a função do orgasmo, deduzir-se-ia da identidade dos seus destinos ao longo da história escrita da espécie humana. E entre as características mais típicas e menos aceitáveis do homem couraçado estão a incompreensão, a perseguição e a desaprovação das suas manifestações, a transformação mística da consciência que tem da sua importância, o terror que inspira a perspectiva de um estreito contacto com a Vida e o orgasmo.
Tudo o que você pensa e sofre, dentro de um abraço se dissolve
 
A comparação sistemática do comportamento da Vida com o da Vida couraçada durante o abraço genital permitirá, melhor do que qualquer outra coisa, uma boa compreensão do ódio e do consecutivo assassinato de Cristo. Cristo descreveu o Reino dos Céus numa parábola, cuja profunda significação biológica não poderia escapar a quem se interessa pela profundidade da bioenergia humana:
Então o reino dos céus será comparado a dez virgens que, tomando suas lâmpadas, saíram a receber o esposo e a esposa. Mas cinco de entre elas eram. loucas, e cinco prudentes. E quando as cinco que eram loucas tomaram as lâmpadas, não levaram consigo azeite; as prudentes, porém, levaram azeite nos seus vasos juntamente com as lâmpadas. E, tardando o esposo, começaram a sentir-se sonolentas, e assim vieram a dormir. E à meia-noite ouviu-se um grito: «Eis ai o esposo, saí a recebê-lo.» Então levantaram-se todas aquelas virgens e prepararam as suas lâmpadas. E disseram as loucas às prudentes: «Dai-nos do vosso azeite, porque as nossas lâmpadas se apagam.» Responderam as prudentes, dizendo: «Para que não suceda talvez faltar-nos ele a nós, e a vós, ide antes aos que vendem, e comprai para vós.» Mas, enquanto elas foram a comprá-lo, veio o esposo; e as que estavam preparadas entraram com ele a celebrar as bodas, e fechou-se a porta. E por fim vieram também as outras virgens, dizendo: «Senhor, Senhor, abre-nos!» Mas ele, respondendo, disse: «Na verdade vos digo que vos não conheço.» Vigiai, pois, porque não sabeis o dia nem a hora.
(Mateus, 25:1-13)

(Wilhelm Reich - O Assassinato de Cristo)

publicado às 22:17


A ARMADILHA

por Thynus, em 25.01.17

"O primeiro ato de liberdade do homem é um ato de desobediência, e através dêle o homem transcende sua união original com a Natureza, adquire consciência de si e de seu próximo e de sua condição de estranhos. No processo histórico, o homem se cria. Cresce até à autoconsciência, ao amor, à justiça e quando atinge a finalidade da compreensão plena do mundo, pelo seu poder da razão e do amor, torna-se uno novamente, desfaz o “pecado” original, volta ao Paraíso, mas no nôvo nível da individualização e da independência humana. Embora o homem tenha “pecado” no ato de desobediência, seu pecado se justifica no processo histórico. Não sofre uma corrupção de sua substância, mas seu pecado mesmo é o comêço de um processo dialético que termina com sua autocriação e auto-salvação."   
(Erich Fromm – O Dogma de Cristo e outros dogmas)
  

 

 

«O homem nasce livre e por todo o lado está acorrentado. Mesmo quem se julga senhor dos outros; esse ainda é mais escravo do que eles. Como se fez esta transformação? Não sei.»

Jean-Jacques Rousseau fez esta pergunta há duzentos anos, no início do seu Contrato Social. A menos que a resposta para esta questão básica seja encontrada, não é muito útil elaborar novos contratos sociais. Há algo que acontece, desde há muito tempo, no interior da sociedade humana, que torna impotente qualquer tentativa que vise esclarecer este grande enigma, bem conhecido de todos os grandes líderes da humanidade ao longo de milênios: o homem nasce livre, mas vive a sua vida como escravo.

Nenhuma resposta foi encontrada até hoje. Deve haver, no interior da sociedade humana, alguma coisa que actua de modo a impedir que se coloque a questão correcta de maneira a chegar-se à resposta correcta. Toda a filosofia humana é permeada pelo horrível pesadelo de que toda a procura é vã.

Alguma coisa, bem escondida, actua de forma a não permitir que se coloque a questão correcta. Portanto, há algo que actua, contínua e eficazmente, desviando a atenção das vias, cuidadosamente camufladas, que levam até onde a atenção se deveria focalizar. O instrumento usado por esse algo bem camuflado para desviar a atenção do enigma fundamental é a EVASIVA de todo o ser humano em relação à Vida viva. O elemento escondido é a PESTE EMOCIONAL DO HOMEM.

É da formulação adequada do problema que dependerá a focalização apropriada da atenção, e disto dependerá chegar-se à descoberta da resposta correcta à questão de como é possível que o homem, nascido livre, se encontre sempre e por todo o lado reduzido ao estado de escravo.

É evidente que os contratos sociais, quando visam honestamente salvaguardar a vida na sociedade humana, têm uma função crucial. Mas nenhum contrato social resolverá jamais o problema da angústia humana. Na melhor das hipóteses, o contrato social poderá ser um paliativo para manter a vida. Até agora, nunca foi capaz de acabar com a angústia da vida.

Vejamos então os termos deste grande enigma:

Os homens são iguais ao nascer, mas não crescem iguais.

O homem elaborou grandes doutrinas, mas cada uma delas foi o instrumento da sua escravidão.

O homem é o «Filho de Deus», criado à Sua imagem; mas o homem é «pecador», exposto aos ataques do «Demônio». Como pode haver Demônio e Pecado, se Deus é o único criador de todos os seres?

A humanidade nunca conseguiu responder à pergunta de como pode existir o MAL, se um DEUS perfeito criou e governa o mundo e os homens.

A humanidade tem sido incapaz de estabelecer uma vida moral que esteja de acordo com o seu criador.

A humanidade foi devastada por guerras e assassinatos de todo o tipo, desde o início da história escrita. Todos os esforços feitos para suprimir esta peste fracassaram.

A humanidade desenvolveu muitos tipos de religiões. Todas as religiões se revelaram, sem excepção, instrumentos de opressão e miséria.

A humanidade imaginou muitos sistemas de pensamento para enfrentar a Natureza. Mas a Natureza, sendo de facto funcional e não mecânica, sempre se lhe escapou por entre os dedos.

A humanidade correu sempre atrás de cada ínfima parcela de esperança e de conhecimento. Mas depois de três milênios de pesquisas, de tormentos, de sofrimentos, de assassinatos punindo heresias, de perseguições por faltas aparentes, ela não conseguiu mais do que algum conforto para uma minoria, sob a forma de automóveis, aviões, frigoríficos e aparelhos de rádio.

Depois de ter meditado durante milênios sobre os mistérios da natureza humana, a humanidade encontra-se exactamente no ponto de partida: tem de admitir a sua ignorância total. A mãe ainda fica sem saber o que fazer diante de um pesadelo que apavora o seu filho. O médico ainda não sabe o que fazer diante de algo tão simples como um defluxo nasal.

Geralmente, admite-se que a ciência não revela nenhuma verdade permanente. O universo mecânico de Newton não se coaduna com o verdadeiro universo, que não é mecânico, mas sim funcional. A representação que Copérnico faz de um mundo constituído por círculos «perfeitos» é errada. As órbitas planetárias e elípticas de Kepler não existem. A matemática não conseguiu ser aquilo que, com tanta certeza, prometia ser. O espaço não é vazio; ninguém jamais viu os átomos ou os germes aéreos das amibas. Não é verdade que a química possa interpretar os factos da matéria viva, e as hormonas também não cumpriram as suas promessas. O inconsciente reprimido, supostamente a última palavra em psicologia, revelou-se uma criação artificial de um breve período da civilização, de tipo mecânico-místico. O espírito e o corpo, funcionando num único e mesmo organismo, estão ainda dissociados no pensamento humano. Uma física perfeitamente exacta não é tão exacta assim, do mesmo modo que os homens santos não são assim tão santos. De nada adianta a descoberta de novas estrelas, cometas ou galáxias. Novas fórmulas matemáticas também de nada adiantarão. É inútil filosofar sobre o sentido da Vida, se ignoramos o que é Vida. E, como «Deus» é Vida, o que todos os homens sabem, de nada serve procurar ou servir a Deus, já que ignoramos a quem servimos.

Tudo parece então convergir para um único facto: Há algo basicamente e essencialmente errado em todo o processo pelo qual o homem aprende a conhecer-se a si próprio. A visão mecánico-racionalista do mundo faliu completamente.

