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1
Domiciano, irmão do magnânimo Tito, era um imperador cruel. Menos espetaculoso que Nero, mais abjeto. Ao acordar, permanecia horas a sós no quarto, imóvel, à espreita, esperando que uma mosca pousasse ao seu alcance, e então seu braço descia como um raio e ele a transpassava com um estilete. De tanto treinar, tornou-se um ás nessa modalidade esportiva. Gostava de comer sozinho, vagar à noite pelo palácio, escutar atrás das portas. Só se interessava por uma mulher se pudesse roubá-la de outro homem, de preferência um amigo, mas ele não tinha amigos. Era perigoso, diz Juvenal, conversar com ele sobre o tempo que estava fazendo. Com um temperamento assim, não admira ter perseguido muita gente, mas o objeto principal de sua perseguição eram os filósofos. Detestava os filósofos. Epicteto, uma das grandes figuras tardias do estoicismo, é apanhado na rede. Os cristãos também, mas com os cristãos já era rotina: usual suspects. No crime, Domiciano não apreciava a rotina, nem que lhe ditassem o modus operandi. Queria vítimas próprias, não as de Nero, e, além de persegui-las, saber a quem perseguia. Fez questão de se informar sobre a natureza exata do perigo representado pelos cristãos. Diziam: rebeldes, quem diz rebelião diz líder e, como o líder morrera sessenta anos atrás, Domiciano ruminou que o perigo, se havia algum perigo, vinha forçosamente de sua família. Com toda a sua perversidade, tinha das coisas uma visão tão arcaica e mafiosa quanto Herodes, capaz de massacrar centenas de crianças inocentes para se livrar de um descendente de Davi. Ordenou então que procurassem os descendentes de Jesus.
Despachada para a Judeia, a polícia imperial encontrou dois de seus sobrinhos-netos, netos de seu irmão Judas. Eram pobres camponeses, membros daquelas comunidades remotamente oriundas da igreja de Jerusalém que sobreviviam na orla do deserto, à margem da margem de um país condenado por seu deus e por Roma. Ignorando tudo a respeito do que acontecia no mundo em nome de seu tio-avô, tinham conservado ritos vagos, tradições vagas, uma vaga lembrança das palavras de Jesus. Devem ter receado por suas vidas quando os soldados romanos apareceram em sua aldeia perdida, os prenderam, transferiram para Cesareia e embarcaram para Roma. Lá, foram recebidos pelo imperador, cujo nome sequer deviam conhecer. Era o imperador, era César, tudo que pressentiam é que, para pessoas como eles, era perigoso comparecer perante ele.
Domiciano adulava antes de torturar: interrogou-os cortesmente. Descendiam de Davi? Sim. De Jesus? Sim. Acreditava que ele reinaria um dia? Sim, mas sobre um reino que não é deste mundo. E do que viviam, enquanto isso? De uma plantação que ambos possuíam, ocupando um hectare, que valia nove mil denários. Cultivavam-na sozinhos, sem empregados, rendia justo com que sobreviver e pagar o imposto.
Eram tão dignos de pena que comoviam, aqueles dois judeuzinhos aterrados, com as mãos calejadas, apresentados ao imperador como perigosos terroristas. Talvez, excepcionalmente, Domiciano não estivesse de lua nesse dia. Talvez não lhe apetecesse fazer o que esperavam dele. Mandou-os de volta para casa, livres, e não me admiraria que, pelo prazer de surpreender, houvesse mandado degolar os que à sua volta o pressionavam para reprimir os cristãos.
Os cristãos… Coitados. Nenhum perigo, nenhum futuro. Assunto encerrado, pensou o imperador. Podemos arquivar o processo.
Dezenove séculos mais tarde, hesito em arquivá-lo.
2
Quase ao mesmo tempo que o de Lucas, outro Evangelho era escrito na Síria, para uso dos cristãos do Oriente. Dizia-se que seu autor era Mateus, o coletor de impostos que se tornara um dos Doze. Dizia-se também que por trás de Mateus se escondia nosso velho conhecido Filipe, o apóstolo dos samaritanos. Os historiadores, claro, não acreditam nem em Mateus nem em Filipe. Veem nesse relato antes a obra de uma comunidade do que de um indivíduo, e, neste caso preciso, concordo com eles, pois esse Evangelho, que é o preferido da Igreja, que ela colocou em primeiro lugar no cânone do Novo Testamento, é igualmente o mais anônimo. Dos outros três, fazemos uma ideia, talvez falsa, mas uma ideia. Marcos é o secretário de Pedro. Lucas, o companheiro de Paulo. João, o discípulo preferido de Jesus. O primeiro é o mais virulento, o segundo, o mais amável, o terceiro, o mais profundo. Mateus, por sua vez, não tem lenda, rosto, singularidade, e, no que me diz respeito, depois de passar dois anos de minha vida comentando João, dois traduzindo Marcos e sete escrevendo este livro sobre Lucas, tenho a impressão de não conhecê-lo. Embora possamos ver nessa ofuscação a apoteose da humildade cristã, outra razão da preeminência de que goza Mateus é que, ao longo de todo o seu Evangelho, ele se esmera em mostrar que o bando de pés-rapados recrutados por Jesus era organizado, disciplinado, hierarquizado, em suma, que já era uma igreja. Talvez seja o mais cristão dos quatro: é também o mais eclesiástico.
Isso vinha bem a calhar. A partir da teia tecida por Paulo, alguma coisa que a Antiguidade não conheceu ganhava forma: um clero. Cristo é o enviado de Deus, os apóstolos, os de Cristo, os padres, os dos apóstolos. Esses padres são chamados presbíteros, o que significa simplesmente os antigos. Logo passarão a ser subordinados aos epíscopos, que se tornarão os bispos. Logo dirão que o bispo, enquanto o papa não vem, representa Deus na Terra. Centralização, hierarquia, obediência: viemos para ficar. O fim do mundo não está mais na ordem do dia. É por isso que Evangelhos começam a ser escritos e a Igreja se organiza.
Por mais três séculos ainda, essa Igreja restará uma sociedade secreta, clandestina, caçada. O horrível Domiciano perseguiu-a por capricho, sem lógica, mas seus sucessores o fizeram com conhecimento de causa. Esses sucessores eram todos bons imperadores. Trajano, Marco Aurélio, Adriano, por exemplo, eram imperadores filósofos, estoicos, tolerantes: o que a Antiguidade tardia deu de melhor. Proibindo o cristianismo, martirizando seus adeptos, esses bons imperadores não se enganavam de alvo. Amavam Roma, que desejavam eterna, e pressentiam que aquela seita obscura era um inimigo tão temível para Roma quanto os bárbaros aglutinados nas fronteiras. “Os cristãos”, escreve um apologista, “não diferem em nada dos outros homens. Não vivem à parte, conformam-se a todos os costumes, só intimamente seguem as leis de sua república espiritual. Estão no mundo como a alma no corpo.” Como a alma no corpo, bonitas palavras, mas também como os extraterrestres na pacata comunidade de Vampiros de almas, o velho filme de ficção científica paranoica: camuflados em amigos, vizinhos, indetectáveis. Esses mutantes queriam devorar o império a partir de seu âmago, tomar o lugar, mediante um processo invisível, de seus súditos. E assim fizeram.
3
Nos anos 20 do século II, sob o reinado do virtuoso Trajano, havia em Éfeso um ancião conhecido como presbítero João, isto é, João, o antigo. Ninguém sabia mais sua idade. A morte parecia tê-lo esquecido. Era infinitamente respeitado. Alguns asseguravam tratar-se do discípulo preferido de Jesus. Último homem vivo a tê-lo conhecido, e, quando interrogado, ele não dizia o contrário. Dirigia-se àqueles que o cercavam como “meus filhinhos”. Não cansava de lhes repetir: “Meus filhinhos, amai-vos uns aos outros”. Toda a sabedoria resumia-se a esse mantra. Um dia, ele acabou morrendo. Enterraram-no ao lado de Maria, mãe de Jesus, que também diziam ter morrido em Éfeso. Aproximando o ouvido de seu túmulo, ouvia-se o ancião respirar, parece, baixinho e regularmente, feito uma criança dormindo.
Alguns anos após sua morte, o Evangelho segundo João apareceu em Éfeso, onde agora ninguém duvidava tratar-se do testemunho do discípulo que Jesus amava. Outras igrejas, contudo, duvidaram. Uma feroz controvérsia estendeu-se até o século IV, com alguns postulando que João era o Evangelho definitivo, anulando as rústicas tentativas anteriores, outros, que não só era uma falsificação, como uma falsificação eivada de heresia. O cânone terminou por decidir. João escapou por um triz da sorte dos apócrifos, aos quais poderia juntar-se nas trevas exteriores tamanho o estranhamento e as diferenças entre o seu texto e os três Evangelhos aceitos unicamente. É, para sempre, o quarto.
Isso é um mistério, quem escreveu esse quarto Evangelho.
A rigor, é possível aceitar que João, filho de Zebedeu, pescador galileu nervosinho mas de quem Jesus gostava muito, tornou-se, após a morte deste, uma das colunas da igreja de Jerusalém e, mais tarde, o jihadista judeu que escreveu o Apocalipse. Mais difícil é aceitar que o autor do Apocalipse, cujas linhas sem exceção transpiram ódio aos gentios e a todo judeu que pactue com eles, tenha sido capaz, mesmo quarenta anos mais tarde, de escrever um Evangelho saturado de filosofia grega e violentamente hostil aos judeus. No Evangelho de João, Jesus chama a Lei desdenhosamente de “vossa Lei”. A Páscoa é a “Páscoa dos judeus”. Do jeito que ele conta, a história inteira se resume ao embate entre a luz e as trevas, e os judeus fazem o papel das trevas. E agora?
Agora eis o roteiro mais plausível: João, filho de Zebedeu, João, o apóstolo, João, o autor do Apocalipse, terminou efetivamente sua longa vida em Éfeso, cercado pelo respeito das igrejas da Ásia. A Ásia era então a região mais devota do império. O mais reles medicastro de aldeia era visto como deus, e todas as profissões de fé se misturavam. Renan, que não gosta nem do quarto Evangelho nem do que os historiadores chamam de “o círculo joânico”, descreve um ninho de intrigas, fraudes carolas e traições em torno da última testemunha viva, um ancião vaidoso que perde o juízo e se insurge violentamente porque os Evangelhos em circulação não lhe dão o papel que ele afirma ter desempenhado. Pois, afirma ele, ele era discípulo preferido, aquele a quem Jesus confiava suas alegrias e sofrimentos. Ele sabe tudo: o que Jesus pensava e o que efetivamente aconteceu, tim-tim por tim-tim. Marcos, Mateus e Lucas, esses compiladores mal informados, dizem que Jesus não foi a Jerusalém a não ser no fim, para morrer. Mas ele ia lá o tempo todo!, exalta-se João: foi lá que ele fez a maioria de seus milagres! Dizem que na véspera de sua morte instituiu esse rito do pão e do vinho pelo qual seus adeptos o rememoram. Mas ele fez isso muito tempo antes! Fazia isso o tempo todo! O que ele fez na última noite foi lavar os pés de todos e, isso, sim, era novo, e João fala de um lugar confiável, pois passou aquela última noite à direita de Jesus, a cabeça em seu ombro. Dizem, pior ainda, que Jesus morreu sozinho, que todos os seus companheiros debandaram. Ora bolas, ele estava lá, ele, João, ao pé da cruz! Jesus agonizante inclusive lhe recomendou sua mãe! Essas recordações, devido à sua idade avançada, são confusas, mas os que as escutam acreditam piamente que ouvem a verdade, a verdadeira, ignorada ou travestida pelos relatos de Marcos, Mateus e Lucas. Cumpre divulgar essa verdade. Isso caberá a quem arrancar mais coisa do velho, ocupando junto a ele o cargo de secretário. Caberá a quem for, para João, o que Marcos foi para Pedro.
A diferença é que Marcos era um secretário escrupuloso. João não teve essa sorte. Teve outra. A de arranjar um secretário genial. Não é impossível esse secretário chamar-se João; talvez, com a chegada da idade, tenham terminado por confundi-lo com o próprio apóstolo. João, o apóstolo, João, o antigo: na penumbra e no incenso de Éfeso, não se sabe mais quem é quem. Um fala, o outro escuta, e assimila de tal forma o que ouviu, adiciona-lhe tão intimamente sua poderosa personalidade e sua vasta cultura filosófica, que o primeiro, pudesse lê-lo, jamais teria reconhecido o que o segundo escreveu sob seu nome. Pois, embora não se saiba nada a respeito de João, o antigo, presume-se que era um filósofo, e, se judeu, um judeu totalmente helenizado. Talvez, com cinquenta anos de intervalo, alguém como aquele Apolo rival de Paulo, em Corinto: um discípulo de Fílon de Alexandria, um neoplatônico: tudo o que o apóstolo João odiava.
A fusão dos dois Joões, o apóstolo e o antigo, faz do quarto Evangelho uma mistura estranha. Por um lado, fornece informações tão concretas sobre as passagens de Jesus pela Judeia que os historiadores terminaram, de má vontade, por julgá-lo mais confiável que os outros três. Por outro, atribui-lhe discursos que impõem uma escolha: ou Jesus falava como em Marcos, Mateus e Lucas, ou falava como em João, mas é difícil aceitar que ele pudesse falar como fala em Marcos, Mateus e Lucas e, ao mesmo tempo, como fala em João. A escolha é feita sem piscar: ele fala como em Marcos, Mateus e Lucas. Inclusive isso é o que mais depõe a favor do valor histórico dos Evangelhos, o estilo oral comum aos três e tão singular — poderíamos dizer inimitável, se Lucas não tivesse se especializado em imitá-lo. Frases curtas, formas claras, exemplos pinçados na vida cotidiana. Em João, por contraste, discursos compridos, compridíssimos sobre as relações de Jesus com seu pai, o combate da sombra e da luz, o Logos descido na terra. Sequer um exorcismo, sequer uma parábola. Não restou mais nada de judeu. O verdadeiro João, João, o apóstolo, teria ficado horrorizado: as palavras a ele atribuídas lembram muito as cartas tardias de seu grande inimigo Paulo. E, como nas cartas tardias de Paulo, há lampejos extraordinários, pois o falso João, João, o antigo, era um escritor extraordinário. Sua narrativa é aspergida por uma luz sobrenatural de despedida, suas palavras ressoam como um eco vindo da outra margem. As bodas de Caná, a samaritana no poço, a ressurreição de Lázaro, Natanael sob a figueira, tudo isso é cara dele. Também é cara dele a frase de João Batista: “É necessário que ele cresça e eu diminua”, e aquela de Jesus aos devotos prestes a apedrejar a mulher adúltera: “Quem dentre vós estiver sem pecado, seja o primeiro a lhe atirar uma pedra”. É dele, por fim, a fala misteriosa que decidiu minha conversão, em Levron, há vinte e cinco anos:
Em verdade, em verdade, te digo:
Quando eras jovem,
tu te cingias
e andavas por onde querias;
quando fores velho,
estenderás as mãos
e outro te cingirá
e te conduzirá aonde não queres
.
4
Quando cursava história, tive de redigir uma monografia sobre um tema de minha escolha. Como eu era ao mesmo tempo bastante ignorante em história e grande conhecedor de ficção científica, escolhi um tema sobre o qual estava certo de saber mais que toda a banca reunida: a ucronia.
A ucronia consiste em ficções sobre o tema: e se as coisas tivessem acontecido de outra forma? E se o nariz de Cleópatra tivesse sido mais curto? E se Napoleão tivesse vencido Waterloo? Durante minhas pesquisas, percebi que um grande número de ucronias gira em torno dos primórdios do cristianismo. Isso nada tem de espantoso: se procurarmos na trama da história o ponto de ruptura que causará a mudança máxima, não encontraremos melhor. Roger Caillois, por exemplo, entrou na cabeça de Pôncio Pilatos quando este viu-se à frente do caso Jesus. Ele imagina seu dia: os mais ínfimos incidentes, encontros, alterações de humor, um pesadelo, tudo que faz a alquimia de uma decisão. No fim, em vez de ceder aos sacerdotes, que pretendem executar aquele obscuro e agitado galileu, Pilatos tem uma luz. Diz não. Não vejo nada a censurá-lo, liberto-o. Jesus volta para casa. Continua a pregar. Morre muito velho, cercado de grande reputação de sabedoria. O cristianismo não existe. Caillois pensa que isso não é mau.
Essa é uma das maneiras de resolver o problema: na fonte. Caso contrário, a outra grande fenda temporal é a conversão de Constantino.
Constantino era imperador no início do século IV. Enfim, um dos quatro coimperadores que dividiam entre si o Oriente e o Ocidente, visto que o império, de tanto crescer, havia se tornado uma coisa complicada, inadministrável, infiltrado pelos bárbaros, que agora formavam o grosso das legiões. Um quinto ladrão também pretendia ser imperador. Ele conquistara parte da Itália, Constantino defendia seu trono. Uma grande batalha se anunciava nas cercanias de Roma, entre seus exércitos e os do usurpador. Na noite anterior a essa batalha, o deus dos cristãos lhe apareceu em sonho e lhe prometeu a vitória caso se convertesse. No dia seguinte, que era 28 de outubro de 312, Constantino vencia a batalha e, em decorrência dessa vitória, o império passava a ser cristão.
Isso levou um pouco de tempo, claro, as pessoas tiveram que ser avisadas. O fato é que, em 312, o paganismo era a religião oficial, o cristianismo, uma seita meramente tolerada, e dez anos depois era o contrário. A tolerância mudara de lado, dali a pouco é o paganismo que não é mais tolerado. De mãos dadas, a Igreja e o império perseguiram os últimos pagãos. O imperador gabava-se de ser o primeiro dos súditos de Jesus. Jesus, que, três séculos antes, fracassara em ser o rei dos judeus, tornou-se o rei de todo mundo, menos dos judeus.
A palavra “seita”, em terreno católico, tem um sentido pejorativo: é associada a coação e lavagem cerebral. No sentido protestante, que perdura no mundo anglo-saxão, uma seita é um movimento religioso ao qual o indivíduo adere por iniciativa própria, diferentemente de uma igreja, que é um meio em que se nasce, um conjunto de coisas em que se crê porque outros creram antes: pais, avós, todo mundo. Numa igreja, acreditamos no que todo mundo acredita, fazemos o que todo mundo faz, não questionamos. Nós, que somos democratas e amigos do livre-arbítrio, deveríamos pensar que uma seita é mais respeitável que uma igreja, mas não: questão de semântica. O que aconteceu com o cristianismo depois da conversão de Constantino é que a frase do apologista Tertuliano, “Ninguém nasce cristão, torna-se um”, deixou de ser verdadeira. A seita virou uma igreja.
A Igreja.
Essa Igreja envelheceu. Seu passado é carregado. Não faltam argumentos para criticá-la por ter traído a mensagem do rabi Jesus de Nazaré, a mais subversiva que jamais existiu na terra. Mas criticá-la por isso não é criticá-la por ter sobrevivido?
O cristianismo era um organismo vivo. Sua expansão transformou-o numa coisa absolutamente imprevisível, o que é normal: quem gostaria que uma criança, por mais maravilhosa que fosse, não mudasse? Uma criança que continua criança é uma criança morta, ou, no melhor dos casos, retardada. Jesus era a tenra infância desse organismo, Paulo e a Igreja dos primeiros séculos, sua adolescência rebelde e apaixonada. Com a conversão de Constantino, começa a longa história da cristandade no Ocidente, ou seja, uma vida adulta e uma carreira profissional feita de pesadas responsabilidades, grandes êxitos, poderes imensos, cumplicidades e erros vergonhosos. O Iluminismo e a modernidade decretam sua aposentadoria. A Igreja perdeu o interesse, está manifestamente superada, e é difícil dizer se sua longevidade, da qual somos testemunhas mais que indiferentes, tende mais para a decrepitude rabugenta ou para a sabedoria luminosa que, eu em todo caso, desejamos para nós ao pensarmos na própria velhice. Conhecemos tudo isso na escala de nossa vida. Será que o adulto que faz uma grande carreira no mundo traiu o adolescente que ele foi? Será que faz sentido erigir a infância em ideal e passar a vida lastimando a perda da inocência? Claro, se Jesus pudesse ver a igreja do Santo Sepulcro em Jerusalém, e o Sacro Império Romano Germânico, e o catolicismo, e as fogueiras da Inquisição, e os judeus massacrados porque mataram o Senhor, e o Vaticano, e a condenação dos padres operários, e a infalibilidade pontifícia, e também mestre Eckhart, Simone Weil, Edith Stein, Etty Hillesum, ficaria pasmo. Mas qual criança, se desdobrássemos à sua frente seu futuro, se pudesse compreender de verdade o que ela sabe desde muito cedo de maneira puramente abstrata, que um dia ela será velha, velha como essas velhas que espetam quando as beijamos, qual criança não ficaria boquiaberta?
O que mais me espanta não é a Igreja ter se afastado tanto do que era na origem. Ao contrário, é que, mesmo não conseguindo, ela se atribua como ideal ser-lhe fiel. O que estava na origem nunca foi esquecido. Nunca deixaram de reconhecer sua superioridade, de procurar um retorno como se a verdade estivesse lá, como se o que subsistisse do bebê fosse a melhor parte do adulto. Ao contrário dos judeus, que projetam a consumação no futuro, ao contrário de Paulo, que, muito judeu nisso, preocupava-se pouco com Jesus e só pensava no crescimento orgânico e contínuo de sua minúscula igreja, que devia englobar o mundo inteiro, a cristandade situa sua idade de ouro no passado. Igual aos mais virulentos de seus críticos, ela pensa que seu momento de verdade absoluta, depois do qual as coisas só degringolaram, são esses dois ou três anos em que Jesus pregou na Galileia e depois morreu em Jerusalém, e a Igreja, como ela própria confessa, só está viva quando se aproxima disso.
5
No fim, as coisas entram nos eixos. Não embarquei no cruzeiro São Paulo, melhor assim, mas nos últimos anos meus livros me valeram inúmeras cartas de cristãos — cristãs, principalmente. Entrei em contato com algumas, que me veem como uma espécie de cúmplice: isso me agrada.
Uma delas reagia a Limonov. Ao capítulo de Limonov em que, canhestramente, tento dizer alguma coisa sobre o fato evidente de que a vida é injusta e os homens, desiguais. Uns bonitos, outros feios, uns bem-nascidos, outros miseráveis, uns brilhantes, outros obscuros, uns inteligentes, outros burros… Será que a vida é assim e pronto? Será que aqueles a quem isso escandaliza são pura e simplesmente, como pensam Nietzsche e Limonov, pessoas que não amam a vida? Ou será que podemos ver as coisas de outro ângulo? Eu falava de duas maneiras de ver as coisas de outro ângulo. A primeira é o cristianismo: a ideia de que, no Reino, que certamente não é o além mas a realidade da realidade, o menor é o maior. A segunda está contida num sutra budista que Hervé me mostrou, que citei não uma, mas duas vezes, e que um número surpreendente de leitores de Limonov compreendeu ser o cerne do livro, a frase que merecia ser guardada e trabalhada em segredo, em seus corações, quando as quinhentas páginas em que ela está incrustada há muito tivessem sido apagadas de suas memórias: “O homem que se julga superior, inferior ou igual a outro homem não compreende a realidade”.
Minha correspondente me dizia: “Esse problema, eu conheço bem. Ele me atormenta desde criança. Lembro-me de ter tomado consciência dele quando uma senhora catequista nos exortou a ‘sermos bonzinhos’ com os outros, porque para alguns um simples sorriso pode ser muito importante. Fiquei completamente desesperada ao pensar que eu fazia parte dessa categoria de sub-humanos: aqueles a quem se sorri para ser bonzinho. Em outra ocasião, na leitura da missa, foi uma passagem de uma carta de São Paulo que começava: ‘Nós, que somos tão fortes…’. Pensei: isso não é para mim, eu não sou forte, não faço parte da metade boa da espécie. Isso é para dizer que eu conheço esse problema de hierarquia ao que o senhor se refere — talvez não do mesmo ponto de vista que o senhor. Mas tenho uma solução a lhe propor. Ela está ao alcance da mão. Ela se acha, bastante concretamente, no fundo da bacia em que o senhor terá os pés lavados e lavará os de um outro, se possível de um deficiente”.
Cumpria entender literalmente: aquela jovem mulher estava me convidando, para meu progresso moral e espiritual, a lavar pés de deficientes e ter os meus lavados — quer dizer, de um jeito ou de outro, o negócio mais enfática e, quase, obscenamente católico possível de se imaginar. Ao mesmo tempo, o tom de seu e-mail era simpático, inteligente. Ela tinha consciência da estranheza da coisa e, com uma ironia amistosa, antecipava meu inevitável gesto de recuo. Respondi que pensaria no assunto.
Dois anos mais tarde, chega um novo e-mail. Bérengère, minha correspondente, queria saber se eu havia pensado e, se depois de pensar, a experiência me seduzia. Na eventualidade de eu não ter à disposição pés suficientemente malformados, ela me passaria alguns endereços.
Eu estava prestes a terminar este livro e até me sentia, juro, satisfeito. Pensava: aprendi muitas coisas escrevendo-o, aquele que o ler aprenderá muito também, e essas coisas lhe darão o que pensar: fiz um bom trabalho. Ao mesmo tempo, uma sombra me atormentava: a de ter passado à margem do essencial. Com toda a minha erudição, toda a minha seriedade, todos os meus escrúpulos, de estar redondamente enganado. Evidentemente, o problema quando tocamos nessas questões é que a única maneira de não nos enganar redondamente seria pender para o lado da fé — ora, isso eu não queria, continuo não querendo. Mas quem sabe? Era hora, talvez, de dizer alguma coisa que eu não tinha dito, ou mal, e, talvez, sem o saber, Bérangère voltava para me puxar pela manga a fim de que eu não enviasse meu livro para Paul, meu editor, sem ter vislumbrando essa alguma coisa.
6
E assim nos vemos numa sala de fazenda restaurada, sob um crucifixo e — surpresa — uma grande reprodução do Filho pródigo de Rembrandt, com cerca de quarenta cristãos distribuídos em grupos de sete. Estão sentados em círculos, no meio dos quais foram dispostos bacias, jarros, toalhas, e todo mundo se prepara para lavar os pés uns dos outros.
O retiro começou na véspera, pude conhecer o meu grupo. Compõe-se, além de mim, de um diretor de escola da região dos Vosges, de uma voluntária do Secours Catholique, de um diretor de recursos humanos confrontado com a violência das demissões que ele tem como tarefa acompanhar, de uma cantora lírica e de um casal de aposentados, membros das equipes de Notre-Dame — eu conhecia esses grupos de oração, aos quais pertenciam meus ex-sogros e um dos visitantes de presídio que amparavam Jean-Claude Romand. Todos, inclusive eu, estão vestidos nesse estilo mais ou menos excursionista que os católicos apreciam. Posso estar enganado, mas não me dão a impressão de serem daqueles católicos que desfilam contra o casamento gay e o excesso de imigrantes. Imagino-os mais ajudando clandestinos analfabetos e preenchendo formulários para eles: católicos de esquerda, defensores dos fracos, pessoas de boa vontade. Dois deles são frequentadores contumazes e agem como íntimos dos que moram aqui: assistentes voluntários e, sobretudo, pessoas deficientes. Aprendi ao chegar: aqui se diz “pessoas deficientes” e não “deficientes”, e, embora se possa tachar isso de politicamente correto, de minha parte nada tenho a lhes censurar de tal forma está claro que o laço se dá realmente de pessoa a pessoa e de igual para igual. Algumas dessas pessoas são totalmente dependentes: encolhidas numa cadeira de rodas, alimentadas na boca, só se exprimindo por grunhidos guturais. Outras, menos prejudicadas, vão e vêm, botam a mesa, comunicam-se à sua maneira, como esse sujeito na casa dos cinquenta anos que, de manhã à noite, repete incansavelmente estas três palavras: “o pequeno Patrick” — e, me lembrando desse detalhe, me arrependo de não lhe haver perguntado quem era o pequeno Patrick: ele mesmo ou algum outro, e então quem?
Tudo isso começou há exatamente cinquenta anos. Um canadense chamado Jean Vanier procurava seu caminho. Fora para a guerra muito jovem, na Marinha inglesa, serviu em navios, estudou filosofia. Queria ser feliz e viver de acordo com o Evangelho — isto, ele estava convencido, sendo a condição daquilo. Todo mundo tem no Evangelho uma frase que lhe é especialmente destinada, a sua estava em Lucas: é aquela sobre o banquete ao qual Jesus aconselha a não convidar seus amigos ricos, nem os membros de seu clã, mas os mendigos, os estropiados, os degenerados que cambaleiam na rua e que evitamos e ninguém evidentemente nunca convida. Se fizeres isso, promete Jesus, serás feliz: o nome disso é beatitude.
Próximo à aldeia do Oise onde morava Jean Vanier, havia um hospital psiquiátrico — que ainda chamavam de hospício. Um verdadeiro hospício, feito não para acolher as pessoas que surtam momentaneamente, mas para confinar os pacientes sem possibilidade de tratamento. Aqueles que os nazistas, leitores consequentes de Nietzsche, achavam misericordioso matar e que nossas sociedades mais brandas limitam-se a afastar, nas instituições fechadas onde eles são cuidados a minima. Os que babam, os que uivam como se fossem morrer, os emparedados para sempre em si mesmos. Estes, certamente, não são convidados a lugar nenhum, mas Jean Vanier os convidou. Conseguiu que lhe confiassem dois desses doentes, para que vivessem com ele não como se vive numa instituição, mas numa família. Junto com Philippe e Raphaël, eram esses seus nomes, em sua casinha de Trosly, na orla da floresta de Compiègne, ele fundou uma família: a primeira comunidade de l’Arche. Cinquenta anos mais tarde, há pelo mundo cento e cinquenta comunidades de l’Arche, cada uma delas agrupando cinco ou seis pessoas deficientes mentais e o mesmo número de cuidadores. Uma pessoa por pessoa. Eles preparam as refeições, fazem trabalhos manuais, é uma vida muito simples e comunitária. Os que nunca irão se curar não se curam, mas alguém fala com eles, toca seus corpos, diz-lhes que são importantes, e isso até os mais feridos entendem, e alguma coisa neles começa a viver. Essa alguma coisa, Jean Vanier chama de Jesus, mas não obriga ninguém a agir como ele. Quando não viaja de uma comunidade a outra, ele continua em Trosly, no seio da comunidade originária. Às vezes promove retiros aqui, como este no qual Bérengère me aconselhou a me inscrever. A coisa consiste em missas cotidianas, que me entediam, em cânticos religiosos, que me irritam, em silêncio, que me convém, e em escutá-lo, a ele, Jean Vanier. É um homem muito velho agora, muito alto, muito atento, muito doce, visivelmente muito bom. Sob seus traços não é difícil distinguir seu santo padroeiro, o evangelista João. Esse evangelista João, fosse João, o apóstolo, ou João, o antigo, judeu ou grego, me preocupei muito com isso ao escrever meu livro, agora que o terminei estou pouco me lixando, que importância isso tem? Lembro-me apenas da frase que, já ido em anos, em Éfeso, ele repetia o dia inteiro, como o pequeno Patrick: “Meus filhinhos, amai-vos uns aos outros”.
7
O evangelista João conta o que Jean Vanier, por sua vez, nos conta esta noite, enquanto aguardamos pacientemente diante de nossas bacias: Jesus acaba de ressuscitar Lázaro, cada vez mais gente o toma pelo Messias. Aclamaram-no, quando ele chegou a Jerusalém, lançando ramos de palmeiras à sua passagem. Embora tenha feito questão de entrar na cidade sagrada no lombo de um burrico e não no de um cavalo majestoso, pressentimos que coisas prodigiosas estão para acontecer. Três dias depois, os três dias que separam o Domingo de Ramos da Quinta-feira Santa, ele janta com os Doze na famosa sala do andar superior. Num certo momento da refeição, ele se levanta e, conservando apenas uma toalha na cintura, tira seu manto. Sem uma palavra, despeja água na bacia para lavar os pés de seus discípulos, depois enxugá-los com as pontas da toalha amarrada na cintura. É a tarefa de um escravo: os discípulos estão atônitos. Ele se ajoelha diante de Pedro, que protesta: “‘Tu, Senhor? Lavar-me os pés?’ ‘O que faço, não compreendes agora, mas o compreenderás mais tarde.’ ‘Jamais me lavarás os pés!’, exclama Pedro”.
Não é a primeira vez que Pedro não entende nada, nem a última. Aquele lava-pés é demais para ele. Apesar das advertências de Jesus, os acontecimentos dos últimos dias o persuadiram de que a coisa acontecera, de que ele e os demais haviam apostado no caminho certo, de que Jesus tomaria o poder e se tornaria o chefe. Um chefe, a gente venera, coloca num pedestal. Mas admiração não é amor. O amor quer a proximidade, a reciprocidade, a aceitação da vulnerabilidade. O amor sozinho não diz o que passamos a vida inteira a dizer, todos, o tempo todo, a todo mundo: “Valho mais que você”. O amor tem outras maneiras de se reconfortar. Outra autoridade, que não vem de cima, mas de baixo. Nossas sociedades, todas as sociedades humanas, são pirâmides. No topo, estão os importantes: ricos, poderosos, bonitos, inteligentes, aqueles para quem todo mundo olha. No meio, o povão, que é maioria e para quem ninguém olha. E depois, bem na base, aqueles que até o povão aproveita para olhar do alto: os escravos, os degenerados, os menos que nada. Pedro é como todo mundo: gosta de ser amigo dos importantes, não dos menos que nada, e eis que Jesus ocupa bastante concretamente o lugar do menos que nada. Não dá mais para aguentar. Pedro encolhe os pés para que Jesus não possa lavá-los, diz: “Jamais”. Jesus, com firmeza, responde: “Se eu não te lavar, não terás parte comigo, não podes ser meu discípulo”, e Pedro cede, exagerando como sempre: “Que seja”, diz ele, “mas então não apenas meus pés, mas também as mãos e a cabeça!”.
Depois de lavar os pés de todos, Jesus se levanta, veste novamente seu manto, volta ao seu lugar. Diz: “Vós me chamais o Mestre e o Senhor e dizeis bem, pois eu o sou. Se, portanto, eu, o Mestre e o Senhor, vos lavei os pés, também deveis lavar os pés uns aos outros. Dei-vos o exemplo para que, como eu vos fiz, também vós o façais”.
“Felizes sereis”: isso também, diz Jean Vanier, é uma beatitude. Nas comunidades de l’Arche, evoca-se tal beatitude, que o evangelista é o único a reportar. Como sou um historiador incorrigível, penso com meus botões: em todo caso, não deixa de ser estranho que, o time inteiro dos Doze tendo testemunhado e participado de cena tão marcante, ele seja o único a registrá-la. O que Marcos, Mateus e Lucas registram é o pão e o vinho, “fareis isso em minha memória”, mas também rumino que as coisas poderiam ter tomado outro viés: que o sacramento central do cristianismo, em vez da eucaristia, poderia ser o lava-pés. O que é feito nos retiros de l’Arche seria feito diariamente na missa, o que não seria muito mais extravagante — a bem da verdade, até menos.
“Lembro-me”, continua Jean Vanier, “de quando deixei a direção de l’Arche, tirei um ano sabático como assistente numa das comunidades, bem pertinho daqui, e aquele de quem eu cuidava chamava-se Éric. Éric tinha dezesseis anos. Era cego, surdo, não conseguia falar nem andar, não tinha aprendido e jamais aprenderia a manter-se limpo. Sua mãe o havia abandonado quando ele nasceu, ele tinha passado a vida inteira no hospital, sem nunca interagir de verdade com ninguém. Nunca conheci pessoa tão angustiada. Tinha sido tão rejeitado, tão humilhado, todos os sinais que ele recebera lhe haviam de tal forma sugerido que ele era mau e não contava para ninguém que ele se fechara completamente em sua angústia. Tudo que ele conseguia fazer, às vezes, era gritar, emitir gritos agudos, durante horas, que me enlouqueciam. É terrível: eu chegava ao ponto de compreender esses pais que maltratam os filhos e até os matam. A angústia dele despertava a minha, e meu ódio. O que podemos fazer com alguém que grita assim? Como acessamos alguém tão inacessível? Impossível falar com ele, ele não ouve. Impossível apelar ao bom senso, ele não compreende. Mas é possível tocá-lo. É possível lavar seu corpo. Foi isso que Jesus nos ensinou a fazer na Quinta-feira Santa. Ao instituir a eucaristia, ele fala aos Doze, coletivamente. Porém, quando se ajoelha para lavar os pés de seus discípulos, é diante de cada um pessoalmente, chamando-o pelo nome, tocando sua carne, alcançando-o onde ninguém soube alcançá-lo. O fato de alguém tocá-lo e lavá-lo não irá curar Éric, mas não existe nada mais importante, para ele e para quem faz isso. Para quem faz: este é o grande segredo do Evangelho. É o segredo de l’Arche também: no começo, queremos ser bons, queremos fazer bem aos pobres, porém, aos poucos, pode levar anos, descobrimos que são eles que nos fazem bem, porque, mantendo-nos junto à sua pobreza, à sua fraqueza, à sua angústia, desnudamos nossa pobreza, nossa fraqueza e nossa angústia, que são as mesmas, que são as mesmas para todos, vocês sabem, e então começamos a nos tornar mais humanos.
“Agora, vão.”
Ele se levanta, vai juntar-se ao grupo no qual lhe reservaram um lugar. Nesse grupo, há uma adolescente com Síndrome de Down, Élodie, que, enquanto ele falava, não parou de circular pela sala, dando uns passinhos de dança bastante graciosos e exigindo carinhos de um ou outro, mas que, ao vê-lo ocupar seu lugar, também foi para o dela, ao seu lado. Ela esperava por esse momento, sabe como a coisa funciona, e tem o ar tão satisfeito, tão à vontade, quanto Pascal, o menino com Síndrome de Down que ajudava na missa do padre Xavier em seu pequeno chalé de Levron.
Tiramos sapatos e meias e arregaçamos a barra das calças. É o diretor de recursos humanos que começa. Ele se ajoelha diante do diretor de escola, despeja água morna da jarra sobre seus pés, esfrega-os um pouco — uns dez, vinte segundos, é relativamente longo, a impressão é de que luta contra a tentação de ir rápido demais e reduzir o ritual a algo puramente simbólico. Um pé, outro pé, que em seguida ele enxuga com a toalha. Depois é a vez do diretor de escola ajoelhar-se à minha frente, lavar meus pés antes que eu lave os da voluntária do Secours Catholique. Olho aqueles pés, não sei o que penso. É realmente muito estranho lavar pés de desconhecidos. Ocorre-me uma bela frase de Emmanuel Levinas, que Bérangère citou para mim num e-mail, sobre o rosto humano, o qual, a partir do momento em que o vemos, proíbe matar. Ela dizia: sim, mas isso vale mais ainda para os pés: os pés são uma coisa ainda mais pobre, ainda mais vulnerável, é realmente o que existe de mais vulnerável: a criança dentro de cada um de nós. E, mesmo achando um pouco embaraçoso, acho bonito que pessoas se reúnam para isso, para ficar o mais perto possível do que há de mais pobre e vulnerável no mundo e neles mesmos. Penso comigo que o cristianismo é isso.
Ainda assim, não gostaria de ser tocado pela graça e, por ter participado de um lava-pés, voltar para casa convertido como vinte quatro anos atrás. Afortunadamente, não acontece nada disso.
8
No dia seguinte, domingo, depois do almoço, o retiro chega ao fim. Antes de nos separarmos, de voltar cada um para sua casa, todo mundo entoa um cântico tipo “Jesus é meu amigo”. A bondosa senhora que cuida de Élodie, a adolescente com Síndrome de Down, faz o acompanhamento ao violão e, como é um cântico alegre, todos se põem a bater mãos e pés e a se requebrar como numa boate. Nem com toda a boa vontade do mundo consigo me juntar sinceramente a momento de tão intenso kitsch religioso. Cantarolo vagamente, com a boca fechada, movo-me feito um pêndulo, espero terminar. Subitamente, ao meu lado, surge Élodie, que puxou uma espécie de quadrilha. Ela se planta à minha frente, sorri, atira os braços para o alto, ri abertamente, e, acima de tudo, olha para mim, me incentiva com o olhar, e há tamanha alegria nesse olhar, alegria tão cândida, confiante e sincera, que começo a dançar como os outros, a cantar que Jesus é meu amigo e, cantando, dançando, olhando para Élodie, que agora escolheu outro parceiro, lágrimas me vêm aos olhos e sou forçado a admitir que nesse dia, por um instante, entrevi o que é o Reino.
9
De volta em casa, antes de guardar em suas caixas de papelão os cadernos contendo meus comentários sobre João, folheio-os pela última vez. Vou ao final. Em 28 de novembro de 1982, copiei as últimas frases do Evangelho:
“Este é o discípulo [que Jesus amava] que dá testemunho dessas coisas e foi quem as escreveu; e sabemos que o seu testemunho é verdadeiro. Há, porém, muitas outras coisas que Jesus fez. Se fossem escritas uma por uma, creio que o mundo não poderia conter os livros que se escreveriam.”
Anotei a seguir: “Jesus fez ainda muitas outras coisas: as que ele faz todos os dias, em nossas vidas, quase sempre à nossa revelia. Testemunhar algumas dessas coisas e escrever um testemunho verdadeiro, eis, creio, minha vocação. Permite, Senhor, que eu lhe seja fiel, a despeito das emboscadas, das omissões, dos afastamentos inevitáveis. Eis o que te peço no fim destes dezoito cadernos: fidelidade”.
Este livro, que termino aqui, escrevi-o de boa-fé, mas o que ele tenta abordar é tão maior do que eu que essa boa-fé, sei disso, é irrisória. Escrevi-o atrapalhado pelo que sou: um inteligente, um rico, um homem do topo: inúmeras desvantagens para entrar no Reino. Em todo caso, tentei. E o que me pergunto, no momento de deixá-lo, é se ele trai o jovem que fui e o Senhor no qual esse jovem acreditou, ou se, à sua maneira, lhes permaneceu fiel.
Eu não sei.
 
