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O que é a filosofia?

por Thynus, em 30.09.16
Vou então lhe contar a história da filosofia. Não toda, certamente, mas pelo menos de seus cinco maiores momentos. Eu lhe darei exemplos de uma ou duas grandes visões do mundo ou, como se diz às vezes, de um ou dois grandes “sistemas de pensamento” ligados a uma época, a fim de que você possa começar a ler sozinho, se tiver vontade. Logo de saída, quero também lhe fazer uma promessa: se você se der o trabalho de me acompanhar, saberá de verdade o que é a filosofia. Terá mesmo uma ideia bastante precisa para decidir se quer ou não se interessar por ela, lendo, por exemplo, mais a fundo um dos grandes pensadores sobre os quais vou lhe falar.
Infelizmente — a menos que, ao contrário, seja uma coisa boa, uma astúcia da razão para nos obrigar a refletir — a pergunta que deveria ser óbvia, “O que é a filosofia?”, é uma das mais controversas que conheço. A maioria dos filósofos atuais ainda a discute sem conseguir chegar a um acordo.
Quando eu estava no final do curso, meu professor me garantia que se tratava “simplesmente” de uma “formação do espírito crítico e da autonomia”, de um “método de pensamento rigoroso”, de uma “arte da reflexão” enraizada numa atitude de “espanto”, de “questionamento”... Ainda hoje você encontrará essas definições em muitas obras de iniciação.
Apesar de todo o respeito que sinto por ele, penso que tais definições não têm quase nada a ver com a base da questão.
Certamente é preferível que em filosofia se reflita. Que se pense nela, se possível, com rigor e, por vezes, de modo crítico e interrogativo também. Mas nada disso tem absolutamente nada de específico. Estou certo de que você mesmo conhece inúmeras outras atividades humanas sobre as quais nos interrogamos, sobre as quais tentamos discutir do melhor modo possível, sem que sejamos obrigatoriamente filósofos.
Os biólogos e os artistas, os físicos e os romancistas, os matemáticos, os teólogos, os jornalistas e até os políticos refletem ou se interrogam. Nem por isso, que eu saiba, são filósofos. Uma das principais extravagâncias do período contemporâneo é reduzir a filosofia a uma simples “reflexão crítica” ou ainda a uma “teoria da argumentação”. A reflexão e a argumentação são, sem dúvida alguma, atividades altamente apreciáveis. É verdade que são mesmo indispensáveis à formação de bons cidadãos, capazes de participar com alguma autonomia da vida da cidade. Mas trata-se aí apenas de meios para outros fins diferentes da filosofia — pois esta não é nem instrumento político nem muleta da moral.
Sugiro então que você ultrapasse esse lugar-comum e aceite, por agora, uma outra abordagem, enquanto não é capaz de ver por si mesmo.
Ela parte de uma consideração muito simples, mas na qual se encontra latente a interrogação central de toda filosofia: o ser humano, diferentemente de Deus — se é que ele existe —, é mortal ou, para falar como os filósofos, é um “ser finito”, limitado no espaço e no tempo. Mas, diferentemente dos animais, é o único que tem consciência de seus limites. Ele sabe que vai morrer e que seus próximos, aqueles a quem ama, também. Ele não pode, portanto, evitar interrogar-se sobre essa situação que, a priori, é inquietante, até mesmo absurda e insuportável. Certamente é por isso que ele se volta de imediato para as religiões que lhe prometem a “salvação”.
A finitude humana e a questão da salvação
Gostaria que você compreendesse bem esta palavra — “salvação” — e percebesse também como as religiões tentam assumir as questões que ela levanta. Porque o mais simples, para começar a delimitar o que é a filosofia, ainda é, como você vai ver, situá-la em relação ao projeto religioso.
Abra um dicionário e verá que “salvação” designa primeiramente e antes de tudo “o fato de ser salvo, de escapar a um grande perigo ou a uma grande desgraça”. Muito bem. Mas de que catástrofe, de que perigo medonho as religiões pretendem nos fazer escapar? Você já sabe a resposta: é da morte, sem dúvida, que se trata. Eis por que todas elas vão se esforçar, de diferentes formas, para nos prometer a vida eterna, para nos garantir que um dia reencontraremos aqueles que amamos — parentes e amigos, irmãos e irmãs, esposos e esposas, filhos e netos, dos quais a existência terrestre, inelutavelmente, vai nos separar.
No Evangelho de João, o próprio Jesus vive a experiência da morte de um amigo querido, Lázaro. Como qualquer outro ser humano, ele chora. Ele simplesmente vive a experiência, como eu ou você, do dilaceramento ligado à separação. Porém, diferentemente de nós, simples mortais, ele tem o poder de ressuscitar o amigo. Ele diz que faz isso para mostrar que “o amor é mais forte do que a morte”. E, no fundo, essa mensagem constitui o essencial da doutrina cristã da salvação: a morte, para aqueles que amam, para aqueles que têm confiança na palavra do Cristo, é apenas uma aparência, uma passagem. Pelo amor e pela fé, podemos alcançar a imortalidade.
O que vem bem a propósito, é preciso confessar. O que desejamos, de fato, acima de tudo? Não queremos ficar sozinhos, queremos ser compreendidos, amados, não queremos ficar separados dos próximos, em resumo, não queremos morrer, nem que eles morram. Ora, a existência real, um dia ou outro, frustra todas essas expectativas. É, pois, na confiança em um Deus que alguns procuram a salvação, e as religiões nos asseguram que eles a conseguirão.
Por que não, se a pessoa crê nisso e tem fé?
Mas, para aqueles que não estão convencidos, para aqueles que duvidam da veracidade dessas promessas, o problema, é claro, permanece. E é justamente aí que, por assim dizer, entra a filosofia.
Tanto mais que a própria morte — a questão é crucial se você quer compreender o campo da filosofia — não é uma realidade tão simples quanto se pensa habitualmente. Ela não se resume ao “fim da vida”, a uma parada mais ou menos brutal da nossa existência. Para se tranquilizarem, alguns sábios da Antiguidade diziam que não se deve pensar nela, pois, das duas, uma: ou estou vivo, e a morte, por definição, não está presente, ou então ela está presente, e, também por definição, eu não estou presente para me afligir! Por que, nessas condições, se preocupar com um problema inútil?
O raciocínio, infelizmente, é por demais conciso para ser honesto. Pois a verdade é que a morte, ao contrário do que sugere o adágio antigo, possui faces diferentes cuja presença é, paradoxalmente, perceptível no próprio coração da vida mais viva.
Ora, é exatamente isso o que, num momento ou noutro, atormenta esse infeliz ser finito que é o homem, já que apenas ele tem consciência de que o tempo lhe é contado, que o irreparável não é uma ilusão, e que é preciso que ele reflita bem sobre o que deve fazer de sua curta vida. Edgar Allan Poe, num de seus mais famosos poemas, encarna essa ideia da irreversibilidade do curso da existência num animal sinistro, um corvo empoleirado na beira de uma janela, que só sabe dizer e repetir uma única fórmula: Never more — “nunca mais”.
Poe quer dizer que a morte designa em geral tudo o que pertence à ordem do “nunca mais”. Ela é, no cerne mesmo da vida, o que não voltará mais, o que pertence irreversivelmente ao passado, e que nunca mais poderemos reencontrar. Podem ser as férias da infância, passadas em lugares e com amigos de quem nos afastamos sem possibilidade de volta, o divórcio dos pais, as casas ou as escolas que uma mudança nos obriga a abandonar, e mil outras coisas: mesmo que não se trate sempre do desaparecimento de um ser querido, tudo o que é da ordem do “nunca mais” pertence ao registro da morte.
Você vê o quanto ela está longe de se resumir apenas ao fim da vida biológica. Conhecemos inúmeras encarnações de morte no próprio seio da existência, e essas múltiplas faces acabam nos atormentando sem que o percebamos inteiramente. Para viver bem, para viver livremente, com alegria, generosidade e amor, precisamos, antes de tudo, vencer o medo — ou, melhor dizendo, “os” medos, tão diversas são as manifestações do Irreversível.
Mas é justamente aí que religião e filosofia divergem, de maneira fundamental.
Filosofia e religião: dois modos opostos de abordar
a questão da salvação
Como de fato operam as religiões em face da ameaça suprema que elas dizem que podemos superar? Basicamente pela fé. É ela, e somente ela, na verdade, que pode fazer derramar sobre nós a graça de Deus: se você acredita em Deus, Ele o salvará, dizem elas. Para isso, exigem antes de tudo uma outra virtude, a humildade, que, segundo elas — e é o que não deixam de repetir os maiores pensadores cristãos, de Santo Agostinho a Pascal —, se opõe à arrogância e à vaidade da filosofia. Por que essa acusação lançada contra o livre pensamento? Por que este também pretende nos salvar, se não da morte, pelo menos das angústias que ela provoca, mas por nossas próprias forças e em virtude apenas de nossa razão. Eis aí, pelo menos do ponto de vista religioso, o orgulho filosófico por excelência, a audácia insuportável perceptível desde os primeiros filósofos, desde a Antiguidade grega, vários séculos antes de Jesus Cristo.
E é verdade. Por não conseguir acreditar num Deus salvador, o filósofo é antes de tudo aquele que pensa que, se conhecemos o mundo, compreendendo a nós mesmos e compreendendo os outros, tanto quanto nossa inteligência o permite, vamos conseguir, pela lucidez e não por uma fé cega, vencer nossos medos.
Em outras palavras, se as religiões se definem como “doutrinas da salvação” por um Outro, pela graça de Deus, as grandes filosofias poderiam ser definidas como doutrinas da salvação por si mesmo, sem a ajuda de Deus.
É assim que Epicuro, por exemplo, define a filosofia como uma “medicina da alma”,1 cujo objetivo último é o de nos fazer compreender que “a morte não deve amedrontar”. Esse é também todo o programa filosófico que seu mais eminente discípulo, Lucrécio, expõe num poema intitulado Sobre a Natureza das Coisas:
É preciso, antes de tudo, expulsar e destruir esse medo do Aqueronte [o rio dos Infernos] que, penetrando até o fundo de nosso ser, envenena a vida humana, colore todas as coisas do negror da morte e não deixa subsistir nenhum prazer límpido e puro.
Isso é válido também para Epicteto, um dos maiores representantes de outra escola filosófica da Grécia antiga, o estoicismo, sobre o qual falarei daqui a pouco, que vai reduzir todas as interrogações filosóficas a uma única e mesma fonte: o medo da morte.
Vamos ouvi-lo quando se dirige a seu discípulo durante as conversas que com ele mantém:
Tens em mente — diz ele — que para o homem o princípio de todos os males, da baixeza, da covardia, é... o medo da morte? Exercita-te contra ela; que para isso tendam todas as tuas palavras, todos os teus estudos, todas as tuas leituras e saberás que é o único meio que os homens têm de se tornarem livres.2
O mesmo tema se encontra em Montaigne, no famoso adágio segundo o qual “filosofar é aprender a morrer”, e em Spinoza, com sua bela reflexão sobre o sábio, “que morre menos que o tolo”; em Kant, quando se pergunta “o que nos é permitido esperar”, e até em Nietzsche, que se aproxima, com seu pensamento sobre a “inocência do devir”, dos mais profundos elementos das doutrinas da salvação elaboradas na Antiguidade.
Não se preocupe se essas alusões aos grandes autores ainda não lhe dizem nada. É normal, já que você está começando. Voltaremos a cada um desses exemplos para esclarecê-los e explicitá-los.
No momento, o que importa é apenas que você compreenda por que, aos olhos de todos esses filósofos, o medo da morte nos impede de viver bem. Não somente porque ela gera angústia. A bem dizer, na maior parte do tempo, não pensamos nisso, e estou certo de que você não passa os dias meditando sobre o fato de que os homens são mortais! No entanto, isso acontece num nível mais profundo, porque a irreversibilidade do curso das coisas, que é uma forma de morte no interior mesmo da vida, ameaça-nos de sempre nos arrastar para uma dimensão do tempo que corrompe a existência: a do passado, onde se instalam os grandes corruptores da felicidade que são a nostalgia e a culpa, o arrependimento e o remorso.
Você me dirá talvez que basta não pensar nela, basta tentar, por exemplo, fixar-se de preferência nas lembranças mais felizes do que remoer maus momentos.
Paradoxalmente, porém, a memória dos instantes de felicidade pode também nos puxar insidiosamente para fora do real, pois, com o tempo, ela os transforma em “paraísos perdidos” que nos atraem insensivelmente para o passado e nos impedem, assim, de aproveitar o presente.
Como você verá a seguir, os filósofos gregos pensavam no passado e no futuro como dois males que pesam sobre a vida humana, dois centros de todas as angústias que vêm estragar a única e exclusiva dimensão da existência que vale a pena ser vivida, simplesmente porque é a única real: a do instante presente. O passado não existe mais, e o futuro ainda não existe, insistiam eles; e, no entanto, vivemos quase toda a nossa vida entre lembranças e projetos, entre nostalgia e esperança. Imaginamos que seríamos muito mais felizes se tivéssemos isso ou aquilo, sapatos novos ou um computador turbinado, uma outra casa, outras férias, outros amigos... Mas de tanto lamentar o passado ou ter esperança no futuro, acabamos por perder a única vida que vale ser vivida, a que depende do aqui e do agora, e que não sabemos amar como ela certamente merece.
Diante dessas miragens que corroem o prazer de viver, o que nos prometem as religiões?
Que não precisamos mais ter medo, já que nossas principais expectativas serão satisfeitas e que nos é possível viver o presente tal como ele é... à espera, entretanto, de um porvir melhor! Existe um Ser infinito e bom que nos ama acima de tudo. Assim é que por ele seremos salvos da solidão, da separação dos entes queridos que, embora um dia desapareçam desta vida, nos esperarão numa outra.
O que é preciso fazer então para ser “salvo”? Fundamentalmente, é preciso crer. É, de fato, na fé e pela graça de Deus que a alquimia deve se operar. Diante Daquele que elas consideram como Ser Supremo, Aquele do qual tudo depende, elas nos convidam a uma atitude que se resume a duas palavras: confiança — em latim, diz-se fides, que também quer dizer “fé” — e humildade.
É nesse ponto também que a filosofia, que toma um caminho contrário, confina com o diabólico.
A teologia cristã desenvolveu, de acordo com essa ótica, uma reflexão profunda sobre as “tentações do diabo”. O demônio, em oposição à imagística popular frequentemente veiculada por uma Igreja desprestigiada, não é aquele que nos afasta, no plano moral, do caminho reto, apelando para a fraqueza da carne. É aquele que, no plano espiritual, faz todo o possível para nos separar (dia-bolos significa, em grego, aquele que separa) da relação vertical que liga os verdadeiros crentes a Deus, o único que os salva da desolação e da morte. O Diabolos não se contenta em opor os homens uns aos outros, incentivando-os até, por exemplo, a se odiar e a guerrear, mas, o que é ainda mais sério, ele separa o homem de Deus, e o abandona assim a todas as angústias que a fé tinha conseguido curar.
Para um teólogo dogmático, a filosofia — salvo, é claro, se ela se submete completamente à religião e se põe inteiramente a seu serviço (mas então ela não é mais verdadeiramente filosofia...) — é por excelência obra do diabo, pois, ao instigar o homem a se voltar contra as crenças para fazer uso da razão, do espírito crítico, ela o arrasta insensivelmente para o terreno da dúvida, que é o primeiro passo para longe da tutela divina.
No início da Bíblia, numa narrativa do Gênesis, como talvez você se lembre, é a serpente que exerce o papel do Maligno quando incita Adão e Eva a duvidarem da legitimidade dos mandamentos divinos que impediam de tocar no fruto proibido. Se a serpente quer que os dois primeiros humanos se interroguem e mordam a maçã, é para que eles desobedeçam a Deus, porque, separando-os Dele, ela sabe que vai poder lhes infligir todos os tormentos inerentes à vida dos simples mortais. É com a “queda”, com a saída do paraíso primeiro — onde nossos dois humanos viviam felizes, sem nenhum medo, em harmonia com a natureza e com Deus —, que as primeiras formas de angústia aparecem. Todas elas estão ligadas ao fato de que com a queda, ela mesma proveniente da dúvida quanto à pertinência dos interditos divinos, os homens se tornaram mortais.
A filosofia — todas as filosofias, por mais divergentes que às vezes sejam nas respostas que tentam oferecer — promete também que podemos escapar dos medos primitivos. Ela tem, pois, em comum com as religiões, pelo menos na origem, a convicção de que a angústia impede de viver bem: ela nos impede não apenas de ser felizes, mas também de ser livres. Temos aí, como eu já lhe havia sugerido com alguns exemplos, um tema onipresente entre os primeiros filósofos gregos: não se pode pensar ou agir livremente quando se está paralisado pela surda inquietação que gera, mesmo quando se tornou inconsciente, o temor do irreversível. Trata-se, pois, de chamar os homens à “salvação”.
Mas, como você agora já compreendeu, essa salvação deve vir não de Outro, de um Ser “transcendente” (o que quer dizer “exterior e superior” a nós), mas, na verdade, de nós mesmos. A filosofia deseja que encontremos uma saída por nossas próprias forças, pela via da simples razão, se pelo menos conseguirmos usá-la como necessário: com precisão, audácia e firmeza. Certamente é o que Montaigne quer dizer quando, fazendo alusão à sabedoria dos antigos filósofos gregos, afirma que “filosofar é aprender a morrer”.
Toda filosofia estaria destinada a ser ateia? Não poderia haver uma filosofia cristã, judia, muçulmana? Em caso afirmativo, em que sentido? Inversamente, que estatuto conferir aos grandes filósofos que, como Descartes ou Kant, foram crentes? E por que, você me perguntará, recusar a promessa das religiões? Por que não aceitar com humildade submeter-se às leis de uma doutrina da salvação “com Deus”?
Por duas razões maiores, que, sem dúvida, estão na origem de toda filosofia.
Primeiramente — e antes de tudo — porque a promessa que as religiões nos fazem para acalmar as angústias da morte, a saber, aquela segundo a qual somos imortais e vamos reencontrar depois da morte biológica os que amamos, é, como se diz, boa demais para ser verdadeira. Boa demais e muito pouco crível a imagem de um Deus que seria como um pai para os filhos. Como conciliá-la com a insuportável repetição dos massacres e das desgraças que se abatem sobre a humanidade: que pai deixaria seus filhos no inferno de Auschwitz, de Ruanda, do Camboja? Um crente dirá, sem dúvida, que é o preço da liberdade, que Deus fez os homens livres e que o mal lhes deve ser imputado. O que dizer, porém, dos inocentes? O que dizer dos milhares de criancinhas martirizadas durante esses crimes ignóbeis contra a humanidade? Um filósofo acaba duvidando de que as respostas religiosas bastem.3 De alguma forma, ele acaba sempre pensando que a crença em Deus, que surge como que por reação, à guisa de consolo, nos faz talvez perder mais em lucidez do que ganhar em serenidade. Ele respeita os crentes, é claro. Ele não supõe necessariamente que eles estejam errados, que sua fé seja absurda, ainda menos que a inexistência de Deus seja certa. Como, verdade seja dita, se poderia provar que Deus não existe? Simplesmente não há fé, ponto final. E, nessas condições, é preciso procurar em outro lugar, pensar de outro modo.
Contudo, há mais. O bem-estar não é o único ideal sobre a Terra. A liberdade também é um ideal. E se a religião acalma as angústias, fazendo da morte uma ilusão, corre o risco de fazê-lo ao preço da liberdade de pensamento. Porque, de certa forma, ela sempre exige em troca da serenidade que pretende oferecer que, num momento ou noutro, a razão seja abandonada para dar lugar à fé, que se ponha termo ao espírito crítico para que se aceite acreditar. Ela quer que sejamos, diante de Deus, como crianças, não adultos em quem ela não vê, afinal, senão arrogantes raciocinadores.
Filosofar, mais que acreditar, é, no fundo — pelo menos do ponto de vista dos filósofos, já que o dos crentes é, com certeza, diferente —, preferir a lucidez ao conforto, a liberdade à fé. Trata-se, em certo sentido, é verdade, de “salvar a pele”, mas não a qualquer preço.
Nesse caso, talvez você me pergunte se a filosofia, no fundo, não seria senão uma busca da vida boa fora da religião, uma procura da salvação sem Deus, daí sua apresentação tão comum nos manuais como uma arte de bem pensar, de desenvolver o espírito crítico, a reflexão e a autonomia individual. E por isso, na cidade, na televisão ou na imprensa, ela seja reduzida tão frequentemente a um engajamento moral que opõe, no mundo tal como ele segue, o justo e o injusto? O filósofo não seria, por excelência, aquele que compreende o que é, e em seguida se engaja e se indigna contra os males do tempo? Que lugar oferecer às outras dimensões da vida intelectual e moral? Como conciliá-las com a definição da filosofia que acabo de esboçar?
As três dimensões da filosofia: a inteligência do que é (teoria), a sede de justiça (ética) e a busca da salvação (sabedoria)
Evidentemente, mesmo que a busca da salvação sem Deus esteja no centro de toda grande filosofia, se esse é seu objetivo essencial e último, ela não poderia se realizar sem passar por uma reflexão aprofundada sobre a inteligência do que é — o que se chama comumente de “teoria” — assim como sobre o que deveria ser ou o que se deveria fazer — o que se designa habitualmente pelo nome de moral ou ética.4
O motivo é, aliás, muito simples de ser entendido.
Se a filosofia, assim como as religiões, encontra sua fonte mais profunda numa reflexão sobre a “finitude” humana, no fato de que para nós, mortais, o tempo é realmente contado, e de que somos os únicos seres neste mundo a ter disso plena consciência, então, é evidente que a questão de saber o que vamos fazer da duração limitada não pode ser escamoteada. Diferentemente das árvores, das ostras e dos coelhos, não deixamos de nos interrogar a respeito de nossa relação com o tempo, sobre como vamos ocupá-lo ou empregá-lo, seja por breve período, hora ou tarde que se aproxima, ou longo, o mês ou o ano em curso. Inevitavelmente, chegamos, por vezes, num momento de ruptura, de um acontecimento brutal, a nos interrogar sobre o que fazemos, poderíamos ou deveríamos ter feito de nossa vida toda.
Em outras palavras, a equação “mortalidade + consciência de ser mortal” é um coquetel que carrega em germe a fonte de todas as interrogações filosóficas. O filósofo é, antes de tudo, aquele que pensa que não estamos aqui como “turistas”, para nos divertir. Ou, melhor dizendo, mesmo que ele conseguisse, ao contrário do que acabo de afirmar, chegar à conclusão de que só o divertimento vale a pena ser vivido, pelo menos isso seria o resultado de um pensamento, de uma reflexão e não de um reflexo. O que supõe que se percorrem três etapas: a da teoria, a da moral ou da ética e, em seguida, a da salvação ou sabedoria.
Podemos formular as coisas simplesmente do seguinte modo: a primeira tarefa da filosofia, a da teoria, consiste em se ter uma ideia do “campo”, em se conquistar um mínimo de conhecimento do mundo no qual nossa existência vai se desenvolver. Com que ele se parece: hostil ou amigável, perigoso ou útil, harmonioso ou caótico, misterioso ou compreensível, belo ou feio? Se a filosofia é busca de salvação, reflexão sobre o tempo que passa e que é limitado, ela não pode deixar de se interrogar, de saída, sobre a natureza do mundo que nos cerca. Toda filosofia digna desse nome parte, pois, das ciências naturais que desvelam a estrutura do universo — a física, a matemática, a biologia etc. —, mas também das ciências históricas que nos esclarecem tanto sobre sua história quanto sobre a dos homens. “Aqui ninguém entra se não for geômetra”, dizia Platão a seus alunos, ao falar de sua escola, a Academia, e, depois dele, nenhuma filosofia jamais pretendeu seriamente economizar conhecimentos científicos. Mas é preciso ir mais longe e interrogar-se também sobre os meios de que dispomos para conhecer. Ela tenta, portanto, além das considerações tomadas às ciências positivas, delimitar a natureza do conhecimento enquanto tal, compreender os métodos aos quais ela recorre (por exemplo, como descobrir as causas de um fenômeno?), mas também os seus próprios limites (por exemplo, pode-se demonstrar ou não a existência de Deus?).
Essas duas questões, a da natureza do mundo e a dos instrumentos de conhecimento de que dispõem os humanos, constituem também o essencial da parte teórica da filosofia.
É evidente que além do campo, além do conhecimento do mundo e da história na qual nossa existência acontece, precisamos nos interessar pelos outros humanos, por aqueles com os quais vamos atuar. Porque não apenas não estamos sós, mas, além disso, o simples processo da educação mostra que não poderíamos simplesmente nascer e subsistir sem a ajuda de outros humanos, a começar por nossos pais. Como viver com o outro, que regras adotar, como nos comportar de modo “vivível”, útil, digno, de maneira “justa” em nossas relações com os outros? Essa é a questão da segunda parte da filosofia, a parte não mais teórica, mas prática, a que pertence, em sentido lato, à esfera ética.
Mas por que se esforçar para conhecer o mundo e sua história, por que se esforçar para viver em harmonia com os outros? Qual a finalidade ou o sentido de todos esses esforços? É preciso que tudo isso tenha um sentido? Todas essas questões e outras da mesma ordem nos remetem à terceira esfera da filosofia, a que concerne, você já sabe, à questão última da salvação ou da sabedoria. Se a filosofia, segundo sua etimologia, é “amor” (philo) da sabedoria (sophia), é nesse ponto que ela deve se apagar para dar lugar, tanto quanto possível, à própria sabedoria, que dispensa, é claro, qualquer filosofia. Porque ser sábio, por definição, não é amar ou querer ser amado, é simplesmente viver sabiamente, feliz e livre, na medida do possível, tendo enfim vencido os medos que a finitude despertou em nós.
Mas tudo isso está ficando muito abstrato, eu sei. De nada adianta continuar explorando a definição da filosofia sem dar um exemplo concreto. Esse exemplo vai fazer com que você veja, na prática, as três dimensões — teoria, ética, busca da salvação ou sabedoria — que acabamos de mostrar.
O melhor então é abordar sem demora o assunto, começar pelo começo, remontando às origens, às escolas de filosofia que floresceram na Antiguidade. Sugiro que você considere o caso da primeira grande tradição de pensamento: a que passa por Platão e Aristóteles e em seguida encontra sua expressão mais acabada, ou pelo menos a mais “popular”, no estoicismo. É, portanto, por ele que vamos começar. Em seguida, podemos juntos explorar as maiores épocas da filosofia. Teremos ainda que compreender por que e como se passa de uma visão de mundo a outra. Será porque a resposta anterior não nos basta, porque ela não nos convence mais, porque uma outra a suplanta incontestavelmente, porque existem várias respostas possíveis?
Você compreenderá, então, em que a filosofia é, ainda nesse aspecto, contrariamente à opinião comum e falsamente sutil, muito mais a arte das respostas do que a das perguntas. E como você vai poder avaliar por si mesmo — outra promessa crucial da filosofia, justamente porque ela não é religiosa e não submete a verdade a Outro —, em breve vai perceber o quanto essas respostas são profundas, apaixonantes, em resumo, geniais.
 