Locke, Hume, Kant, Hegel, Marx, Spencer, Spengler, Freud e todos os outros foram, sem dúvida, grandes pensadores, mas de certa forma não preencheram o vazio, e a imensa maioria dos homens não foi tocada pela pesquisa filosófica. Enunciar a verdade com modéstia não altera o problema. Freqüentemente, isso nada mais é do que um subterfúgio para nos esquivarmos à questão essencial. Aristóteles, cujas idéias foram lei durante séculos, estava errado; a sabedoria de um Platão, ou a de um Sócrates, não servem para muita coisa. Epicuro também não teve sucesso, nem nenhum santo.

É grande a tentação de aderir ao ponto de vista católico, após os desastrosos resultados da última grande tentativa da humanidade, feita na Rússia, de tomar nas mãos o seu próprio destino. Os efeitos catastróficos de todas as iniciativas desse tipo explodiram aos olhos de todos. Para onde quer que olhemos, vemos o homem a correr em círculos, como se, preso numa armadilha, tentasse em vão escapar da sua prisão e do seu desespero.

É possível escapar da armadilha. Mas para alguém sair de uma prisão, precisa primeiro de saber que está numa prisão. A armadilha é a estrutura emocional do homem, a sua estrutura de carácter. Pouco adianta elaborar sistemas de pensamento sobre a natureza da armadilha, quando a única coisa que importa é encontrar a saída. Tudo o resto é inútil: é inútil cantar hinos sobre o sofrimento na prisão ({No original, in the trap, isto é, na armadilha. Traduzimos trap por prisão sempre que isso se tomou necessário para a clareza da frase, pois o termo prisão, em português, não supõe necessariamente a idéia de instituição, condenação, local físico, que Reich certamente quis evitar}) como fazem os escravos negros; é inútil compor poemas sobre a beleza da liberdade fora da prisão, tal como sonhamos com ela de dentro da prisão; é inútil prometer uma vida fora da prisão, após a morte, como faz o Catolicismo às suas congregações; é inútil confessar, como os filósofos da resignação, um semper ignorabimus; é inútil elaborar um sistema filosófico em torno do desespero de viver na prisão, como fez Schopenhauer; é inútil sonhar com um super-homem totalmente diferente do homem cativo, como fez Nietzsche, que, ao acabar preso num asilo de loucos, finalmente escreveu − muito tarde − a verdade sobre si mesmo...

A primeira coisa a fazer é procurar a saída da prisão.

A natureza da armadilha só apresenta interesse na medida em que ajude a responder a esta única questão crucial: ONDE FICA A SAÍDA?

Pode-se enfeitar a prisão a fim de a tomar mais habitável. Isto fazem-no os Miguel Ângelos, os Shakespeares, os Goethes. Podem-se inventar artifícios para prolongar a vida na prisão. Isto fazem-no os grandes cientistas e médicos, os Meyers, os Pasteurs e os Flemings. Pode aparecer alguém muito hábil em tornar a soldar os ossos quebrados dos que caem na armadilha.

Mas o essencial ainda é: encontrar a saída da prisão.

ONDE FICA A SAÍDA QUE CONDUZ AO INFINITO ESPAÇO ABERTO?

A saída continua escondida. Este é o maior enigma. Mas vejamos a situação mais ridícula e, ao mesmo tempo, mais trágica:

A SAÍDA É CLARAMENTE VISÍVEL PARA TODOS OS QUE ESTÃO PRESOS NA ARMADILHA ({No original, trapped in the hole}). MAS NINGUÉM PARECE VÊ-LA. TODOS SABEM ONDE FICA A SAÍDA. MAS NINGUÉM SE MOVE EM DIRECÇÃO A ELA; PIOR AINDA, QUEM QUER QUE FAÇA QUALQUER MOVIMENTO EM DIRECÇÃO À SAÍDA, QUEM QUER QUE A INDIQUE, É DECLARADO LOUCO, CRIMINOSO, PECADOR DIGNO DAS CHAMAS DO INFERNO.

No fim de contas o problema não está na armadilha, nem mesmo em descobrir a saída. O problema está NOS PRISIONEIROS.

Visto de fora da prisão, tudo parece incompreensível para uma mente simples. Há mesmo qualquer coisa de insano. Porque é que os prisioneiros não vêem a saída tão nitidamente visível, porque é que não se dirigem para ela? Logo que chegam perto, começam a gritar e a fugir. Se algum deles tenta sair, os outros matam-no. Muito poucos conseguem escapulir-se durante a noite, quando todos dormem.

Esta era a situação na qual se encontrava Jesus Cristo. Este foi também o comportamento dos prisioneiros que intentavam matá-lo.

A função da Vida viva está à nossa volta, está em nós, nos nossos sentidos, mesmo à frente do nariz, nitidamente visível em cada animal, em cada árvore, em cada flor. Sentimo-la no nosso corpo e no nosso sangue. Mas para os prisioneiros ela continua a ser o maior, o mais impenetrável dos enigmas.

No entanto, a Vida não era um enigma. O enigma está em como isto pôde permanecer insolúvel durante tanto tempo. O grande problema da biogénese e da bioenergia é facilmente acessível pela observação directa. O grande problema da Vida e da origem da Vida é um problema psiquiátrico; é um problema da estrutura de carácter do Homem, que durante tanto tempo conseguiu evitar a sua solução. O flagelo do cancro não é o grande problema que parece ser. O grande problema é a estrutura de caracter dos cancerologistas, que o ofuscaram tão eficazmente.

O verdadeiro problema do homem é A EVASÃO BÁSICA DO ESSENCIAL. Esta evasão e fuga fazem parte da estrutura profunda do homem. Fugir da saída da prisão é o resultado dessa estrutura do homem. O homem teme e detesta a saída da prisão. Ele resguarda-se acirradamente contra qualquer tentativa para encontrar essa saída. É este o grande enigma.

Tudo isso parece certamente insano aos seres vivos encerrados na prisão. Um homem que, de dentro da prisão, falasse dessas coisas loucas, estaria destinado à morte; estaria condenado à morte se fosse membro de uma academia das ciências que consagrasse muito tempo e dinheiro ao estudo detalhado dos muros da prisão. Ou se fosse membro de uma dessas congregações religiosas que oram, resignadas ou cheias de esperança, para sair da prisão. Ou se fosse um desses pais de família preocupados em não deixar os seus morrerem de fome na prisão. Ou se fosse empregado de uma dessas indústrias que se esforçam para tomar a vida na prisão o mais confortável possível. De uma forma ou de outra, ele estaria condenado à morte: pelo ostracismo, pelo aprisionamento por ter transgredido alguma lei ou, em certos casos, pela cadeira eléctrica. O criminoso é uma pessoa que achou a saída e por ali se precipita, violentando os seus companheiros de prisão. Os loucos que apodrecem nos asilos e que se contorcem, como as feiticeiras da Idade Média, sob o efeito de choques eléctricos, também são prisioneiros que viram a saída da prisão e não conseguiram superar o pavor comum de se aproximar dela.

Fora da prisão, muito perto, descortina-se a Vida viva, em tudo o que se alcança com a visão, a audição, o olfacto. Para os prisioneiros é uma agonia eterna, um suplício de Tántalo. Vêem-na, sentem-na, tocam-lhe, desejam-na sem cessar, mas sair tomou-se uma impossibilidade. Só é possível consegui-lo em sonhos, em poemas, na música, na pintura, mas já não está ao seu alcance. As chaves para sair da prisão estão cimentadas na armadura do nosso carácter e na rigidez mecânica do corpo e da alma.

Essa é a grande tragédia. E Cristo conhecia-a.

Se vivermos durante muito tempo no fundo de uma cave escura, acabaremos por detestar a luz do Sol. É mesmo possível que os nossos olhos acabem por perder a capacidade de tolerar a luz. Eis porque se acaba por odiar a luz do Sol.

Para habituar os seus descendentes à vida na prisão, os detidos desenvolvem técnicas elaboradas, destinadas a manter a vida num nível limitado e baixo. Na prisão não há espaço suficiente para grandes lances de pensamento e de acção. Cada movimento é restringido por todos os lados. Isso teve como efeito, no decorrer do tempo, a atrofia dos próprios órgãos da Vida viva; as criaturas encerradas no fundo da prisão perderam o sentido da plenitude da Vida.