(Emmanuel Carrère - O Reino)

publicado às 18:13


OS FILHOS DA SERPENTE

por Thynus, em 25.12.16
1 Ora, a serpente era o mais astuto de todos os animais selvagens que o Senhor Deus tinha feito. E ela perguntou à mulher: "Foi isto mesmo que Deus disse: 'Não comam de nenhum fruto das árvores do jardim'?"
2 Respondeu a mulher à serpente: "Pode­mos comer do fruto das árvores do jardim,
3 mas Deus disse: 'Não comam do fruto da árvore que está no meio do jardim, nem toquem nele; do contrário vocês morrerão' ".
4 Disse a serpente à mulher: "Certamente não morrerão!
5 Deus sabe que, no dia em que dele comerem, seus olhos se abrirão, e vocês, como Deus, serão conhecedores do bem e do mal".
6 Quando a mulher viu que a árvore parecia agradável ao paladar, era atraente aos olhos e, além disso, desejável para dela se obter discernimento, tomou do seu fruto, comeu-o e ­o deu a seu ma­rido, que comeu também.
7 Os olhos dos dois se abriram, e perceberam que estavam nus; então juntaram folhas de figueira para cobri­r-se.
 
Foi o próprio Deus que ao fim de sua obra se disfarçou de serpente indo se deitar sob a árvore do conhecimento: assim ele se restabeleceu do fato de ser Deus... Ele havia feito tudo demasiadamente belo... O diabo é apenas a ociosidade de Deus a cada sétimo dia...
 