(Luc Ferry - Aprender a Viver)
 
NOTAS:
 
1.  A partir desse ponto de vista, ele sugere quatro remédios contra os males diretamente ligados ao fato de sermos mortais: “Os deuses não devem ser temidos, a morte não deve amedrontar, o bem é fácil de se conquistar, o mal, fácil de suportar.”
2.  Ver a coletânea intitulada Les Stoïciens [Os Estoicos], Paris, Gallimard, La Pléiade, p. 1.039
3. Poderão replicar que essa argumentação não vale contra as visões populares da religião. Sem dúvida, nesse sentido, elas não são nem menos numerosas nem menos poderosas.
4. Uma observação a respeito de terminologia, para que se evitem mal-entendidos. Deve-se dizer “moral” ou “ética”, e que diferença existe entre os dois termos? Resposta simples e clara: a priori, nenhuma, e você pode utilizá-los indiferentemente. A palavra “moral” vem da palavra latina que significa “costumes”, e a palavra “ética”, da palavra grega que também significa “costumes”. São, pois, sinônimos perfeitos e só diferem pela língua de origem. Apesar disso, alguns filósofos aproveitaram o fato de que havia dois termos e lhes deram sentidos diferentes. Em Kant, por exemplo, a moral designa o conjunto dos princípios gerais, e a ética, sua aplicação concreta. Outros filósofos ainda concordarão em designar por “moral” a teoria dos deveres para com os outros, e por “ética”, a doutrina da salvação e da sabedoria. Por que não? Nada impede de se utilizar essas duas palavras dando-lhes sentidos diferentes. Mas nada obriga, porém, a fazê-lo e, salvo explicação contrária, utilizarei neste livro os dois termos como sinônimos perfeitos. 

publicado às 20:22

Quando nada se tem, um ombro é um lar.
 
 
Uma mãe perguntou ao filho qual era a parte mais importante do corpo humano. O filho respondeu que eram os ouvidos. Ela disse:
- Não. Muitas pessoas são surdas e vivem muito bem.
Algum tempo se passou até que a mãe perguntou outra vez. O menino respondeu, então, que eram os olhos. Ela disse:
- A resposta ainda não está correta porque há muitas pessoas que são cegas e vivem muito bem.
Ao longo do tempo, a mãe perguntou várias vezes e o filho nunca acertou a resposta. No dia em que o avô do menino morreu, rodos estavam chorando e muito tristes com a perda. Nesse momento, a mãe
olhou para o filho e perguntou:
- Você já sabe qual é a parte do corpo mais importante, meu filho?
Observando que o filho estava confuso por ela estar fazendo a pergunta naquele momento, ela disse:
- Esta pergunta é fundamental. Mostra como você viveu realmente a sua vida. Hoje é o dia que você necessita aprender essa importante lição. E continuou:
- Meu filho, a parte do corpo mais importante é o seu ombro.
O filho ainda perguntou:
- Porque eles sustentam minha cabeça?
Ela respondeu:
- Não, é porque pode apoiar a cabeça de um amigo ou de alguém que está ao seu lado, quando eles choram. Eu espero que você tenha bastante amor e amigos, e que você encontre sempre um ombro para chorar quando precisar.
As pessoas se esquecerão do que você disse... as pessoas se esquecerão de seus feitos... mas as pessoas nunca se esquecerão de como você as fez se sentirem.

(Alexandre Rangel - O que podemos aprender com os gansos)

publicado às 16:02

“Sabemos que os poderosos têm medo do pensamento, pois o poder é mais forte se ninguém pensar, se todo mundo aceitar as coisas como elas são, ou melhor, como nos dizem e nos fazem acreditar que são. Para os poderosos de Atenas, Sócrates tornara-se um perigo, pois fazia a juventude pensar."
(Marilena Chauí - Convite à Filosofia)
 

"Ao apresentar sua defesa perante o tribunal ateniense”, escreve Eduardo Giannetti, “Sócrates questiona a aceitação passiva dos costumes, crenças e tradições socialmente estabelecidos, afirmando que ‘a vida irrefletida não vale a pena ser vivida’. A missão da filosofia moral socrática, conforme o relato de Platão na Apologia, é servir como uma espécie de ‘mosca irritante’ que mantém os cidadãos sob constante e cerrada inquirição e impede o ‘cavalo lasso’ do Estado de dormitar ao longo do caminho.”
 