Restou uma nostalgia intensa de uma vida de felicidade e a lembrança de uma Vida feliz, de há muito tempo antes do aprisionamento. Mas a nostalgia e a lembrança não podem ser vividas na vida real. A conseqüência dessa opressão é então o ódio à Vida.

Sob o título de «o ASSASSINATO DE CRISTO», reuniremos todas as manifestações desse ódio ao Vivo. Com efeito; Cristo foi vítima do ódio ao Vivo por parte dos seus contemporâneos. O seu destino trágico oferece-se como lição sobre o que as gerações futuras enfrentarão quando quiserem restabelecer as leis da Vida. A sua tarefa principal consistirá em resistir à maldade dos homens («Pecado»). Explorando o futuro e as possibilidades − boas ou más − que ele nos oferece, veremos a história de Cristo em toda a sua trágica significação.

O segredo do porquê da morte de Jesus Cristo permanece indecifrado. A tragédia que se desenrolou há dois mil anos, e cujo impacte sobre a humanidade foi imenso, aparece-nos como um requisito lógico intrínseco ao homem couraçado. A verdadeira questão do assassinato de Cristo permaneceu intocada ao longo de dois mil anos, apesar dos inúmeros livros, estudos, pesquisas e investigações sobre esse assassinato. O enigma do assassinato de Cristo permaneceu num domínio inacessível ao olhar e ao pensamento de muitos homens e mulheres estudiosos; e esse próprio facto faz parte do segredo. O assassinato de Cristo é um enigma que atormentou a existência humana durante pelo menos todo o período da história escrita. É o problema da estrutura do carácter humano couraçado, e não somente de Cristo. Cristo foi vítima dessa estrutura de carácter humano, porque mostrou qualidades e maneiras de comportamento que têm, sobre um carácter couraçado, o mesmo efeito que um objecto vermelho sobre o sistema emocional de um touro selvagem. Nesse sentido, podemos dizer que Cristo representa o princípio da Vida em si. A forma foi determinada pela época da cultura judaica sob domínio romano. Pouco importa que o assassinato de Cristo tenha ocorrido no ano 3000 a. C. ou no ano 2000 d.C. Cristo teria sido certamente assassinado em qualquer época e em qualquer cultura em que as condições do conflito entre o princípio da vida (OR) e a peste emocional (EP) fossem, no plano social, as mesmas que eram na Palestina no tempo de Cristo.

Uma das características básicas do assassinato do Vivo pelo animal humano couraçado é a de ser camuflado de várias maneiras e sob várias formas. A superstrutura da existência social do homem, tal como o sistema económico, as acções guerreiras, os movimentos políticos irracionais e as organizações sociais ao serviço da supressão da Vida, abafa a tragédia básica que assedia o animal humano numa torrente de racionalizações, de disfarces e de evasões da questão essencial; além disso, a superstrutura defende-se com uma racionalidade perfeitamente lógica e coerente, mas que só é válida dentro de um sistema que opõe a lei ao crime, o Estado ao povo, a moral ao sexo, a civilização à natureza, a polícia ao criminoso, e assim por diante, percorrendo todo o rol de misérias humanas. Não há nenhuma possibilidade, seja ela qual for, de conseguir transpor esse lodaçal, a não ser que a pessoa se coloque fora do holocausto, e não se deixe atingir pelo escândalo. Apressamo-nos a assegurar ao leitor que não consideramos esse escândalo e essa agitação vazia como sendo meramente irracionais, como simples actividade desprovida de finalidade e significação. Uma característica crucial da tragédia é o facto de que esse nonsense é válido, significativo e necessário se o considerarmos no domínio que lhe é próprio e sob determinadas condições do comportamento humano. Mas aqui a irracionalidade da peste apoia-se era rochedo sólido. Mesmo o silêncio que, há milênios, envolvia a função do orgasmo, a função da vida, o assassinato de Cristo ê outras questões cruciais da existência humana, parece perfeitamente sensato aos olhos do prudente estudioso do comportamento humano.

A raça humana enfrentaria o pior, o mais devastador dos desastres se, de repente, chegasse, de uma só vez, a ter pleno conhecimento da função da Vida, da função do orgasmo e dos segredos do assassinato de Cristo. Há boas e justas razões para que a raça humana se tenha recusado a conhecer a profundidade e a verdadeira dinâmica da sua miséria crónica. Uma tal erupção repentina de conhecimentos paralisaria e destruiria tudo o que, de certa forma, mantém a sociedade em funcionamento, a despeito das guerras, da fome, dos massacres emocionais, da miséria das crianças, etc.

Seria quase loucura iniciar grandes projectos tais como «Crianças do Futuro» ou «Cidadania do Mundo», sem ter compreendido como foi possível que toda essa desgraça se mantivesse inexoravelmente, durante milênios, sem ser reconhecida e combatida; que nenhuma das muitas tentativas brilhantes de esclarecimento e libertação tenha sido bem-sucedida; que cada passo para a realização do grande sonho tenha sido acompanhado por mais abjecção e miséria; que nenhuma religião, apesar das suas boas intenções, tenha conseguido realizar os seus objectivos; que cada grande feito se tenha transformado numa ameaça para a humanidade, como, por exemplo, o socialismo e a fraternidade, que se tornaram estatismo e opressão da pior espécie. Enfim, seria criminoso pensar em projectos tão importantes, sem antes olhar em volta, tentando compreender o que matou a humanidade durante séculos. Isso só acrescentaria mais desgraça àquela que já existe. No ponto em que estão as coisas, é bem mais importante esclarecer o assassinato de Cristo do que educar as mais lindas crianças. Toda a esperança de acabar com a decadência da educação actual estaria perdida para sempre, irremediavelmente, se esta nova e promissora tentativa para chegar a um novo tipo de educação se malograsse e se transformasse no seu oposto, como sempre foi o caso de todas as iniciativas tomadas pela alma humana. Não nos enganemos: a reestruturação do carácter humano através de uma transformação radical, sob todos os aspectos, da nossa maneira de educar as crianças tem a ver com a própria Vida. As emoções mais profundas a que o animal humano pode chegar ultrapassam de longe todas as funções da existência, pela sua envergadura, profundidade e fatalidade. Assim, os males que o fracasso ou o desvio dessa tentativa decisiva trariam, seriam bem mais profundos e maiores. Não há nada mais destrutivo do que a Vida anulada e contrariada por esperanças frustradas. Jamais nos esqueçamos disto.

Não nos é possível lidar com este problema de uma maneira perfeita, académica, detalhada. Tudo o que podemos fazer é sondar o território para ver onde estão escondidos os tesouros que, futuramente, nos poderão servir, onde há animais selvagens percorrendo montes e vales, onde estão escondidas as armadilhas para matar o invasor, e como tudo isto funciona. Não nos queremos atolar na nossa própria impaciência, na nossa rotina diária, ou mesmo em certos interesses que nada têm a ver com o problema da educação. Numa reunião de educadores orgonómicos que houve há alguns anos, foi dito que a educação continuará a ser Um problema por mais alguns séculos. É mais do que provável que as próximas gerações das Crianças do Futuro não sejam capazes de resistir aos múltiplos impactes da peste emocional. Elas terão certamente de se submeter; não sabemos exactamente como. Mas há esperança de que, pouco a pouco, uma consciência geral da Vida se desenvolva nesse novo tipo de crianças, difundindo-se por toda a comunidade humana. O educador que considera a educação como um negócio rendoso nunca se interessaria pela educação se acreditasse nisso. Devemos ter cuidado com essa espécie de educadores.

O educador do futuro fará sistematicamente (e não mecanicamente) o que todo o autêntico e bom educador já faz hoje: sentirá as qualidades da Vida viva em cada criança, reconhecerá as qualidades específicas e fará tudo para que elas possam desenvolver-se plenamente. Enquanto se conservar, com a mesmo tenacidade, a tendência social actual, isto é, enquanto esta "estiver dirigida contra essas qualidades inatas da expressão emocional viva, o educador autêntico deverá assumir uma dupla tarefa: a de conhecer as expressões emocionais naturais que variam de uma criança para outra, e a de aprender a lidar com o meio social, restrito e amplo, na medida em que este se opõe a essas qualidades vivas. Só num futuro distante, quando uma educação consciente tiver eliminado a forte contradição entre civilização e natureza, quando a vida bioenergética e a vida social do homem não mais se opuserem uma à outra, mas, ao contrário, se apoiarem e se complementarem, deixará esta tarefa de ser perigosa. Devemos estar preparados, pois esse processo será lento, penoso e exigirá muito sacrifício. Muitas serão as vitimas da peste emocional.