 
 
Segundo evidências antropológicas e arqueológicas, os antigos caçadores-coletores eram animistas, isto é, não acreditavam na existência de uma distância necessária entre os humanos e os outros animais. O mundo — isto é, o vale local e as cadeias de montanhas ao redor — pertencia a todos os seus habitantes, e todos seguiam um conjunto de regras comum. Essas regras envolviam uma negociação incessante entre todos os seres aos quais concerniam. As pessoas falavam com animais, árvores e pedras, e também com fadas, demônios e fantasmas. Dessa rede de comunicações emergiam os valores e as normas que comprometiam igualmente humanos, elefantes, carvalhos e assombrações.7
Essa visão animista do mundo ainda orienta algumas comunidades de caçadores-coletores que sobreviveram na era moderna. Uma delas é representada pelo povo Nayaka, que vive nas florestas tropicais no sul da Índia. O antropólogo Danny Naveh, que estudou os Nayaka durante vários anos, relata que, quando um deles caminha pela floresta e depara com um animal perigoso, como um tigre, uma serpente ou um elefante, dirige-se ao animal e diz: “Você vive na floresta. Eu também vivo na floresta. Você veio até aqui para comer, e eu vim até aqui para juntar raízes e tubérculos. Não vim aqui para machucá-lo”.
Uma vez um Nayaka foi morto por um elefante macho que era chamado de “o elefante que sempre caminha sozinho”. Os Nayaka recusaram-se a ajudar os funcionários do departamento florestal indiano na captura do animal. Eles explicaram a Naveh que aquele elefante era muito chegado a outro elefante macho com o qual sempre andava. Um dia o departamento florestal capturou esse segundo elefante e o “elefante que sempre caminha sozinho” passou a demonstrar um comportamento raivoso e violento. “Como se sentiria se sua esposa fosse tirada de você? Foi exatamente isso que aquele elefante sentiu. Os dois às vezes se separavam à noite, cada um seguindo o próprio caminho… mas pela manhã tornavam a se reunir. Naquele dia, o elefante viu seu camarada cair, estirado no chão. Se os dois estavam sempre juntos e alguém atira em um deles, como o outro deveria se sentir?”8
Essa postura animista causa estranheza em muitos povos industrializados. A maioria de nós, de maneira automática, considera os animais essencialmente diferentes e inferiores. Isso decorre do fato de nossas tradições mais antigas terem sido criadas milhares de anos após o fim da era dos caçadores-coletores. O Antigo Testamento, por exemplo, foi escrito no primeiro milênio a.C., e suas histórias mais antigas refletem a realidade do segundo milênio anterior a Cristo. Mas no Oriente Médio a era dos caçadores-coletores havia terminado mais de 7 mil anos antes. Não surpreende, portanto, que a Bíblia rejeite crenças animistas e que sua única história com essa característica apareça logo no início, como uma ameaça de calamidade. A Bíblia é um longo livro repleto de milagres, eventos assombrosos e maravilhas. Entretanto, a única ocasião em que um animal entabula uma conversa com um ser humano é quando a serpente incita Eva a comer do fruto proibido do conhecimento. (A mula de Bil’am também pronuncia algumas palavras, porém ela está apenas transmitindo uma mensagem de Deus.)
No Jardim do Éden, Adão e Eva viveram como coletores. A expulsão do Paraíso tem uma semelhança notável com a Revolução Agrícola. Em vez de permitir a Adão que continue a coletar frutas silvestres, um Deus irado o condena a “comer o pão com o suor de seu rosto”. Talvez não seja coincidência, então, o fato de os animais na Bíblia só falarem com humanos na era pré-agrícola do Éden. Que lições a Bíblia extrai desse episódio? Que não se devem dar ouvidos a serpentes e que geralmente é melhor evitar falar com animais e plantas. Isso só pode levar ao desastre.
 
Paraíso perdido (Capela Sistina). A serpente, que ostenta torso e cabeça humanos, dá início a toda a sucessão de eventos. Enquanto os dois primeiros capítulos do Gênesis são dominados por monólogos divinos (“e Deus disse… e Deus disse… e Deus disse…”), no terceiro capítulo finalmente temos um diálogo — entre Eva e a serpente (“a serpente disse para a mulher… e a mulher disse para a serpente…”). Essa conversa singular entre um humano e um animal leva à queda da humanidade e à nossa expulsão do Éden.
Mas a história bíblica tem camadas mais profundas e mais antigas de significado. Na maioria das línguas semitas “Eva” significa “serpente” ou mesmo “serpente fêmea”. O nome de nossa mãe bíblica ancestral oculta um mito animista arcaico, segundo o qual as serpentes não são nossas inimigas, e sim nossas antepassadas.(Howard N. Wallace, “The Eden Narrative”, Harvard Semitic Monographs 32 (1985) Muitas culturas animistas acreditam que os humanos descendem de animais, inclusive de serpentes e outros répteis. A maior parte dos aborígines australianos acreditava que a Serpente Arco-Íris era a responsável pela criação do mundo. Os povos Aranda e Dieri sustentavam que suas tribos especificamente eram originárias de lagartos ou serpentes primordiais que foram transformados em humanos.(David Adams Leeming e Margaret Adams Leeming, Encyclopedia of Creation Myths (Santa Barbara: ABC-Clio, 1994), p. 18; Sam D. Gill, Storytracking: Texts, Stories, and Histories in Central Australia (Oxford: Oxford University Press, 1998); Emily Miller Bonney, “Disarming the Snake Goddess: A Reconsideration of the Faience Figures from the Temple Repositories at Knossos”, Journal of Mediterranean Archaeology 24:2 (2011), pp. 171-90; David Leeming, The Oxford Companion to World Mythology (Oxford e Nova York: Oxford University Press, 2005), p. 350.) Na verdade, os ocidentais modernos também acham que evoluíram de répteis. Nosso cérebro é construído em volta de um cerne reptiliano, e a estrutura de nossos corpos corresponde essencialmente à de répteis modificados.
Os autores do livro do Gênesis podem ter preservado um resquício de crenças animistas arcaicas ao escolher o nome de Eva, mas tiveram grande cuidado em ocultar outros traços. O Gênesis diz que, em vez de descender de serpentes, os humanos foram criados divinamente a partir de matéria inanimada. A serpente não é nosso progenitor: ela nos seduz a nos rebelarmos contra nosso Pai celestial. Os animistas consideram os humanos somente outro tipo de animal, ao passo que a Bíblia alega que os humanos são uma criação única e que toda tentativa de reconhecer o animal em nós acaba por negar o poder e a autoridade de Deus. De fato, quando humanos modernos descobriram que efetivamente descendiam de répteis, rebelaram-se contra Deus e deixaram de ouvi-Lo — e até mesmo de acreditar em Sua existência.
 
(Yuval Noah Harari - Homo Deus, uma breve história do amanhã)

publicado às 15:43


FELIZ NATAL A TODOS!

por Thynus, em 23.12.16
 
 

Poucos escreveram tão bem e com tanta profundidade sobre o Natal, sobre o Menino Jesus como o nosso grande poeta Fernando Pessoa: ”Ele é a eterna criança, o Deus que faltava. Ele é o divino que sorri e que brinca. É a criança tão humana que é divina”.
Mais tarde esse Menino foi transformado no Santa Clau (São Nicolau) e, finalmente, no Pai Natal, em Portugal, ou Papai Noel, para os brasileiros. Não têm grande importância os nomes, porque de alguma maneira, a magia do Natal, o espírito de bondade, de proximidade e de Presente divino está lá em qualquer uma dessas figuras que personificam o Natal.
Há alguns anos, uma menina de 8 anos, Virgínia, escreveu a Francis Church, então editorialista do jornal The New York Sun, perguntando-lhe: “Prezado Editor: diga-me com sinceridade, o Pai Natal existe?” E sabiamente o editorialista respondeu:
“Sim, Virgínia, o Pai Natal existe. Isto é tão verdade como a existência do amor, da generosidade e da devoção. E tu sabes bem que tudo isto existe de verdade, trazendo mais beleza e alegria à nossa vida. Como seria triste o mundo se não houvesse o Pai Natal. Seria tão triste quanto não existir Virgínias como tu. Não haveria a fé das crianças, nem a poesia e a fantasia que tornam a nossa existência leve e bonita. Mas para isso temos que aprender a ver com os olhos do coração e do amor. Então percebemos que não há nenhum sinal de que o Pai Natal não exista. Se existe o Pai Natal? Graças a Deus ele vive e viverá sempre que houver crianças grandes e pequenas que aprenderam a ver com os olhos do coração.”
Todos nós, quando crianças, vivemos essa magia do Natal e hoje, já adultos, resta-nos apenas a saudade desses natais passados... Todos nós crescemos e fomos educados a olhar com os olhos da razão e esquecemo-nos de olhar com os olhos do coração. Por isso somos frios. QUE FIZÉMOS DA MAGIA DO NOSSO NATAL DE CRIANÇAS? Natal é tempo de resgatar os direitos do coração que é caloroso: deixar-nos comover com as nossas crianças, permitir que sonhem e enternecermo-nos diante da Deus-Menino que sentiu prazer e alegria ao fazer-se um de nós pela encarnação.
 

Boas Festas a todos com muita saúde, paz e alegria! Termino com Fernando Pessoa: “não vemos o que vemos, vemos o que somos”... Reaprendamos a olhar com os olhos do coração. Que a magia do Natal esteja sempre presente em cada dia da nossa existência. Então, o Natal não será apenas um dia, mas todos os dias!

publicado às 15:35


Oi, como você está, tudo bem?

por Thynus, em 22.12.16
Estudos realizados pela Faculdade de Ciências da Saúde de Harvard, e por diversas outras notáveis instituições, demonstram que nós decidimos se gostamos ou não de uma pessoa durante os primeiros dois segundos em que a conhecemos. Fazemos avaliações inconscientes de seus sinais não verbais com base em nossa segurança emocional e física: “Sinto-me/ não me sinto segura com você” ou “Confio/ não confio em você”. Essas avaliações nos levam a fazer julgamentos rápidos – certos ou errados – das pessoas que encontramos. Quando gostamos delas, costumamos ver o melhor nelas; quando não gostamos, veremos o pior.
Como alguns comportamentos fazem as pessoas se sentirem confortáveis e outros as colocam na defensiva, é possível medir o controle de como as pessoas reagem a você naqueles primeiros breves momentos. Pessoas charmosas olham nos olhos ao conhecer alguém pela primeira vez; pessoas alarmantes evitam contato visual ou olham tão rapidamente que parecem inquietas ou nervosas, e deixam todos desconfortáveis. Pessoas charmosas sorriem quando encontram alguém; pessoas alarmantes têm uma expressão séria ou preocupada que provoca um tom perturbador. Pessoas charmosas possuem uma linguagem corporal aberta que é um convite a aproximação; pessoas alarmantes possuem uma linguagem corporal fechada que diz: “Saia daqui, eu tenho coisas melhores para fazer”.
 

Use a linguagem corporal para inspirar confiança

Vou descrever uma cena que aconteceu no inverno passado, na estação de esqui que eu frequento. Os participantes eram Michelle, amiga da minha filha mais nova, e Brad, esquiador regular na estação. Michelle trabalhava na loja da estação e Brad, cliente frequente, se sentiu atraído por ela e tinha certeza de que ela também estava de olho nele. Ele queria se aproximar dela e, para isso, teve a ideia de se inscrever em um curso introdutório de snowboarding, que é um tipo de surf na neve. Vamos observar a linguagem corporal dos dois enquanto descrevemos a cena.
Brad se senta de frente para Michelle na mesa de inscrição, que, na verdade, é uma mesa redonda pequena com algumas cadeiras. Enquanto Michelle organiza os papéis, Brad coloca os braços em volta dos ombros, morde o lábio um pouco, passa a língua no lábio inferior e olha para o chão, ocasionalmente olhando de relance para Michelle.
Michelle organiza seus papéis e olha para Brad de forma direta e aberta, com os cotovelos sobre os braços da cadeira, os antebraços levemente repousados e descruzados sobre a mesa. Ela olha Brad nos olhos e sorri enquanto explica o pacote do curso de snowboarding, faz algumas perguntas e anota as respostas. Brad cruza os braços na frente do peito. Seus olhos passeiam pela sala, raramente encontram os de Michelle.
Enquanto ela continua explicando os detalhes, Brad coloca seu cotovelo direito sobre a mesa e gira o corpo um pouco para a direita, em oposição a Michelle. Ele olha para ela de relance e frequentemente desvia o olhar. Ela instintivamente gira seu corpo na mesma direção de Brad e, em um movimento bastante natural, coloca seu cotovelo esquerdo sobre a mesa. Eles são quase imagens refletidas em um espelho.
Brad parece relaxar e começa a prestar mais atenção em Michelle. Depois de alguns minutos, Michelle se acomoda em sua cadeira e encara Brad de uma forma direta. Ele faz o mesmo, mas coloca a mão direita debaixo de sua axila e cobre a boca com a mão esquerda. Ainda assim, agora ele olha para ela abertamente e sorri um pouco. Alguns minutos depois, Michelle imita a posição do braço e da mão de Brad e depois se inclina para frente e diz, de forma clara, calma e entusiástica: “O curso começa no próximo sábado às nove”. Ela descruza os braços e os repousa novamente sobre a mesa. Brad faz o mesmo, sorri e pergunta: “Depois de todos estes anos esquiando, você acha que conseguirei manejar uma prancha na neve?”
Eles se olham e sorriem. “Claro que sim,” Michelle diz, “e eu acho que você vai se divertir muito.”

O QUE ACONTECEU?

Muita coisa aconteceu nessa curta cena e vamos tratar de alguns pontos com mais detalhes em outro capítulo, mas basicamente Brad começou de forma alarmante, utilizando uma linguagem corporal fechada. Michelle foi charmosa e utilizou uma linguagem corporal aberta. Finalmente sua abertura desarmou Brad, fazendo-o relaxar. Michelle utilizou os três principais comportamentos que são essenciais quando se encontra um potencial par ou, igualmente, qualquer pessoa com a qual você quer ter um relacionamento produtivo:

  1. Olhe a pessoa nos olhos.
  2. Sorria.
  3. Abra sua linguagem corporal (falaremos mais sobre esse tema a seguir).
Vamos observar estes comportamentos individualmente.

Janelas para a alma

Como você se sente quando entra em uma loja ou em um banco e o funcionário nem olha para você? Ou quando conhece alguém e a pessoa não percebe você e olha por cima do seu ombro? A resposta é simples: você se sente desconfortável e provavelmente forma uma impressão negativa da pessoa. Isso acontece por que, quando não há contato visual, falta confiança e respeito.


Adquira o hábito de observar a cor dos olhos das pessoas quando as conhecer.


Nascemos para fazer contato visual; essa é a base de todas as habilidades sociais. De acordo com uma nova pesquisa realizada pela Dra. Teresa Farroni, do Centro de Desenvolvimento Cerebral e Cognitivo na Faculdade de Birkbeck, na Inglaterra, bebês com apenas dois dias de vida podem detectar quando alguém está olhando diretamente para eles. Além disso, quando eles completam quatro meses de vida, demonstram sensivelmente maior interesse nos rostos que apresentam um olhar direto do que naqueles que olham para outro lado. O contato visual ajuda a estabelecer uma ligação humana e desenvolve as habilidades sociais, além de ser absolutamente essencial para construir relacionamentos. Brad não conseguiu olhar para Michelle até se sentir confortável e isso limitou sua autoconfiança e sua habilidade de adquirir confiança e respeito. Michelle tentou fazer contato visual com Brad imediatamente e isso melhorou significativamente sua habilidade de se conectar.
O contato visual é um contato íntimo e, quando usado da forma adequada, pode criar uma imensa sintonia e intimidade sexual. A forma mais fácil de aprender a fazer contato visual de forma consistente é adquirir o hábito de observar a cor dos olhos das pessoas quando as conhecer. A cor em si não é importante, mas esse é um bom artifício para criar um novo hábito. Pratique na loja, no trabalho e na próxima vez que for a um restaurante. Pratique com todas as pessoas que você conhece até que se torne algo natural. Lembre-se, você nasceu para fazer contato visual.
 

Sorria e o mundo sorrirá com você

Nada diz: “Estou notando você” como o contato visual, e nada diz: “Estou feliz e confiante” como um sorriso. Um sorriso é sempre bom e ajuda a mostrar uma expressão melhor (literalmente!) ao mundo e, além disso, atua como um bombeamento para a serotonina neurotransmissora. Quando você sorri, contrai aproximadamente 14 músculos nos cantos da boca e ouvidos, o que faz que uma mensagem elétrica seja enviada ao seu cérebro, estimulando a liberação de serotonina e causando uma sensação de bem-estar. Vá em frente, experimente. Você se sentirá mais atraente, capaz e satisfeita.
Como bônus, um sorriso, assim como uma atitude, é contagiante: quando você sorri para alguém, certamente a pessoa sorrirá também e sentirá uma ótima injeção de serotonina animando seu sistema. Você acabou de fazer alguém se sentir bem. Não foi fácil?
Sei que parece algo básico, mas adquira o hábito de olhar as pessoas nos olhos e de sorrir para elas. Isso constrói pontes. Você conseguirá um serviço melhor, fará melhores amigos, se sentirá melhor consigo e se tornará mais atraente para potenciais pares.
Você se lembra de como mentalmente gritou a palavra “Ótimo!” três vezes seguidas no último capítulo? Agora diga em voz alta. Ao fazer isso, você será obrigada a contrair aqueles mesmos músculos do sorriso em volta do seu maxilar, o que fará a serotonina fluir. É um truque que eu aprendi quando trabalhava como fotógrafo de moda. Muitas modelos repetem essa palavra várias vezes para si, com convicção, quando necessitam dar um sorriso que pareça autêntico. Funciona. Portanto, da próxima vez que você encontrar alguém, diga “Ótimo!” bem-baixinho, três vezes, quando estiver se aproximando da pessoa. No momento em que chegar lá, estará sorrindo e se sentindo maravilhosa. Um aviso: pessoas que sorriem demais ou fazem muito contato visual são assustadoras e confusas. Não exagere.
 

O amplo vocabulário da linguagem corporal

Michelle e Brad, da loja de esqui, são retratos dos dois extremos da linguagem corporal: linguagem aberta e fechada. Michelle foi aberta: seus gestos não verbais sinalizaram cooperação, acordo, disposição, entusiasmo e aprovação. A linguagem corporal aberta diz: “Estou confortável com você.” A linguagem corporal de Brad, foi fechada e seu nervosismo se mostrou em seus gestos defensivos inconscientes. Seu corpo sinalizou resistência, frustração, ansiedade, teimosia, nervosismo e impaciência, independente do que ele possa realmente ter sentido no momento. A linguagem corporal fechada diz: “Estou desconfortável com você”.
 

Linguagem corporal aberta

A forma mais simples de pensar em uma linguagem corporal aberta e fechada é a imagem de que a linguagem corporal aberta expõe seu coração (isso é, a área do seu peito e do seu rosto) e é acolhedora. Ela demonstra confiança e diz: “Sim!”. A linguagem corporal fechada defende seu coração e, como você viu com Brad, pode fazer você parecer hostil, infeliz, irritada ou distante, independente de seus verdadeiros sentimentos. A linguagem corporal fechada diz: “Não!”.
Bebês são um ótimo exemplo de linguagem corporal aberta e fechada. Quando eles estão confortáveis, deitam-se de costas com uma linguagem corporal bem-aberta. Quando estão desconfortáveis, eles se fecham.
Se você quiser mostrar a alguém que é charmosa e não alarmante, deve se abrir sem pensar muito e antes de sequer dizer alguma coisa. Provavelmente a atitude que você escolher fará isso de qualquer forma. Atitudes do tipo “Oi!” são abertas, assim como a atitude acolhedora de Michelle. A linguagem corporal aberta inclui:

  • Manter braços e pernas descruzados;
  • Olhar para a pessoa com uma atitude física confortável;
  • Manter uma boa postura;
  • Inclinar-se levemente para frente, em direção à pessoa;
  • Manter as mãos abertas;
  • Manter os ombros relaxados;
  • Manter os movimentos lentos e relaxados;
  • Manter uma aura geralmente confortável.
Nenhum gesto é uma ilha
Gestos individuais são o vocabulário da linguagem corporal, assim como as palavras desta página são o vocabulário do livro. Da mesma forma, gestos individuais não carregam mais significado do que uma única palavra nesta página, quando isolada; somente quando você os combina com outros gestos e com uma determinada atitude é que começa a contar uma história. Além disso, um gesto fechado, como quando Brad colocou os braços em volta de seus ombros, poderia ter sido neutralizado se ele estivesse de frente para Michelle, olhando em seus olhos e sorrindo. Às vezes a linguagem corporal conta uma história diferente da que imaginamos: alguém cujos ombros estão tensos pode estar sentindo dor, e alguém que está de braços cruzados pode simplesmente estar sentindo frio!
 
Gestos abertos são calmos e deliberados. São feitos para ser em vistos. Quando combinada com expressões faciais abertas (bom contato visual e um sorriso), a linguagem corporal aberta sinaliza confiança, felicidade, aceitação e conforto, e envia uma mensagem de que as coisas estão indo bem.
Você pode melhorar seus sinais abertos por meio de suas roupas. Imagine passar meia hora em uma lanchonete tomando café com uma pessoa que não desabotoa o casaco. Um casaco ou uma jaqueta aberta (ou a própria remoção dessa vestimenta) expõe o coração, literal e simbolicamente, e mostra que você está relaxada.
Linguagem corporal aberta e gestos positivos chegam às pessoas, pois são a versão subconsciente de um bom abraço ou de uma conversa de coração para coração.

ATITUDE GENEROSA E DE CORAÇÃO PARA CORAÇÃO

A forma mais fácil e mais rápida de demonstrar uma linguagem corporal aberta e sinalizar generosidade é ficar de frente para a pessoa – literalmente, coração com coração. Pense nisso como se houvesse um refletor de luz no meio do seu peito, brilhando na outra pessoa.
Também é uma boa ideia deixar a pessoa ver que você não está escondendo nada em suas mãos – essa é uma preocupação instintiva que tem nos acompanhado desde os tempos dos homens das cavernas. Para deixar a pessoa confortável, posicione suas mãos de forma que ela possa vê-las.
 

Linguagem corporal fechada

Se a linguagem corporal aberta é como um abraço aconchegante, a linguagem corporal fechada é como ser menosprezada. Ela é defensiva e afasta as pessoas. Gestos fechados incluem:

  • Evitar o contato visual;
  • Cruzar os braços e/ou as pernas;
  • Fechar os punhos;
  • Girar o corpo em um ângulo em relação à outra pessoa;
  • Movimentar-se constantemente;
  • Cobrir a boca;
  • Mover-se de forma rígida ou brusca;
  • Manter uma aura geralmente desconfortável;
  • Usar óculos escuros.
Adquira o hábito de abrir sua linguagem corporal quando encontrar pessoas. Olhe para elas, observe a cor dos seus olhos (para se certificar de que esteja fazendo contato visual), sorria e faça seu coração brilhar para elas. Você ficará surpresa com a confiança que esses simples gestos inspirarão.
 

O próximo passo: conversar!