Cena em que Sócrates bebe a cicuta depois de “edificar” seus discípulos quanto à questão da imortalidade da alma (Fédon).
 
 

A EXISTÊNCIA DE um grande número de seitas, times de futebol e partidos políticos revela que o ser humano se sente confortável dentro de uma comunidade em que a linha de pensamento é estabelecida de antemão.
Pensar é um trabalho árduo. Não é à toa que não é ensinado nos colégios e a filosofia tem peso quase insignificante no currículo escolar.
A consequência lógica de não pensar é seguir sempre os outros, abrindo mão da capacidade de tomar decisões e traçar o próprio destino.
Além disso, reduzir nossa mentalidade a uma única perspectiva faz com que entremos constantemente em conflito com os que seguem outros caminhos, o que acaba sendo mais uma fonte de estresse.
Um exercício para manter a mente aberta seria comprar, de vez em quando, um jornal com tendência política diferente da nossa, assistir à programação de uma emissora de TV que nunca sintonizamos ou, ainda, ler um autor de cujas ideias discordamos.
No final, nos daremos conta de que existem outros mundos dentro do nosso.

(Allan Percy - Nietzsche para estressados)

publicado às 21:12

“O cristianismo foi até hoje a espécie mais catastrófica de arrogância”
— Friedrich Nietzsche (1844-1900)
 