A nossa tarefa seguinte será a de esboçar as características básicas do conflito entre as expressões emocionais inatas e intensamente variáveis da criança e as características próprias da estrutura mecanizada e couraçada do homem, a qual irá odiar e combater de maneira geral e específica aquelas qualidades.

A despeito das inumeráveis variações do comportamento humano, a análise do carácter conseguiu, até aqui, esboçar os padrões gerais e as leis das seqüências nas reacções humanas. Ela fê-lo amplamente no que diz respeito às neuroses e psicoses. Não tentaremos fazer o mesmo com respeito à dinâmica típica da peste emocional. Descrições específicas das reacções individuais à peste deverão ser realizadas de modo a fornecer aos educadores e aos médicos o necessário conhecimento detalhado.

No mundo cristão e nas culturas directa ou indirectamente influenciadas pelo Cristianismo, existe um pronunciado antagonismo entre «o homem pecador» e o seu «Deus». O homem foi feito à «imagem de Deus»! Ele é encorajado a «tornar-se semelhante a Deus». Mas ele é «pecador». Como é possível que o «pecado» tenha surgido neste mundo, se este foi criado por «Deus»? No seu comportamento real, o homem é, ao mesmo tempo, semelhante a Deus e pecador. No princípio, o homem «assemelhava-se a Deus»; depois, o «pecado» irrompeu na sua vida. O conflito entre o ideal de Deus e a realidade do pecado é a conseqüência de uma catástrofe que transformou o divino em demoníaco. Isto é verdade, tanto para a história da sociedade como para o desenvolvimento de cada criança, desde que uma civilização mecânico-mística começou a sufocar os atributos «divinos» do homem. O homem tem a sua origem no paraíso, e continua a desejar ardentemente o paraíso. O homem, de certa forma, emergiu do universo e anseia por retornar a ele. Essas são realidades incontestáveis para quem aprende a interpretar a linguagem das expressões emocionais do homem. O homem é basicamente bom, mas é também um bruto. A transformação da bondade em «brutalidade» opera-se em cada criança. Deus está, então, DENTRO do homem, e não deve ser procurado só fora. O Reino dos Céus é o Reino da graça e da bondade interiores, e não o místico «além» povoado de anjos e demônios em que o bruto que há no animal humano transformou o seu paraíso perdido.

O cruel perseguidor e assassino de Cristo, Saulo de Tarso, distinguira claramente, mas em vão, o «CORPO», dádiva divina e boa, e a «CARNE», possuída pelo demônio e má, a ser queimada mil anos mais tarde, na fogueira, quando ele se tomou Paulo, o edificador da Igreja. A distinção estabelecida pelo Cristianismo primitivo entre o «corpo» e a «carne» anunciou a actual distinção orgonómica entre os impulsos «primários» inatos, dados pela natureza («Deus»), e os impulsos «secundários», perversos e maus («Demônio», «Pecado»). Assim, a humanidade sempre teve consciência, de algum modo, da sua desafortunada condição biológica, dos seus atributos naturais e da sua degeneração biológica. Na ideologia cristã, a oposição marcada entre «DEUS» (O corpo espiritualizado) e o «DEMÔNIO» (O corpo degenerado em carne) é van facto trágico perfeitamente conhecido e formulado. Para o homem actual, o abraço genital, «dádiva de Deus», deu lugar à noção pornográfica de foda, para designar a relação sexual entre o homem e a mulher.

 

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 Na serpente, Satã apareceu primeiro como um anjo de luz. A serpente é então o símbolo da Vida, o falus masculino

 

O pecado original − um mistério

A vida é plástica; ela adapta-se − com ou sem protestos, com ou sem deformações, com ou sem revoltas − a todas as condições da existência. Essa plasticidade da Vida viva, que é um dos seus maiores trunfos, será também um dos seus grilhões, quando a Peste Emocional a utilizar para chegar aos seus fins. A mesma Vida surgirá de modo diferente ao manifestar-se no fundo dos oceanos ou no cume de uma alta montanha. É diferente na caverna sombria, e diferente ainda num vaso sanguíneo. Ela não era, no Jardim do Éden, a mesma que é na armadilha que apanhou a humanidade. No Jardim do Éden, a Vida não conhece armadilhas; ela vive simplesmente o paraíso, inocentemente, alegremente, sem noção de outro tipo de vida. Recusar-se-ia a ouvir o relato da vida na prisão; e se alguma vez tivesse ouvido, tê-lo-ia compreendido com o «cérebro» e não com o coração. A Vida no paraíso é perfeitamente adaptada às condições do paraíso.

Dentro da prisão, a Vida vive a vida das almas prisioneiras. Adapta-se rápida e completamente à Vida na prisão. Essa adaptação vai tão longe que, uma vez encerrada na prisão, só lhe fica na memória uma ligeira lembrança da vida no paraíso. A agitação, a pressa, o nervosismo, a lembrança de um sonho distante − mas de certa maneira presente − serão considerados como naturais. A tranqüilidade da alma dos cativos não será perturbada pela idéia de que esses sentimentos possam ser sinais de uma vaga lembrança da Vida passada outrora no paraíso. A adaptação é completa. Ela atinge um grau que vai além dos limites da razão.

A Vida na prisão cedo se tornará auto-absorvente, como se supõe que aconteça na prisão. Assistiremos à formação de certos tipos de personagens peculiares à Vida na prisão, personagens que não teriam sentido se a Vida circulasse livremente pelo mundo. Esses tipos de caracteres moldados pela Vida contida na prisão diferirão grandemente entre si. Opor-se-ão e combaterão entre si. Cada um proclamará a seu modo a verdade absoluta. Terão em comum apenas UM traço: unir-se-ão para matar quem ousar colocar a questão fundamental:  «COMO É QUE, EM NOME DE UM DEUS MISERICORDIOSO, PUDEMOS CHEGAR A ESTA SITUAÇÃO TERRÍVEL, A ESTE PESADELO DE   PRISÃO???»

PORQUE É QUE O HOMEM PERDEU O PARAÍSO? O QUE PERDEU ELE, NA VERDADE, QUANDO FOI VÍTIMA DO PECADO?

O homem aprisionado produziu, ao longo de milênios, um grande livro, a BÍBLIA. É a história das suas lutas e angústias, das glórias e esperanças, dos seus anseios, sofrimentos e pecados no cativeiro. Esses temas foram pensados e escritos em muitas línguas, por muitos e diferentes povos. Alguns dos seus aspectos fundamentais encontram-se em fontes muito distantes umas das outras, na memória escrita ou não escrita do homem. Todos os relatos de um passado distante contam que as coisas foram bem diferentes, que noutros tempos o homem cedeu, de certa forma, ao demônio, ao pecado e à maldade.

As bíblias do mundo contam a história da luta do homem contra o pecado do homem.

A Bíblia fala muito da vida na prisão, mas pouco da maneira pela qual o homem caiu na armadilha. É evidente que a porta de saída da prisão é exactamente a mesma por onde o homem entrou, quando foi expulso do paraíso. Porque é que ninguém diz nada sobre isso, excepto em alguns parágrafos que representam um milionésimo da Bíblia, e numa linguagem velada, utilizada para esconder a significação das palavras?

A queda de Adão e Eva deveu-se, sem dúvida, a alguma transgressão das Leis de Deus na esfera genital:

Ora, Adão e sua mulher estavam nus e não se envergonhavam.

(Génesis, 2:25)

Este texto mostra que o homem e a mulher não tinham consciência nem vergonha da sua nudez, e que esta era a vontade de Deus e a maneira de Viver. E que aconteceu? A Bíblia explica-nos:

Mas a serpente era o mais astuto de todos os animais da terra, que o Senhor Deus tinha feito. E ela disse à mulher: Porque vos mandou Deus que não comêsseis do fruto de todas as árvores do paraíso? Respondeu-lhe a mulher: Nós comemos do fruto das árvores que há no paraíso. Mas do fruto da árvore que está no meio do paraíso. Deus mandou que não comêssemos, nem o tocássemos, sob pena de morrermos. Mas a serpente disse à mulher: Bem podeis estar seguros que não haveis de morrer. Mas Deus sabe que, em qualquer dia que comerdes desse fruto, se abrirão vossos olhos, e vós sereis como deuses, conhecendo o bem e o mal.

 

A mulher, pois, vendo que o fruto daquela árvore era bom para comer, e formoso aos olhos e de aspecto agradável, tomou dele, e comeu; e deu a seu marido, que comeu do mesmo fruto. E abriram-se-lhes os olhos; e, vendo que estavam nus, coseram folhas de figueira, e fizeram delas cinturas.