Muito bem, todos os sinais não verbais estão alinhados: sua atitude está ótima, você está vestida de uma forma que a faz sentir-se bem e parecer bem, e sua linguagem corporal está aberta. Agora chegou o momento de conversar.
Sem dúvida, a forma mais fácil de conhecer alguém é ser formalmente apresentada. Depois, a única coisa que você precisa fazer é estender a mão e dizer “Janet, é um prazer conhecer você”. Quem sabe apresentar duas pessoas normalmente diz algo que ajuda a iniciar uma conversa, como “Angie, este é Barry, nós vamos juntos ao trabalho todos os dias. Barry, esta é Angie. Ela é minha vizinha”. Essa apresentação fornece algumas informações com as quais se pode iniciar uma conversa, é como usar gravetos para fazer uma fogueira. Agora Angie pode dizer a Barry algo simples, como: “Então você trabalha no centro da cidade?” ou algo mais divertido, como: “Vocês dois vão juntos para o trabalho? Quem escolhe as músicas para ouvir no carro?”. Se Barry iniciar a conversa, pode simplesmente perguntar há quanto tempo Angie mora naquela região ou fazer uma brincadeira descontraída sobre as habilidades de seu anfitrião como vizinho. Analisemos outra apresentação para ver em mais detalhes como isso funciona.
 

Aproveite ao máximo os primeiros momentos

Tom, um amigo mútuo, apresenta Karen e Patrick um ao outro quando os dois apareceram em sua imobiliária uma manhã cedo. Tom é uma pessoa sociável e sabe fazer apresentações, portanto a conversa começa a fluir.
– Não sei se vocês já se conhecem – ele diz. – Karen, este é meu amigo Patrick. Jogamos tênis juntos e normalmente eu o deixo ganhar! Patrick, esta é minha querida amiga Karen. Nós nos conhecemos em um fim de semana. Deve fazer cinco anos pelo menos que você se mudou daqui para viver uma vida melhor, não é?
– Mais ou menos isso – ela responde. Depois Karen gira o corpo para ficar de frente para Patrick, faz contato visual, sorri e estende a mão. – Oi, Patrick, é um prazer conhecer você.
Patrick olha Karen nos olhos, sorri, aperta sua mão (nem com muita nem pouca força) e diz:
– Que ótima forma de começar o dia!
Karen sorri:
– Obrigada. Você é charmoso assim na quadra de tênis?
– Tenho que fazer uma ligação rápida – Tom diz. – Por que vocês dois não tomam um café? Foi feito agora mesmo. Eu já volto.
– Muita coisa pode acontecer em cinco anos – Patrick observa, enquanto eles se dirigem à garrafa de café. – Para onde você fugiu? – Seu tom é cortês, charmoso e interessado, ele está prestando atenção. – Espero que esteja se divertindo.
– Na maior parte do tempo. Ficar de plantão doze horas por dia lidando com pessoas bastante rabugentas pode não ser a definição de diversão para muitas pessoas, mas eu amo meu trabalho.
– Café? – Patrick pergunta.
– Sim, por favor. Puro.
– Deixe-me adivinhar. Você é médica e está trabalhando com a Cruz Vermelha.
– Você é engraçado – Karen está sorrindo e sente-se relaxada. – Não, não estou – ela ri. – E você? Imagino que esteja no ramo imobiliário.
Patrick balança a cabeça:
– Não, pelo menos não da forma como você provavelmente está pensando.
– Você é jogador profissional de tênis?
– Isso seria fantástico! – Patrick ri. – Mas, agora que você mencionou, qual jogo estamos jogando aqui?
– Não sei – Karen diz, timidamente, olhando para Patrick enquanto toma o café, – mas é divertido.
Você já deve ter escutado a expressão “A cavalo dado não se olham os dentes”? Em português bem-claro, significa que devemos aproveitar ao máximo as oportunidades. Karen e Patrick tiveram sorte porque, quando Tom os apresentou, ele possibilitou temas sobre os quais eles puderam trabalhar e ambos estavam prestando atenção suficiente para utilizar as informações para falar com perspicácia e dar um tom divertido à conversa. Eles também usaram a linguagem corporal, expressões faciais, risos, atenção e jovialidade para transformar a faísca de uma apresentação na chama de uma conversa.
 
Tanto Patrick quanto Karen estavam dispostos a aproveitar ao máximo seus primeiros momentos. Karen demonstrou uma atitude “nunca se sabe” e escolheu uma postura atraente, divertida e charmosa, aproveitando a apresentação e causando uma ótima primeira impressão. Patrick também fez tudo certo: manteve o tom otimista e positivo de Tom e depois transformou seus primeiros momentos juntos em um jogo ao brincar com a observação sobre a ausência de cinco anos de Karen, o que introduziu um ar de mistério. Ele poderia ter colocado todas as cartas na mesa e dito: “Tenho minha própria empresa de paisagismos e estou aqui porque Tom vai me apresentar a um novo cliente. O que você faz?”. E Karen poderia ter dito que é piloto de helicóptero e que estava ali para uma entrevista de trabalho como piloto de helicóptero de tráfego para a empresa de televisão local. No entanto, ambos decidiram ter uma conversa divertida em vez de uma conversa geral e isso os tornou atraentes um para o outro.


Elogios só funcionam quando são sinceros e não fabricados para o momento.
 
 

Frase inicial

E se Tom, com suas habilidades sociais, não tivesse ajudado Patrick e Karen a iniciar uma conversa? E se o telefone tivesse tocado e ele tivesse que atender a ligação, deixando os dois sabendo apenas o nome um do outro? Nesse tipo de situação, há três tipos de iniciadores que eles poderiam ter usado para entrar em sintonia de forma rápida e suave: uma afirmação (“Este escritório é tão iluminado, eu adoro o sol da manhã”); uma pergunta (“O que traz você aqui esta manh ã?”); ou um elogio sincero e agradável. Eles poderiam até tentar uma mistura de todos os três.
Elogios são os mais arriscados, porque são pessoais e podem facilmente parecer oportunistas ou aduladores. Se Karen e Patrick tivessem cada um uma câmera em volta do pescoço, não haveria problema em dizer algo como “Nossa, é uma lente Tessar 2.8? É maravilhosa”. Mas eles são um homem e uma mulher no escritório de um agente imobiliário, portanto, a menos que Patrick pudesse genuinamente dizer algo como: “Esta é uma flor de verdade na sua lapela, não é? É muito charmosa”, é melhor ele escolher outro rumo para a conversa. Elogios funcionam apenas quando são sinceros e não fabricados para o momento e, a menos que você seja especialista em fazer elogios, correrá o risco de demonstrar muita intimidade rápido demais.
Uma afirmação seguida de uma pergunta aberta sempre é uma escolha segura e uma ótima forma de iniciar uma conversa. Você não precisa se preocupar com frases iniciais muito enfeitadas – elas não valem a pena. O objetivo de uma frase inicial é ver se a pessoa está interessada em conversar com você – é um convite para iniciar uma conversa. Comece com uma afirmação (pode ser sobre esportes, sobre o tempo, a ocasião ou o ambiente) e adicione uma pergunta declarativa (não é? não parece? você não acha? etc.). “Está um pouco frio hoje, não?”. A pessoa reconhecerá essa frase como um iniciador de conversa e responderá, principalmente se parecer que você está esperando uma resposta. A forma como ela responder dará uma ideia de sua disposição para continuar a conversa. No geral, quanto maior e mais aberta a resposta, melhor. Depois, dependendo do grau da resposta, siga com uma pergunta aberta: “De onde você conhece Jack?”.
Inventando formas de se apresentar

Se um estranho em uma sala cheia de gente atrair sua atenção, peça ao anfitrião ou a um amigo ou conhecido em comum para apresentar vocês. Mas não deixe as coisas nas mãos do acaso. Prepare seu próprio comercial de dez segundos com antecedência, e oriente seu amigo sobre o que dizer – seu nome, talvez de onde você é e o que você faz profissionalmente, ou qualquer outra coisa interessante sobre você, tudo colocado de uma forma interessante. Sairá muito melhor do que “Heather, este é Jim. Ele ficou ensopado no caminho até aqui, não foi, Jim?”.

Também é importante seguir aquela velha regra: dois é bom, três é demais. Peça ao seu anfitrião que apresente vocês, diga algumas coisas interessantes sobre você e depois saia. “Heather, este é Jim. Ele mora em Seattle e produz filmes”. Você quer que a terceira pessoa fique fora do caminho, para que a conversa não se transforme em duas pessoas falando e uma pessoa escutando, pois essa é uma dinâmica ruim para estabelecer uma conexão, independente de quem fala e quem escuta.

Se quiser realmente impressionar, peça ao seu anfitrião que conte duas ou três coisas interessantes sobre a pessoa que você quer conhecer antes de ser apresentada. Depois, quando houver uma conexão, você pode dizer: “Bob me contou que você passou o último mês em um retiro budista. Como foi? O que inspirou você a fazer isso?”. Essa estratégia o coloca em uma relação mais pessoal mais rapidamente.
 
Não acredite apenas no que estou dizendo. Passe algum tempo analisando como os profissionais fazem isso na televisão. Assista Oprah, Larry King, Barbara Walters ou Jô Soares. Eles iniciarão com uma citação ou uma notícia da imprensa ou uma referência a algum escândalo para obter informações (não apenas uma reposta afirmativa ou nenhuma resposta).
Uma dica: use o nome da pessoa nos primeiros minutos depois de conhecê-la. Essa estratégia tem um efeito mágico. Afinal, o nome de uma pessoa é provavelmente a palavra mais importante do mundo para ela. Mas faça isso sutilmente – você não vai querer parecer um vendedor barato.
 

Informações livres

Independente de ser apresentada a alguém por outra pessoa ou de se apresentar sozinha, quanto mais informações você tiver sobre a pessoa, mais fácil será conhecê-la.
Além de prestar atenção e ouvir atentamente, você também pode encorajar as pessoas a fornecerem informações livres durante uma apresentação. Por exemplo, se Clyde abordar uma mulher que ele não conhece em uma situação social segura e disser: “Oi”, há uma forte probabilidade de que ela diga “Oi!” ou algo semelhante como resposta. Mas e se Clyde adicionar alguma informação extra a fim de convidar a mulher para a conversa? Poderia ser algo fácil, como seu nome: “Oi, eu me chamo Clyde.”, ou algo mais substancial: “Oi, eu sou Clyde Barrow, de Teleco, Texas. Esta é a primeira vez que venho aqui.”. Agora é a vez de Bonnie e ela pode responder com suas próprias informações ou Clyde pode dar um empurrãozinho, dizendo algumas palavras: “E você é…?” e/ou com um olhar inquisitivo ou outra linguagem corporal.
Uma conversa é como um jogo de tênis. Se você jogar a bola na quadra da outra pessoa, normalmente ela terá que devolver a bola e fará isso de forma natural. Se ela não fizer isso, você pode encorajá-la. O importante é que encorajou a pessoa a responder. Agora só precisa esperar a bola voltar para a sua quadra. Você pode receber informações que podem ser usadas para progredir sua conversa, saindo de assuntos gerais para algo mais substancial.


 (Nicholas Boothman - Como fazer Alguém se apaixonar por você em 90 minutos?)

publicado às 15:58


O que é o amor?

por Thynus, em 22.12.16
Os povos inuítes do Ártico possuem dúzias de palavras para neve, porque a neve em todas as suas formas – leve, pesada, quebradiça, acumulada e assim por diante – é central para sua vida e sobrevivência diária. Na nossa cultura, a julgar pelas músicas, livros e filmes, o amor é essencial para nossa vida e mesmo assim temos apenas uma palavra para um fenômeno que é infinitamente complexo e variado. O amor toma muitas formas. Existe o amor que sentimos pelos nossos pais, pelos nossos irmãos e pelos nossos amigos, mas, mesmo deixando de lado esse tipo de amor familiar e platônico e focando o amor romântico – objeto deste livro –, ainda há muitas variações. Todos têm uma opinião sobre o amor, mas será que essa emoção universal e caprichosa pode ser definida?
As pessoas vêm tentando entender e explicar o amor há milênios. Na minha opinião, uma das melhores observações sobre o amor vem dos antigos gregos. Há quase dois mil e quinhentos anos, o filósofo Platão falou sobre o amor em termos de completude. Em seu diálogo O Banquete, ou O Simpósio, ele sugeriu que todos nós buscamos nossa cara-metade na esperança de nos tornarmos um todo. Ele chamou esse desejo humano por completude de busca pelo amor. No mesmo diálogo, o mestre de Platão, Sócrates, disse: “Em nosso amante nós buscamos e desejamos aquilo que não temos”.
Todas as religiões têm uma opinião sobre o amor, visto que ele é essencial para nossas crenças espirituais. Se você participar de um casamento cristão, provavelmente ouvirá o que São Paulo disse aos Coríntios: “O amor é paciente, é benigno; o amor não arde em ciúmes, não se ufana, não se ensoberbece”.
O judaísmo afirma que marido e mulher se complementam. De acordo com Rabbi Harold Kushner, o Talmude ensina que um homem não é completo sem uma esposa e uma mulher não é completa sem um marido. O Corão também sustenta a ideia de que o amor cria completude ao dizer que “Deus fez o homem e a mulher para se complementarem, assim como a noite completa o dia e o dia completa a noite”.

“Amor e compaixão são necessidades, não luxos. Sem eles a humanidade não pode sobreviver.”
Dalai Lama



O budismo compara o amor e o casamento à união do vazio com o êxtase. Dalai Lama, líder espiritual do budismo tibetano, diz que: “Amor e compaixão são necessidades, não luxos. Sem eles a humanidade não pode sobreviver”.
Cientistas sociais abordam de forma mais analítica o entendimento do amor. Por exemplo, Richard Rapson e Elaine Hatfield, pesquisadores da Universidade do Havaí, dividem o amor em dois tipos principais, que eles chamaram de amor apaixonado e amor companheiro. Eles definem o amor apaixonado como um estado de desejo intenso e contínuo de união com outra pessoa, que envolve sentimentos sexuais e reações emocionais poderosas. O amor companheiro não é tão efusivo. É cultivar sentimentos delicados e crédulos por alguém. A pessoa se sente profundamente conectada e quer se comprometer com o outro.
Robert Sternberg, professor de psicologia e educação na Universidade de Yale, defende uma teoria triangular do amor, constituída por paixão, intimidade e compromisso. A paixão é a parte física – faz a pessoa se sentir estimulada e audaz, mas, às vezes, leva a decisões ruins. A intimidade é a alegria que você sente ao estar próxima e conectada com alguém, e o compromisso é o acordo mútuo de fazer o relacionamento funcionar. De acordo com Sternberg, diferentes combinações desses três componentes geram diferentes tipos de amor e, quando você consegue fazer todos os três pontos do triangulo funcionarem juntos, consegue um amor eterno.
 
As etapas do amor
O amor é tão difícil de definir porque não é uma coisa que você tem ou consegue, como um grande cobertor de plumas. Tampouco é uma profunda e quente piscina na qual você entra. O amor é um processo. É algo que você faz ou que acontece com você, são as emoções e as turbulências físicas que vêm junto com ele. O processo real de se apaixonar acontece com uma progressão natural, e passa por quatro etapas: atração, conexão, intimidade e compromisso. A primeira etapa trata principalmente da atração física e é acionada por sinais não verbais que fornecemos por meio de uma combinação de atitude, constituição física e vestuário – nossa aparência geral. As próximas etapas tratam principalmente da atração mental ou emocional, desenvolvimento de intimidade e compartilhamento de confidências. E quem diria que, com mais frequência do que imaginamos, tudo começa com um olhar e um sorriso?
O primeiro passo na formação de qualquer novo relacionamento é a atração. Sem atração, nada acontece. Os seres humanos passam a vida toda se avaliando – principalmente quando conhecem estranhos. É nossa natureza. A avaliação instantânea que fazemos quando encontramos alguém pela primeira vez é chamada de resposta de luta ou fuga, mas isso é um pouco equivocado: na verdade, é resposta de luta, fuga ou atração. Cada novo encontro representa uma ameaça ou uma oportunidade. Fazemos julgamentos instantâneos: esta pessoa é um amigo ou um inimigo, uma oportunidade ou uma ameaça, atrativa ou repulsiva? Todos temos nossas ideias e preferências, muitas das quais foram influenciadas pela sociedade, mídia, pais e amigos. Algumas pessoas nos fazem sentir ameaçados; outras nos fazem sentir confusos e outras imediatamente nos atraem. No geral, nos sentimos atraídos pelas pessoas que acreditamos possuir as mesmas preferências e ideais.
Se duas pessoas se conhecem e se sentem atraídas, ótimo. O caminho está traçado para o segundo passo em direção ao amor: a conexão. Enviar os sinais errados ou usar as palavras erradas pode fazer tudo desmoronar tão rápido quanto começou, mesmo se houver potencial. Enviar os sinais certos e dizer as coisas certas torna a conexão fácil e confortável. Depois é preciso passar ao próximo passo – criar algum tipo de intimidade. É nessa etapa que você deve fazer a pessoa falar e continuar falando.

Enviar os sinais errados ou usar as palavras erradas pode fazer tudo desmoronar tão rápido quanto começou, mesmo se houver potencial.

Existem dois tipos de intimidade: a emocional e a sexual. Este livro trata principalmente da intimidade emocional. Ensinaremos apenas algumas técnicas de paquera com carga sexual, mas deixaremos sua vida sexual em suas mãos. A intimidade emocional é alcançada tanto por meio de sinais verbais, tais como contato visual prolongado e toque incidental, quanto por um estilo de conversa chamado autoexposição, no qual você compartilha seu verdadeiro eu com outra pessoa. Quanto mais vocês dois revelam, mais identificam aspectos pequenos, porém cruciais, de vocês mesmos no outro, podendo provocar sentimentos de unidade e identidade. A partir daqui a transição para o compromisso com seu oposto compatível será tão natural como a própria autopreservação. Na verdade, é quase a mesma coisa. Nesse momento, você sabe que não está mais sozinha – sente-se completa, comprometida e viva.
 
Amor por acaso
Não seria ótimo se pudéssemos nos apaixonar pela pessoa certa à primeira vista? Às vezes isso acontece. Ela olha, ele olha, ela sorri, ele sorri – de repente paixões são provocadas, inibições são descartadas e bum! – Amor à primeira vista. Isso acontece quando duas pessoas imediatamente reconhecem algo na outra que elas absolutamente sabem o que querem. A atração é tão profunda que as compele a agir – na verdade, normalmente é tão forte que todo o cuidado e bom senso voam pela janela.
Pesquisas mostram que não é apenas uma atração física ou sexual, mas sim um reconhecimento mútuo de que as duas pessoas se complementam perfeitamente em termos de personalidade e temperamento.
O Dr. Earl Naumann, autor de Amor à primeira vista, entrevistou e analisou 1.500 indivíduos de todas as raças, religiões e trajetórias na América e concluiu que o amor à primeira vista não é uma experiência rara. Além disso, o Dr. Naumann afirmou que, se você acredita em amor à primeira vista, existe 60% de chance de que isso ocorra com você. Estes foram os pontos que o levaram a chegar a essa conclusão:

  • Quase dois terços da população acredita em amor à primeira vista.
  • Dos que creem, mais da metade já vivenciou essa experiência.
  • 50% das pessoas que já vivenciaram essa experiência se casou com o objeto de seu afeto.
  • Três quartos desses casais permaneceram casados.
Tomemos como exemplo a história de Francis e Eileen, pais de dois dos meus amigos mais próximos. Durante a Segunda Guerra Mundial, Francis era piloto do avião Spitfire e em uma noite participou de uma apresentação teatral para as tropas. “No momento em que Eileen entrou no palco, a sensação mais estranha tomou conta de mim”, Francis me contou. “Eu pensei: ‘Aquela é minha mulher’. Não tive a menor dúvida. Não tinha ideia de quem ela era, mas sabia que aquela mulher ficaria comigo pelo resto da minha vida. Quando o show terminou, fui até os bastidores e apresentei-me. Nossos olhares se encontraram e senti uma enorme explosão de amor que me deixou sem ar. Lembro que pensei que aquele momento único fez toda a minha vida valer a pena”.
Francis e Eileen estão casados há 48 anos e têm dois filhos e cinco netos. Curiosamente, muitos anos depois seu filho Martin, que hoje é um bem-sucedido homem de negócios, estava sentado em um bar de Chicago quando três aeromoças entraram no local. “O tempo parou”, ele me contou. “Eu virei para um colega e disse ‘Aquela é minha mulher’”. Ele estava certo. Hoje, 24 anos depois, eles têm três lindos filhos adolescentes.
 
Ninguém quer ficar sozinho
Por que ter alguém especial é tão importante para os seres humanos? Não é só pelo companheirismo, pela segurança ou pela conveniência, mas também porque temos uma necessidade de nos expressarmos emocional e intelectualmente. Todos nós precisamos de alguém em quem confiar para conversar, compartilhar experiências e expressar nossas ideias. Queremos alguém com quem possamos compartilhar os prazeres da vida e, o mais importante, alguém que nos dê uma resposta – que reaja ao que dizemos e nos diga como estamos indo. Precisamos de alguém que nos observe, que nos valide e nos faça sentir completos.
Quando duas pessoas se comunicam de forma aberta e regular, expressando seus sentimentos e emoções, elas oferecem segurança, esperança e conexão para um futuro. Encontramos tudo isso e mais quando nos expressamos no amor. Cientistas comprovaram que a resposta emocional compartilhada entre duas pessoas apaixonadas equilibra, regula e influencia o ritmo vital do seu corpo e as mantém saudáveis. A frequência cardíaca, a pressão sanguínea, o equilíbrio hormonal e a absorção de açúcar no sangue melhoram quando duas pessoas se unem emocionalmente no amor. Em outras palavras, aquela antiga expressão “Eles têm uma verdadeira química” não é meramente uma metáfora. Pessoas apaixonadas simplesmente não se tornam mais cheias de vida, elas têm uma tendência a permanecer vivas e ter uma vida mais rica, mais saudável e mais empolgante.
 