A única coisa que a maioria das pessoas sabe sobre o filósofo alemão Friedrich Nietzsche é que ele disse que “Deus está morto”. Ou então, conhece também a piada infame que acompanha essa declaração:
Deus está morto”.
— Nietzsche.
Nietzsche está morto”.
— Deus.
Isso certamente dá aos fiéis religiosos o conforto momentâneo de que, no fim, nossa mortalidade é quem diz a última palavra. Mas isso praticamente não vale como uma refutação deste que é o mais potente entre os filósofos ateus, e também não é uma demonstração da existência de Deus. Para começar, nós todos vamos morrer, fiéis e ateus, e nossas mortalidades não provam nem desaprovam o calibre dos nossos argumentos. Em segundo lugar, enquanto que muitos sabem que Nietzsche disse que “Deus está morto”, muito, muito pouca gente sabe o que ele quer dizer com isso. Não se trata de um grito triunfal, mas de desespero, um berro contra uma civilização cada vez mais trivial e sufocante, que, para Nieztsche, estava minando toda a grandeza da humanidade e produzindo em seu lugar algo meramente acima do nível selvagem: o último homem.
De fato, a primeira vez que isso aparece exposto de modo mais consistente na obra de Nietzsche é quando é gritado por um “homem louco” que brada: “Para onde Deus foi? [...] Eu vou lhes dizer. Nós o matamos – vocês e eu. Todos nós somos assassinos [...]. Haverá ainda um acima, um abaixo? Não estaremos todos errando como que no nada infinito? Não sentimos o hálito do espaço vazio? Não ficou tudo mais frio? Não tem nos embalado noite após noite? [...] Deus está morto. Deus permanece morto. E fomos nós que o matamos”.[ 65 ]
Nietzsche é esse homem louco. Ele, na realidade, morreu louco, depois de ter sido comprimido e dilacerado pelas terríveis implicações de suas palavras. Ao contrário da maioria dos outros ateus, Nietzsche foi brutalmente honesto com o significado verdadeiro do ateísmo, e essa honestidade custou-lhe a sanidade. Nem acima, nem abaixo; nem bem, nem mal; apenas o humano puro, nadando num cosmos desinteressado, quando não hostil.
Logo veremos o que tudo isso tem a dizer. Mas quero desde já garantir ao leitor que não pode haver refutação simples para o ateísmo de Nietzsche, precisamente porque se trata do mais profundo ateísmo. Os ateus best-sellers que hoje nos rodeiam (Richard Dawkins, Christopher Hitchens, Sam Harris, entre outros) são, no máximo, umas gazelas perto do leão que foi Nietzsche – e, se ele ainda estivesse vivo, já os teria mastigado e cuspido de volta, enjoado.
Isso não faz de Nietzsche um amigo da religião. Afinal de contas, ele se autoproclamou o próprio Anticristo. Mas ele era um inimigo feroz de toda e qualquer tibieza, das casas de reabilitação, fosse em nome da religião ou da irreligiosidade. Suas palavras mais rancorosas foram despejadas na direção dos cristãos liberais, que dispensavam toda a majestade e o terror do cristianismo e pregavam o humanitarismo mais pálido e a mera simpatia, e na dos ateus liberais (como John Stuart Mill), que não reconheciam o real terror e a majestade impiedosa do ateísmo e pregavam, eles também, o humanitarismo mais pálido e a mera simpatia. E a simpatia, uivava Nietzsche, é o que resta da bondade quando esvaziada de toda a sua grandeza.
Faço questão de enfatizar essas coisas porque hoje há muitos pseudodiscípulos autoproclamados de Nietzsche que amaciam suas pontadas agudas – alguns até abafam-nas completamente – porque elas despontam direta e inequivocamente também em Hitler e no nazismo alemão. Eles adoram seu ateísmo vigoroso – assim como os meninos gostam de fazer poses charmosas, como se fossem verdadeiros guerreiros –, mas correm para longe de suas reais conseqüências, proclamadas em alto e bom som pelo próprio Nietzsche. Eles querem todos os benefícios de não ter Deus vigiando-os por sobre suas cabeças, fazendo exigências morais, mas também querem um universo todo estruturado moralmente (ainda que ditado pela conveniência em vez do rigor). Eles ainda querem condenar os crimes de Hitler como os maiores crimes possíveis.
Mas, para Nietzsche, os maiores crimes possíveis são justamente aquilo que é necessário que façamos para soerguer a humanidade de seu estado cada vez mais decadente, no sentido de algo maior e mais glorioso. É por isso que ele clama que nós – ou melhor, alguns de nós, as almas mais corajosas – devemos ir além do bem e do mal. Os discípulos de hoje de Nietzsche ignoram o principal dos pontos: ir além da fé em Deus é ir além do bem e do mal. Se você não foi além do bem e do mal, você não superou a fé em Deus.
Chegamos então ao título do livro mais famoso de Nietzsche, Além do bem e do mal. Trata-se mais de uma exortação do que de uma argumentação, então talvez seja melhor voltarmos alguns passos e retomarmos o sentido do caminho que nos desemboca agora em Nietzsche, após partirmos de Maquiavel e passarmos por Mill.
Como vimos em Maquiavel, quatro séculos antes de Nietzsche o ateísmo já era vivo e passava muito bem. Muitos dos conselhos d’O Príncipe exigiam que os aspirantes a líderes largassem mão de todas as preocupações a respeito da bondade ou maldade de suas ações e, ao invés disso, se concentrassem nas ações que eram efetivas em colocar um príncipe no poder e mantê-lo lá. O poder era mais importante do que qualquer distinção moral. Ainda que Maquiavel tenha evitado qualquer declaração explícita de ateísmo, o tipo de aconselhamento que ele oferecia só poderia ser dado (e seguido) por alguém que há muito já tivesse deixado suas crenças religiosas para trás. Já em Maquiavel, portanto, vemos o ateísmo ligado a uma noção incipiente daquilo que Nietzsche chamou de Vontade-de-Poder.
Também vimos em Hobbes o anúncio de uma visão da natureza totalmente sem Deus e sem moral, uma visão do universo que renegava qualquer bondade ou maldade intrínsecas ou naturais. Ao invés disso, o bem e o mal são meras questões de preferência particular, que significam apenas: “Eu gosto disso; isso me dá prazer” e “eu não gosto disso; isso me causa dor”. A pessoa que impuser suas preferências de gostos e desgostos sobre os outros é, portanto, quem decide o que é bom e o que é mau. Ou, falando o mesmo de modo inverso: por trás de todo padrão aparentemente objetivo de bondade ou maldade estão escondidas as preferências, subjetivas e arbitrárias, de alguém que está no poder. Daí a importância da religião: ela é quem permite que os desejos arbitrários de alguém sejam mascarados como se fossem os de um ser divino.
Também não devemos esquecer a contribuição de Darwin. Não é que ele tenha negado a moralidade, mas ele a redefiniu em termos do que contribui ou não para a sobrevivência do mais forte. Do ponto de vista darwiniano, a seleção natural que elimina os mais fracos e coroa os mais aptos é o que aprimora as espécies. Se a luta pela sobrevivência é afrouxada, a tensão aperfeiçoadora do arco evolutivo se dissipa. “Devemos nos lembrar”, disse Darwin, “de que o progresso não é uma lei invariável”.[ 66 ]
O homem, como todo outro animal, sem dúvida avançou até sua desenvolvida condição atual através de uma batalha pela existência conseqüente de sua multiplicação acelerada; e, se ele quiser desenvolver-se mais ainda, ele deve manter-se sujeito à austeridade da luta. Do contrário, ele logo afundaria na indolência, e os mais excepcionalmente dotados não se sairiam melhor na luta pela vida do que os menos dotados.[ 67 ]
Aquilo que pela luta elevou-se deve de novo rolar abaixo o monte da evolução. Que má notícia. Mas, vendo pelo lado positivo, assim como os homens foram capazes de erguer-se acima do restante dos animais através da luta existencial, eles talvez consigam erguer-se mais alto ainda, transcendendo assim a natureza humana para atingir – quem sabe? – algo tão mais elevado que o homem quanto o homem é mais elevado que o macaco.
Essa estranha esperança dorme na rejeição mesma de Darwin da idéia de que o homem é definido por Deus, já que “o fato de ele ter sido alçado” pela evolução à condição em que se encontra hoje, “ao invés de ter sido aí colocado mecanicamente” por Deus, “é o que lhe pode conceder a esperança por um destino ainda mais alto, num futuro distante”.[ 68 ] Nietzsche se apossa dessa esperança darwiniana para a autocriação dessa iminente-criatura, o Übermenschen – o supervisor do super-homem.
Por fim, temos ainda a contribuição de John Stuart Mill. Para Nietzsche, o que Mill chamava de “a maior felicidade possível para o maior número possível de pessoas” era a glorificação dos prazeres mais baixos e animalescos do homem, em detrimento dos seus mais altos e propriamente humanos. Além do mais, numa perspectiva darwiniana, o utilitarismo leva à dominação da cadeia genética por parte dos “menos dotados”, e portanto traz consigo uma recaída evolutiva, na qual a natureza humana regride às suas origens animais. Para Nietzsche, tanto quanto para Darwin, é no pain, no gain.
Para Nietzsche, aliás, isso era válido não apenas quanto à sobrevivência do mais apto, mas, mais importante ainda, para o florescimento da grandeza na civilização: em sua arte, em sua arquitetura, em sua música e em sua filosofia. Toda grandeza humana requereria grandes sofrimentos, uma dura disciplina, a renúncia do conforto, a coragem frente à dor e até mesmo a crueldade, tanto para que fosse usufruída quanto para que fosse útil para a eliminação dos mais fracos. Nietzsche bradava de desgosto e desafiava “todas essas formas de pensar” – como o “hedonismo”, ou o “utilitarismo” – “que medem o valor das coisas de acordo com o prazer e a dor”:
Vocês querem, se possível – e não há nenhum “se possível” mais absurdo – abolir o sofrimento? E nós? Parece que o que nós queremos de verdade é tê-lo em maior e mais aguda medida que nunca. O bem-estar, conforme vocês o entendem – isso não é um objetivo, e a nós mais se parece com um fim, um estado que logo torna o homem ridículo e desprezível – isso faz com que sua destruição até seja desejável.
A disciplina do sofrimento, do grande sofrimento – vocês não entendem que essa disciplina sozinha gerou todas as melhorias do homem até hoje? Aquela tensão da alma quando se encontra infeliz, que cultiva sua força, seu estremecimento perante a decadência atemorizante, sua inventividade e sua coragem para suportar, perseverar, interpretar e explorar o sofrimento, e tudo o mais que lhe foi concedido de profundo, de secreto, de dissimulado, de espiritual, de hábil, de majestoso – não foi tudo isso lhe concedido através do sofrimento, através da disciplina do grande sofrimento? [ 69 ]
“Nós devemos repensar a crueldade e abrir nossos olhos”, censura Nietzsche.“Quase tudo aquilo a que damos o nome de ‘alta cultura’ está baseado na espiritualização da crueldade, no torná-la mais profunda: esse é o meu veredicto”. Para percorrer uma milha em menos de quatro minutos,[ Uma milha equivale, aproximadamente, a 1,6km; o americano Roger Bannister foi o primeiro a percorrer essa distância em menos de quatro minutos, em 1954 – NT ] Roger Bannister não só teve de usar suas mais altas habilidades, como também teve de passar pelo mais intenso e doloroso treinamento. Michelangelo passou por incontáveis horas de violenta abnegação enquanto adornava a Capela Sistina. As gloriosas pirâmides só foram possíveis pela crueldade implacável do trabalho escravo. Tal é o custo da grandeza humana. Ela é paga na moeda da dor, e portanto seria destruída caso o prazer e o conforto fossem maximizados e a dor fosse tratada como nada mais que um mal.
Se estivermos com tudo isso na memória, então poderemos entender melhor o que Nietzsche está dizendo em Além do bem e do mal. Mas nós não conseguiremos chegar ao ponto nevrálgico do livro se não enfatizarmos só mais uma coisa, algo que emerge das citações acima: um profundo e tipicamente aristocrático desprezo pela mediocridade. É um sentimento estranho à compreensão da nossa era, tão democrática, mas sem que façamos alguma idéia de sua natureza e origem, não seremos capazes de entender Nietzsche e nem de resguardarmo-nos contra o perigo constante que sua filosofia nos apresenta. Eis as próprias e desdenhosas palavras de Nietzsche, ao massacrar os utilitaristas, mais adiante:
Nenhum desses animais de pasto rechonchudos [...] quer saber, ou sequer imaginar, que o ‘bem-estar de todos’ não é nenhum ideal, nenhum objetivo, não é sequer um conceito remotamente inteligível, mas é apenas um emético[ Um emético é qualquer composto químico ingerido para causar o vômito – NT. ] – que o que é justo para um não pode, de modo algum, só por essa razão, ser justo para os outros; que a busca por uma moral para todos é prejudicial ao homem superior; em suma, que há uma ordem hierárquica entre um homem e outro, e portanto também há entre uma moralidade e outra. Eles são um tipo recatado e meticulosamente medíocre de homem, esses ingleses utilitaristas.[ 70 ]
Na visão de Nietzsche, os utilitaristas fizeram da mediocridade uma moral, uma mediocridade voltada ao tipo mais animalesco e rude de existência, e um tipo de moral “escravista” que liga apenas para o conforto e para os prazeres triviais, tolhida de toda exigência mais dura. Mas isso vai contra tudo que, no passado, fez o homem engrandecer, e portanto essa tendência deve ser revertida. Deve haver uma revolução contra o espírito utilitarista e democrático, o espírito que equaliza tudo e, portanto, extingue a noção mesma de grandeza: “Toda melhoria da espécie ‘homem’ até hoje veio do trabalho de uma sociedade aristocrática – e assim será de novo e de novo –, uma sociedade que acredita na longa escada da ordem hierárquica das diferenças de valor entre um homem e outro, e a qual precisa da escravidão, num sentido ou noutro”.[ 71 ] Nietzsche acreditava que isso era puro fato histórico:
Tomemos para nós [...] o modo como toda alta cultura veio a começar na face da Terra. Seres humanos cuja natureza ainda era a natural, bárbaros no sentido mais terrível do termo, homens da caça que ainda detinham intocáveis força de vontade e sede de poder, lançaram-se sobre as raças mais fracas, mais civilizadas e mais pacíficas [...]. No começo, [portanto,] a casta nobre era sempre a casta bárbara: sua predominância não se justificava tanto por sua força física, mas sim pela força de sua alma – eles eram homens mais inteiros (o que também significa, em todos os sentidos, “animais mais inteiros”).[ 72 ]
Devemos notar que essa idéia de um estado de guerra tribal é bem parecida com o de Darwin. Para a evolução ascendente do homem, o caminho da guerra é o caminho do progresso, conforme Darwin deixa claro em A descendência do homem. Na verdade, a guerra é, para Darwin, a fonte do desenvolvimento evolutivo de nobres virtudes, como a coragem:
Quando duas tribos de homens primitivos, vivendo num mesmo território, voltavam-se ao conflito, a tribo que tivesse [...] o maior número de membros corajosos, complacentes e fiéis, sempre prontos para avisar o próximo do perigo e para defender o grupo, essa tribo sem dúvida se sairia melhor e conquistaria a outra. É preciso que se tenha em mente a suma importância da fidelidade e da coragem no cenário selvagem de guerras sem fim [...]. Uma tribo que possuísse as qualidades acima num nível bastante alto se propagaria e seria vitoriosa sobre as outras tribos; mas no decurso do tempo, julgando-se com base em todo o passado histórico, ela seria, por sua vez, subjugada por outra tribo que fosse ainda mais altamente dotada. Assim é que as qualidades morais e sociais tenderiam a avançar lentamente e se difundir pelo mundo.[ 73 ]
As semelhanças entre as considerações de Darwin e Nietzsche são óbvias: toda e qualquer elevação para além do nível animal é causada pelo conflito, pela guerra e pela eliminação brutal dos mais fracos pelos mais fortes. Nietzsche via nisso a natureza mesma da aristocracia – os melhores deveriam governar, e portanto usar os piores. “A característica essencial de uma boa e saudável aristocracia” é a de que deve “aceitar com consciência limpa o sacrifício de incontáveis seres humanos que, pelo bem dela, devem reduzir-se e sujeitar-se à condição de homens incompletos, escravos, instrumentos”. A “fé fundamental” do aristocrata, portanto, é a de que a “sociedade” existe para ele, para o seu bem, então todos os homens inferiores da sociedade que o servem existem “apenas como base ou andaime sobre o qual um tipo escolhido de homem pode educar-se para sua missão superior e para um estado mais elevado de ser”.[ 74 ] Não se pode deixar de lembrar da justificativa nazista para a escravização dos eslavos: eram “homens inferiores”.
As diferenças entre as considerações de Darwin e Nietzsche também devem ser notadas. Em primeiro lugar, Darwin está tentando dar uma explicação evolucionista para as qualidades “morais” que levam a algo muito parecido com o utilitarismo inglês, no qual a compaixão pelo sofrimento alheio é o ponto mais alto do desenvolvimento moral, enquanto que Nietzsche considera tal compaixão algo destrutivo, capaz de arruinar a marcha ascendente da evolução. Ou seja, Nietzsche vê, com acerto, que o enaltecimento da compaixão por parte de Darwin contradiz sua própria visão sobre o que é que propriamente leva ao progresso evolutivo: “a vida é essencialmente apropriação, danificação, dominação daquilo que é alheio e mais frágil, supressão, dureza, imposição dos próprios meios, incorporação e, ao menos em sua forma mais moderada, exploração”.[ 75 ] Já que essas são as qualidades mesmas que permitem que certas coisas floresçam, pergunta Nietzsche, por que então elas são consideradas más? Ou, se quisermos chamá-las de más, por que não devemos reconhecer então que tal mal é o fundamento de todo o bem? A questão não é se algo é bom ou mau (ou até falso ou verdadeiro), mas “até que ponto algo é capaz de promover a vida, preservar a vida, preservar a espécie, talvez até cultivar a espécie”.[ 76 ]
E agora chegamos à segunda diferença em relação a Darwin: este queria explicar como a luta pela sobrevivência havia feito surgir traços e atributos mais elevados e complexos nos animais, especialmente nos seres humanos. Nietzsche foi mais longe: da mera luta pela sobrevivência ao florescimento e à completa expressão do poder de um ser, da forma mais magnífica possível. Não a mera sobrevivência do mais apto, mas a Vontade-de-Poder – este era o fato biológico mais importante: “Os fisiologistas deveriam pensar duas vezes antes de afirmarem o instinto de autopreservação como o instinto cardeal e mais importante de um ser orgânico. Um ser vivo busca, acima de tudo, descarregar todo o seu potencial – a vida é em si Vontade-de-Poder, a autopreservação é apenas um dos resultados indiretos e mais freqüentes”.[ 77 ]
Podemos resumir essa discrepância toda no seguinte: quanto à sobrevivência do mais apto, Darwin concentrou-se na sobrevivência, Nietzsche no mais apto. Plânctons só sobrevivem; leões exalam um poder magnífico. O ponto nevrálgico da evolução não é o mero desejo de viver, mas a Vontade-de-Poder dos mais aptos, seu impulso interno para dominar, propagar-se e consumir todos os seres inferiores. A aristocracia, portanto, é “a encarnação da Vontade-de-Poder”, que não se satisfaz em simplesmente viver, mas “se esforçará ao máximo para crescer, se espalhar, tomar posse, tornar-se predominante – não por conta de qualquer moralidade ou imoralidade, mas porque é viva e porque a vida é simplesmente Vontade-de-Poder”.[ 78 ]
Chegamos agora a uma terceira diferença com relação a Darwin. Tanto Darwin quanto Nietzsche consideram que o surgimento de diferentes tipos de moral é um efeito posterior à luta pela sobrevivência, mas somente Nietzsche separa as coisas em dois tipos essenciais: a moral dos mais aptos e a moral dos inaptos, a do aristocrata e a do democrata, “a moral de senhor e a moral de escravo”.[ 79 ]
A moral de senhor é a moral natural, construída sobre a ascendência natural dos mais fortes sobre os mais fracos, dos aptos sobre os inaptos, dos melhores sobre os piores. Para o mestre natural, o aristocrata natural, não há oposição entre bem e mal; ele divide as coisas entre “nobre” e “desprezível”, o que é típico do senhor e o que é típico do escravo.[ 80 ] Tudo que é grande e potente é bom; tudo que é trivial e fraco é ruim. Ao contrário disso, a moral de escravo é um conjunto de tentativas de proteção dos mais fracos perante os mais fortes, de garantir a sobrevivência dos coitados e de tornar sua existência o mais confortável possível:
Suponhamos que os violentados, os oprimidos, os sofredores, os cativos, os frágeis e inseguros de si mesmos – suponhamos que eles queiram ater-se a uma moral: o que vai haver em comum entre aquilo que eles valorizam moralmente? [...] O olhar do escravo não é favorável às virtudes dos poderosos: ele é cético, suspeita, suspeita sutilmente de tudo aquilo de “bom” que é louvado lá [pelos aristocratas] – ele busca convencer-se de que até a felicidade deles não é genuína. Essas qualidades todas aparecem [na moral do escravo] invertidas, sob uma luz que as destaca conforme servem para aliviar a existência daqueles que sofrem: nela, a piedade, a ajuda caridosa, o coração complacente, a paciência, a diligência, a humildade e o coleguismo são honrados – pois essas são as qualidades mais úteis, e quase que os únicos meios, para se garantir a existência [do escravo]. A moral de escravo é essencialmente a moral da utilidade.[ 81 ]
Aqui nós não podemos deixar de notar que as “virtudes” da moral de escravo guardam semelhanças imensas com as virtudes honradas pelo cristianismo. Isso é o que nos leva, finalmente, ao coração do ateísmo de Nietzsche. Ele considerava o cristianismo (ao menos em certos aspectos) uma espécie de moral de escravo e, portanto, uma das causas da decadência do Ocidente. Ao enfocar o amor de Deus pelos fracos, pelos inferiores, pelos escravos e pelos pobres, a caridade cristã trabalhou “para preservar tudo que era doente e sofrível – o que quer dizer, na verdade, que trabalhou para piorar a raça européia”.[ 82 ]
O cristianismo foi até hoje a espécie mais catastrófica de arrogância. Homens que não eram sérios nem elevados o bastante para, enquanto artistas, formaremo homem; homens que não eram fortes nem perspicazes o suficiente, carentes da necessária abnegação para estabelecer a lei fundamental de que devem perecer os degenerados e fracassados; homens que não eram nobres o bastante para enxergar o insondável abismo que há na escala entre um homem e outro – tais homens foram os que até hoje ditaram o rumo da Europa, com sua “igualdade perante Deus”, até criarem essa espécie medíocre, diminuta, um tipo que beira o ridículo, um animal de rebanho, um doente, algo que quer desesperadamente agradar, o europeu de hoje.[ 83 ]
Colocando de outra maneira: primeiro o judaísmo[ 84 ] e depois o cristianismo começaram a minar a sociedade aristocrata ao afirmar que todos são iguais perante Deus e ao elevar as preocupações com os pobres, os desfavorecidos, os escravos, os doentes, e assim prepararam o caminho para a paixão moderna pela igualdade, pela democracia e pela aceitação do ideal utilitarista que coloca o fim da sociedade na eliminação do sofrimento e na maximização do prazer. Mas, como já vimos, o utilitarismo era essencialmente ateísta e recrutava-se nele um tipo diluído de caridade cristã, sem o rigor moral e as exigências irrevogáveis de um Juiz divino, que dirigia todo o esforço moral à maximização do prazer físico para o maior número de pessoas, assim criando o “animal de rebanho [...], o europeu de hoje”.
Temos então que, historicamente, o cristianismo em sua forma original foi transformado num cristianismo liberal, para finalmente tornar-se num utilitarismo liberal e ateu. Nessa transformação, todo o ascetismo original, as exigências incondicionais, a vontade apaixonada de sofrer por e com Cristo, as árduas virtudes, o deslumbramento perante o divino, a abnegação e a batalha heróica pela santidade foram degradados pelo cristianismo liberal, e depois pelo utilitarismo liberal e ateu, até o ponto de serem hoje um tipo de caridade açucarada, em nada exigente e feita para o conforto no mundo. Essa destruição do cristianismo, portanto, foi o que nos trouxe o utilitarismo e seus “verdes pastos de felicidade para o rebanho humano, com muita segurança, conforto, sem perigo algum e uma vida mais feliz para todos”, na qual “os dois hinos que vivem a entoar com freqüência, suas duas doutrinas, são a ‘igualdade de direitos’ e a ‘compaixão pelos sofredores’ – e o sofrimento, por sua vez, é algo que para eles deve ser abolido”.[ 85 ] É nesse sentido que Nietzsche, o ateu por antonomásia e autoproclamado “Anticristo”, podia lamentar a morte de Deus: foi isso que havia trazido a derradeira “animalização do homem na espécie-anã das reivindicações e dos direitos iguais”.[ 86 ]
A cura para tudo isso, anuncia Nietzsche, é o retorno à aristocracia natural. A moral-de-escravo trata como um mal tudo aquilo que é nobre, exigente e duro. A natureza da aristocracia, assim como a própria natureza do darwinismo, é cruel e impiedosa na sua exigência por grandeza e no seu desprezo pelo desejo tipicamente inferior por conforto e prazer físico. Para salvar a Europa de sua degradação definitiva, nós devemos ir além da distinção entre bem e mal e substituí-la pela distinção aristocrática entre nobre e desprezível, forte e fraco.
Não se tratava de um mero projeto filosófico de Nietzsche, como gostam de dizer alguns acadêmicos nietzschianos. Ele vivia para resolver o “problema europeu” através do “cultivo de uma nova casta que governará a Europa”.[ 87 ] A fim de reanimar o elemento aristocrático dormente na Europa e revivê-la, um grande perigo devia ser apresentado a ela, um perigo que acordasse os homens de seu torpor utilitarista e os fizessem recobrar seu desejo de lutar e conquistar:
[Eu] preferiria um aumento na atitude ameaçadora da Rússia [por exemplo], para que a Europa fosse obrigada a resolver, sob a ameaça, isto é, a obter uma vontade única, por meio de uma nova casta de senhores que governe a Europa, uma vontade duradoura, terrível, que fixe uma meta de milênios, para pôr fim à velha comédia de sua divisão em estadinhos e, do mesmo modo, ao seu dinâmico democrático querer mais. Passou o tempo da política miúda; o próximo século nos promete a luta pelo domínio do mundo, a necessidade de fazer a grande política.[ 88 ]
Não se pode deixar de ouvir as botas em marcha do Terceiro Reich, uma inferência óbvia que os acadêmicos progressistas, propagandistas de Nietzsche, negam veementemente. Mas não é o suficiente apresentar, nos escritos de Nietzsche (como eles mesmos fazem), algumas frases antigermânicas ou pró-judaicas[ 89 ] e com isso tentar livrá-lo de tais acusações. É possível que Nietzsche, se tivesse vivido mais três décadas, não aprovasse a forma como Hitler foi além do bem e do mal para resolver o problema da Europa. Mesmo assim, Nietzsche foi quem proferiu o chamado que Hitler, do seu jeito, atendeu.
Nietzsche completou a rejeição moderna de Deus que começou com Maquiavel. Ele deixou claro, para aqueles que engoliram suas palavras, quais eram as reais implicações de se viver sem Deus – um mundo sem bem nem mal, governado pela Vontade-de-Poder. Já em 1884, uma elocução megalomaníaca soturna encontrava seu espaço em suas cartas e livros. Nessas cartas, ele falava em dar “um golpe destrutivo no cristianismo”, iniciando a “maior e decisiva guerra da história”, na qual “haverá convulsões na Terra como jamais houve”, e anunciava que “o velho deus foi abolido, e eu mesmo é que, de agora em diante, governarei o mundo”, e assinava “Nietzsche Cesar”, “O Anticristo Friedrich Nietzsche”, ou, mais diretamente, “O Anticristo”.[ 90 ] Em 1885, em meio a esse pandemônio, Nietzsche começou a escrever Além do bem e do mal, publicando-o no ano seguinte. O Anticristo foi escrito em 1888, mas não foi publicado até 1894.
A dedicação completa de Nietzsche a beber, até à última gota, os abismos sombrios do seu ateísmo terminou, em janeiro de 1889, com o seu próprio mergulho nas profundezas da insanidade, apenas quatro meses depois de ter escrito O Anticristo. A última década de sua vida ele viveu nos confins mais escuros da loucura, deteriorando-se, em todos os sentidos, mantendo todos na casa acordados quando, num súbito, desatava a repetir, num tom amedrontador como o de um tambor de guerra: “Eu estou morto porque sou burro [...] eu sou burro porque estou morto”.[ 91 ]
Em agosto de 1900, Nietzsche foi posto na cova ao lado da de seu pai, um pastor, que morreu quando ele tinha apenas quatro anos. Mas sua fama e influência estavam só começando, como o novo século, o qual seria levado, em breve, com grande ajuda delas, a muito além do bem e do mal. Mesmo antes de sua morte, o pensamento de Nietzsche já estava pegando. Um tipo de culto a Nietzsche já crescia e se desenvolvia lentamente e, depois de sua morte, sem dúvida se alastrou com mais força. Examinaremos a influência nietzschiana nos seus colegas alemães no capítulo em que tratarmos de Hitler, mas o leitor deve ser advertido de que há muito mais males do que aqueles perpetrados pelos nazistas, como se tonará evidente com a nossa próxima figura, o ateu Lênin. Nietzsche, o apóstolo do ateísmo, proclamou o século mais sombrio que o mundo já conheceu.
 