 

Como tivessem ouvido a voz do Senhor Deus, que andava pelo paraíso ao cair da tarde, Adão e Eva esconderam-se entre as árvores. E o Senhor Deus chamou por Adão, e disse-lhe: Onde estás? Respondeu-lhe Adão: Como ouvi a tua voz no paraíso, tive medo, pois estava nu, e escondi-me. Disse-lhe Deus: Como soubeste que estavas nu, senão porque comeste do fruto da árvore, de que eu tinha ordenado que não comesses? Respondeu Adão: A mulher, que tu me deste como companheira, deu-me desse fruto, e comi. E o Senhor Deus disse para a mulher: Porque fizeste isto? Respondeu ela: A serpente enganou-me e comi.

 

E o Senhor Deus disse à serpente: Pois que assim o fizeste, serás maldita entre todos os animais e bestas da terra; andarás de rastos sobre o teu ventre e comerás terra todos os dias da tua vida. Porei inimizades entre ti e a mulher; entre a tua posteridade e a dela. Ela te pisará a cabeça e tu procurarás mordê-la no calcanhar.

 

Disse também à mulher: Multiplicarei os trabalhos do teu parto. Tu parirás os teus filhos em dor, e estarás debaixo do poder do teu marido, e ele te dominará. A Adão disse: Pois que tu deste ouvidos à voz da tua mulher, e comeste do fruto da árvore, de que eu te tinha ordenado que não comesses, a terra será maldita por causa da tua obra; tirarás dela o teu sustento à força de trabalhos penosos. Ela te produzirá espinhos e abrolhos e tu comerás as ervas da terra. Comerás o pão com o suor do teu rosto, até que tornes à terra, de que foste formado; porque tu és pó, e em pó te hás-de tomar. E Adão pôs à sua mulher o nome de Eva, porque ela havia de ser mãe de todos os viventes.

 

Fez também o Senhor Deus a Adão, e a sua mulher, túnicas de peles, e os vestiu. E disse: Eis aqui Adão como um de nós, conhecendo o bem e o mal; agora, para que não suceda que ele lance a mão, e tome do fruto da árvore da vida, e coma dele, e viva eternamente, o Senhor Deus expulsou-o do paraíso das delícias para que cultivasse a terra, de que tinha sido formado. E depois de o ter expulso do paraíso, pôs diante deste lugar de delicias um. querubim com uma espada cintilante, para guardar o caminho da árvore da vida.

(Génesis, 3:1-24)

Havia então no paraíso uma serpente «que era o mais astuto de todos os animais que Deus havia criado». O comentador cristão não vê na serpente, na sua forma paradisíaca, um réptil que desliza pelo chão. No começo, a serpente era «a mais subtil e a mais bela de todas as criaturas». E apesar da maldição, conservou traços dessa beleza. Cada movimento da serpente é gracioso e muitas espécies destacam-se pela beleza das cores. Na serpente, Satã apareceu primeiro como um anjo de luz. A serpente é então o símbolo da Vida, o falus masculino.

E de repente, vinda não se sabe de onde, a catástrofe aparece. Ninguém sabe, nem soube ou jamais saberá como é que o acontecimento se deu: a mais bela serpente, o «Anjo da Luz», a «mais subtil das criaturas», «inferior ao homem», é maldita e torna-se «na demonstração feita por Deus na natureza dos efeitos do pecado»: transforma-se de «a mais bela e mais subtil das criaturas num réptil repugnante».

E, como se um conselho se tivesse reunido especialmente para esconder o acontecimento mais dramático, mais diabólico, mais desastroso de toda a história da raça humana, para o subtrair para sempre à compreensão da inteligência ou do coração − a catástrofe toma-se misteriosa e intocável; ela é parte integrante do grande mistério do cativeiro do homem; ela detém sem dúvida a solução deste enigma: porque é que o homem se recusa a deixar a sua prisão saindo simplesmente pela porta por onde entrou? O exegeta da Bíblia observa a este respeito: «O mistério mais profundo da redenção está inserido aqui», quer dizer, na transformação da serpente da «mais bela e mais subtil das criaturas num réptil repugnante».

E porquê tudo isto? Escutemos.

Havia no Jardim do Éden uma árvore peculiar, e Deus disse ao homem: «Não comerás de todas as árvores do jardim.»

A mulher respondeu à serpente: Nós comemos do fruto das árvores que M no paraíso. Mas do fruto da árvore que está no meio do paraíso, Deus mandou que não comêssemos, nem o tocássemos, sob pena de morrermos.

(Génesis, 3:2,3)

Conseguiu alguém, ao longo destes seis milênios, elucidar o mistério desta árvore? Não. E porquê? Esse mistério é parte do mistério do cativeiro do homem. A solução do mistério da árvore proibida forneceria, sem dúvida, uma indicação da entrada da prisão, que, usada em sentido inverso, poderia também servir de saída. Ora, nunca ninguém tentou esclarecer o enigma da árvore proibida; durante milênios, todos os prisioneiros se ocuparam em escolasticizar, talmudizar, exorcizar, servindo-se de milhões de livras e de miríades de palavras com o único fim de impedir a solução do enigma da árvore proibida.

A serpente, ainda bela e subtil, conhecia melhor as coisas: «Mas a serpente disse à mulher: Bem podeis estar seguros de que não haveis de morrer. Mas Deus sabe que, no dia em que comerdes desse fruto, abrir-se-ão os vossos olhos, e sereis como deuses, conhecendo o bem e o mal.»

Foi então esta bela serpente que provocou a queda do homem; mas que significa tudo isto à luz do bom senso?

Se o homem, vivendo feliz no paraíso segundo a vontade de Deus, come de uma certa árvore, ele será como Deus, e os seus olhos abrir-se-ão e «ele conhecerá o bem e o mal». Para começar, como é possível que uma árvore tão diabólica possa existir no jardim de Deus?

E por que razão, ao comer o fruto do conhecimento que o faz um ser igual a Deus, deve alguém perder o paraíso? A Bíblia, tanto quanto eu sei, não o diz. E pode-se duvidar que alguém já tenha colocado a questão. O relato parece desprovido de sentido: se a árvore em questão é a árvore do conhecimento, permitindo ver a diferença entre o bem e o mal, que mal há em comer os seus frutos? Se alguém comer os seus frutos, estará mais e não menos apto a seguir os caminhos de Deus. Ainda não se vê o sentido disto tudo.

Ou é proibido conhecer Deus e assemelhar-se a Deus, o que quer dizer, viver segundo a sua vontade, mesmo no paraíso?

Ou será que tudo isto é produto da imaginação do homem cativo, lembrando-se vagamente de uma vida passada, fora da prisão? Isto não tem sentido. O homem, através dos séculos, nunca deixou de ser atormentado pelo desejo de conhecer Deus, de trilhar os caminhos de Deus, de viver o amor e a vida de Deus; e quando ele começa a fazê-lo seriamente comendo da árvore do conhecimento, é punido, expulso do paraíso e condenado ao sofrimento eterno. Tudo isto não tem sentido e lamentamos que nenhum representante de Deus na Terra tenha levantado a questão ou ousado pensar nessa direcção.

A mulher, pois, vendo que o fruto daquela árvore era bom para comer, e formoso aos olhos e de aspecto agradável, tomou dele, e comeu; e deu a seu marido, que comeu do mesmo fruto. E abrira-se-lhes os olhos; e, vendo que estavam nus, coseram folhas de figueira, e fizeram delas cinturas.

(Génesis, 3:6,7)

Quando o homem se viu assim preso pela primeira vez, a confusão tomou conta do seu espírito. Não compreendeu porque estava cativo. Teve a impressão de ter feito algo errado, mas não sabia que erro havia cometido. Não tinha vergonha da sua nudez e de repente teve vergonha dos seus órgãos genitais. Havia comido da árvore do «conhecimento» proibido, o que quer dizer, em linguagem bíblica, que ele havia «conhecido» Eva, que a tinha abraçado genitalmente. Eis porque Deus o havia expulso do Jardim do éden. A mais bela serpente de Deus, que lhe pertencia em exclusivo, tinha-os seduzido; o símbolo da Vida vibrante e viva e do órgão sexual masculino havia-os seduzido.

Um grande abismo de pensamento separa esta vida da vida cativa. Para se adaptar à vida na prisão, a Vida foi obrigada a desenvolver novas formas e novos meios de existência; formas e meios desnecessários no Jardim do Éden, mas indispensáveis na prisão.