Em busca do amor
Se o amor é essencial para nossa saúde e bem-estar, por que às vezes é tão difícil encontrá-lo? Para começo de conversa, muito do que Hollywood vem nos mostrando sobre o parceiro perfeito é uma grande baboseira. A mídia em geral nos orienta muito mal quando se trata de encontrar uma pessoa que possa nos completar. Se você lê revistas femininas ou assiste à televisão ou a filmes, é fácil acreditar que deve ter uma determinada aparência, um determinado cheiro, conversar sobre determinadas coisas e aspirar a determinados objetivos financeiros e profissionais limitados se quiser entrar na corrida por um companheiro.
As pessoas que você vê na televisão e nas revistas, na verdade, são como você e eu. Sei disso, pois costumava fotografá-las. Elas são pessoas normais com boas roupas, boa maquiagem e bom foco. Falam palavras escritas por outras pessoas, vestem roupas que outras pessoas escolheram para elas, passam metade da vida fazendo dietas e às vezes passam por dolorosas cirurgias. Seu glamour faz parte de uma ilusão que permitimos que seja imposta sobre nós. A ironia é que, quando você levanta as cortinas, descobre que todo o estilo, a tonificação e o bronzeamento não agregam muito à autoestima dessas pessoas. Por dentro, elas são como todos nós.
Na tentativa de satisfazer os ideais da mídia, fomos ludibriados a usar máscaras e a gostar de pessoas que também usam máscaras. Será que é mesmo uma surpresa o fato de que, quando as máscaras caem e vemos o que há atrás delas, encontramos incompatibilidade, frustração e raiva? E é uma surpresa o fato de a taxa de divórcio atualmente ser de 50%?
Não estou sugerindo que você se acomode – é exatamente o contrário; aproveite ao máximo o que tem. Só quero que perceba que não há nada de errado com você se não se parecer com as pessoas da televisão e das revistas, porque nem elas se parecem com elas mesmas. Seja autêntica, maximize o que você tem e livre-se das máscaras. Você poderá descobrir que está escondendo o que realmente tem para oferecer.
Também fomos condicionados a acreditar que nosso príncipe ou princesa entrará na nossa vida como num conto de fadas, mas, na maior parte do tempo, não é assim que funciona. Claro, o amor à primeira vista acontece (ver box “Amor por acaso”), mas não é prudente contar com isso. Se você perder seu emprego e simplesmente ficar esperando alguém bater na sua porta oferecendo um cargo maravilhoso, talvez espere uma eternidade. Você precisa se expor – conversar com pessoas , explorar oportunidades, fazer conexões. É aí que entra o amor por encomenda.
O amor por encomenda é uma série de passos que a ajuda a se conectar com seu oposto compatível. Não é frio ou calculista e não se contenta com qualquer coisa. É a compreensão do processo de se apaixonar pela pessoa certa e de dar passos deliberados para fazer que isso aconteça.
O amor por encomenda se aproveita das experiências das pessoas que acertaram e estão em um relacionamento feliz e duradouro, mas, como os erros normalmente são os melhores professores, ele também se aproveita das pessoas que constantemente se equivocaram. O amor por encomenda usa uma rica linguagem corporal e técnicas linguísticas para ajudar você a fazer o melhor uso do seu corpo, da sua personalidade e das suas habilidades de comunicação. Você começará avaliando sua conversa consigo mesma, seu diálogo interno, seus valores e motivações, além de analisar o tipo de pessoa que você pensa que é. Depois analisará sua personalidade e características comportamentais. Você é extrovertida ou introvertida? Racional ou emocional? Visual, física, sinestésica ou auditiva? Depois que tiver um bom entendimento sobre si, você poderá descobrir que tipo de pessoa tem mais probabilidade de amar e ser amada.
Quando souber o que está procurando, poderá ajustar sua autoapresentação para causar uma ótima primeira impressão. Você pode aperfeiçoar suas habilidades de compreensão para acelerar sua habilidade de conectar-se com alguém e encontrar afinidades. A partir daí, poderá deslizar rapidamente para a intimidade por meio da autoexposição, compartilhando o tipo de informação confidencial que cria laços entre as pessoas. Ensinarei você a gerenciar o tempo, o risco e a agitação em tudo isso, para que possa avançar da forma mais efetiva e natural possível.
 
EXERCÍCIO 1
Quem é você? Como você é?
Dedique alguns minutos para refletir sobre as seguintes perguntas sobre como você se vê, como acredita que os demais a veem e quais qualidades considera importantes nos demais.

  1. Quais são as cinco palavras que você utilizaria para se descrever?
  2. Quais são as cinco palavras que você acha que outras pessoas usariam para a descrever?
  3. As palavras são similares? Se não, por que você acha que há uma diferença?
  4. Com exceção de comentários sobre sua aparência, qual foi o melhor elogio que alguém poderia fazer a você?
  5. Em sua opinião, quais são as três qualidades mais importantes em um amigo? Em um parceiro de negócios? Em companheiro de uma relação amorosa?
 
 (Nicholas Boothman - Como fazer Alguém se apaixonar por você em 90 minutos?)

publicado às 13:33

Quando adolescente, eu era o cara que quase nunca conseguia conquistar as garotas. Claro, eu ia às festas e aos bailes e frequentava lanchonetes descoladas, mas mesmo assim sempre voltava para casa sozinho. Felizmente, eu era ambicioso e otimista. Após alguns anos de solidão, juntei-me a uma banda de rock, aprendi a cavalgar e consegui um trabalho de meio período entregando bolos de casamentos em hotéis. Conforme fui conhecendo mais e mais pessoas, logo descobri que não importa tanto o que você pensa, mas sim a forma como você pensa; não importa o que você diz, mas sim a forma como diz; e não importa o que você faz, mas sim a forma como faz. Depois de pouco tempo eu já não voltava para casa com a banda do clube dos corações solitários. Atraia garotas e me conectava com elas e, aos vinte e poucos anos, conheci uma linda garota e me casei com ela. Mas aprendi da forma mais dolorosa que atrair e conectar-se é apenas o primeiro passo – atrair e conectar-se com a pessoa certa para você é outra história.
O casamento acabou e eu me mudei para Portugal. Abri um estúdio de fotos de moda no andar superior de um lindo prédio no centro de Lisboa. Ao percorrer alguns lugares com meu portfolio, um nome parecia surgir sempre nas conversas com pessoas das agências de propaganda.
– Você trabalha com a agência de modelos de Wendy?
 
– Wendy foi modelo de Yves Saint Laurent em Paris, ela sabe do que está falando.
– Sabia que Wendy dançou com o Balé Nacional?
– Wendy voa em seu próprio avião.
– Não, eu não trabalho com Wendy e não, ainda não a conheci! – respondia. Já estava cheio de ouvir sobre ela em todos os lugares aonde ia. Em pouco tempo, a “Miss Perfeição” estava no topo da lista de pessoas que eu não queria conhecer.
Um dia, uma oportunidade surgiu e se mostrou irresistível ao meu imaturo senso de travessura. Uma das minhas novas clientes, a editora da principal revista feminina do país, ligou-me e me perguntou se eu poderia tirar fotos para a capa de uma próxima edição. No fim das contas, não foi uma missão tão glamorosa quanto eu esperava. Era para a edição de tricô anual e ela queria que eu fotografasse três gatinhos sentados em uma cesta cheia de lã.
“Onde vou encontrar três gatinhos?” perguntei-me no momento em que desliguei o telefone. Ah, eu sei, disse meu crápula interior. Por que eu não ligo para a Wendy, Mulher Maravilha, e deixo que ela cuide disso?
Consegui encontrar os dados de sua agência e liguei para ela. A recepcionista pediu que eu esperasse e, alguns momentos depois, escutei uma voz do outro lado da linha:
– Oi, aqui é Wendy.
– Oi. Meu nome é Nicholas Boothman e eu sou fotógrafo.
– Sim, eu sei – ela respondeu suavemente.
Disse-lhe que precisava de três modelos – gatinhos. Esperava alguma mudança em seu tom de voz educado, mas ela continuou cortês e calma. Abusei um pouco mais da sorte para ver como ela reagiria.
– Também vou precisar de uma pequena cesta, algumas bolas de lã colorida, dois pedaços de papelão de 50 centímetros por 1 metro, duas dobradiças e um pouco de papel laminado.
A maioria das agências de modelos diria a um fotógrafo para parar de encher se ele pedisse uma lista de acessórios, mas a Mulher Maravilha continuou calmamente dizendo sim após cada um dos meus pedidos. Finalizamos a conversa definindo uma data e um horário.


Eu também estava me arrastando para um tipo de zona sem gravidade. Não conseguia parar de olhar para ela.


O prédio histórico onde ficava meu apartamento tinha um antigo elevador com grades de madeira e metal. Precisamente às 17 horas do dia combinado, escutei o motor do elevador e imaginei que um dos assistentes de Wendy havia chegado. O elevador parou e, alguns segundos depois, ouvi minha recepcionista, Cecilia, abrir a porta. Pontualmente – Wendy treina bem seu pessoal, pensei. (Entre os muitos charmes de Portugal, a pontualidade é bem ausente.) Cecilia entrou no meu estúdio seguida pela mulher mais bonita que eu já havia visto na minha vida. Caramba! Ela enviou uma de suas modelos, eu pensei. Uma orquestra começou a tocar na minha cabeça enquanto essa mulher calma, linda e impressionante me olhava com aqueles olhos azuis brilhantes, sorria, estendia a mão e dizia: “Oi, eu sou Wendy.”
É difícil explicar como eu me senti, mas vou tentar. Parece que perdi meu senso de realidade; não podia processar bem o que estava acontecendo – era como se estivesse em estado de choque. Enquanto a orquestra aumentava o volume na minha cabeça, ela começou a falar.
– Eu trouxe os gatinhos. Você não pediu, mas no caminho até aqui pedi que um veterinário desse uma examinada neles e aplicasse um leve sedativo; teremos que esperar 30 minutos para que faça efeito. Trouxe o papelão e as dobradiças. Imagino que vamos fazer um refletor. Você não pediu parafusos, mas eu trouxe alguns. Imagino que você vai querer colar o papel laminado na madeira. Você não pediu cola, mas eu trouxe também.
Minha nossa! Ela estava certa, eu tinha planejado fazer um refletor para jogar uma luz de fundo sobre os gatinhos, assim a luz direta não os assustaria. Fiquei impressionado e desconcertado. Eu também estava me arrastando para um tipo de zona sem gravidade. Não conseguia parar de olhar para ela. Sim, ela era extraordinariamente bonita, mas era sua presença em geral que estava me afetando. Ela era tão charmosa.
Enquanto esperávamos os gatinhos se acalmarem, montei o refletor. Enquanto preparava o cenário, Wendy foi até uma janela que ficava de frente para a Baixa, a área de Lisboa onde, durante séculos, poetas, pintores e escritores se reuniam em cafeterias.
– Eu amo a Baixa – disse para ela –, é tão cheia de energia e romance.
– Eu também – ela respondeu.
Eu estava derretendo.
– Será que você poderia me dar uma mãozinha? – perguntei.
Ela olhou para mim e estendeu as mãos.
– Até duas, se você quiser – ela sorriu de novo e meu coração derreteu.
Lá estávamos nós, ajoelhados no chão, de frente um para o outro, em cima do pedaço de papelão. Começamos a amassar o papel laminado, Wendy em uma ponta, eu na outra, trabalhando juntos em direção ao centro. Quando chegamos lá, nossas mãos se tocaram por um instante. Eu fiquei sem ar. O que aconteceu depois foi surreal e ainda consigo lembrar os mínimos detalhes. Uma torrente de energia maior e mais ampla do que qualquer coisa que eu já havia sentido antes passou pelos meus pés e subiu até minha cabeça em direção a ela. Olhei diretamente dentro dos seus olhos e escutei uma voz – sei que era minha própria voz, mas não a ouvi vindo de dentro, como normalmente acontece, a voz vinha de fora – que dizia “Esta é a coisa mais ridícula que eu já disse, mas eu te amo”. A orquestra dentro da minha cabeça estava tocando alucinadamente, mas de repente parou. Wendy estava olhando para mim. “Meu Deus”, ela disse. “O que você vai fazer agora?”. Sabia que ela sentia o mesmo. Eu havia encontrado meu oposto compatível e Wendy havia encontrado o dela.
O que fizemos, depois que eu cumpri a missão e Cecilia levou os gatinhos para casa durante à noite, foi passar horas e horas e horas conversando. Tínhamos tanto a dizer. Compartilhamos nossas esperanças e sonhos, nossas opiniões e experiências. Ríamos das mesmas coisas e éramos apaixonados pelas mesmas coisas. Era como uma amizade profunda transformada em música.
Wendy e eu tínhamos muito em comum. Ela era britânica, eu também. Nós dois éramos expatriados em Portugal. Ela tinha um brilho travesso no olhar, assim como eu, e estava vestida de um jeito elegante, porém reservado, que era meu próprio estilo. O mais importante é que estávamos em trabalhos semelhantes e compartilhávamos o mesmo espírito aventureiro.
Mas também havia aspectos dela que eu sentia que não eram como os meus. Ela era paciente e detalhista. Forte, resistente e discreta. Ela era reservada e eu era extrovertido. A forma como ela olhava e ouvia e prestava atenção me fazia sentir como se eu fosse a única pessoa no mundo que importava.
Quando acordei naquela manhã, não tinha ideia de que algumas horas depois meu mundo mudaria para sempre. Wendy me fez entender coisas de uma forma que eu nunca havia pensado antes, e contei-lhe sobre lugares e pessoas que eu havia descoberto, mas sobre os quais ela não sabia nada. Senti-me orgulhoso e importante e invencível enquanto ríamos e compartilhávamos nossas vivências. Ela se sentiu segura ao conversar comigo, pois eu apreciava, respeitava e valorizava suas ideias. Eu nunca havia conversado com ninguém daquela forma; era quase como se tivéssemos procurando um ao outro por todo o universo, durante uma eternidade, até finalmente nos encontrarmos. Foi um êxtase. Passamos as próximas semanas nos encontrando sempre que podíamos, conversando e rindo, compartilhando e sonhando e simplesmente ficando perto um do outro.
E estamos juntos desde então. Criamos cinco filhos e ainda somos apaixonados um pelo outro. A forma como nos conhecemos permaneceu fresca na nossa mente e o romance que vivemos teve um forte efeito. Sim, tivemos dias difíceis e duros, mas a ideia de colocar um fim no relacionamento – de dizer adeus à pessoa que nos faz sentir completos – nunca foi uma opção. Seria como partir nosso coração no meio.
Acho que é bastante óbvio para a maioria das pessoas que Wendy e eu temos um casamento forte e feliz. As pessoas sempre nos perguntam qual é nosso segredo. No começo, eu me esquivava dessa pergunta, pensando que a resposta seria óbvia – respeito mútuo, interesses comuns, atração etc. Mas conforme os anos passaram e a pergunta continuou surgindo muitas e muitas vezes, comecei a perceber que poderia haver mais do que se via na superfície. Assim, utilizando meu treinamento em PNL, decidi tentar identificar as ameaças comuns em todos os relacionamentos bem-sucedidos, desde a paquera até o compromisso, e organizei-as de uma forma simples, prática e concreta. Também queria mostrar às pessoas como aproveitar seu tempo da melhor forma possível e evitar cair em depressão, além de ajudá-las a aprender com os erros dos outros. Com frequência, ouvimos as pessoas dizerem: “Se eu soubesse naquela época o que sei hoje, não teria me metido nesta confusão”.
Especificamente, eu decidi:

  • encontrar casais que se apaixonaram perdidamente e permaneceram energizados e empolgados um com o outro por muito tempo;
  • determinar o que todos esses casais tinham em comum e quais recursos eles utilizaram; e
  • dividir as lições que eles poderiam nos ensinar sobre o encontro, a conexão e a união com nosso oposto compatível, em uma série de passos fáceis que qualquer pessoa poderia seguir.


(Nicholas Boothman - Como fazer Alguém se apaixonar por você em 90 minutos?)

publicado às 13:32


SENSUALIDADE

por Thynus, em 18.12.16
Devemos combater a emotividade por todos os meios ao nosso alcance, disciplinando o espírito e fortalecendo o tono emocional, com o objetivo de impedir as descargas nervosas responsáveis por grande número de distúrbios... (Pacheco e Silva.)

As emoções podem também perturbar gravemente o funcionamento cerebral. (Chouchard.)

“A capacidade de seduzir não está relacionada ao que vestimos ou desejamos mostrar ao mundo exterior. Ela está muito mais ligada com a maneira como nos sentimos intimamente, com a autoconfiança” (Maria da Glória Hazan)

a intensa harmonia entre o vinho e sensualidade feminina
 
O candidato à saúde mental, à paz e à realização espiritual não pode descuidar-se de uma higiene estética. Ele deve selecionar a qualidade e controlar a quantidade das impressões externas e internas, a fim de que seus sentidos, ávidos eles mesmos de cada vez mais satisfações, não o desviem da meta. Aqui, como em todos os campos e aspectos da vida, o homem só terá saúde se souber manter-se senhor e jamais deixar-se dominar. Ser senhor quer dizer ter controle. Ter controle sobre uma ação significa poder, conscientemente, começar, acelerar, retardar, parar, recomeçar quando quiser, portanto, dirigir a ação. Desde que perca o controle de seus sentidos, tornando-se um sensual, o homem pode descer aos abismos da infelicidade e da degradação. No controle da sensibilidade, o candidato à felicidade deve: a) saber e poder escolher as impressões que contribuam para isto, e usá-las na medida certa; b) reconhecer e poder obstar as impressões adversas e delas defender-se; c) saber distinguir entre as benéficas e as que são somente agradáveis; e d) saber discernir as que podem vir a se tornar obsessivas, a fim de evitá-las.
Como se já não bastassem os dramas, sofrimentos, apreensões, decepções e mesmo tragédias que o destino semeia em cada vida, e que acarretam enorme desgaste nervosc e, portanto, distúrbios, a indústria das emoções, através do cinema, da telenovela, do teatro, bem como os espetáculos desportivos violentos, como as lutas, as corridas, os campeonatos, diariamente submetem o público a perniciosos impactos. Tanto mais bem elaborados sejam mais espetáculos, tanto mais eficientes, e tanto mais capazes de contribuir para desordens nervosas. E o público, fascinado, inconscientemente, se entrega aos forjadores de emoções. Estas devem ser cada vez mais excitantes, profundas e dominantes. Na Roma antiga eram os gladiadores que atendiam às necessidades malsãs do sensualismo do público sádico.
Hoje são os lutadores de "catch", que se esmeram, por todos os modos — desde os nomes (Carrasco, Drácula...) até ao aspecto físico — para infundir terror e ódio em milhões de inadvertidos, imaturos, e viciados espectadores. Quanto mais "proibido pela censura", mais preferida é a película de cinema. A fórmula violência, terror e sexo é a mais comercial e portanto a preferida por produtores, diretores e exibidores de filmes. As frases com que tais filmes são anunciados bem demonstram um clamoroso quadro de saúde mental do grande público.
Apregoam o que o povo deseja: violência e erotismo.
Desgraçadamente isto é o "normal", o mais freqüente. £ o normal patológico do qual já temos falado.
O "normal" é isto, esta busca irracional e patética de cada vez maior prazer, sensações mais perturbadoras e divertimentos com alto poder estressor. Por que as pessoas pagam para se meterem numa montanha russa? Por que multidões se alinham nas margens de uma pista de corrida de carros, esperando que um deles se despedace? Por que o teatro está cada vez mais explorando o mórbido e o erótico? Por que as músicas da juventude vão se tornando mais barulhentas, mais à base de ritmo e mais carentes de melodia e harmonia? Por que a poesia deu lugar à novela sexo-policial? Por que o carnaval, cada ano, é mais bacanalizado? Por que até crianças uivam de entusiasmo com o estrangulamento que um lutador está fazendo no outro? Por que os jovens roubam carros e com eles suicidamente "voam"? Por que, cada dia, novos divertimentos são inventados tanto que desencadeiem sensações novas, que "enlouquecem" seus participantes? Por que o jovem, em todo o mundo, está empenhado na corrida psicodélica?!. . .
Você que quer ter paz; você que não deseja e nem precisa sentir-se ajustado e mesmificado com esta alarmante "normalidade", tome consciência do fato, analise-o, com distância, e se defenda contra a corrupção sensual coletiva, contra a esquizofrenização da sensibilidade. Você não precisa destas sensações.
Deixe-as para os que não têm como desfrutar das suaves e sadias sensações espiritualizadas, patrimônio de quem empreende a vida redentora do Yoga. Se, por acaso, você já é um sensual, pode começar a desconfiar de que seu distúrbio nervoso tem raízes nesta distorção estética, isto é, neste estado patológico de sua sensibilidade. Se você tem dado rédeas à sua sensualidade, ou melhor, a seus jnanaindriyas (os sentidos), comece já a formular um plano para corrigir-se disto, que o escraviza ao mundo e o afasta de Deus. Resista à alucinofilia crescente que está arrebatando os fracos de todo mundo. Você não ignora que a ansiedade, a tensão e as emoções se expressam no fígado, nas glândulas supra-renais, na hipófise, na área cardíaca, final e praticamente, em todo o organismo. Você sabe o quanto a ira e o temor danificam a saúde. Não é verdade? Ora, sem você querer, e por serem impostos pela própria vida e forçados pelos pressões sociais, os motivos de apreensão e teráão têm assaltado você e, desejando livrar-se de tais situações, você tem dado muito de seu esforço e também perdido saúde. Não vai me dizer que lhe agrada a ansiedade, enquanto espera a resposta de um negócio que propôs ou o resultado de um exame clínico ou mesmo das provas do concurso. Ninguém se sente bem quando está sentindo medo, ou ira, ou vergonha, ou remorso. A ninguém agrada viver debaixo de drama, ameaça e vicissitude. Ao contrário, todos almejam tranqüilidade, vida suave e espaço social bem desimpedido para expandir. Todo mundo sonha com momentos emocionalmente neutros. Os gregos antigos tinham a ataraxia (Ataráxicos são drogas psicotrópicas que visam a criar o estado de ataraxia) completa ausência emocional e mental como um objetivo muito alto da vida do filósofo. Pois bem, você que não gosta das emoções que o destino espalha em seus dias; você que estimaria desfrutar horas de tranqüilidade e quietude, por que vai meter-se num cinema para assistir a um filme do estilo suspense?! Pode ser um grande tédio o motivo de buscar excitação em divertimentos ou como torcedor apaixonado de qualquer esporte. Ê possível que você esteja praticando esta forma de fuga. Há quanto tempo? Divertindo-se, você tem conseguido livrar-se do tédio? Seja sincero. Seja inteligente ao responder. Se você já se livrou do tédio, do sentimento de vazio graças a tantos entretenimentos excitantes, seu exemplo vai ajudar a resolver o problema de milhões de pessoas. Seu caso será de alto interesse para a psiquiatria, para a medicina psicossomática, para os educadores, para os líderes religiosos, para todos que procuram o caminho certo para salvar do tédio o ser humano. Se no entanto você ainda está precisando "divertir-se" e cada vez mais, se você ainda não pode passar sem contorcer-se de emoção nas arquibancadas enquanto seu time está jogando, saiba que o "remédio" falhou. Escapismo nunca salvou ninguém. Na verdade, cada vez que o espetáculo termina os sentidos que estiveram sendo gratificados começam a pedir mais alimento, mais excitação. Há um vício de excitar-se, de ocupar os sentidos, de emocionar-se, de características semelhantes ao tabagismo, alcoolismo, psicodelismo e outros. Todos estes vícios se caracterizam por uma vinculação obsessiva a seu objeto particular, seja à tragadinha, ao traguinho, aos comprimidos, "às picadas", ao vídeo, à tela de cinema, ao alto-falante do rádio. Outra característica de tais vícios é a de que nunca se consegue quietude a não ser enquanto se está atendendo às imposições do tirânico objeto obsidente.
Relativamente à sensibilidade, desde o berço começamos a ser viciados, quando, com chocalhos, bonequinhos de apito, enfeites coloridos, somos ensinados a distrair-nos. É com ajuda deste ou daquele tipo de espetáculo doméstico, provido pelo pai, ou pela mãe ou titia, que o bebê concede receber a alimentação. Pela vida a fora — infância, adolescência e vida adulta — os entretenimentos "indispensáveis" vão frustrando um acontecimento que "normalmente" todos evitam: um encontro a sós consigo mesmo, em silêncio.
"Suponhamos, diz Fromm (Psicanálise da Sociedade Contemporânea), que, em nossa cultura ocidental, os cinemas, as emissoras de rádio, as televisoras e os acontecimentos esportivos deixem de existir por apenas quatro semanas. Fechados esses principais canais de fuga, quais seriam as conseqüências para as criaturas, reduzidas repentinamente aos seus próprios recursos? Não tenho dúvida alguma quanto a que mesmo nesse curto período de tempo ocorressem milhares de perturbações nervosas, e muitos milhares de criaturas fossem lançadas em um estado de ansiedade aguda que não difeririam do quadro diagnosticado clinicamente como neurose."
Vejo nesta educação para o esvaziamento, para a saída de si mesmo, para a alienação de si mesmo um dos fatores causativos do quadro que o mesmo Fromm assim descreve: "Hoje em dia encontramo-nos com criaturas que agem e sentem como autômatos; que jamais experimentam algo realmente seu; que sentem o seu eu inteiramente como pensam que supostamente seja; cujo sorriso artificial substituiu o sorriso espontâneo; cuja tagarelice vazia substituiu a palestra comunicativa; cujo surdo desespero substituiu a dor autêntica." (Opus cit.)
Se não fosse por outros motivos, bastaria saber que os divertimentos e esportes, por outro lado, salvam tantos da neurose, para que eu não alimentasse a idéia de combatê-los. "Tudo é necessário", ensina Suddha Dharma. É necessário que continuem existindo "esses canais de fuga", e que poderiam também ser veículos sadios de cultura e instrumentos de educação. Cinemas, esportes, literatura, teatro, televisão e rádio não constituem fatores de desordens nervosas a não ser pela forma irracional, inconseqüente e amoral em que hoje em dia são "explo.ados". Na mesma tela em que, na semana passada, milhares de adolescentes "aprenderam" com os olhos, com o cérebro, com o organismo inteiro, como assassinar ou estuprar uma jovem, nesta semana as crianças recebem uma daquelas maravilhosas mensagens de Walt Disney e saem do cinema felizes e enriquecidas, depois de terem degustado, pelos sentidos, momentos de poesia. O mesmo aparelho televisor que exibe as brutalidades de "catch" ou as banalidades do humorismo calhorda apresenta outros espetáculos ética e esteticamente admiráveis.
Num cardápio você escolhe os pratos que lhe convém e não liga para os outros. Faça o mesmo quanto a programas de divertimento. Eduque-se esteticamente. Desenvolva, não somente bom gosto, mas o discernimento. Não escolha somente o agradável, mas o que lhe proporcione mais equilíbrio, paz e segurança psíquica e saúde orgânica.
Você já sabe das alterações profundas que se processam no organismo em conseqüência das emoções. Você conhece como o simpático e as glândulas endócrinas sob os impactos ou stress emocionais provocam rebuliço nos órgãos e em suas funções. Não ignora também que emoções suaves, delicadas, belas repercutem convenientemente em nossa felicidade na mesma medida em que as emoções violentas, alarmantes negativas minam a saúde e equilíbrio. Então, como é que você ainda vai entrar numa fila, pagar caro, para assistir a um filme cheio de atrocidades, suspense e aflição? Você está "comprando" as más emoções dos personagens do filme, com os quais você se identifica. Vá ao cinema, previamente tendo escolhido, com inteligência, o tema da película. Não vá ao cinema somente porque não "posso perder meu filmezinho sábado à tarde"... Seja dono de si mesmo. Vá ao cinema, sabendo que se a fila estiver grande, e você desistir, não se sentirá incompleto e descontente. Digo-lhe ainda mais. Use o cinema, a música, os programas de entrevista, o bom teatro, a literatura inteligente, com fins educativos e terapêuticos. Os mesmos veículos que tanto mal têm feito têm o enorme poder de construir, de enriquecer a personalidade e melhorar a saúde.