 (BENJAMIN WIKER - Dez Livros que estragaram o Mundo e outros cinco que não ajudaram em nada) 
 
O homem que imagina ser completamente bom é um idiota. Se a consciência nos torna humanos, a imperfeição também é um traço distintivo de nossa espécie. Passamos mais tempo reparando erros do que construindo coisas de valor. Assumir essa característica da nossa condição nos ajuda a ser humildes e, o mais importante, nos faz tomar consciência de quanto ainda precisamos nos aprimorar. Todo o fracasso ou erro nos ensina como fazer melhor.
NOTAS:
65. Friedrich Nietzsche, The Gay Science. Tradução de Walter Kaufmann, New York: Vintage, 1974, seção 125.
66. Charles Darwin, The Descent of Men, Parte I, cap. 5, p. 177.
67. Ibid., Parte II, cap. 21, p. 403.
68. Ibid., Parte II, cap. 21, p. 405.
69. Friedrich Nietzsche, Beyond Good and Evil. Tradução de Walter Kaufmann, New York: Vintage, 1966, seção 225. [Friedrich Nietzsche, Além do bem e do mal: prelúdio de uma filosofia do futuro. Tradução de Mário Ferreira dos Santos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009, seção 225].
70. Ibid., seção 228.
71. Ibid., seção 257.
72. Ibid..
73. Darwin, op. cit., Parte I, cap. 5, p.162-163.
74. Nietzsche, op. cit., seção 258.
75. Ibid., seção 259.
76. Ibid., seção 4.
77. Ibid., seção 13.
78. Ibid., seção 259.
79. Ibid., seção 260.
80. Ibid..
81. Ibid..
82. Ibid., seção 62.
83. Ibid..
84. Ibid., seção 195.
85. Ibid., seção 44.
86. Ibid., seção 203.
87. Ibid., seção 251.
88. Ibid., seção 208.
89. Ibid., seções 250-251.
90. Cf. Curtis Cate, Friedrich Nietzsche. New York: Overlook Press, 2002, p. 546-547.
91. Ibid., 559.

publicado às 04:23

“É mais saudável caminhar pelas estradas do campo que pelas ruas da cidade.”
 