A massa humana, silenciosa, dolorida, perdida nos seus sonhos e nos seus trabalhos penosos, afastada da Vida de Deus, oferecia um terreno propício aos padres e aos profetas que lutam contra os padres; aos reis e aos rebeldes que lutam contra os reis; aos curandeiros da miséria humana dentro da prisão, a toda a corte de charlatães e de «sumidades» médicas, de taumaturgos e de ocultistas. Com os imperadores, vieram os vendedores ambulantes da liberdade; com os organizadores da humanidade cativa nasceram os prostitutos da política, os Barrabases, a canalha dissimulada de oportunistas; Pecado e Crime contra a lei, e os juizes do Pecado e do Crime e seus carrascos; a supressão das liberdades incompatíveis com a vida na prisão e as Associações para as Liberdades Civis na prisão. Além disso, a partir desse pântano formaram-se grandes corporações políticas chamadas «partidos», alguns dos quais defendem o que chamaram statu quo na prisão, os chamados «conservadores» (que se esforçaram por manter as leis e os regulamentos que tornavam possível a vida na prisão) e, opondo-se-lhes, os chamados «progressistas», que combateram, sofreram e morreram nas galeras por terem preconizado mais liberdade na prisão. Aqui e ali, os progressistas conseguiram destituir os conservadores e começaram a estabelecer «Liberdade da Prisão» ou «PÃO E LIBERDADE na Prisão». Mas como ninguém podia «dar» ao imenso rebanho humano o pão e a liberdade, pois era preciso trabalhar duro para os obter, os progressistas rapidamente se transformaram em conservadores para manter a ordem e a legalidade, como os conservadores haviam feito antes deles. Mais tarde, um novo partido propôs-se permitir que as massas humanas sofredoras dirigissem as suas próprias Vidas, em lugar de obedecer aos reis, aos padres ou aos duques. Esse novo partido fez grandes esforços para agitar as massas e encorajá-las a agir, mas, exceptuando alguns assassinatos e a destruição de algumas mansões de ricos, as mudanças foram mínimas. As massas humanas repetiam o que lhes tinha sido ensinado durante milênios, e tudo ficou como antes; a miséria agravou-se quando um partido, particularmente esperto, prometeu a todos a «LIBERDADE DO POVO NA PRISÃO», espalhando-se por toda a parte, recorrendo a todos os slogans velhos e ultrapassados, utilizados outrora pelos reis, pelos duques e pelos tiranos. O partido da liberdade do povo teve, no início, um franco sucesso, até que as suas verdadeiras intenções foram conhecidas. O seu slogan da liberdade «DO POVO» na prisão, liberdade considerada como sendo diferente das outras liberdades na prisão, o emprego dos velhos métodos dos antigos reis, não deixaram de impressionar as pessoas, pois os chefes desse partido, eles mesmos saídos do rebanho dos cativos, transformaram-se em vendedores da liberdade e, assim que puderam estabelecer o seu poder sobre um pequeno território, espantaram-se ao descobrir como era fácil apertar alguns botões e ver a polícia, os exércitos, diplomatas, juizes, cientistas académicos, representantes das potências estrangeiras agirem de acordo com as ordens de simples botões. Os pequenos vendedores da liberdade gostaram tanto desse jogo de exercer o poder apertando botões que esqueceram a «LIBERDADE DO POVO NA PRISÃO» e passaram a divertir-se apertando botões sempre que podiam, nos palácios dos antigos dirigentes que eles haviam massacrado. A embriaguez do poder tomou conta deles enquanto apertavam os botões do vasto painel de comando. Mas não ficaram muito tempo, e foram substituídos por homens experientes no comando dos botões, bravos conservadores que guardavam, no fundo das suas almas, um pouco de decência e rectidão, reminiscencia longínqua do paraíso.

Todos se combatiam e altercavam uns com os outros, empurrando-se e matando os seus adversários de maneira legal ou ilegal; enfim, davam uma idéia precisa do Pecado da humanidade e do cumprimento da maldição do Jardim do Éden. A massa humana prisioneira não tomou parte activa no massacre da Vida pestilenta na Prisão. Somente alguns milhares dentre os dois biliões de almas humanas tomaram parte no tumulto. Os outros contentavam-se em sofrer, em sonhar, em esperar... o QUÊ? O redentor ou um acontecimento inédito capaz de os libertar; a libertação das suas almas da prisão chamada corpo; a reunião com a grande alma cósmica ou o inferno. Sonhar, sofrer, esperar foram as ocupações principais do vasto rebanho humano que evoluía longe de toda a agitação política. Muitos morreram nas grandes guerras da prisão, e os inimigos mudavam de ano para ano, como os caixas dos bancos. Pouco importava, o sofrimento era o mesmo. A massa humana sofredora esperava durante esse tempo a sua libertação desta vida de pecado, e os poucos agitadores de nada valiam, do ponto de vista da Vida ou de «Deus» no Universo.

E a Vida de Deus surgia em biliões de crianças nascidas na prisão, mas era logo extinta pelos prisioneiros que não reconheciam a Vida de Deus nos seus filhos, ou ficavam mortalmente apavorados ao perceber a Vida simples, viva, decente, ingênua. E assim o homem perpetuou o seu cativeiro. As crianças, se tivessem sido abandonadas à sua própria sorte, tal como Deus as criou, teriam, sem dúvida, encontrado a saída da prisão. Mas não se permitiu que isso acontecesse. Isso era mesmo estritamente proibido durante o período da liberdade «DO POVO» na prisão. Era preciso mostrar-se leal para com a prisão e não para com os bebés, sob pena de ser punido de morte pelo «Grande Chefe e Amigo de Todos os Prisioneiros».

(Wilhelm Reich - O Assassinato de Cristo)

publicado às 04:43

Viajar? Para viajar basta existir. Vou de dia para dia, como de estação para estação, no comboio do meu corpo, ou do meu destino, debruçado sobre as ruas e as praças, sobre os gestos e os rostos, sempre iguais e sempre diferentes, como, afinal, as paisagens são.

Se imagino, vejo. Que mais faço eu se viajo? Só a fraqueza extrema da imaginação justifica que se tenha que deslocar para sentir.

"Qualquer estrada, esta mesma estrada de Entepfuhl, te levará até ao fim do mundo." Mas o fim do mundo, desde que o mundo se consumou dando-lhe a volta, é o mesmo Entepfuhl de onde se partiu. Na realidade, o fim do mundo, como o princípio, é o nosso conceito do mundo. É em nós que as paisagens têm paisagem. Por isso, se as imagino, as crio; se as crio, são; se são, vejo-as como às outras. Para quê viajar? Em Madrid, em Berlim, na Pérsia, na China, nos Pólos ambos, onde estaria eu senão em mim mesmo, e no tipo e género das minhas sensações?

A vida é o que fazemos dela. As viagens são os viajantes. O que vemos, não é o que vemos, senão o que somos.

 

(Fernando Pessoa - Livro do Desassossego)

publicado às 13:42

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 A realidade em que estamos é simplesmente um reflexo das nossas crenças, nossas escolhas, nossa visão do mundo em geral