(Hermógenes - Yoga para Nervosos)

publicado às 13:07


SEXO E VIDA

por Thynus, em 18.12.16

 Duas atitudes extremas em relação a este relevante problema da vida devem ser evitadas pelos candidatos a uma vida feliz e saudável:

— castração psíquica;

— a desregrada e irracional gratificação.

A primeira é o caso dos que, por ignorância e erro, fazem do sexo um tabu, e por isso o evitam, condenam e, mesmo, o temem. Quem vê no sexo, uma imundície, uma ofensa à moral religiosa, portanto algo a ser temido; quem vê no ato sexual o "pecado original", que nos condenou ao inferno; quem vê no sexo um antideus, uma degradação, uma condenação à "vida sem Deus" ou uma vergonha a ser ocultada; quem vê no sexo uma fraqueza ou artimanha engendrada por belzebu, para tomar nossa alma; quem vê o sexo assim tão deformado, precisa mudar de idéia e começar a descobrir que, além de não ser pecado, nem ser proibido por Deus, é, ao contrário, uma expressão do próprio Deus Onipresente.

Esta castração nascida da mente é que mereceria ser chamada de belzebu. E tem sido tormento e desequilíbrio para muitos seres humanos.

É impossível, em poucas frases, demonstrar que, dentro dos limites da normalidade, o sexo é, não apenas benéfico, mas mesmo uma necessidade biológica, psíquica, moral e espiritual.

O próprio Yoga, mal interpretado, tem criado dificuldades àqueles que fanática e irracionalmente se decidem a cumprir um preceito chamado brahmacharya, que, ao pé da letra, quer dizer, caminho (charya) do Absoluto (Brahma). Esta palavra tem sido traduzida por quase todos os autores como "castidade" ou "celibato", sendo, portanto, interpretada como um veto ao sexo, uma repressão, que pode ser desastrosa aos homens vulgares.

Pobres daqueles que, sem as condições espirituais necessárias, fazem votos de castidade. Sob o peso das tensões e desequilíbrios de que caem presas, ou publicamente renunciam ao voto, ou resolvem a "coisa" na base da moral clandestina (para os outros, são renunciantes, mas, às escondidas, "dão suas voltinhas").

"Quem não pode com o peso não pega na rodilha", diz o refrão popular. Quem não tem condições espirituais para fazer renúncia ao sexo não deve fazê-la. Os verdadeiros Yoguis não reprimem por medo ou por considerarem o sexo um empecilho à realização espiritual. Eles o fazem com o fim de transformar ás energias sexuais em ojas, fulgor e força criadora do espírito e o fazem sem dar publicidade ao fato e sem qualquer violência contra a natureza. Eles não frustram ou recalcam a função 6exual que, para eles, já deixou de ser uma necessidade. Sua renúncia é resultado de maturação espiritual e, por seu turno, concorre para maior evolução.

No entanto, pode-se fazer o sexo e gozar de seus prazeres, procriando, em estado de pureza, com castidade. Para os casados, a castidade (brahmacharya) consiste em não corromper a cópula, transformando-a em divertimento excitante do qual a luxúria expulsou o amor.

O sexo é um fenômeno global, comportando vários patamares ou níveis do ser. O amor conjugai verdadeiro e santo, começa pela união em espírito e termina no nível genital. { Quando somente o último existe, estamos diante da ano- : malia, que nunca deixou de gerar decepção, desencanto, ciúme ( e crimes passionais.

A segunda atitude extremada em relação ao sexo é exatamente o abuso. É expressão de uma forma de primitivismo ou desequilíbrio psíquico, que costumo chamar geniíolatria, isto é, a busca desenfreada, inconseqüente de prazeres apenas genitais, sem qualquer participação dos níveis mais sutis e refinados do amor. O desvirtuamento, a exacerbação, a aberração da função sexual, é doença a requerer tratamento, e, infelizmente, tão freqüente, que chega a ser normal, ou t,**^., .<> o .& ,

Para terminar, eu diria que seu bem-estar e saúde psicossomática serão muito beneficiados se, sexualmente, você se comportar com pureza e castidade. Seja casto. Para isto, aprenda a amar integralmente, isto é, a partir do plano espiritual. Faça do ato sexual apenas uma parte do amor divinizado e divinizante. Seja natural. Atenda aos salutares e normais impulsos.

Evite o artificial, o antinatural. Defenda-se contra a dissipação engendrada pela erotização industrializada de nosso tempo.

Há nos dias atuais uma verdadeira indústria do erótico, em revistas, livros, filmes e teatro. Deixe isto para os outros. Que a vontade de copular seja o natural, concomitante e fruto do amor puro, limpo e santificante.

Quando você e o ser amado se extasiarem mutuamente num olhar cheio de divina ternura e apenas com isto se sentirem plenamente satisfeitos, não pensem em impotência. Ao contrário, exultem, pois estão alcançando, na vida sexual, um plano inacessível aos animais e aos imaturos.

Sendo você um praticante de Yoga, nem de leve receie impotência.

A impotência ou frieza pode ter causa anatômica ou fisiológica. Quanto à primeira, às vezes só o trabalho cirúrgico. Quanto à segunda, o Yoga resolve, quer se trate de anormalidade funcional, quer seja causada por desnutrição ou envelhecimento endócrino, quer seja de origem psíquica.

A prática de Yoga proporciona muita energia sexual, mas, ao mesmo tempo, tranqüilizando e reequilibrando a mente, vai corrigindo as causas psíquicas da genitomania.

O yoguin é rico em potencial, mas tem a tranqüilidade sóbria de quem é soberano. A soberania nasce da equanimidade.

 

(Hermógenes - Yoga para Nervosos)