 
Um dos melhores diálogos de Platão se passa em um belo dia de verão em Atenas. É o fim do século V a.C., um período que costuma ser mencionado como a era de ouro da Grécia, dada a enorme quantidade de grandes artistas, poetas, dramaturgos, filósofos e estadistas vivendo e trabalhando lá ao mesmo tempo. Um dos mais famosos dentre eles, o professor de Platão, Sócrates, nota um jovem1 descendo a rua e grita para ele.
“Fedro, meu amigo! Por onde você andou? E para onde você está indo?”2
Essa saudação alegre capta a essência de Sócrates, um homem que dava valor aos amigos e tinha uma curiosidade enorme sobre a vida deles. Sócrates era ávido por conexões no sentido cara a cara, um traço que aparece repetidamente nas conversas filosóficas que ele teve com seus companheiros atenienses, as quais formam a espinha dorsal dos escritos de Platão.
Esse diálogo, conhecido simplesmente como Fedro, explora a conectividade humana em uma época de mudança tecnológica dramática. Uma nova forma revolucionária de comunicação, a linguagem escrita, tinha chegado à Grécia, que era uma sociedade oral havia muito tempo. A moda estava começando a pegar e as pessoas mais pensativas estavam preocupadas com os efeitos que ela poderia ter nos vários aspectos da vida, principalmente na vida da mente. Em outras palavras, embora essa história se passe há mais ou menos 2.400 anos, trata de uma era um tanto quanto análoga à nossa. Escrevendo no ponto de virada entre duas eras tecnológicas, Platão examinou questões que hoje estão no ar mais uma vez.
Fedro conta para Sócrates que acabara de passar a manhã inteira com o famoso orador Lísias, ouvindo seu último discurso. Para o leitor moderno, pode parecer um jeito esquisito para um jovem gastar o tempo, mas em uma sociedade amplamente organizada em torno da palavra falada, aquilo era completamente natural. Assim como as redes sociais e videoclipes virais causam furor hoje, na Grécia obcecada pela retórica não havia nada mais legal do que se sentar ao pé de um orador brilhante, sorvendo cada palavra.
O discurso era sobre um tópico que sempre foi de interesse urgente: sexo. Particularmente, era sobre a questão de se é melhor dormir com alguém que está apaixonado por você ou com alguém que não está. Lísias defendia a última hipótese, mostrando que, quando se faz sexo por pura luxúria, há bem menos complicações emocionais.
Fedro achou o discurso engenhoso e estava dando uma volta enquanto o revirava na cabeça, tentando fixá-lo na memória. Em busca dessa meta, ele rumava para fora dos muros da cidade, seguindo o conselho de um médico proeminente chamado Acumeno de que “é mais saudável caminhar pelas ruas do campo do que pelas da cidade”.3 Ele convida Sócrates para se juntar a ele e ouvir mais sobre o discurso, e o homem mais velho aceita prontamente. Eles partem, possivelmente abandonando o caminho para andarem descalços por um riacho. Seguem até encontrar um belo lugar ao lado do riacho, onde podem sentar debaixo de um plátano e conversar.
Sócrates fica maravilhado com o lugar, que é encantador e sereno, incitando Fedro a observar que o filósofo parece um completo estranho diante daquele ambiente natural: “Pelo que posso ver, você nunca pôs os pés além dos muros da cidade”.4
Sócrates admite que é verdade. “Perdoe-me, meu amigo, sou dedicado ao aprendizado, paisagens e árvores não têm nada a me ensinar – só posso aprender com as pessoas na cidade.”5 Ele só viera até ali, diz, porque Fedro o seduziu com um convite para o que ele mais gosta de fazer em Atenas, discutir sobre uma questão filosófica, como a que foi abordada no mencionado discurso. Com isso, ele se deita na grama e pede que Fedro recite os argumentos de Lísias a favor do sexo sem compromisso.
Quando foi a última vez que você saiu com um amigo e deixou o resto do mundo para trás? Sócrates e Fedro estão aproveitando um tipo de conexão humana – em pessoa, dedicada, completamente particular – que é muito rara hoje. Mesmo quando se está fisicamente com outra pessoa, é difícil dar sua atenção por inteiro durante um período considerável, ou receber a mesma coisa. Se há um aparelho digital por perto, é provável que um ou ambos sejam interrompidos ou distraídos.
O que é interessante é que essa conversa isolada era uma experiência rara para Sócrates. Ele admite que odeia deixar a cidade movimentada, onde seu ofício de filósofo gira em torno de conversas com estudantes e outros intelectuais, normalmente em grupos maiores. De fato, esse é o único dos muitos diálogos de Platão no qual Sócrates sai de Atenas para um tête-à-tête particular.6
O filósofo tinha uma intensa necessidade de conexão oral, que era dominante na época dele. Podemos dizer que ele era um maximalista antigo e que Atenas era a “tela” que possibilitava seus hábitos. E, nesse episódio, tal como um moderno guerreiro da estrada que anda munido de um aparelho móvel de banda larga, ele se aventura rumo a um lugar com a esperança de que será capaz de encontrar uma boa conexão lá também. E espera que Fedro a providencie, com uma interpretação daquela palestra libidinosa. Embora a vida na Grécia antiga fosse obviamente diferente da vida do século XXI, o desejo humano básico de conexão era o mesmo. Sócrates estava buscando o que todo mundo com uma tela digital quer: contato, amizade, estimulação, ideias, crescimento profissional e pessoal.
Esse impulso para o exterior vai muito mais longe do que o século V a.C.Incontáveis milhares de anos atrás, nossos ancestrais pré-históricos não conheciam nada do mundo além de seu ambiente próximo e não tinham ferramentas de conexão com as quais transcender o isolamento. Na verdade, houve um tempo em que eles não podiam sequer conversar com seus companheiros mais próximos, porque não sabiam fazer isso.
Em algum ponto do caminho, ninguém sabe exatamente quando, uma coisa fantástica aconteceu – ou melhor, duas coisas fantásticas: os humanos pré-históricos arranjaram duas das ferramentas de conexão mais poderosas já concebidas, como E. H. Gombrich conta em seu livro A Little History of the World [Breve história do mundo]:7
Eles inventarama fala. Ou seja, ter conversas reais uns com os outros, usando palavras. Claro que os animais também fazem barulhos – choram quando sentem dor e clamam por ajuda quando o perigo ameaça, mas eles não dão nomes para as coisas como os seres humanos fazem. E as pessoas da pré-história foram as primeiras criaturas a fazer isso.
Eles inventaram outra coisa maravilhosa: figuras. Muitas delas ainda podem ser vistas hoje, gravadas e pintadas nas paredes das cavernas. Nenhum pintor vivo faria melhor.
Encontrei esse trecho enquanto lia o livro para o meu filho dormir, em um inverno recente. Gombrich o escreveu para crianças, mas aprendi mais com ele do que com a maioria dos livros de história para adultos, porque trata a tecnologia e as outras facetas do passado como as histórias humanas que de fato são, livres de jargão de especialista e sem motivo para complexidade. Ele chama as pessoas pré-históricas de “os maiores inventores de todos os tempos”,8 e tem razão. Eles quiseram e precisaram alcançar além de si mesmos e encontraram um par de jeitos brilhantes de fazer isso: palavras e imagens.
A história revê essa história o tempo todo. As pessoas estão constantemente tentando diminuir as distâncias entre elas inventando novas ferramentas de conexão e dedicando tempo para melhorá-las. Os humanos são os únicos animais que concebem vários usos para uma única ferramenta, e somos particularmente bons em encontrar novas aplicações para nossas ferramentas de conexão. Se a “tecnologia” da conversa foi originalmente criada para suprir as necessidades práticas de pessoas lutando para sobreviver em um ambiente hostil, por volta do século V a.C. havia evoluído para algo mais rico e interessante: um caminho para a verdade e para o esclarecimento.
Sócrates usava a conversa para praticar a filosofia como ninguém tinha feito antes. Ao passo que os filósofos anteriores se passavam por homens sábios dotados de acesso especial à verdade, ele não fazia tal afirmação. Foi “um tipo completamente novo de filósofo grego”, escreve o acadêmico moderno John M. Cooper. “Ele negava ter descoberto alguma sabedoria nova, aliás, negava possuir qualquer sabedoria.”9 Em vez disso, acreditava que o caminho para atingir a verdade era procurar discussões com os outros, como as que promovia em Atenas, usando a técnica de perguntas e respostas, conhecida hoje como método socrático. Para Sócrates, a comunicação oral era a chave para uma boa vida.
Mas havia um lado negativo na conexão da sociedade oral. Falar permitiu o surgimento das primeiras civilizações, como a grega, e as cidades que foram seus centros nevrálgicos jamais teriam sido construídas se as pessoasnão pudessem comunicar seus pensamentos. Essas metrópoles antigas ofereceram muitos benefícios para quem viveu nelas, incluindo o estímulo intelectual que Sócrates prezava. Ao mesmo tempo, elas impunham novos fardos. Eram lugares agitados, embora nem passando perto da agitação das cidades de hoje, mas, para os padrões da época, agitados de verdade. Viver em Atenas significava estar cercado, dia e noite, por algumas centenas de milhares de outras pessoas, portanto, da atividade, dos barulhos e dos cheiros delas, além de outras atrações à atenção de um indivíduo. Era uma multidão permanente e a vida na multidão é uma experiência de dificuldade inerente.
Platão deixa claro que a vida em Atenas podia pôr a mente à prova, quando cita a explicação de Fedro sobre por que decidiu passear fora dos muros da cidade. Como um sujeito moderno que faz ioga e meditação por conselho do médico, ele segue a receita de Acumeno para limpar a cabeça. O rapaz está fazendo um pequeno exercício, e de um jeito bastante peculiar. Para pensar com mais profundidade sobre o discurso, estabelece distância entre si mesmo e a multidão.
Distância. A coisa da qual os seres humanos tem fugido desde as eras pré-históricas, o espaço entre o eu e os outros. O sentido da comunicação oral e das coisas boas que fluíram dela foi o encolhimento das distâncias entre as pessoas. Agora, no lugar onde esse tipo de conexão atingira seu ápice, as pessoas estavam percebendo que, pelo bem-estar pessoal e pela felicidade, era necessário restaurar um pouco daquela distância na vida cotidiana.
O diálogo em questão não é sobre a distância em si. Mas, como Platão era um escritor cuidadoso e de estilo econômico, é improvável que tenha dado tanta atenção ao passeio pelo campo a não ser que tivesse algo a dizer. Fedro era membro do círculo intelectual de Sócrates e, assim como Platão, profundamente interessado em retórica e em filosofia. Assim, enquanto andava pela cidade tentando memorizar o discurso, ele não estava simplesmente devaneando, mas sim desempenhando uma tarefa que era importante para ele. E, para desempenhá-la bem, percebeu que precisava de um pouco de espaço.
Para um paralelo com o século XXI, pense numa ocupante de uma baia, que passou a manhã toda imersa na multidão digital, indo e vindo entree-mails, websites, mensagens de texto e outras atividades eletrônicas. Ela quer dar um tempo e se concentrar em uma única coisa, talvez em um projeto importante que demande pensamento e criatividade contínuos. Embora não seja aspirante a filósofa, essa funcionária de uma empresa está na mesmasituação de Fedro. Ela está empenhada em absorver novas informações, aprendê-las e compreendê-las. Mas, com toda essa tralha rodando dentro da cabeça, é incrivelmente difícil. Como aliviar a mente sobrecarregada?
Em Atenas, Platão sugeriu, uma solução seria estabelecer distância física; sair da multidão e passar umas horas do lado de fora dos muros. Curiosamente, no entanto, Sócrates não capta o sentido. Ele tinha por volta de 60 anos nessa época e anos de experiência tinham-no convencido de que a conversa é o único caminho para a sabedoria e para a felicidade – e quanto mais pessoas disponíveis para conversar, melhor. Por essa lógica, um filósofo (palavra que significa “amigo do conhecimento”) jamais deveria desejar distância entre si e a multidão. É o mesmo princípio básico que guia a vida digital de hoje: quanto mais conectados aos outros através de telas, melhor.
Quem estava certo, um dos pensadores mais celebrados de todos os tempos ou um jovem lembrado sobretudo como figurante no trabalho desse pensador? A resposta surge no fim do diálogo.
De volta à margem do riacho, Fedro se lança no discurso com a ajuda de uma ferramenta surpreendente. Mais cedo, logo antes de chegarem ali, Sócrates disse que não ficaria satisfeito com um mero resumo do argumento de Lísias. Ele queria ouvi-lo palavra por palavra, como proferido originalmente. Fedro protestou que seria incapaz de fazer isso, pois não havia memorizado. Sócrates observa, então, que Fedro parece estar escondendo alguma coisa embaixo do manto, que o filósofo suspeita ser uma cópia escrita do discurso. A essa altura, Fedro, intimidado, saca exatamente isso, o registro em papel da apresentação oral.
Algumas traduções chamam o objeto de “livro”, outras de “pergaminho”. Seja lá qual for o nome (vou usar “pergaminho”),10 a questão é que, ao se dirigir para sua caminhada meditativa, o homem mais jovem havia levado consigo uma ferramenta que se valia da tecnologia de comunicação mais recente, a língua escrita baseada em um alfabeto. De fato, a escrita não era completamente nova. Os egípcios e outras civilizações antigas possuíamsistemas de escrita pré-alfabéticos. E, naquele ponto, o alfabeto grego já existia há várias centenas de anos, mas emplacou com muita lentidão. Foi só durante a vida de Sócrates e a de Platão que ele realmente se firmou. Em termos contemporâneos, o pergaminho de Fedro era mais ou menos o que um telefone celular era em 1985, uma tecnologia ainda nos primeiros estágios de adoção e ainda pouco compreendida.
A razão para que ele tivesse levado o pergaminho é óbvia: era útil. Permitiria que ele continuasse pensando no discurso de Lísias e trabalhasse em sua memorização mesmo enquanto vagava pelo campo. Com o registro em papel em mãos, ele poderia se dedicar às ideias do orador longe do lugar onde o discurso foi proferido, e até mesmo muito tempo depois. Ele poderia sair da cidade tumultuada e, ainda assim, desempenhar a tarefa que queria desempenhar. Se ele estava um pouco envergonhado pelo pergaminho, como parecia estar, talvez seja porque estivesse na companhia do maior comunicador oral de todos os tempos, um homem que nunca leu um texto e, como logo se verá, não tinha esse meio de comunicação em alta estima.
Quando Fedro termina de proferir o discurso, Sócrates aplaude largamente a performance, pronunciando-se jocosamente “em êxtase”. Em seguida, eles discutem sobre os argumentos apresentados e, no meio do caminho, Sócrates molda uma das metáforas mais famosas da história da filosofia. Já que o argumento essencial de Lísias é que o amor enlouquece as pessoas, Sócrates analisa exatamente o que é a loucura e por que a mente às vezes vai além do limite.
Ele compara a alma a uma biga voadora, puxada por um par de cavalos alados. Um dos cavalos significa nosso lado bom e virtuoso; o outro significa o lado ruim e corrupto. A meta de qualquer um na condução desse veículo é guiar os cavalos com habilidade, de forma que a biga plane rumo “ao lugar além do paraíso”,11 onde o “conhecimento puro” – a iluminação e a felicidade – reside. Mas os cavalos são difíceis de controlar, especialmente o mau, e às vezes eles puxam em direções diferentes. Quando isso acontece, a biga perde o rumo e se choca com a Terra.
A imagem ainda tem ressonância porque captura algo essencial em relação ao desafio de ser humano. Sócrates intencionava ser um filósofo prático, e o que ele descreve é realmente a viagem cotidiana do eu interior. Todos estamos guiando nossas bigas pelo caos, lutando para harmonizar as forças que nos atraem de todos os lados. Você sabe como é. Corremos de um lado para o outro na busca de coisas que o mundo afirma serem a chave da felicidade: dinheiro, sucesso, posição social, diversão. Mesmo assim, essas coisas não funcionam, não de forma duradoura. De certo modo, sabemos que poderíamos empregar nosso tempo e nossos talentos para buscar uma existência mais segura, mais autêntica, mas não sabemos como fazer isso. Como Sócrates expõe, conduzir uma biga “é uma empreitada inevitavelmente perigosa”.12
As pessoas tolas são fisgadas pela corrida de biga em si, ele diz, “menosprezando e agredindo uns aos outros, enquanto todos tentam chegar na frente”.13 Outros conseguem ficar calmos e manter suas bigas no rumo, habilmente evitando os choques em cadeia. E, embora essas almas sortudas não atinjam o “conhecimento puro”14 – reservado aos deuses –, elas de fato se elevam a alturas impressionantes e encontram satisfação genuína.
Lidar habilmente com a vida rende sabedoria e felicidade. É um ótimo ideal, mas, quanto mais repletos de ocupações nossos dias se tornam e quanto mais os outros controlam as rédeas, mais difícil é imaginar atingi-lo. Ultimamente, com a demanda implacável dos aparelhos digitais, o desafio parece muitas vezes insuperável. Se você é um conectado fiel, que passa o dia todo interagindo com telas, você provavelmente sabe, assim como eu, o que é ter sua biga atolada no pior lugar. “O resultado é terrivelmente barulhento, muito cansativo, uma inteira desordem,”15 diz Sócrates, e aqueles que vivem assim acabam “insatisfeitos”.
O que podemos fazer a respeito? Não vivemos na Grécia antiga e Sócrates e Fedro nunca precisaram lidar com e-mails abarrotados de mensagens. Mas o admirável em Platão, e a razão pela qual é amplamente lido até hoje, é que ele aborda as questões fundamentais da vida de uma maneira que transcende o tempo e o espaço. A metáfora da biga é um lembrete útil para a relação entre o eu exterior – como gastamos o tempo interagindo com o mundo, administrando nossos relacionamentos e a vida profissional – e o interior. Na Atenas antiga havia uma maneira muito eficaz para aquietar a vida externa movimentada de alguém e retomar o controle da biga: uma simples caminhada no campo.
É verdade que a estrela dessa história, Sócrates, fez pouco caso da ideia de colocar qualquer distância entre si e sua cidade amada. No entanto, Sócrates não é o único filósofo envolvido. Platão escreveu esse e outros diálogos de Sócrates depois da morte do mestre. São baseados em conversas reais, mas, como o tempo passou e Platão estava se tornando ele mesmo um filósofo, é largamente presumido que ele tenha tomado liberdades e organizado muitas vezes o material de modo a expressar seus próprios argumentos. Embora nunca tenha declarado seus pontos de vista pessoais diretamente, de vez em quando ele parece criticar implicitamente o que Sócrates diz.
As falas de Fedro estão repletas de indícios de que Platão discordava de seu professor sobre essa questão do distanciamento.
Primeiro, há o fato de caminharem para fora da cidade. Embora Sócrates tivesse saído de Atenas com relutância, uma vez que ele e Fedro haviam se adaptado ao local à beira do riacho, eles tiveram uma conversa que, mesmo para os padrões socráticos, é extraordinária. Após o “êxtase” pela performance de Fedro, Sócrates profere algumas considerações próprias impressionantes, sendo tão absorvido pela tarefa que fica em uma espécie de enlevo. Ele entra no clima, por assim dizer, e atribui esse estado agradável ao refúgio rural. “Há algo realmente divino quanto a este lugar”,16 diz. Ele usa a palavra “divino” literalmente, sugerindo que os deuses o inspiram. Mas note que ele relaciona a divindade a esse lugar, à locação isolada à qual Platão dedicou atenção especial. A mensagem é inconfundível: a distância que Sócrates menosprezou como um incômodo sem sentido desempenhou um papel importante em ajudar a mente dele a voar.
Segundo, a ferramenta que Fedro levou embaixo do manto permite que eles tirem o melhor da distância. Com o pergaminho em mãos, eles puderam estar longe da cidade, das distrações e dos fardos, e ainda manter acesso completo a uma de suas atrações principais, a retórica estimulante. A engenhoca foi a chave de roda da conversa deles, mas, mais uma vez, Sócrates não percebeu.
Rumo ao fim do diálogo, ele aborda a nova tecnologia e a questão de se a língua escrita serve a algum propósito útil. Conta a história de um deus egípcio chamado Tot17 que inventou muitas “artes”, incluindo aritmética, geometria e astronomia. Mas sua maior descoberta foi a linguagem escrita. Tot mostrou sua invenção ao rei do Egito, prometendo que ela “tornaria os egípcios mais sábios” e “melhoraria a memória deles”.
O rei não se impressionou. Pelo contrário, ele disse a Tot que a escrita faria com que as pessoas se esquecessem com maior facilidade. Uma vez que algo fosse gravado dessa maneira exterior, com o uso de letras, eles não sentiriam mais a necessidade de “lembrar por dentro, completamente por conta própria”,18 ou seja, pela mente deles. Pior, usariam a escrita para aparentar conhecimento, quando estariam na verdade meramente papagueando o que leram. “Eles seriam irritantes”,19 diz o rei, “obtendo a reputação do conhecimento sem o deter na realidade.”
Sócrates compartilha da visão fosca do rei sobre essa nova ferramenta, e ainda a amplia. A escrita é uma invenção perigosa, ele diz a Fedro, porque não permite que as ideias fluam livremente e mudem em tempo real, como fazem na mente durante a interação oral. Considerando a conversa como bate e volta, a língua escrita é uma via de mão única: uma vez que um pensamento foi escrito, está congelado e é impossível pô-lo à prova ou mudar sua posição. É um registro de ideias que já existem, em vez de uma forma para criar novas. Ele compara os textos escritos às pinturas, que “ficam lá como se estivessem vivas, mas, se alguém dirige a elas alguma pergunta, mantêm o mais solene silêncio”.20 Um trecho escrito “continua a significar exatamente a mesma coisa para sempre”.21 Está, para dizer em uma palavra, morto.
Os pensadores têm analisado e debatido essa passagem ao longo de eras, por que Sócrates teria entendido tão mal. Sua reação à escrita é típica da confusão e da ansiedade que as novas tecnologias costumam causar. Como os luditas de hoje, que acreditam que as tecnologias digitais são irremediavelmente inferiores aos aparelhos mais antigos e até perigosas, ele julgou a nova ferramenta exclusivamente pelas lentes da velha. Porque a escrita não funcionava da mesma maneira que a conversa, ele sentiu que não poderia ter muito valor e que apenas tornaria as pessoas mais idiotas. Para Sócrates, a escrita era útil apenas enquanto apoio para o diálogo oral, um tipo de roteiro, e é exatamente assim que Fedro e ele a usavam.
O que levou Sócrates a essa visão pessimista e estreita da escrita? Ele não conseguiu entender que novas tecnologias de conexão surgem para resolver problemas genuínos, e esses problemas normalmente têm algo a ver com a distância. Nas eras primitivas, o problema foi a distância física; as pessoas ficavam presas em seus próprios pensamentos sem uma forma eficaz para se expressar. A conversa resolveu esse problema, ao permitir que elas colocassem seus pensamentos em palavras que poderiam ser compartilhadas e compreendidas.
A comunicação oral foi um grande sucesso, mas deu lugar a um novo problema de distância física, enraizado no fato de que uma conversa só poderia acontecer em estreita proximidade com os outros. À medida que a civilização se expandia, tornava-se cada vez mais útil e importante que as pessoas se comunicassem a grandes distâncias. Por volta do século Va.C.,mercadores e negociantes desempenhavam negócios que abrangiam montanhas, desertos e mares. Havia cidades-estado e impérios emergentes cujos líderes precisavam enviar mensagens para lugares isolados. Mensageiros humanos cobriram essa necessidade por muito tempo, levando a informação pela voz. Mas esse sistema tinha desvantagens, incluindo as limitações da memória. A língua escrita solucionou o problema da distância física, ao permitir que as palavras e as ideias viajassem para qualquer lugar e chegassem intactas, do jeito exato como foram gravadas originalmente. A escrita também solucionou o problema temporal do armazenamento, tornando possível que a informação permanecesse no longo prazo com maior confiabilidade do que jamais havia permanecido na mente humana.
Como Platão mostra em Fedro, essa inovação imensamente prática também tinha um benefício menos tangível, mas, em última análise, muito mais significativo. Ela permitiu que os indivíduos tomassem conhecimento de outras pessoas e suas ideias a distância de forma íntima e reflexiva. Um texto escrito em uma cidade agitada poderia “funcionar de novo” em qualquer lugar, até mesmo à margem de um riacho borbulhante. Imediatamente após Fedro tirar o pergaminho do manto, os dois homens mergulham o pé no riacho, que Fedro observa estar “adorável, puro e limpo”22 – uma metáfora, talvez, para o que estava prestes a acontecer com o fluxo do pensamento deles. Ao pôr fim a um tipo de distância, a língua escrita criou outro, dando à mente um novo tipo de liberdade. Como resultado dessa liberdade, a escrita acabou sendo muito mais do que uma gravação estática de pensamentos antigos. Com o passar do tempo, iria se tornar o meio fantástico de troca e de desenvolvimento de ideias que é hoje.
Levando em consideração quem foi Sócrates, um filósofo cujo trabalho estava mergulhado no meio antigo, é compreensível que ele não tenha captado o valor do novo. Embebido na cultura da voz, ele jamais imaginou que alguém poderia sair sozinho com um texto escrito, lê-lo silenciosamente e a partir disso conquistar novas ideias. Suas dúvidas podem também ter se relacionado com o caráter físico da escrita. Ao acreditar que a mente era a fonte de todo significado, ele desconfiava do corpo e, de fato, de todo o mundo físico. Em uma passagem do diálogo em questão, ele se refere ao corpo depreciativamente como uma mera concha do intelecto, “essa coisa que carregamos”.23 Para ele, um texto escrito não passava de mais uma “coisa”, um objeto idiota que pretendia fazer o mesmo que a mente, mas sem a capacidade para tanto.
Platão tinha mais visão que seu professor quanto ao valor do distanciamento. Conforme a ação do diálogo mostra, ele entendia que há muito a ganhar quando alguém se retira fisicamente da multidão. Anos após a morte de Sócrates, quando Platão decidiu abrir sua própria escola, ele a fundou fora de Atenas, no mesmo tipo de campo onde o diálogo se passa. A Academia platônica se tornaria sinônimo do melhor do pensamento grego, além da prova de que de fato há algo divino no distanciamento.
Além disso, embora não haja registro do que Platão em pessoa pensava sobre a língua escrita, ele deixou muitas provas de que a tinha em mais alta conta do que Sócrates. Platão também adotou uma visão contrária a objetos físicos como fonte de conhecimento, mas isso não o impediu de pousar a pena no pergaminho e se tornar um escritor. Só podemos ler esse diálogo hoje em dia porque Platão o escreveu, usando a mesma ferramenta que Sócrates denunciou. Ele era aproximadamente quarenta anos mais novo que Sócrates e evidentemente mais aberto às possibilidades do novo mecanismo. Ao registrar em papel os medos sombrios de Sócrates sobre a escrita, ele estava de fato dizendo: “Desculpe, meu velho, mas isso é melhor do que você pensava”.
Para os nossos objetivos, Platão estabelece em Fedro um princípio básico sobre o qual construir uma nova maneira de pensar sobre a conexão digital: em um mundo agitado, o caminho para a profundidade e para a completude começa com o distanciamento. A paisagem tecnológica é bastante mais complexa hoje, e ao longo dos séculos a distância ganhou novos significados. Mas a dinâmica básica não mudou: para guiar sua biga rumo a uma vida boa, é fundamental criar alguns espaços entre si e todas as outras bigas se chocando nesse mundo em desordem.
A tecnologia é imprevisível e os espaços costumam aparecer em lugares surpreendentes. Até aqui, os aparelhos digitais aumentaram a média geral da nossa correria, criando uma necessidade nova por distanciamento. É um problema que ainda aguarda solução, e vale a pena notar que, por volta de 2.400 anos atrás, as pessoas estavam apenas começando a perceber que poderiam usar a sua tecnologia mais nova para a finalidade oposta: reduzir ou amenizar a correria. Será que, agora na era digital, também vamos conseguir criar uma artimanha para fazer o que queremos?
Para que isso aconteça, é necessário ter mais consciência de como os aparelhos de hoje mudam nosso relacionamento com a multidão, o qual, por sua vez, afeta nossa correria e o estado da mente. A conexão humana é fluida e muda o tempo todo. Ao se encontrarem na cidade, Sócrates e Fedro estavam em uma situação de correria e de alta conectividade. Assim que escapam dali, eles se tornam menos conectados à multidão e mais conectados um ao outro – e o pergaminho ajuda a fazer com que tudo aconteça.
Conforme novas tecnologias são acrescentadas à mistura, as permutações e as sutilezas se multiplicam. Em Atenas, a cidade era sinônimo de multidão. Mas, hoje, andar por uma rua urbana movimentada pode ser uma forma de se desconectar da multidão, principalmente se acabamos de sair de um escritório cheio de telas. Enquanto caminhamos por essa rua, se o celular vibrar com uma ligação ou mensagem, nosso relacionamento com a multidão mudará mais uma vez.
Para compreender tudo isso é útil imaginar a conexão como um continuum pelo qual nos movemos o tempo todo. Ele está representado a seguir como uma linha reta entre dois polos, rotulados pelas letras gregas alfa e ômega. Alfa representa a conexão mínima, ou o eu em sua individualidade, enquanto ômega é a conexão máxima com a multidão.
Os polos não representam apenas o fato de estar na multidão ou de estar sozinho, mas os tipos de experiência associados a essas situações. Quando estamos sozinhos, nossos pensamentos e sentimentos se orientam para dentro e a experiência tende a ser relativamente calma e lenta. Em contraste, na multidão – seja física ou virtual – nossa orientação é mais exterior, simplesmente porque há mais acontecimentos, mais demanda pela nossa atenção. A vida na multidão é tipicamente mais agitada e rápida.
 