 Se alguma coisa há que esta vida tem para nós, e, salvo a mesma vida, tenhamos que agradecer aos Deuses, é o dom de nos desconhecermos: de nos desconhecermos a nós mesmos e de nos desconhecermos uns aos outros. A alma humana é um abismo obscuro e viscoso, um poço que se não usa na superfície do mundo. Ninguém se amaria a si mesmo se deveras se conhecesse e assim, não havendo a vaidade, que é o sangue da vida espiritual, morreríamos na alma de anemia . Ninguém conhece outro, e ainda bem que o não conhece, e, se o conhecesse, conheceria nele, ainda que mãe, mulher ou filho, o íntimo, metafísico inimigo. Entendemo-nos porque nos ignoramos. Que seria de tantos cônjuges  felizes se pudessem ver um na alma do outro, se pudessem compreender-se, como dizem os românticos, que não sabem o perigo — se bem que o perigo fútil — do que dizem. Todos os casados do mundo são mal casados, porque cada um guarda consigo, nos secretos onde a alma é do Diabo, a imagem subtil do homem desejado que não é aquele, a figura volúvel da mulher sublime que aquela não realizou. Os mais felizes ignoram em si mesmos estas suas disposições frustradas; os menos felizes não as ignoram, mas não as conhecem, e só um ou outro arranco fruste, uma ou outra aspereza no trato, evoca, na superfície casual dos gestos e das palavras, o Demónio oculto, a Eva antiga, o Cavaleiro e a Sílfide. A vida que se vive é um desentendimento fluido, uma média alegre entre a grandeza que não há e a felicidade que não pode haver. Somos contentes porque, até ao pensar e ao sentir, somos capazes de não acreditar na  existência da alma. No baile de máscaras que vivemos, basta-nos o agrado  do traje, que no baile é tudo. Somos servos das luzes e das cores, vamos na dança como na verdade, nem há para nós — salvo se, desertos, não dançamos — conhecimento do grande frio do alto da noite externa, do corpo mortal por baixo dos trapos que lhe sobrevivem, de tudo quanto, a sós, julgamos que é essencialmente nós, mas afinal não é senão a paródia íntima da verdade do que nos supomos. Tudo quanto fazemos ou dizemos, tudo quanto pensamos ou sentimos, traz a mesma máscara e o mesmo dominó. Por mais que dispamos o que vestimos, nunca chegamos à nudez, pois a nudez é um fenómeno da alma e não de tirar fato. Assim, vestidos de corpo e alma, com os nossos múltiplos trajes tão pegados a nós como as penas das aves, vivemos felizes ou infelizes, ou nem até sabendo o que somos, o breve espaço que nos dão os deuses para os divertirmos, como crianças que brincam a jogos sérios .

Um ou outro de nós, liberto ou maldito, vê de repente — mas até esse raras vezes vê — que tudo quanto somos é o que não somos, que nos enganamos no que está certo e não temos razão no que concluímos justo. E esse, que, num breve momento, vê o universo despido, cria  uma filosofia, ou sonha  uma religião; e a filosofia espalha-se  e a religião propaga-se e os que creem na filosofia passam a usá-la como veste que não veem, e os que creem na religião passam a pô-la como máscara de que se esquecem.

E sempre, desconhecendo-nos a nós e aos outros, e por isso entendendo-nos alegremente, passamos nas volutas da dança ou nas conversas do descanso, humanos, fiteis, a sério, ao som da grande orquestra dos astros, sob os olhares desdenhosos e alheios dos organizadores do espetáculo.

Só eles sabem que nós somos presas da ilusão que nos criaram. Mas qual é a razão dessa ilusão, e porque é que há essa, ou qualquer, ilusão, ou porque e que eles, ilusos também, nos deram que tivéssemos a ilusão que nos deram — isso, por certo, eles mesmos não sabem.

 

(Fernando Pessoas - Livro do Desassossego)

publicado às 00:22


Galhardo

por Thynus, em 23.01.17
 
Aconteceu de o grupo ficar hospedado num hotel de Paris em que as paredes eram finas e podia-se ouvir um suspiro do quarto ao lado, quanto mais gemidos e outros ruídos associados ao sexo. Como os daquele casal, que sempre terminavam com a mulher gritando — presumivelmente durante o orgasmo — "Ai, Galhardo! Ai, Galhardo!".
O grupo não se conhecia. Tinha sido organizado por uma agência de turismo para assistir às finais da Copa. Durante a viagem, não houve qualquer tipo de aproximação entre os componentes do grupo e só no terceiro ou quarto dia de Paris é que começou a confraternização. Por iniciativa de Marçal e Marília, que ocupavam o quarto ao lado do casal barulhento. Durante um café da manhã, no hotel, Marçal contou o que fazia, Marília deu detalhes da vida familiar dos dois — casa, filhos etc. — e em pouco tempo estavam todos apresentando rápidos resumos de suas vidas, alguns até descobrindo afinidades, amigos, parentes ou fornecedores em comum, essas coisas. Só não tinham se manifestado ainda os vizinhos de quarto de Marçal e Marília, um homem retaco e sorridente e uma mulher loira, mais alta do que ele, que usava a camisa 9 do Ronaldo amarrada na frente, com o umbigo à mostra. Marçal virou-se para o homem e perguntou:
— E você, Galhardo?
O homem não parou de sorrir.
— Galhardo?
Marçal hesitou, sabendo que tinha feito uma bobagem mas que não podia recuar.
— Seu nome não é Galhardo?
— Jeremias Portinho.
— Portinho, desculpe. Não sei de onde eu tirei o Galhardo...
— E eu sou a Sandra — disse a mulher.
Naquela noite, depois da vitória contra o Chile, Sandra estava ainda mais entusiasmada na hora do orgasmo.
— Galhardo! Ai, Galhardo!
No quarto ao lado, Marçal e Marília discutiam as alternativas.
— É adjetivo — propôs Marçal.
Marília sustentava que era outro homem. Devia haver outro homem, chamado Galhardo, com eles no quarto.
— Como?! — reagiu Marçal. — Veio com eles na mala? Um anão bom de cama? Um amante portátil? Deve ser adjetivo.
Na manhã do jogo final — na noite anterior, os gritos de "Ai, Galhardo!" tinham ecoado pelo hotel —, Marília não se conteve e disse a Sandra:
— Já sei por que o Marçal chamou seu marido de Galhardo. É que ele se parece muito com um amigo nosso chamado Galhardo. Talvez vocês conheçam...
Sandra estava olhando a ponta de um croissant, com cara de sono, como se decidindo se o croissant merecia uma mordida sua ou não.
— Eu conheci um Galhardo uma vez. Faz anos...
Ela mordeu a ponta do croissant e continuou:
— Mas ele não era nada parecido com o Portinho.
Durante o jogo, Marília disse a Marçal:
— Desvendei o mistério do Galhardo.
— O quê?
— É evocação.
Mas o Zidane tinha feito o segundo, e Marçal não queria nem ouvir.

(Luís Fernando Ver!ssimo - Sexo na Cabeça)

publicado às 02:45


Remédios e doenças

por Thynus, em 23.01.17
“Nos últimos anos, as empresas farmacêuticas aperfeiçoaram um novo e eficiente método de ampliar seus mercados. Em vez de promover medicamentos para tratar doenças, começaram a promover doenças para seus medicamentos”. A nova estratégia “é convencer os americanos de que só há dois tipos de pessoa: as que sofrem de condições clínicas e exigem tratamento medicamentoso e aquelas que ainda não sabem disso”.
(Marcia Angell)