publicado às 00:41


A TESE DO OTIMISMO TRÁGICO

por Thynus, em 16.12.16
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O dia mais belo? hoje; A coisa mais facil? errar; O maior obstáculo? o medo; O maior erro?; o abandono; A riz de todos os males? o egoísmo; A distração mais bela? o trabalho; A pior derrota? o desânimo; Os melhores professores? as crianças; A primeira necessidade? comunicar-se; O que mais lhe faz feliz? ser útil aos demais; O maior mistério? a morte; O pior defeito? o mau humor; A pessoa mais perigosa? a mentirosa; O sentimento mais ruim? o rancor; O presente mais belo? o perdão; O mais imprescindível? o lar; A rota mais rápida? o caminho certo; A sensação mais agradável? a paz interior; A proteção efetiva? o sorriso; O melhor remédio? o otimismo; A maior satisfação? o dever cumprido; A força mais potente do mundo? a fé; As pessoas mais necessárias? os pais; A mais bela de todas as coisas? o amor...  
(Madre Tereza de Calcutá)
Vamos começar perguntando-nos o que se deve entender por "otimismo trágico". Em resumo significa que a pessoa é e permanece otimista apesar da "tríade trágica", como é chamada em logoterapia a tríade daqueles aspectos da existência humana que podem ser circunscritos por:
1. dor;
2. culpa;
3. morte.
De fato, este capítulo levanta a questão: "Como é possível dizer sim à vida apesar de tudo isso?" Como, para colocar a questão de outra forma, pode a vida conservar o seu sentido potencial apesar dos seus aspectos trágicos? No final das contas, "dizer sim à vida apesar de tudo", para usar o título de um livro meu em alemão, pressupõe que a vida potencialmente tem um sentido em quaisquer circunstâncias, mesmo nas mais miseráveis. E isso, por sua vez, pressupõe a capacidade humana de transformar criativamente os aspectos negativos da vida em algo positivo ou construtivo. Em outras palavras, o que importa é tirar o melhor de cada situação dada. O "melhor", no entanto, é o que em latim se chama optimum - daí o motivo por que falo de um otimismo trágico, isto é, um otimismo diante da tragédia e tendo em vista o potencial humano que, nos seus melhores aspectos, sempre permite:
1. transformar o sofrimento numa conquista e numa realização humana;
2. retirar da culpa a oportunidade de mudar a si mesmo para melhor;
3. fazer da transitoriedade da vida um incentivo para realizar ações responsáveis.
Devemos manter bem claro, no entanto, que o otimismo não pode ser resultado de ordens ou determinações. Tampouco a pessoa pode forçar-se a si mesma a ser otimista indiscriminadamente, contra todas as probabilidades e contra toda esperança. E o que é verdadeiro com relação à esperança o é com relação aos outros dois componentes da tríade, na medida em que fé e amor também não podem ser impostos ou exigidos.
Do ponto de vista europeu, é bem característico da cultura norte-americana o fato de que a todo momento as pessoas são exortadas a "ser felizes". Mas a felicidade não pode ser buscada, precisa ser decorrência de algo. Deve-se ter uma razão para "ser feliz". Uma vez que a razão é encontrada, no entanto, a pessoa fica feliz automaticamente. Na nossa maneira de ver, o ser humano não é alguém em busca da felicidade, mas sim alguém em busca de uma razão para ser feliz, através - e isto é importante - da manifestação concreta do significado potencial inerente e latente numa situação dada.
Esta necessidade de uma razão é similar a outro fenômeno especificamente humano - o riso. Se você quer que alguém ria, você deve dar-lhe uma razão, tem que contar-lhe uma piada, por exemplo. Não é possível, de modo algum, obter dele uma risada real exortando-o, ou fazendo com que ele se force a rir. Fazê-lo seria o mesmo que pedir a pessoas em frente a uma máquina fotográfica que sorriam, para depois constatar nas fotos reveladas que suas fisionomias estão congeladas em sorrisos artificiais.
Em logoterapia, este padrão de comportamento é chamado de "hiperintenção", e cumpre um importante papel na origem da neurose sexual, seja frigidez ou impotência. Quanto mais o paciente - em vez de esquecer de si mesmo doando-se - esforçar-se diretamente por alcançar o orgasmo, isto é, o prazer sexual, tanto mais esta busca de prazer sexual causará seu próprio fracasso. Na verdade, o chamado "princípio¸ do prazer" é um estraga-prazeres.
Uma vez que a busca de sentido por parte do indivíduo é bem sucedida, isto não só o deixa feliz, mas também lhe dá capacidade de enfrentar sofrimento. E o que acontecerá se a procura de sentido por parte da pessoa tiver sido em vão? O resultado pode ser uma situação fatal. Quero lembrar, por exemplo, o que aconteceu algumas vezes em situações extremas como campos de concentração ou acampamentos de prisioneiros de guerra. Nestes, como ouvi de soldados americanos, surgiu um padrão de comportamento que eles chamavam de "desistite". Nos campos de concentração, este comportamento encontrava paralelo naqueles que, determinada manhã, às cinco horas, recusavam-se a levantar e a ir trabalhar, preferindo ficar na cabana, sobre a palha molhada de urina e fezes. Nada - nem advertências, nem ameaças - podia induzi-los a mudar de comportamento. E então ocorria algo típico: puxavam um cigarro do fundo de um bolso qualquer onde o haviam guardado e começavam a fumar. Naquele momento nós sabíamos que, durante as próximas quarenta e oito horas, iríamos observá-los morrer. A percepção de sentido havia desaparecido e, consequentemente, a busca do prazer imediato havia tomado as rédeas.
Porventura isto não nos lembra de uma situação paralela com que nos confrontamos todos os dias? Penso naqueles jovens, em escala mundial, que se referem a si mesmos como "geração sem futuro". Sem dúvida, não é apenas ao cigarro que eles apelam: é às drogas.
Na verdade, o consumo de drogas é apenas um aspecto de um fenômeno de massas mais geral, a saber, sentimento de falta de sentido que resulta de uma frustração das nossas necessidades existenciais - o que, por sua vez, se transformou num fenômeno universal das nossas sociedades industriais. Hoje não são apenas os logoterapeutas que afirmam que o sentimento de falta de sentido cumpre um papel sempre crescente na etiologia da neurose. Como escreve Irvin D. Yalom, da Universidade de Stanford, em Existential Psychotherapy: "De quarenta pacientes consecutivos procurando terapia numa clínica psiquiátrica de atendimento externo (...) doze (30 por cento) tinham algum problema de vulto relacionado com sentido (segundo dados de auto-avaliação, testemunhos de terapeutas ou julgamentos independentes)." Milhares de quilômetros a leste de Palo Alto, a situação difere por apenas um por cento; as últimas estatísticas pertinentes indicam que, em Viena, 29 por cento da população afirma que falta sentido e significado em suas vidas.
Quanto à origem do sentimento de falta de sentido, pode-se dizer, ainda que de maneira muito simplificadora, que as pessoas têm o suficiente com o que viver, mas não têm nada por que viver; têm os meios, mas não têm o sentido. Sem dúvida, alguns não têm nem mesmo os meios. Penso especialmente na massa de pessoas que hoje estão desempregadas. Cinqüenta anos atrás, publiquei um estudo sobre um tipo específico de depressão que havia diagnosticado em casos de pacientes jovens sofrendo do que eu chamava de "neurose de desemprego". E consegui demonstrar que esta neurose tinha realmente a sua origem numa dupla identificação errônea: estar sem emprego era considerado o mesmo que ser inútil, e ser inútil era considerado o mesmo que levar uma vida sem sentido. Consequentemente, sempre que eu conseguia persuadir os pacientes a trabalhar voluntariamente em organizações de jovens, educação de adultos, bibliotecas públicas e atividades similares - em outras palavras, quando preenchiam o seu abundante tempo livre com alguma atividade não remunerada mas significativa e portadora de um sentido - a sua depressão desaparecia, embora a sua situação econômica não houvesse mudado e a sua fome continuasse a mesma. A verdade é que o ser humano não vive apenas de bem-estar.
Ao lado da neurose de desemprego, desencadeada pela situação sócio-econômica do indivíduo, há outros tipos de depressão atribuíveis a condições psicodinâmicas ou bioquímicas; consequentemente são indicadas, conforme o caso, a psicoterapia e a farmacoterapia.
No que tange ao sentimento de falta de sentido, no entanto, não devemos esquecer que, em si, ele não é uma questão de patologia: mais do que ser sinal e sintoma de uma neurose, eu diria que é a prova da humanidade da pessoa. Mas, embora não seja causado por nada patológico, este sentimento bem pode causar uma reação patológica; em outras palavras, é potencialmente patogênico. Pensamos na síndrome neurótica de massa tão presente na jovem geração: há ampla evidência empírica de que as três facetas desta síndrome - depressão, agressão, dependência de drogas - são devidas ao que se chama em logoterapia "o vazio existencial", um sentimento de vacuidade e de falta de sentido.
Não é necessário dizer que nem todo caso de depressão pode ser atribuído a um sentimento de falta de sentido. Tampouco o suicídio - a que a depressão às vezes leva a pessoa - sempre é resultado de um vazio existencial. Contudo, mesmo que todo e qualquer caso de suicídio não tenha sido levado a cabo por causa de um sentimento de falta de sentido, é bem possível que o impulso de tirar a vida tivesse sido superado se a pessoa tivesse estado consciente de algum sentido e propósito pelos quais valesse a pena viver.
Se, portanto, uma forte percepção de sentido cumpre um papel decisivo na prevenção do suicídio - como intervir nos casos em que há risco de suicídio? Quando jovem, passei quatro anos como médico do maior hospital estatal da Áustria, onde estava encarregado do pavilhão dos pacientes em depressão profunda. A maior parte deles havia sido admitida depois de uma tentativa de suicídio. Certa vez calculei que cheguei a tratar cerca de doze mil pacientes durante aqueles quatro anos. Acumulei então um bom acervo de experiências, do qual ainda faço uso sempre que sou confrontado com alguém que tem tendência ao suicídio. Costumo explicar a tal pessoa que os pacientes repetidamente me contam como estão felizes pelo fato de não terem conseguido matar-se. Semanas, meses, anos mais tarde, dizem-me eles, descobriram que havia uma solução para seus problemas, uma resposta a sua pergunta, um sentido para suas vidas. "Mesmo que a chance de que as coisas melhorem seja apenas uma em mil" continua minha explicação, "quem pode garantir que no seu caso isso não acontecerá, mais cedo ou mais tarde? Mas em primeiro lugar você tem que viver para enxergar o dia em que isto pode acontecer, precisa sobreviver para ver nascer aquele dia, e, de agora em diante, a responsabilidade da sobrevivência não o deixará mais."
Com relação ao segundo aspecto da síndrome neurótica de massas, a agressão, desejo citar uma experiência levada a efeito certa vez por Carolyn Wood Sherif. Ela havia tido êxito em criar artificialmente agressões mútuas entre grupos de escoteiros, e observou que as agressões só cediam terreno quando os jovens se dedicavam a um objetivo comum - isto é, a tarefa conjunta de empurrar o veículo que trazia comida para seu acampamento. Eram imediatamente não só desafiados, mas também unidos por um sentido que tinham que realizar. (Para mais informações sobre este experimento, v. Viktar E. FRANKL, The Unconscious God, New York, Simon & Schuster, 1978, p. 140 (Edição brasileira: A Presença Ignorada de Deus, Rio de Janeiro, Imago; São Leopoldo, Sinodal; Porto Alegre, Sulina,1985), e Viktor E. FRANKL, The Unheard Cþy For Meaning, New York, Simon & Schus ter,1978, p. 36.)
Quanto ao terceiro ponto, dependência de drogas e álcool, lembro das descobertas apresentadas por Anne Marie von Forstmeyer, que destacou algo evidenciado por testes e estatísticas: noventa por cento dos alcoólicos que ela estudou haviam sofrido de uma falta abismal de sentido na vida. Dos dependentes de drogas estudados por Stanley Krippner, cem por cento acreditavam que "as coisas pareciam sem sentido" (Para mais informações, veja ID., The Unconscious God, pp. 97-100 ID., The Unheard Cry for Meaning, pp. 26-8.)
Voltemo-nos agora à questão do sentido em si. Para começar, gostaria de esclarecer que o logoterapeuta se preocupa em primeiro lugar com o sentido potencial inerente e latente em cada situação que uma pessoa enfrenta ao longo da vida. Por conseguinte, não farei aqui elaborações sobre o sentido da vida da pessoa em seu conjunto, embora não negue a existência de tal sentido a longo prazo. Para usar uma analogia, pense num filme que consista em milhares e milhares de fotogramas individuais. Cada um deles vem carregado de sentido e traz um significado, mas o sentido do filme todo não pode ser visto antes que sua última seqüência seja mostrada. Não obstante, não podemos entender todo o filme sem ter compreendido antes cada um dos seus componentes, cada uma das imagens individuais. Não será o mesmo com a vida? Será que o significado último da vida não se revela também (quando se revela) só no seu final, a um passo da morte? E será que também este sentido final não depende de o sentido potencial de cada situação particular ter sido realizado da melhor maneira possível, de acordo com o conhecimento e as crenças do indivíduo?
O fato é que o sentido, assim como a percepção deste sentido, vistos do ponto de vista logoterápico, estão localizados em chão firme, e não flutuando no ar ou encerrados numa torre de marfim. De modo geral, eu localizaria a percepção do sentido do sentido pessoal de uma situação concreta - num ponto intermediário entre uma experiência do tipo "ah!" na linha do conceito de Karl Bizhler, e uma percepção de Gestalt, digamos, na linha da teoria de Max Wertheimer. A percepção do sentido difere do conceito clássico de percepção de Gestalt na medida em que esta última implica a súbita consciência de uma "figura" num "solo", enquanto a percepção do sentido, como eu a vejo se reduz mais especificamente a tomar consciência de uma possibilidade contra o pano de fundo da realidade ou, para expressa-lo de modo mais simples, perceber o que pode ser feito em determinada situação. E como pode um ser humano encontrar sentido? Como Charlotte Bühler escreveu: "Tudo que podemos fazer é estudar a vida das pessoas que parecem haver encontrado suas respostas às questões em torno das quais gira em última análise a vida humana e compará-la com a vida daquelas que não as encontraram."
Além deste enfoque biográfico, no entanto, podemos também desenvolver um enfoque biológico. A logoterapia vê a consciência como um fator estimulador que, se necessário, indica a direção em que temos que nos mover em determinada situação da vida. Para levar a cabo tal tarefa, a consciência deve aplicar uma fita métrica à situação enfrentada. A situação deve ser medida e avaliada à luz de um conjunto de critérios e uma hierarquia de valores. Estes valores, no entanto, não podem ser escolhidos e adotados por nós num nível consciente - constituem algo que nós somos. Eles se cristalizaram no curso da evolução da nossa espécie; estão fundamentados no nosso passado biológico e é lá que têm suas raízes. Konrad Lorenz pode ter pensado algo parecido quando desenvolveu o conceito de um "a priori biológico", e quando nós dois discutimos recentemente minha própria visão da origem biológica do processo de avaliação, ele concordou com entusiasmo. De qualquer modo, se existe uma auto-compreensão axiológica pré-reflexiva, podemos supor que ela está ancorada em última instância na nossa herança biológica.
Como ensina a logoterapia, há três caminhos principais através dos quais se pode chegar ao sentido na vida. O primeiro consiste em criar um trabalho ou fazer uma ação. O segundo está em experimentar algo ou encontrar alguém; em outras palavras, o sentido pode ser encontrado não só no trabalho, mas também no amor. Edith Weisskopf Joelson observou neste contexto que "a noção logoterápica de que a experiência pode ter tanto valor quanto a realização prática é terapêutica porque compensa a nossa ênfase unilateral no mundo externo das realizações, às custas do mundo interno da experiência".
O mais importante, no entanto, é o terceiro caminho para o sentido na vida: mesmo uma vítima sem recursos, numa situação sem esperança, enfrentando um destino que não pode mudar, pode erguer-se acima de si mesma, crescer para além de si mesma e, assim, mudar-se a si mesma. Pode transformar a tragédia pessoal em triunfo. Foi novamente Edith Weisskopf Joelson quem, como mencionado na pg.129, certa vez expressou a esperança de que a logoterapia "possa ajudar a reagir contra certas tendências pouco sadias na atual cultura dos Estados Unidos, onde o sofredor incurável recebe muito pouca oportunidade de ter orgulho do seu sofrimento e de o considerar enobrecedor, ao invés de degradante", de modo que "ele não só é infeliz, mas também tem vergonha de ser infeliz."
Durante um quarto de século dirigi o departamento neurológico de um hospital de clínica geral e pude testemunhar a capacidade dos meus pacientes de transformar seus sofrimentos em vitórias humanas. Além de tais experiências práticas, também estão disponíveis evidências empíricas da possibilidade de a pessoa encontrar sentido no sofrimento. Pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade do Yale "ficaram impressionados pelo número de ex-prisioneiros da guerra do Vietnam que afirmavam explicitamente que, embora a sua prisão tivesse sido uma experiência extraordinariamente difícil - com torturas, doenças, fome e confinamento em celas solitárias - eles, não obstante, (...) se haviam beneficiado com a experiência de crescimento".
Mas os argumentos mais poderosos em favor de um "otimismo trágico" são aqueles que em latim se chamam argumenta ad hominem. Jerry Long, para citar um exemplo, é testemunho vivo do "poder desafiador do espírito humano", como se diz em logoterapia. Para citar a Texana Gazette: "Jerry Long está paralisado do pescoço para baixo desde um acidente que o deixou quadriplégico três anos atrás. Tinha dezessete anos quando o acidente ocorreu. Hoje, Long consegue usar um pauzinho com a boca para escrever à máquina. Está acompanhando dois cursos no Communnity College através de um telefone especial. O inter-comunicador permite a Long ouvir e participar das discussões de aula. Também ocupa seu tempo lendo, assistindo televisão e escrevendo." E numa carta que recebi dele, Long escreveu: "Vejo minha vida cheia de sentido e de objetivos. A atitude que adotei naquele dia fatal se transformou no credo da minha vida: eu quebrei meu pescoço, não quebrei meu ser. Atualmente estou matriculado no meu primeiro curso de Psicologia a nível universitário. Acho que minha deficiência só vai aumentar a minha capacidade de ajudar a outros. Sei que, sem o sofrimento, o crescimento que atingi teria sido impossível.
Será que isso significa que o sofrimento é indispensável à descoberta de sentido? De modo algum. Insisto apenas em que o sentido está disponível apesar do - não, através do - sofrimento, desde que, como ressaltado na segunda parte deste livro, o sofrimento seja inevitável. Se for evitável, o que faz sentido é remover a sua causa, porque sofrimento desnecessário é masoquista e não heróico. Por outro lado, mesmo se a pessoa não puder mudar a situação que causa seu sofrimento, pode escolher a sua atitude. (Nunca esquecerei uma entrevista a que assisti certa vez na TV austríaca, dada por um cardiologista polonês que durante a Segunda Guerra Mundial ajudou a organizar a revolta do gueto de Varsóvia. "Que feito heróico!", exclamou o repórter. "Escute", disse calmamente o doutor, "pegar uma arma e atirar não é grande coisa; mas se a SS levar você a uma câmara de gás ou a uma cova coletiva para a execução e você não puder fazer nada a respeito, exceto dar seus últimos passos com dignidade, veja bem, isto é o que eu chamo de heroísmo." O heroísmo está na atitude, por assim dizer.) Long não havia querido quebrar seu pescoço. Mas ele decidiu não deixar-se quebrar a si mesmo por causa do que lhe acontecera.
Como vemos, a prioridade permanece com a mudança criativa da situação que nos faz sofrer. Mas realmente superior é o saber como sofrer, quando se faz necessário. E há evidências empíricas de que - literalmente - o "homem comum" é exatamente da mesma opinião. Pesquisas de opinião pública da Áustria revelaram recentemente que aqueles que atraíam a maior estima e consideração entre a maioria dos entrevistados não eram os grandes artistas, cientistas, estadistas ou esportistas, mas aqueles que eram capazes de atravessar experiências difíceis com suas cabeças erguidas.
Ao enfocar o segundo aspecto da tríade trágica, a saber, a culpa, gostaria de partir de um conceito teológico que para mim sempre foi fascinante. Refiro-me ao chamado mysterium iniquitatis, que significa, segundo a minha visão, que em última análise um crime permanece inexplicável na medida em que não pode ser completamente investigado em suas origens biológicas, psicológicas e/ou sociológicas. Explicar totalmente o crime de alguém seria o mesmo que eliminar sua culpa e vê-lo não como uma pessoa humana livre e responsável, mas como uma máquina a ser consertada. Até os próprios criminosos detestam este tratamento e preferem ser considerados responsáveis pelo que fizeram. Um preso cumprindo sua sentença numa penitenciária de Illinois mandou-me uma carta na qual lamentava que "o criminoso nunca tem uma chance de explicar-se. Ele recebe uma variedade de desculpas entre as quais pode escolher. A sociedade é acusada e em muitos casos a acusação é feita contra a vítima." Além disso, quando falei aos presos em San Quentin, disse a eles: "Vocês são seres humanos como eu, e como tais tiveram a liberdade de cometer um crime, de tornar-se culpados. Agora, no entanto, vocês têm a responsabilidade de superar a culpa erguendo-se acima dela, crescendo para além de vocês mesmos e mudando pessoalmente para melhor." Eles se sentiram compreendidos. E Frank E. W, ex-preso, mandou-me um bilhete dizendo que havia começado um grupo de logoterapia para ex-criminosos. "Somos 27, e os mais novos estão permanecendo fora da prisão através da força solidária do grupo inicial. Só um voltou - e agora já está livre."
Quanto ao conceito de culpa coletiva, penso pessoalmente que é totalmente injustificado responsabilizar uma pessoa pelo comportamento de outra ou de um grupo de pessoas. Desde o final da Segunda Guerra Mundial, não canso de argumentar publicamente contra o conceito de culpa coletiva. As vezes, no entanto, é necessária uma boa quantidade de truques didáticos para afastar as pessoas das suas superstições. Uma mulher norte-americana uma vez me lançou uma crítica: "Como é que você consegue escrever livros em alemão, se é a língua de Adolf Hitler?" Em resposta, perguntei a ela se usava facas em sua cozinha. Quando respondeu que sim, me mostrei desanimado e chocado, e exclamei: "Como é que você consegue usar facas se tantos assassinos já as usaram para apunhalar e matar suas vítimas?" Então ela desistiu de criticar-me por escrever livros em alemão.
O terceiro aspecto da tríade trágica diz respeito à morte. Porém ele diz respeito à vida também, porque sempre cada um dos instantes de que a vida é feita está morrendo, e aquele instante nunca mais volta. Mas, porventura não é esta transitoriedade algo que nos estimula e desafia a fazer o melhor uso possível de cada momento de nossas vidas? Certamente que sim, e daí surge meu imperativo: "Viva como se você estivesse vivendo pela segunda vez e como se tivesse agido todo erradamente, na primeira vez como está por agir agora."
Na verdade, as oportunidades de agir de modo apropriado, as potencialidades para realizar um sentido, são afetadas pela irreversibilidade das nossas vidas. Mas também só as potencialidades são afetadas por este fato. Porque tão logo usamos uma oportunidade e realizamos um sentido potencial, isto está feito de uma vez por todas. Já o libertamos para o passado, onde foi entregue e depositado em segurança. No passado, nada fica irremediavelmente perdido, mas, ao contrário, tudo é irreversivelmente estocado e entesourado. Sem dúvida, as pessoas tendem a ver somente os campos desnudos da transitoriedade, mas ignoram e esquecem os celeiros repletos do passado, em que mantêm guardada a colheita das suas vidas: as ações feitas, os amores amados e, não menos importantes, os sofrimentos enfrentados com coragem e dignidade.
A partir disso se pode ver que não há razão para ter pena de pessoas velhas. Em vez disso, as pessoas jovens deveriam invejá-las. É verdade que os velhos já não têm oportunidades nem possibilidades no futuro. Mas eles tem mais do que isso. Em vez de possibilidades no futuro, eles têm realidades no passado – as potencialidades que efetivaram os sentidos que realizaram, os valores que viveram - e nada nem ninguém pode remover jamais seu patrimônio do passado.
Em vista da possibilidade de encontrar sentido no sofrimento, o significado da vida passa a ser algo incondicional - ao menos potencialmente. Este sentido incondicional, no entanto, encontra paralelo no valor incondicional que cada pessoa, sem exceção, possui. E é isto que garante o fato indelével da dignidade humana. Assim como a vida permanece potencialmente significativa sob quaisquer circunstâncias, mesmo as mais miseráveis, também o valor de cada pessoa, sem exceção, a acompanha, e o faz porque está baseado nos valores que a pessoa já realizou no passado. Não está subordinado à utilidade que a pessoa possa ter ou não no presente.
Mais concretamente; esta utilidade é normalmente definida em termos de funcionamento para o benefício da sociedade. Mas a sociedade de hoje se caracteriza pela orientação do sucesso pessoal e, consequentemente, adora as pessoas exitosas e felizes. Em particular, adora os jovens. Praticamente ignora o valor de todos os que são diferentes e, ao fazê-lo, apaga a decisiva diferença entre ter valor no sentido de dignidade e ter valor no sentido de utilidade. Se não se está consciente desta diferença, mas se considera que o valor de um indivíduo nasce apenas da sua utilidade atual - neste caso, acreditem-me, é apenas por incoerência pessoal que não se advogasse a eutanásia na linha do programa de Hitler. Isto é, matar por "piedade" a todos aqueles que perderam sua utilidade social, seja devido à idade avançada, doença incurável, deterioração mental ou outra deficiência qualquer.
Confundir a dignidade do ser humano com mera utilidade surge de uma confusão conceptual que, por sua vez, pode ser atribuída em suas origens ao neolismo contemporâneo transmitido em muitas universidades e psicanálises. Mesmo no treinamento de psicoterapeutas tal doutrinação pode ser levada a cabo. O nulismo não afirma que não existe nada, mas afirma que tudo é desprovido de sentido. E George A. Sargent estava certo quando promulgou o conceito de "falta de sentido aprendida". Ele mesmo lembrava de um terapeuta que disse: "George, você deve compreender que o mundo é uma piada. Não há justiça, tudo é acaso. Só quando você compreender isso vai perceber como é errado levar-se a si mesmo a sério. Não há um grande propósito no universo. O universo é, simplesmente. Não há sentido particular na decisão que você tomar hoje com relação a como agir.
Não devemos generalizar uma crítica destas. Em princípio, o treinamento é indispensável, mas, neste caso, os terapeutas deveriam ver como sua tarefa de imunizar os treinados contra o nulismo, em vez de inoculá-los com o cinismo que constitui um mecanismo de defesa contra seu próprio nulismo.
Os logoterapeutas podem até mesmo aceitar algumas das condições de treinamento e licenciamento estipuladas pelas outras escolas de psicoterapia. Em outras palavras, podemos uivar junto com os lobos, se for necessário. Ao fazê-lo, porém, deveríamos ser - e quero colocar o máximo de ênfase nisso – uma ovelha em pele de lobo. Não há necessidade de trair o conceito básico de ser humano e os princípios da filosofia de vida inerentes à logoterapia. Esta lealdade não é difícil de manter, tendo em vista o fato de que, como Elisabeth S. Lucas ressaltou certa vez, "ao longo da história da psicoterapia jamais existiu uma escola tão pouco dogmática como a logoterapia" (A logoterapia não é imposta aos interessados em psicoterapia. Não é comparável a um bazar oriental, mas a um supermercado. No primeiro, o freguês é convencido a comprar algo. Neste último, são-lhe mostradas e oferecidas várias coisas, das quais ele pode pegar as que considerar valiosas e úteis.) E no I Congresso Mundial de Logoterapia (San Diego, Califórnia, 6 a 8 de novembro de 1980), argumentei não somente pela reumanização da psicoterapia, mas também pelo que chamei de "desguruficação da logoterapia". Meu interesse não está em criar papagaios que reproduzem "a voz do mestre", mas em passar a tocha acesa para "espíritos independentes e inventivos, inovadores e criativos".
Sigmund Freud afirmou em certa ocasião: "Imaginemos que alguém coloca determinado grupo de pessoas, bastante diversificado, numa mesma e uniforme situação de fome. Com o aumento da necessidade imperativa da fome, todas as diferenças individuais ficarão apagadas, e em seu lugar aparecerá a expressão uniforme da mesma necessidade não satisfeita." Graças a Deus, Sigmund Freud não precisou conhecer os campos de concentração do lado de dentro. Seus objetos de estudo deitavam sobre divãs de pelúcia desenhados no estilo da cultura vitoriana, e não na imundície de Auschwitz. Lá, as "diferenças individuais" não se "apagaram", mas, ao contrário, as pessoas ficaram mais diferentes; os indivíduos retiraram suas máscaras, tanto os porcos como os santos. E hoje não se precisa mais hesitar no uso da palavra "santos". Basta pensar no padre Maximilian Kolbe, que foi deixado passando fome e finalmente assassinado através de uma injeção de ácido carbólico em Auschwitz, e que, em 1983, foi canonizado.
Você pode estar inclinado a acusar-me de invocar exemplos que são exceções à regra. "Sed omnia praeclara tam difficilia quam rara sunt" (mas tudo que é grande é tão difícil de compreender quanto de encontrar), conforme diz a última frase da Ética de Espinoza. Naturalmente, você pode perguntar se realmente precisamos referir-nos a "santos". Não seria o suficiente referir-nos a pessoas decentes? É verdade que elas formam uma minoria. Mais que isso, sempre serão uma minoria. E, no entanto, vejo justamente neste ponto o maior desafio a que nos juntemos à minoria. Porque o mundo está numa situação ruim. Porém tudo vai piorar ainda mais se cada um de nós não fizer o melhor que pode. Portanto, fiquemos alerta - alerta em duplo sentido: Desde Auschwitz nós sabemos do que o ser humano é capaz. E desde Hiroshima nós sabemos o que está em jogo.
 
(Viktor E. Frankl - EM BUSCA DE SENTIDO, Um Psicólogo no Campo de Concentração)

publicado às 11:23

O que sabemos é que a felicidade é desesperadora. Freud escreve em algum lugar, retomando uma fórmula de Goethe acho, que não há nada mais difícil a suportar do que uma sucessão ininterrupta de três lindos dias... Talvez para todos os que só sabem viver de esperança: três lindos dias que se seguem é difícil porque não deixam mais grande coisa a esperar... É o estresse do normalien, no ano que segue o exame de ingresso no magistério. O estudo é demorado, difícil, o estudante se dizia anos a fio: "Como serei feliz no dia em que tudo isso tiver acabado, quando eu passar no exame!" E de repente você é professor e lhe oferecem mais um ano na École Normale, para você aproveitar a vida ou começar uma tese... O que mais esperar ou o que de melhor esperar? Nada. É o momento mais fácil da vida, o mais feliz, ou que deveria sê-lo... Mas a realidade é bem diferente: é o momento em que o normalien fica deprimido e se pergunta se já não é tempo de filosofar de verdade... Alguns deles, em todo caso. Há outros que já passam a esperar um cargo de mestre de conferências, ou que se preparam para o concurso da École Nationale d'Administration... Cada um tem as diversões que merece.

Então, o que sabemos é que a felicidade é desesperante; o que tento pensar é que o desespero pode ser alegre: que a felicidade seja desesperada e o desespero, feliz! Isso quer dizer que o desespero, no sentido em que eu o tomo, não é o extremo da infelicidade ou o acabrunhamento depressivo do suicida. É antes o contrário: emprego a palavra num sentido literal, quase etimológico, para designar o grau zero da esperança, a pura e simples ausência de esperança. Também poderíamos chamá-lo de inesperança... Mas não gosto muito de neologismos e, além do mais, o termo inesperança daria a falsa impressão da facilidade, como se nos tornássemos sábios de um dia para o outro, como se bastasse decidir, como se pudéssemos nos instalar na sabedoria como quem se instala numa poltrona... A palavra desespero, em sua dureza, em sua luz escura, exprime a dificuldade do caminho. Ela supõe um trabalho, no sentido em que Freud fala de trabalho do luto, e no fundo é o mesmo trabalho. A esperança é primeira; portanto é necessário perdê-la, o que é quase sempre doloroso. Eu gosto, na palavra desespero, que se ouça um pouco essa dor, esse trabalho, essa dificuldade. Um esforço, dizia Spinoza, para nos tornar menos dependentes da esperança... Portanto o desespero, no sentido em que emprego a palavra, não é a tristeza, menos ainda o niilismo, a renúncia ou a resignação: é antes o que eu chamaria de um gaio desespero, um pouco no mesmo sentido em que Nietzsche falava do gaio saber. Seria o desespero do sábio: seria a sabedoria do desespero.

Por quê? Porque o sábio (o sábio que não sou, é bom esclarecer, e que sem dúvida ninguém aqui pretende ser; mas, como diziam os estóicos, se você quer avançar, precisa saber aonde vai; digamos que a sabedoria é a meta que fixamos para nós, como uma idéia reguladora, para tentar avançar...) , o sábio, dizia eu, não tem mais nada a esperar/aguardar, nem a esperar/ter esperança. Por ser plenamente feliz, não lhe falta nada. E, porque não lhe falta nada, é plenamente feliz.