O restante do continuum representa a variedade de situações entre os extremos. Da esquerda para a direita, a solidão dá lugar à interação com os outros e a experiência se torna relativamente mais externa e corrida. Da direita para a esquerda, a multidão diminui e a experiência é relativamente menos corrida e mais interior. Quando Sócrates e Fedro saem da cidade, reduzem dramaticamente a intensidade de suas conexões, trocando o extremo ômega do continuum pelo alfa. O distanciamento faz toda a diferença.
Isso é apenas um recurso gráfico e nem sequer pode começar a representar toda a variedade da experiência humana. O temperamento de cada um é único, e todos temos nossas reações pessoais à multidão, assim como à solidão. Há introvertidos natos, assim como extrovertidos, e incontáveis variantes entre eles. Uma situação que parece opressivamente tumultuada e corrida para você pode não me atingir de maneira idêntica. Mesmo assim, há uma correlação aproximada entre quanto cada um está imerso na multidão e em que medida seus pensamentos estão corridos (ou não). E essa ideia é fundamental para entender o funcionamento da conexão humana.
Nos capítulos seguintes, conforme a história avança da era de Platão para o presente, ocasionalmente retomarei esse continuum como ponto de referência. Embora os outros seis filósofos tenham vivido em eras e ambientes tecnológicos diferentes, a questão básica permaneceu a mesma: o indivíduo tentando tirar o melhor da vida em uma sociedade cada vez mais tumultuada e corrida. A meta filosófica – uma maneira prática e útil de pensar sobre a tecnologia de forma que ela satisfaça toda a amplidão de necessidades humanas, de dentro e de fora – também não muda. A ideia não é fugir da multidão e se tornar um eremita. Para a maioria de nós, a vida no alfa puro seria tão desagradável quanto no ômega puro. A ideia é encontrar um equilíbrio satisfatório.
Platão capta essa ideia no fim do diálogo, quando, após terem se refrescado e conversado por muito tempo, os dois homens decidem tomar o caminho de volta para a cidade. Sócrates sugere fazerem uma oração: “Adorado Pã e vós todos outros deuses que vagam por este lugar, deem-me a beleza na alma interior; e que o homem interior e o exterior sejam um só”.24
 
(Powers, William - O BlackBerry de Hamlet : uma filosofia prática para viver bem na era digital)
 
NOTAS:
Utilizei principalmente a tradução de Fedro assinada por Alexander Nehamas e Paul Woodruff: Plato: Complete Works, ed. John M. Cooper (Indianapolis: Hackett Publishing, 1997). Todas as transcrições saíram dessa edição, a não ser em duas passagens, nas quais dei preferência a uma tradução do século XIX feita por Benjamin Jowett.
As transcrições da tradução de Jowett são de Symposium and Phaedrus (Nova York: Dover, 1993). Tomei essa decisão com base não na fidelidade da tradução (não domino grego antigo), mas no significado em inglês e na relação dele com o assunto abordado. A não ser quando cito Jowett explicitamente, todas as citações de Fedro se referem à versão de Nehamas e Woodruff.
A palavra “pergaminho” não aparece em nenhuma das traduções utilizadas, mas me valho dela pelas razões explicadas a seguir.
 
1. De acordo com algumas fontes, Fedro estaria próximo da meia-idade no tempo em que a conversa real aconteceu. Como Sócrates o chama de “menino”, deduzo que ele era, na verdade, jovem.
2. John M. Cooper (ed.) “Phaedrus”, in Plato: Complete Works (Indianapolis: Hackett Puclishing, 1997), p. 507.
3. Ibid.
4. Ibid., p. 510.
5. Ibid.
6. John M. Cooper, introdução a Ibid., p. 506.
7. E. H. Gombrich, A Little History of the World (New Haven, Conn.: Yale University Press, 2005), p. 7. [Ed. bras.: Breve história do mundo (São Paulo: Martins Fontes, 2001).]
8. Ibid., p. 5.
9. John M. Cooper (ed.), “Phaedrus”, in Plato: Complete Works (Indianapolis: Hackett Publishing, 1997), p. xix.
10. Embora tanto a tradução de Alexander Nehamas e Paul Woodruff quanto a de Benjamin Jowett tragam “livro”, outros tradutores preferiram “pergaminho”. Também prefiro “pergaminho”, pois a palavra “livro” traz à mente o códex familiar do nosso tempo, que levaria centenas de anos para ser inventado.
11. John M. Cooper (ed.), “Phaedrus”, in Plato: Complete Works (Indianapolis: Hackett Publishing, 1997), p. 525.
12. Ibid., p. 524.
13. Ibid., p. 526.
14. Ibid., p. 525.
15. Ibid., p. 526.
16. Ibid., p. 517.
17. Ibid., pp. 551-52.
18. Ibid., p. 552.
19. Platão, Symposium and Phaedrus, tradução de Benjamin Jowett (Nova York: Dover, 1993), p. 88.
20. John M. Cooper (ed.), “Phaedrus”, in Plato: Complete Works (Indianapolis: Hackett Publishing, 1997), p. 552.
21. Ibid.
22. Ibid., p. 509.
23. Ibid., p. 528.
24. Platão, Symposium and Phaedrus, tradução de Benjamin Jowett (Nova York: Dover, 1993), p. 92.
 
Se “no princípio era o verbo”, esse verbo primordial foi poético

publicado às 21:06

Filósofa e romancista francesa que trabalhou na tradição fenomenológico-existencialista e cujo livro O segundo sexo tornou-se o texto fundador da segunda onda do feminismo. 

“Que nada nos defina. Que nada nos sujeite. Que a liberdade seja a nossa própria substância.”
 
“Não se nasce mulher: torna-se.”
 
“Querer-se livre é também querer livres os outros.” 

 
O existencialimo também nasceu dela
 
Simone de Beauvoir estabeleceu a agenda para o movimento feminista dos anos 1960 e 1970 com O segundo sexo (1949), no qual ela afirmava que “não se nasce uma mulher, torna-se uma”. Em outras palavras, uma mulher é um construto social. Ela pertence a uma classe de outros reificados, desprovidos de subjetividade e existindo, literalmente, para o prazer dos homens. Mas Beauvoir não foi somente uma cronista revolucionária do lugar da mulher no mundo. Ela foi uma filósofa por seus próprios méritos, cujas contribuições somente foram valorizadas por uma profissão dominada por homens após sua morte. (E apenas, pode-se acrescentar, por conta da influência crescente das mulheres na academia resultante da publicação de O segundo sexo.) 
Em Pirro e Cíneas (1944) e A ética da ambiguidade (1947), Beauvoir desenvolveu temas existencialistas originais que foram considerados interligados aos de seu parceiro por toda a vida, Jean-Paul Sartre. Embora se credite amplamente a Sartre a disseminação das ideias de Martin Heidegger para um público amplo na Europa e nos Estados Unidos, ele reconhecia privadamente que Beauvoir tinha um conhecimento mais claro e profundo do heideggerianismo. Em seus romances, sobretudo Ela veio para ficar (1943) e Todos os homens são mortais (1946), Beauvoir explorou temas existencialistas no contexto de vidas vividas por seus colegas, amigos e amantes. Em 1945, ela cofundou , junto com Sartre e Maurice Merleau-Ponty (1908-61), a revista filosófica e literária Les temps modernes. 
Beauvoir nasceu em uma sólida família burguesa de Paris que estava passando por tempos difíceis. Seu pai a encorajava a ler, e sua mãe devotamente católica enviou Simone a uma escola cristã para meninas. De fato, Beauvoir era extremamente devota e desejava, inclusive, tornar-se freira, até que, aos quatorze anos de idade, abandonou a religião e se tornou ateísta. Sua vida e obra não podem ser entendidas fora do contexto de sua existência compartilhada com Sartre, com quem ela formou uma relação para toda a vida baseada no amor “necessário” entre ambos, com a concordância de que cada um deles podia adquirir amantes “contingentes”. Como alunos da École Normale Supérieure, eles terminaram em primeiro e segundo lugar na agrégation de filosofia, em 1927 (a agrégation é um teste de serviço civil que qualifica candidatos bem-sucedidos para dar aulas em liceus como professeurs agrégés). Embora Sartre tenha terminado em primeiro, Beauvoir, aos 21 anos de idade, conquistou a distinção de tornar-se a mais nova professeur agrégé na história da França. 
 
Sartre, Beauvoir e Heidegger 
Juntos, Beauvoir e Sartre liam Søren Kierkegaard, Edmund Husserl e o Ser e tempo (1927), de Heidegger. A influência de Heidegger em Sartre é bem conhecida, e O ser e o nada (1943) é, em parte, resultado do entendimento de Sartre dos temas principais de Ser e tempo. Mas Beauvoir também leu Heidegger a fundo e explorou sua ideia de “desvelamento” em A ética da ambiguidade. Por revelação, Heidegger se referia ao momento autêntico da autorrevelação do Dasein. Dasein, que significa ‘existência’ no uso comum do alemão, é empregado por Heidegger para se referir à condição humana de ser. A autorrevelação que Dasein experimenta no desvelamento é a abertura para todas as possibilidades humanas, incluindo a morte. De fato, é a morte que dá urgência e autenticidade ao Dasein por meio do desvelamento. Em O ser e o nada, Sartre havia caracterizado o homem como uma “paixão inútil”. Beauvoir encontrou na noção heideggeriana de desvelamento um reconhecimento de um ser humano e do Outro como livres e agora abertos para experimentar a “alegria da existência”. Seu existencialismo, portanto, é mais otimista que o de Sartre, e seus pensamentos sobre esse princípio básico do existencialismo são elaborados em Pirro e Cíneas. 
Ao longo de sua vida compartilhada, Beauvoir prestaria auxílio a Sartre, tendo mais de uma vez escrito artigos que foram publicados com o nome dele quando ele era incapaz de cumprir um prazo devido ao álcool ou às drogas. Durante a ocupação nazista de Paris, era Beauvoir quem encontrava comida, cozinhava e alimentava a família estendida de amantes mútuos e amigos que viviam desconfortavelmente no Hôtel Mistral, em Montparnasse. Apesar de sua rejeição inicial do catolicismo romano e dos valores burgueses, do entendimento de Beauvoir de que a mulher não nascia, mas era construída como um construto social, e de sua crença radical na ideia de que se podia fazer o próprio mundo por escolha – apesar de tudo isso –, ela ainda se encontrava em um estado de Alteridade que não se aplicava aos homens poderosos a quem era ligada. Esse estado reduzido se aplicava a ela e a todas as mulheres. 
 
O segundo sexo e sua influência 
Em O segundo sexo, Beauvoir combinou seu domínio do método fenomenológico de Husserl com a compreensão de Heidegger de Dasein para criar um relato histórico e filosófico da mulher. Ela foi atraída pela declaração do seu amigo Maurice Merleau-Ponty, em seu Fenomenologia da percepção (1945), de que “o homem é uma ideia histórica”. Entre as ferramentas teóricas que ela utilizou, estavam o conceito de dialética mestre/escravo desenvolvido por Hegel e uma análise baseada em suas leituras do primeiro Karl Marx, que a levou a concluir que, em virtude de sua capacidade reprodutiva e de sua exclusão da produção e economia, e por conta de seu papel como mães e esposas, as mulheres estavam reduzidas a um estado de absoluta Alteridade. 
Na França, O segundo sexo foi recebido com repulsa, e Beauvoir foi castigada como uma destruidora do tecido social, porque ela rejeitava o casamento e a maternidade e defendia que as mulheres eram livres para escolher suas vidas (incluindo o direito ao aborto). Ela foi alvo de mensagens de ódio e ameaças, cuja violência a surpreendeu. Mas quando foi traduzido para o inglês, em 1963, O segundo sexo se tornou o texto inspirador da segunda onda de feminismo, sobretudo nos Estados Unidos, onde A mística feminina (1963), de Betty Friedan (1921-2006), miraria a situação da dona de casa suburbana, cuja posição Beauvoir considerou tão terrível em sua primeira viagem aos Estados Unidos, em 1947. 
Dois outros textos importantes da segunda onda do feminismo que deveram muito a O segundo sexo foram Política sexual (1970), de Kate Millett (1934-), e A mulher eunuco (1970), de Germaine Greer (1939-). Política Sexual examina a história do patriarcado e o papel das mulheres segundo retratado na literatura, particularmente na obra de D. H. Lawrence (1885-1930), Henry Miller (1891-1980) e Norman Mailer (1923-2007). Em A mulher eunuco, Greer, como Friedan, foca na família nuclear suburbana. Ela conclui que sua organização é repressiva, transformando as mulheres em “eunucos”. Mais tarde, feministas da terceira onda, como Bell Hooks (1952-) e Maxine Hong Kingston (1940-), argumentariam que a perspectiva de classe média alta das feministas de segunda onda ignorou mulheres negras e questões de diversidade. 
O feminismo europeu, depois de Beauvoir, tendeu a ter um aspecto marxista que não esteve presente no movimento americano. Na França, Beauvoir é reverenciada por feministas contemporâneas, mesmo que o existencialismo do qual ela era uma expoente central, junto com Sartre e Merleau-Ponty, tenha dado o lugar de discurso dominante da vida intelectual, depois de 1970, ao estruturalismo e pós-estruturalismo. Ainda assim, feministas pós-estruturalistas como Julia Kristeva, Luce Irigaray e Hélène Cixous reconhecem sua dívida com Beauvoir. 
 
O romance como filosofia 
Beauvoir foi uma romancista prolífica, mas pode-se argumentar que seus romances são ao mesmo tempo obras de literatura e trabalhos filosóficos preenchidos por personagens. Em seu primeiro romance, Ela veio para ficar, ela criou personagens velados para explorar um evento real: o efeito que teve sobre a relação entre Beauvoir e Sartre a experiência de um ménage à trois (na verdade, um ménage à quatre), quando se juntaram a eles a jovem aluna de Beauvoir, Olga Kosakiewicz, e, depois, a irmã de Olga, Wanda. Nesse romance, Beauvoir desenvolveu os conceitos do “Olhar” e do “Outro” para definir o sujeito em relação com outros sujeitos: dois temas que seriam cruciais em O ser e o nada, de Sartre. Beauvoir venceu o Prix Goncourt em 1954 por outro roman à clef, Os mandarins. Foi dedicado ao romancista americano Nelson Algren, com quem ela tinha um caso. 
 