 
Remédios não curam doenças da alma
A ideia de doença é conhecida em todas as culturas e idiomas; desde tempos imemoriais, sempre houve uma palavra de sentido equivalente em cada língua que remete a uma “ausência de bem-estar”, como o substantivo “doença”,(*) ou seja, dor, desconforto, moléstia, enfermidade, padecimento físico ou psíquico. Com o uso da palavra “doença”, diz-se que o estado de saúde da pessoa à qual o termo é aplicado não é como deveria ser ou como normalmente se esperaria que fosse. Doença indica uma anormalidade no estado de saúde da pessoa doente.
Em seu uso contemporâneo, no entanto, a palavra “doença” (enfermidade, moléstia) tende a ser adotado em alternância com o conceito de “condição médica, ou condição clínica”. Este último pretende ser apenas um equivalente do primeiro, mas agrega um significado furtivo e crucial que muda toda a questão da “ausência de bem-estar” para um novo registro: de uma condição a uma ação que tal condição suposta ou declaradamente impõe. De fato, o novo conceito atribui à ação realizada ou prestes a se realizar o poder de definir a condição que se deve combater: hoje, quando os médicos entram em cena, é que o drama passa a representar uma doença.
Desse modo, o conceito de “condição médica ou clínica” antecipa o problema que, não fosse por isso, estaria sujeito a debate e talvez a controvérsias: o problema de decidir se a condição em exame está desenvolvida e é tratável por intervenção médica. Presume-se que já se decidiu (“é evidente”) que se deve chamar ou consultar um médico; que é preciso fazer exames clínicos; que se devem prescrever, comprar e consumir medicamentos: e que é preciso seguir um tratamento. Confirma-se ainda, por circunlóquios, que as profissões de médicos e farmacêuticos devem deter o controle do corpo e do espírito da pessoa doente.
Quando identificamos a doença à “condição médica ou clínica” (e assim, indireta mas forçosamente, uma projeção do ato de intervenção médica), o fato de estar doente é definido pela circunstância de a pessoa estar sujeita a, ser qualificada para e necessitar de ação médica. “Estar doente” agora significar pedir ajuda de um médico; e um médico que proporciona ajuda determina que a condição é de doença. O que nasceu primeiro, o ovo ou a galinha? Sobretudo, qual dos fatos é a galinha e qual é o ovo?
Numa análise que se desenvolveu em três grandes estudos na New York Review of Books (15 jan 2009), Marcia Angell afirmou que, “nos últimos anos, as empresas farmacêuticas aperfeiçoaram um novo e eficiente método de ampliar seus mercados. Em vez de promover medicamentos para tratar doenças, começaram a promover doenças para seus medicamentos”. A nova estratégia “é convencer os americanos de que só há dois tipos de pessoa: as que sofrem de condições clínicas e exigem tratamento medicamentoso e aquelas que ainda não sabem disso”.
Gostaria de salientar, porém, que não foram necessariamente as empresas farmacêuticas que inventaram e desenvolveram essa nova estratégia. É mais provável que elas tenham se orientado por uma tendência universal do marketing. Hoje, a oferta de novas mercadorias não segue a demanda existente: é preciso criar demanda para mercadorias que já foram lançadas no mercado e, portanto, seguir a lógica de uma empresa comercial em busca de lucros, e não a lógica das necessidades humanas em busca de satisfação. Essa nova tendência só se realiza plenamente se nossa cabeça tiver sido impregnada da ideia de que não há e não pode haver limites ao nosso nível de tentativas de autoaperfeiçoamento e satisfação proporcionadas por incrementos desses níveis. Por mais excelente que seja sua condição física atual, sempre é possível torná-la ainda melhor.
Se o estado de saúde não tem apenas um nível inferior, mas também um nível superior – o que nos permitiria relaxar quando ele fosse atingido –, a qualidade do bom condicionamento físico, que passou a substituí-lo ou deslocá-lo para uma posição secundária em nossas preocupações atuais, não tem limites: ao contrário dos cuidados com a saúde em seu sentido tradicional e ortodoxo, a luta pelo condicionamento físico jamais acaba. Nunca deixarão que relaxemos nossos esforços. Por mais condicionado que você esteja, sempre poderá melhorar; seu grau de satisfação sexual sempre poderá será melhor do que hoje, os prazeres, mais prazerosos, os deleites, mais deleitosos.
A inventividade das empresas farmacêuticas reduz-se ao controle e direcionamento da autoridade e da força persuasória da preocupação com a saúde no sentido de uma busca cada vez mais intensa de aptidão física e de autoconfiança – luta que nós, consumidores numa sociedade de consumidores, fomos impelidos, persuadidos e treinados a travar. Já se tornou parte de nossa filosofia de vida – ou melhor, de nosso senso comum – que acatar a via para melhorar a aptidão física e ter mais autoconfiança passa pelo estudo atento das novas peças publicitárias e termina nas lojas. Integrando nosso senso comum, isto é, fazendo parte da lista de coisas que “todo mundo sabe”, “todo mundo aceita” e “todo mundo faz”, esses truísmos se converteram no mais importante e inesgotável recurso das empresas em sua luta por lucros cada vez maiores.
Não importa muito se a moléstia contra a qual os novos medicamentos prometem agir é séria ou não, se suas consequências são graves, ameaçadoras e causam profundo desconforto para suas vítimas. O que interessa é se a condição médica é comum, e, portanto, se o número de potenciais consumidores da droga é grande e garante boa expectativa de lucros para a empresa. De acordo com esse princípio, as afecções com que a maioria de nós está acostumada a lidar cotidianamente (seja azia, tensão pré-menstrual ou até aquele comuníssimo déficit de autoconfiança que ressurge volta e meia como timidez) nos últimos tempos foram caracterizadas como doenças. Receberam designações eruditas, quase sempre estranhas e incompreensíveis; por isso, soam aos nossos ouvidos como palavrões funestos (a azia, por exemplo, tende a ser designada pelo médico ou farmacêutico como “doença de refluxo gastroesofágico”), a reclamar urgente atenção médica.
Christopher Lane descreveu a espetacular trajetória médica e farmacêutica recente de um dos aspectos mais comuns da vida humana: a experiência da timidez prolongada ou momentânea (quem de nós, em sã consciência, pode jurar que nunca se sentiu tímido, cauteloso ou inseguro?). Pois essa sensação desagradável, tão comum e frequente, foi rebatizada na prática médica com o pomposo nome de “transtorno de ansiedade social”. Em 1980, essa perturbação foi citada no Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders – ainda sob a denominação de “fobia social”, agora abandonada – como doença “rara”. Em1994, foi reclassificada como “extremamente comum”. Em 1999, a GlaxoSmithKline, empresa gigante do setor farmacêutico, lançou uma campanha publicitária de milhões de dólares para promover sua marca de antidepressivo Paxil, que prometia aliviar e inclusive acabar com aquela “grave condição médica”, como hoje anuncia a propaganda do remédio. Lane cita Barry Brand, diretor de produção do Paxil, que declarou: “O sonho de todo profissional de marketing é descobrir um mercado não identificado ou desconhecido e desenvolvê-lo. Foi o que logramos fazer com o transtorno de ansiedade social.”
Claro que, nesses casos, estamos pagando pela promessa de libertação de um medo ou ansiedade específicos, mas raramente o medicamento que compramos nos torna, em geral, menos temerosos e menos propensos à ansiedade. Uma vez aceito que, para toda afecção e desconforto causados pelos problemas e atribulações normais da vida cotidiana, existe (deve haver, haverá) um remédio comprável na farmácia mais próxima, a possibilidade de frustração com os medicamentos “que melhoram a qualidade da vida” permanece como fonte de infinito desapontamento para seus consumidores e fonte de infinitos lucros para vendedores, distribuidores e publicitários.
Cada nova droga introduzida para substituir a anterior, já desacreditada, tende a ser vendida por um preço mais alto (segundo o padrão dos brinquedos na distopia de Aldous Huxley, O admirável mundo novo), aumento que não é justificado pela maior eficácia.
 
(Zygmunt Bauman - 44 Cartas do Mundo Líquido Moderno)
 
(*) A origem da palavra “doença”, em português, é o termo latino dolentia, “dolência”. (N.T.)

publicado às 01:56


Primatas

por Thynus, em 22.01.17
A minha tese de que o homem descende do macaco, mas a mulher não, é apoiada em evidências científicas, não só no fato de que somos mais feios e cabeludos. Por exemplo: é sabido que mulheres dão melhores primatólogas, como a interpretada pela Sigourney (o nome, se me permitem um entreparênteses confessional, que eu adotaria se fosse travesti) Weaver naquele filme. Existem várias teses sobre a razão desta predominância feminina no estudo dos macacos. Seria porque entendem, muito mais do que o homem, de comunicação não-verbal — como atesta a eloqüência de uma troca de olhares entre mulheres, principalmente quando o objeto da mensagem silenciosa é outra mulher, e o poder expressivo de um beicinho — porque têm mais paciência e, principalmente, porque não partem, como os homens, de preconceitos fixos, como o de que qualquer tribo de macacos é um patriarcado só porque os machos são mais exibidos. Os homens também seriam menos capazes de estudar macacos com isenção científica porque se sentiriam inconscientemente revoltados com a promiscuidade sexual das macacas.
Quer dizer, seriam mais moralistas. E haveria razões mais rarefeitas. Não faz muito, apareceu uma teoria de que o fim dos matriarcados e o começo da falocracia que até hoje domina o mundo teriam coincidido com a criação do alfabeto. Assim, as mulheres se sentiriam atraídas para a primatologia porque, entre os macacos, recuperariam um pouco da sua condição perdida, não apenas anterior à palavra escrita, mas anterior à própria linguagem. Entre os gorilas, as sigourneys seriam, de novo, deusas. 
Animalidade Humana: o homem veio do macaco?
 
É surpreendente que ninguém tenha pensado na razão mais lógica para as mulheres dominarem este ramo da ciência. E que, durante toda a sua história, elas não fizeram outra coisa senão cuidar de macacos. Sua paciência se desenvolveu com a necessidade de esperar que o homem passasse por suas várias fases, de bicho a hominídeo até poder ficar bem num smoking. Acompanharam a nossa evolução, nos estudaram desde que tínhamos rabo, nos ensinaram a usar o dedão opositor, a não babar no peito... E quando finalmente criamos a linguagem, e depois o alfabeto, e concluímos que éramos melhores do que elas, foram tolerantes na sua resignação, e aceitaram a nossa ingratidão, pois sabiam que estavam lidando, afinal, com animais interessantes, mas animais.
Enfim, foi um longo aprendizado. 
 
(Luís Fernando Ver!ssimo - Sexo na Cabeça)

publicado às 16:20

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