Eu evocava a fórmula de Spinoza, na Ética: "Não há esperança sem temor, nem temor sem esperança." Foi assim, para mim, que tudo começou, quero dizer todos esses livros, todo esse trabalho, todo esse caminho... Foi pouco depois do exame para o magistério, um ou dois anos talvez: certa manhã eu me levanto com essa frase de Spinoza na cabeça... Eu a conhecia muito bem, eu a tinha citado ou comentado com freqüência, mas sem apreender todo o seu alcance. E aí, de repente, ao acordar, esta evidência: se não há esperança sem temor nem temor sem esperança, deve-se concluir que o sábio, de acordo com Spinoza, não espera nada. A sabedoria é a serenidade, a ausência de temor... Já que não há esperança sem temor, se o sábio não tem temor é que não tem esperança. Então o sábio, para Spinoza, é desesperado?. A idéia me pareceu ao mesmo tempo inquietante e bela. Abri de novo a Ética... E descobri primeiro, claro, que não é a palavra que Spinoza utiliza. Desperatio34, na Ética, é antes o que eu chamaria de decepção ou abatimento. Estamos desesperados, explica Spinoza, quando passamos do temor (sempre mesclado de dúvida e de esperança) à certeza de que o que temíamos se produziu ou vai necessariamente se produzir; em outras palavras, quando já não há motivo de duvidar nem, portanto, de esperar. Não é nesse sentido, todos entenderam, que emprego a palavra "desespero". Não é portanto uma palavra que tomo emprestada de Spinoza, mas certa idéia, mas certo caminho. Que caminho? O da desilusão, da lucidez, do conhecimento, o caminho que deve "nos tornar menos dependentes da esperança e nos libertar do temor"35. Que idéia? A de béatitude: a felicidade de quem não tem mais nada a esperar. Porque está perdido? Não, porque não tem mais nada a perder, porque está salvo, salvo aqui e agora. Nesta vida. Neste mundo. Porque a verdade lhe basta e o sacia. É o que significava o título do meu primeiro livro: Tratado do desespero e da beatitude... Eu queria mostrar que o desespero e a beatitude não são dois contrários, entre os quais seria preciso escolher, mas antes, aqui também, como as duas faces de uma mesma moeda, ou como dois pontos de vista - sub specie temporis, sub specie aeternitatis: do ponto de vista do tempo, do ponto de vista da eternidade - relativos a uma mesma existência, que é a do sábio, que seria a nossa, se soubéssemos vivê-la e pensá-la em verdade.

Acontece que, alguns anos depois da publicação desse meu primeiro livro, folheando Chamfort dei com uma idéia que eu acreditava ter inventado: "A esperança não passa de um charlatão que nos engana sem cessar; e, para mim, a felicidade só começou quando eu a perdi." Isso eu sabia perfeitamente não ter inventado. Mas Chamfort prossegue: "Eu colocaria de bom grado na porta do paraíso o verso que Dante colocou na do inferno: Abandonai toda esperança, vós que entrais!"36

Eu escrevera a mesma coisa, quase palavra por palavra, no Tratado do desespero e da beatitude. O que eu queria dizer? O que queria dizer Chamfort? Que colocar essa frase na porta do inferno é inútil. Como querer que os danados não tenham esperança? Eles sofrem demais! Eles esperam necessariamente alguma coisa, que aquilo pare, talvez um sobressalto de misericórdia divina, ou simplesmente que acabem se acostumando e sofrendo um pouco menos... No inferno, é praticamente impossível não esperar. Ao contrário, é o bem-aventurado, em seu paraíso, que não pode esperar mais nada - pois tem tudo. Santo Agostinho e São Tomás escreveram isso explicitamente: no Reino, já não haverá esperança, pois não haverá mais nada a esperar; já não haverá fé, pois conheceremos Deus; não haverá mais que a verdade e o amor. Do ponto de vista do ateu que sou, só falta acrescentar que no Reino (o inferno e o paraíso: a unidade dos dois!) já estamos: ele é aqui e agora. Trata-se de habitar esse universo que é o nosso, ou antes, que nos contém, em que nada é para acreditar, já que tudo é para conhecer, em que nada é para esperar, já que tudo é para fazer ou amar.

Eu poderia multiplicar as citações e as referências. Estava terminando o segundo volume do meu tratado quando, folheando um livro de Mircea Eliade, dei com uma citação do Samkhya Sutra, que por sua vez citava o Mahabharata, o livro imemorial da espiritualidade indiana: "Só é feliz quem perdeu toda esperança; porque a esperança é a maior tortura, que há, e o desespero, a maior felicidade. "37 Eu estava terminando um livro que se chamava Tratado do desespero e da beatitude, no qual, à minha moda laboriosa, a de um intelectual ocidental, eu procurava expressar mais ou menos - em cerca de seiscentas páginas — essa idéia de que o Mahabharata, em três linhas, me dava o resumo exato! Foi uma grande emoção e uma grande alegria. Sempre disse a meus alunos: se vocês acham que têm uma idéia que nunca ninguém teve, é de temer que se trata de uma tolice. Inversamente, encontrar uma das suas idéias num bom autor do passado é sempre tranqüilizador.

Desde a publicação desse primeiro livro, amigos e leitores tiveram a gentileza de me mandar, ao acaso das suas leituras, certas referências que coincidiam com minhas idéias. Foi assim que descobri Svami Prajnanpad38, Etty Hillesum39, Melanie Klein ("quando o desespero está no auge, o amor desponta...")40, ou simplesmente colecionei certo número de citações. Esta por exemplo do filósofo georgiano Merab Mamardachvili: "Vivi minha vida Samkhya-Sutra, IV, 11 (a segunda parte da frase é uma citação do toda sem esperança. Se ultrapassamos o limite do desespero, abre-se então diante de nós uma planície serena, diria até jubilosa." Ou esta outra, que meu amigo Michel Piquemal acaba de me mandar por fax, tirada de um autor que no entanto conheço bem - trata-se de Jules Renard, em seu Diário -, mas de que não me lembrava (encontrei a passagem no meu exemplar: está sublinhada em vermelho, com um ponto de exclamação na margem...): "Nada desejo do passado. Já não conto com o futuro. O presente me basta. Sou um homem feliz porque renunciei à felicidade."41 Renunciar à felicidade? É a única maneira de viver: parando de esperar!

Em suma, a ideia central do meu tratado era de que o desespero e a beatitude podem e devem andar juntos - de que só teremos felicidade à proporção do desespero que formos capazes de suportar, de habitar, de atravessar. Esse desespero não é o cúmulo da tristeza, não é o desespero do suicida (se ele se suicida é que espera morrer), é antes o gaio desespero de quem não tem nada mais a esperar porque tem tudo, porque o presente lhe basta ou o sacia. É o desespero no sentido em que Gide dizia lindamente: "Eu gostaria de morrer totalmente desesperado." Isso não significava que ele quisesse morrer na tristeza, mas que queria morrer num estado em que não houvesse mais nada a esperar, que seria a única maneira, de fato, de morrer feliz.

Como esperar é desejar sem saber, sem poder, sem gozar, o sábio não espera nada. Não que ele saiba tudo (ninguém sabe tudo), nem que possa tudo (ele não é Deus), nem mesmo que ele seja só prazer (o sábio, como qualquer um, pode ter uma dor de dente), mas porque ele cessou de desejar outra coisa além do que sabe, ou do que pode, ou do que goza. Ele não deseja mais que o real, de que faz parte, e esse desejo, sempre satisfeito - já que o real, por definição, nunca falta: o real nunca está ausente -, esse desejo pois, sempre satisfeito, é então uma alegria plena, que não carece de nada. É o que se chama felicidade. É também o que se chama amor.

De fato o que é o amor? Eu evocava, ao começar, a definição de Platão, segundo a qual o amor é desejo e o desejo é falta. Terminemos com a definição de Spinoza. Este último concordaria com Platão para dizer que o amor é desejo; mas com certeza não para dizer que o desejo é falta. Para Spinoza, o desejo não é falta, o desejo é potência: potência de existir, potência de agir, potência de gozar e de se regozijar42. Potência, pois, por exemplo no sentido em que se fala de potência sexual, mas não apenas. Sexualmente, com certeza não é a mesma coisa ser frustrado e ser potente. Mas tampouco é a mesma coisa ter falta de comida (passar fome) e ter a potência de gozar o que se come (comer com apetite). No fundo, ser platônico é reduzir o apetite (a potência de gozar o que fazemos) à fome (à falta do que não temos): é só ter vontade de comer quando estamos com fome, ou mesmo, no limite, quando a comida não está presente, é só ter vontade de fazer amor quando nos faz falta, ou mesmo, no limite, quando estamos sozinhos... Uma filosofia para tempos de penúria, se quiserem... Mas em tempo de penúria sem dúvida há coisa melhor a fazer do que filosofia. O desejo, de acordo com Spinoza, seria antes essa força em nós que nos permite comer com apetite, agir com apetite, amar com apetite43. Isso não impede que o sábio tenha fome, às vezes ou com freqüência; mas dobra seu prazer, quando ele come. A fome é uma falta, um sofrimento, uma fraqueza, uma desgraça; o apetite, uma potência e uma felicidade. Foi o que perderam o anoréxico, o ruim de cama, o deprimido, aquele que não sabe desfrutar o que come, o que faz, o que é. Não é a falta que lhe falta; é a potência de gozar o que não lhe falta.

O amor é desejo, mas o desejo não é falta. O desejo é potência: potência de gozar o gozo em potencial!

Quanto ao amor, também não é falta (já que é desejo e já que o desejo é potência): o amor é alegria. É uma definição que encontramos no livro III da Ética: O amor é uma alegria que a idéia da sua causa acompanha44. É uma definição de filósofo, abstrata como convém, mas tentemos compreendê-la. O que isso quer dizer? O seguinte, que já encontrávamos em Aristóteles: "Amar é regozijar-se"45 ou, mais exatamente (já que é necessária a idéia de uma causa), regozijar-se com. Um exemplo? Imagine que alguém lhe diga esta noite, daqui a pouco: "Fico contente com a idéia de que você existe." Ou então: "Há uma grande alegria em mim; e a causa da minha alegria é a idéia de que você existe." Ou ainda, mais simplesmente: "Quando penso que você existe, fico contente..." Você vai considerar isso uma declaração de amor, e evidentemente com razão. Mas terá também muita sorte. Primeiro porque é uma declaração spinozista de amor, o que não acontece todos os dias (muita gente morreu sem ter entendido isso; aproveite!). Depois, e principalmente, porque é uma declaração de amor que não lhe pede nada. E isso é simplesmente excepcional. Vocês irão objetar: "Mas, quando alguém diz 'Eu te amo', também não está pedindo nada..." Está sim. E não apenas que o outro responda "eu também". Ou antes, tudo depende de que tipo de amor se declara. Se o amor que você declara é falta (como em Platão, mas a questão não é ser platônico ou não em termos de doutrina, a questão é estar ou não em Platão; eu nunca fui platônico, mas vivo com freqüência em Platão, como todo o mundo: toda vez que amamos o que falta, estamos em Platão), quando você diz "Eu te amo", isso significa "Você me falta" e portanto "Eu te quero" ("Te quiero", como dizem os espanhóis). Então é, sim, pedir alguma coisa, é até mesmo pedir tudo, já que é pedir alguém, já que é pedir a própria pessoa! "Eu te amo: quero que você seja minha." Ao passo que dizer "Estou contente com a idéia de que você existe" não é pedir absolutamente nada: é manifestar uma alegria, em outras palavras um amor, que, é claro, pode ser acompanhado de um desejo de união ou de posse, mas que não poderia ser reduzido a ele46. Tudo depende do tipo de amor de que se dá prova, por que tipo de objeto. E aí que residem, explica Spinoza, "toda a nossa felicidade e toda a nossa miséria"47.

Imaginem, senhoras (pois é nesse sentido que a coisa costuma acontecer, mas se as senhoras quiserem inverter os papéis não sou eu que vou me opor), imaginem que um homem aborde as senhoras na rua, esta noite ou amanhã, dizendo: "Senhora, senhorita, estou feliz com a idéia de que você existe!" Como não se pode excluir que ele tenha tirado essa idéia desta minha conferência, eu preciso lhes dar alguns elementos de resposta, com os quais farão o que quiserem... O que poderiam lhe responder? Isto, por exemplo:

"- Caro senhor, agrada-me muito saber disso. Está feliz com a idéia de que existo; ora, como está vendo, eu existo mesmo, logo vai tudo bem. Boa noite!"

Ele sem dúvida vai tentar retê-la:

"- Espere, não vá embora: quero que você seja minha!

- Ah, agora, meu caro senhor, a coisa muda. Releia Spinoza: 'O amor é uma alegria que a idéia da sua causa acompanha.' Concorda?

- Sim...

- Nesse caso, o que é que o deixa contente? Será que o que o deixa contente é a idéia de que existo, como entendi primeiro? Nesse caso, concedo-lhe que você me ama, alegro-me e lhe dou boa-noite. Ou será que o que o deixa feliz é a idéia de que eu lhe pertença, como temo ter compreendido agora? Nesse caso, o que você ama não sou eu, é a posse de mim, o que significa, caro senhor, que você só ama a você mesmo. E isso não me interessa nem um pouco!"
Vocês sem dúvida o deixarão desnorteado. Ele vai gaguejar, engasgar, replicar por exemplo:

"- Não sei... Estou apaixonado, ora bolas!

- É exatamente o que estou tentando lhe explicar! Você está apaixonado, você está em Platão, você só deseja o que não tem: eu lhe falto, você quer me possuir. Mas imagine que eu satisfaça suas investidas... De tanto ser sua, de estar presente todas as noites, todas as manhãs, necessariamente vou lhe faltar cada vez menos, por fim menos que outra ou menos que a solidão. Vivemos o bastante, você e eu, para saber como isso acaba... Quer mesmo que recomecemos essa história, mais uma vez? A mim, não interessa mais... A não ser... A não ser que você seja capaz de amar de outro modo, de ser spinozista, às vezes pelo menos, ou de viver um pouco em Spinoza, quero dizer, amar o que não lhe falta, regozijar-se com o que é. Nesse caso, poderia me interessar. Pense nisso. Aqui tem o meu telefone."

Não há amor feliz, nem felicidade sem amor. Não há amor feliz, enquanto falta ao amor seu objeto. Não há felicidade sem amor, enquanto a felicidade se regozija.

Há uma coisa que a falta não explica, que o platonismo não explica: que existam casais felizes às vezes, que haja um amor que não seja de falta mas de alegria, que não seja de frustração, mas de prazer, que não seja de tédio mas de carinho, que não seja de ilusão mas de verdade, de intimidade, de confiança, de desejo, de sensualidade, de gratidão, de humor, de felicidade... "Eu te amo", eles se dizem: "sou tão feliz por você existir, feliz por você me amar, feliz por compartilhar sua cama, sua felicidade, sua vida." Todo casal feliz é uma recusa do platonismo. Para mim, é um motivo a mais para gostar dos casais, quando são felizes, e desconfiar do platonismo.

Mas o amor vai além do casal, além até da família. "A amizade conduz sua ronda ao redor do mundo", escrevia Epicuro, exortando-nos a despertar para a vida feliz48. Não há sabedoria que não seja de alegria; não há alegria que não seja de amar. É o espírito do spinozismo, mas também de toda sabedoria verdadeira. Mesmo em Platão ou Sócrates, a fortiori em Aristóteles ou Epicuro, os momentos de sabedoria estão desse lado. Do lado da alegria, do lado do amor. Regozijar-se com o que é, em vez de se entristecer (ou só se regozijar de forma inconstante) com o que não é. Amar, em vez de esperar ou temer.

A beatitude, para retomar a expressão de Spinoza, é esse amor inesperado e verdadeiro - eterno, portanto: a verdade sempre o é - ao real que eu conheço. E o amor verdadeiro ao verdadeiro.

Concluindo, lembrarei simplesmente que o contrário de esperar não é temer, mas saber, poder e regozijar-se. Numa palavra, ou antes em três, o contrário de esperar é conhecer, agir e amar. É a única felicidade que não nos escapa. Não o desejo do que não temos ou do que não é (a falta, a esperança, a nostalgia), mas o conhecimento do que é, a vontade do que podemos, enfim o amor do que acontece e que, portanto, já nem precisamos possuir. Não mais a falta mas a potência, não mais a esperança mas a confiança e a coragem, não mais a nostalgia mas a fidelidade e a gratidão49.

Só esperamos o que não depende de nós; só queremos o que depende de nós. Só esperamos o que não é; só amamos o que é. Trata-se de operar, portanto, uma conversão do desejo: quando, espontaneamente, como a criança antes do Natal, só sabemos desejar o que nos falta, o que não depende de nós, trata-se de aprender a desejar o que depende de nós (isto é, aprender a querer e a agir), trata-se de aprender a desejar o que é (isto é, a amar), em vez de desejar sempre o que não é (esperar ou lamentar).

Não que, saindo desta conferência, vocês devam se impedir de esperar! De jeito nenhum! Vocês não podem amputar vivos sua esperança. Por quê? Porque sempre que há desejo e ignorância, desejo e impotência, desejo e falta, há inevitavelmente esperança. Sempre que desejamos o que não sabemos, o que não depende de nós, o que não temos, a esperança está presente, sempre. Não se trata de se impedir de esperar: trata-se de aprender a pensar, a querer e a amar! "O sábio é sábio", escrevia Alain, "não por menos loucura mas por mais sabedoria." Não tentem amputar a sua parte de loucura, de esperança, portanto de angústia e de temor. Aprendam ao contrário a desenvolver sua parte de sabedoria, de potência, como diria Spinoza, em outras palavras, de conhecimento, ação e amor. Não se impeçam de esperar: aprendam a pensar, aprendam a querer um pouco mais e a amar um pouco melhor.

Eu diria de bom grado: a sabedoria não existe. Só há sábios, e eles são todos diferentes, e nenhum deles crê na sabedoria. A sabedoria é apenas um ideal, e nenhum ideal existe. É apenas uma palavra, e nenhuma palavra contém o real. Se vocês saírem daqui dizendo-se "Como eu seria feliz se fosse sábio!", é que terei fracassado. Não façam da sabedoria um novo objeto de esperança, mais um, o que equivaleria a esperar absurdamente o desespero. Se você quer ir em frente, diziam os estóicos, deve saber aonde vai. Sim. Mas o importante é ir em frente. A sabedoria é apenas um horizonte, que nunca alcançaremos absolutamente, e que no entanto nos contém: temos nossos momentos de sabedoria, como temos nossos momentos de loucura. A felicidade não é um absoluto, é um processo, um movimento, um equilíbrio, só que instável (somos mais ou menos felizes), uma vitória, só que frágil, sempre a ser defendida, sempre a ser continuada ou recomeçada. Não sonhemos a sabedoria; paremos, ao contrário, de sonhar nossa vida!

Não se trata de se impedir de esperar, nem de esperar o desespero. Tratase, na ordem teórica, de crer um pouco menos e de conhecer um pouco mais; na ordem prática, política ou ética, trata-se de esperar um pouco menos e de agir um pouco mais; enfim, na ordem afetiva ou espiritual, trata-se de esperar um pouco menos e amar um pouco mais.

Agradeço sua atenção.


(A felicidade, desesperadamente / André Comte-Sponville)

NOTAS:
34Ética, III, segundo escólio da prop. 18 e def. 15 das afeições. Ver também Court traité, II, cap. IX, § 3, assim como o que eu escrevia no Tratado do desespero e da beatitude, p. 34].
35. 32. Ética, IV, escólio da prop. 47.
36. Maximes, pensées, caracteres et anedoctes, II, 93, pp. 71-2 da ed. J. Dagen, G.-F., 1968. A frase de Dante é tirada da Divina comédia, claro {Inferno, III, 9). Eu a mudei de lugar da mesma maneira no Tratado do desespero e da beatitude, p. 26].
37. Mahabharata), citado por Mircea Eliade, Le Yoga, Payot, 1972, cap. I ("Les doctrines yoga"), reed. 1983, p. 40. Ver a esse respeito o que eu escrevia em Viver, pp. 356-7].
38. Eu me expliquei sobre ele no pequeno livro que lhe consagrei: De Vautre côté du désespoir (Introduction à lapensée de Svami Prajnanpad), Editions Accarias-L'Originel, Paris, 1997.
39. Etty Hillesum, Une vie bouleversée, diário, trad. fr., Seuil, 1985. Ver também o que eu dizia a seu respeito em De L'autre côté du désespoir, pp. 107-12.
40. M. Klein, Essais de psychanalyse, p. 328 (trad. fr., Payot, 1982, p. 359).
41. Jules Renard, Journal, 9 de abril de 1895 (Éditions 10-18, 1984, t. l,p. 265).
42. Ver Ética, III, prop. 6 a 13, com as demonstrações e os escólios.
43. Sobre a noção de apetite em Spinoza, ver Ética, III, escólio da prop. 9. O apetite é o contato humano (o esforço de todo homem para perseverar em seu ser) na medida em que "se relaciona ao mesmo tempo à alma e ao corpo", pelo que não "é nada mais que a essência mesma do homem" ("não há diferença alguma entre o apetite e o desejo, salvo que o desejo geralmente se refere aos homens, na medida em que têm consciência de seus apetites").
44. Ver Ética, III, escólio da prop. 13, e definição 6 das afeições. Mantenho aqui o enunciado dessa definição tal como ela me veio à boca, enunciado que não é exatamente idêntico ao de Spinoza. Terei a oportunidade de me explicar a respeito no debate que segue esta conferência.
45. Aristóteles, Éthique à Eudème, VII, 2, 1237 a 37-40 (trad. fr. V Décarie, Vrin-Presses de L'Université de Montreal, Paris-Montréal, 1984, p. 162). Sobre esse pensamento do amor, que só posso esboçar aqui, ver meu Petit traité des grandes vertues, PUF, 1955, cap. 18, pp. 291-385 [trad. bras., Pequeno tratado das grandes virtudes, São Paulo, Martins Fontes, 1995, pp. 241-311].
46. Ver Ética, III, explicação da definição 6 das afeições.
47. 44. Traité de la reforme de Ventendement, § 3 (ed. fr. Appuhn, G.-F., p. 183) ou 9 (ed. Caillois, Pléiade, p. 161). Ver também Court traité, II, 5 (trad. fr. Appuhn, t. 1, pp. 99-102). Em Spinoza, nota Pierre-François Moreau, "só vivemos pelo amor" (Spinoza, Lexpérience et Véternitê, PUF, 1994, p. 177).
48. Sentença vaticana 52.
49. Sobre essas diferentes noções, que aqui só posso designar de passagem, ver Viver, pp. 260-73], assim como os capítulos 2, 5, 10 e 18 do Pequeno tratado das grandes virtudes.

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