Questões de autenticidade 
Beauvoir publicou cinco volumes de autobiografia, começando com Memórias de uma moça bem comportada (1958), assim como uma memória de Sartre, A cerimônia do adeus (1981), ambos saudados como obras de honesto autoexame. Após sua morte, no entanto, começaram a surgir evidências de que o comprometimento público de Beauvoir com a autenticidade mascarava ações e comportamentos privados que poderiam ser considerados inautênticos. Ela foi criticada por ter cedido à exigência do governo de Vichy de que todos os professores escolares assinassem um certificado declarando não serem judeus nem maçons e por ter aceitado trabalho na Radiodiffusion Nationale, controlada pelos nazistas, como produtora de programas de rádio (um cargo que Sartre conseguiu para ela por meio da intervenção do colaboracionista René Delange, que editava o Comedia, um jornal para o qual Sartre escrevia e que era publicado com o apoio do Instituto Alemão em Paris). 
Com o dinheiro que ganharam, Beauvoir e Sartre puderam se mudar para quartos maiores no Hôtel La Louisiane, em Saint-Germain-des-Prés. É difícil, de uma distância de 70 anos – e sem uma experiência pessoal de ocupação inimiga –, julgar os limites obscuros entre colaboração e resistência, ou entender completamente a realidade da sobrevivência sob tais circunstâncias. A questão que se levanta é a seguinte: como escritores, Beauvoir e Sartre deveriam ter se mantido em silêncio? Ou suas ações se justificavam porque eles “usavam” os organismos de publicação controlados por nazistas (editoras de jornais e livros), assim como o teatro e o rádio, para seus próprios propósitos “autênticos”? 
Quaisquer que sejam as respostas para essas perguntas, uma questão que leitores contemporâneos acham difícil aceitar é a revelação de que Beauvoir mantinha relações sexuais com várias de suas alunas adolescentes. Uma garota, Nathalie Sorokine, foi seduzida por Beauvoir e depois por Sartre e seu amigo Jacques-Laurent Bost (que era também um dos amantes de Beauvoir). A mãe de Sorokine processou Beauvoir, mas o caso foi encerrado depois de uma audiência em que Bost e Sartre negaram seus casos com Sorokine e também que Beauvoir mantivesse relações sexuais com mulheres. Em um contexto mais amplo, Beauvoir é criticada por se unir a Sartre em seu contínuo apoio à União Soviética, mesmo quando ambos sabiam dos assassinatos e gulags de Stálin. 
Um homem nunca se colocaria a escrever um livro a respeito da situação peculiar do humano masculino. Mas, se eu desejo me definir, preciso dizer em primeiro lugar: “Sou uma mulher”; sobre esta verdade deve estar baseada toda discussão que se seguir. 
Simone de Beauvoir, O segundo sexo (1949) 
Houve um sucesso indiscutível em minha vida: minha relação com Sartre. Em mais de trinta anos, apenas uma noite fomos dormir separados. 
Simone de Beauvoir, Hard Times [Tempos difíceis] (1963) 
A força de sua [de Beauvoir] teoria da alienação como elemento da diferença sexual não vem apenas do fato de que consegue sugerir – embora de modo ligeiramente imperfeito – que estruturas de poder patriarcal funcionam na própria construção da subjetividade feminina, mas também da sua tentativa de mostrar exatamente como esse processo acontece. Há um esforço admirável aqui de desenvolver um entendimento inteiramente social da subjetividade. A principal falha da sua análise continua sendo a ausência de qualquer discussão real sobre a relação entre o anatômico e o social. 
Toril Moi, Simone de Beauvoir: The Making of an Intellectual Woman [Simone de Beauvoir: a criação de uma intelectual] (2008)

(Trombley, Stephen - 50 pensadores que formaram o mundo moderno)

publicado às 10:18


NIETZSCHE

por Thynus, em 25.09.16
A grande contribuição de Nietzsche foi nos mostrar como pensar. Ele examinou problemas de diversas perspectivas e os modificou com a intenção de verificar se novos ângulos trariam novas soluções. Música e dança estão presentes em toda a sua filosofia, guiando o leitor em uma busca dionisíaca pelo conhecimento. Apartado da sociedade em seus anos derradeiros, Nietzsche foi certa vez observado por sua senhoria através do buraco da fechadura de sua porta – ele estava dançando nu. Em Assim falou Zaratustra, ele escreveu: “Eu somente poderia acreditar em um Deus que soubesse dançar”. 
(Trombley, Stephen - 50 pensadores que formaram o mundo moderno)
 
 
NIETZSCHE (1844-1900) considerava-se, com razão, sucessor de Schopenhauer, ao qual, no entanto, é superior sob vários aspectos, principalmente quanto ao que diz respeito à solidez e coerência de sua doutrina. A moral oriental da renúncia, de Schopenhauer, não parece concordar com a sua metafísica da onipotência da vontade; em Nietzsche, a vontade tem primazia tanto ética como metafísica. Nietzsche, embora professor, era um filósofo mais literário que acadêmico. Não inventou novas teorias técnicas na ontologia ou na epistemologia; sua importância reside principalmente na ética e, em segundo lugar, como crítico histórico de visão penetrante. Limitar-me-ei quase inteiramente à sua ética e à sua crítica da religião, já que foi este aspecto de seus escritos que o tornou influente.
Sua vida foi simples. Seu pai era pastor protestante e sua educação foi muito piedosa. Destacou-se brilhantemente na universidade como estudioso dos clássicos e aluno de filologia, de tal modo que, em 1869, antes de receber seu diploma, lhe foi oferecido um lugar de professor em Basel, que aceitou. Sua saúde nunca foi boa e, depois de vários períodos de licença, foi obrigado, finalmente, em 1879, a abandonar o magistério. Depois disso, viveu na Suíça e na Itália; em 1888, enlouqueceu, permanecendo assim até sua morte. Tinha uma admiração apaixonada por Wagner, mas se indispôs com ele, devido, ao que alegou, ao Parsifal, que ele considerava demasiado cristão e cheio demais de renúncia. Depois da desavença, criticou Wagner violentamente, chegando ao ponto de acusá-lo de judeu. Seu critério geral continuou sendo, não obstante, muito semelhante ao de Wagner em o Anel; o super-homem de Nietzsche é muito semelhante a Siegfried, com a diferença de que sabe grego. Isto pode parecer estranho, mas a culpa não é minha.
Nietzsche não foi, conscientemente, um romântico; com efeito, critica, amiúde, os românticos. Conscientemente, sua atitude era helênica, mas sem o componente órfico. Admirava os pré-socráticos, com exceção de Pitágoras. Tem estreita afinidade com Heráclito. O homem magnânimo de Aristóteles assemelha-se muito ao que Nietzsche chama o “homem nobre”, mas, em geral, considera os filósofos gregos posteriores a Sócrates inferiores aos seus predecessores. Não pode perdoar Sócrates pela sua origem humilde; chama-o roturier e acusa-o de corromper a nobre juventude ateniense com a sua tendência moral democrática. Platão, principalmente, é condenado devido ao seu gosto pela edificação moral. Não obstante, Nietzsche não deseja condená-lo de todo e sugere, para escusá-lo, que talvez tenha sido insincero e que só pregava a virtude como um meio para que as classes inferiores se mantivessem em ordem. Fala dele, em certa ocasião, como «um grande Cagliostro”. Gosta de Demócrito e de Epicuro, mas seu afeto pelo último parece um tanto ilógico, a menos que seja interpretado realmente como uma admiração por Lucrécio.
Como era de esperar, tem péssima opinião de Kant, a quem chama “fanático moral à la Rousseau”.
Apesar da crítica que Nietzsche faz aos românticos, sua atitude deve muito a eles; é a do anarquismo aristocrático, como a de Byron, e a gente não se surpreende de o ver admirando Byron. Procura combinar duas séries de valores que não se harmonizam facilmente: de um lado, gosta da rudez, da guerra e do orgulho aristocrático; de outro; ama a filosofia, a literatura e as artes, principalmente a música. Historicamente, estes valores coexistiram na Renascença; o Papa Júlio II, lutando por Bolonha e empregando Miguel Ângelo, podia ser tomado como a espécie de homem que Nietzsche desejaria ver à frente do governo dos povos. É natural comparar-se Nietzsche a Maquiavel apesar das importantes diferenças existentes entre os dois. Quanto às diferenças: Maquiavel foi um homem de negócios, cujas opiniões haviam sido formadas em estreito contato com os assuntos públicos e estavam em harmonia com a sua época; não era pedante nem sistemático e sua filosofia da política mal forma um todo coerente. Nietzsche, pelo contrário, era um professor, um homem essencialmente livresco e um filósofo em oposição consciente ao que lhe parecia ser a tendência política e ética de seu tempo. As semelhanças são, no entanto, mais profundas. A filosofia política de Nietzsche é análoga à do Príncipe (não à dos Discursos), embora seja elaborada e aplicada a um campo mais amplo. Tanto Nietzsche como Maquiavel têm uma moral cuja finalidade é o poder e que é, deliberadamente, anticristã, embora Nietzsche seja mais franco a este respeito. O que César Bórgia foi para Maquiavel, Napoleão foi para Nietzsche: um grande homem derrotado por minúsculos adversários.
A crítica nietzschina das religiões e das filosofias é dominada inteiramente por motivos éticos. Ele admira certas qualidades que julga (talvez com razão) ser apenas possíveis para uma minoria aristocrática; a maioria, na sua opinião, devia ser somente um meio para a perfeição dos poucos, e não devia ser considerada como tendo qualquer direito independente à felicidade ou ao bem-estar. Alude habitualmente aos seres humanos como os “estropiados e remendados” e não vê nenhuma objeção aos seus sofrimentos se estes forem necessários para a produção de um grande homem. Assim, toda a importância do período que vai de 1789 a 1815, se resume em Napoleão: “A Revolução tornou Napoleão possível: essa é a sua justificação. Devíamos desejar o colapso anárquico de toda a nossa civilização se tal recompensa fosse o seu resultado. Napoleão tornou possível o nacionalismo: essa é a escusa deste último”. Quase todas as mais altas esperanças deste século, diz ele, se devem a Napoleão.
Gosta de expressar-se por meio de paradoxos, para escandalizar o leitor comum. Consegue-o mediante o emprego das palavras “bem” e “mal” com seus significados ordinários, dizendo, depois, que prefere o “mal” ao “bem”. Seu livro Além do Bem e do Mal tem realmente por objetivo mudar a opinião do leitor quanto ao que é bom e o que é mal, mas se dedica, salvo em certos momentos, a elogiar o que é “mau” e a desdenhar o que é “bom”. Diz, por exemplo, que é um erro considerar como um dever aspirar à vitória do bem e ao aniquilamento do mal; este critério é inglês e típico “desse cabeça dura, John Stuart Mill”, por quem sente um desdém particularmente virulento. Diz dele:
“Detesto a vulgaridade do homem quando diz: “O que é lícito para um homem é lícito para outro”.{Parece-me recordar que alguém disse isso antes de Mill} Tais princípios estabeleceriam de bom grado todas as relações humanas sob a base de serviços mútuos, de modo que cada ação pareceria como que o pagamento de alguma coisa que nos tivessem feito. Esta hipótese é ignóbil no mais alto grau: dá por assentado que há alguma espécie de equivalência de valor entre minhas ações e as tuas”.{Em todas as citações de Nietzsche, as palavras em Itálico se encontram no original}
A verdadeira virtude, como coisa oposta à convencional, não é para todos, mas devia permanecer como a característica de uma minoria aristocrática. Não é proveitosa nem prudente; isola dos outros homens e seu possuidor; é hostil à ordem e prejudica os inferiores. É necessário que os homens mais elevados façam guerra contra as massas e resistam às tendências democráticas da época, pois, em todas as direções, as pessoas medíocres estão dando as mãos umas às outras para se tornarem senhores do mundo. “Tudo o que mima, o que abranda, o que traz o “povo” ou a “mulher” para o primeiro plano, age em favor do sufrágio universal — isto é, do domínio dos homens “inferiores”. O sedutor foi Rousseau, que tornou a mulher interessante; depois vieram, Harriet Beecher Stowe e os escravos; depois os socialistas, com a sua defesa dos operários e dos pobres. Todos eles devem ser combatidos.
A moral de Nietzsche não é de indulgência consigo mesmo em nenhum sentido comum; acredita na disciplina espartana e na capacidade de suportar a dor, como também infringi-la, para fins importantes. Admira acima de tudo a força de vontade. Provo o poder de uma vontade — diz ele — segundo a quantidade de resistência que pode oferecer e de tortura que pode suportar, e pela maneira como sabe transformar isso em benefício próprio; não indico o mal e a dor da existência com o dedo da reprovação, mas antes alimento a esperança de que um dia a vida possa chegar a ser pior e mais cheia de sofrimento do que tem sido”.
Considera a compaixão como uma fraqueza que é preciso combater. “O objetivo é alcançar essa enorme energia de grandeza que pode modelar o homem do futuro por meio da disciplina e também do aniquilamento de milhões de esfarrapados e que pode, não obstante, evitar de cair na ruína ante o sofrimento criado por isso, de que não se viu nunca, antes, coisa semelhante”. Profetizava, com certo júbilo, uma era de grandes guerras; a gente fica a pensar se teria sido feliz se houvesse vivido o bastante para ver a realização de sua profecia.
No entanto, não é um adorador do Estado; longe disso. É um individualista apaixonado, um crente no herói. A miséria de toda uma nação, diz ele, é menos importante do que o sofrimento de um grande indivíduo: “Os infortúnios de toda essa gente pequena não constituem, reunidos, uma soma total, salvo nos sentimentos dos homens poderosos”.
Nietzsche não é um nacionalista e não mostra excessiva admiração pela Alemanha. Deseja uma raça dirigente internacional, que reúna os senhores do mundo: “uma nova e vasta aristocrata, baseada na mais severa autodisciplina, em que a vontade dos homens de poder filosófico e dos artistas-tiranos seja estampada durante milhares de anos”.
Tampouco é decididamente antissemita, embora ache que a Alemanha contém tantos judeus quanto lhe é possível assimilar, não devendo permitir novo influxo de judeus. Não lhe agrada o Novo Testamento, mas sim o Antigo, de que fala em termos altamente elogiosos. Fazendo-se justiça a Nietzsche, deve-se ressaltar que muitos progressos modernos, que tem certa relação com seu critério ético geral, são contrários a suas opiniões claramente expressas.
Duas aplicações da sua ética merecem referência: primeiro, seu desprezo pelas mulheres; segundo, sua crítica do Cristianismo.
Não se cansa jamais de investir contra as mulheres. Em seu livro pseudo profético, Assim Falava Zarathustra, diz que as mulheres não são, ainda, capazes de amizade; são ainda gatos, ou pássaros ou, quando muito vacas. «Os homens devem ser adestrados para a guerra e as mulheres para a recreação dos guerreiros. O resto é tolice. A recreação do guerreiro deve ser de uma forma peculiar, se é que elevemos confiar em seu enfático aforismo sobre o assunto: “Vais encontrar uma mulher? Não esqueças o chicote”?
Nem sempre é tão feroz, embora sempre seja igualmente desdenhoso. Em A Vontade de Poder, diz: “Agrada-nos a mulher por ser talvez a mais saborosa, delicada e etérea das criaturas humanas. Que prazer para nós encontrar criaturas que só tem na cabeça bailes, tolices e atavios! Elas têm sido sempre a delícia de toda alma varonil tensa e profunda”. No entanto, mesmo estas graças só são encontradas nas mulheres que são mantidas na linha por homens varonis; logo que conseguem qualquer independência, tornam-se intoleráveis. “A mulher tem muito de que se envergonhar; na mulher, há muito pedantismo, superficialidade, suficiência, presunções ridículas, desregramentos, e indiscrição oculta … coisas que foram, até agora, refreadas e dominadas por medo do homem”. Assim o diz em Além do Bem e do Mal, onde acrescenta que devíamos considerar as mulheres como uma propriedade, como os orientais. Todo o seu juízo sobre as mulheres é apresentado como uma verdade axiomática; não são opiniões apoiadas em provas históricas ou em sua própria experiência, que, quanto ao que se referia a mulheres, quase que se limitava à sua irmã.
A objeção de Nietzsche contra o Cristianismo é que este teve como resultado a aceitação do que ele chama “moral de escravo”. É curioso observar o contraste entre seus argumentos e os dos philosophes franceses anteriores à Revolução. Estes afirmavam que os dogmas cristãos não eram verdadeiros; que o Cristianismo ensina a submissão ao que julga ser a vontade de Deus, enquanto que os seres humanos que se respeitem não devem inclinar-se ante nenhum Poder mais alto — e que as Igrejas cristãs se tornaram aliadas dos tiranos e ajudam os inimigos da democracia a negar a liberdade e a continuar a oprimir os pobres. Nietzsche não se interessa pela verdade metafísica do Cristianismo ou de qualquer outra religião; convencido de que nenhuma religião é realmente verdadeira, julga todas as religiões exclusivamente pelos seus efeitos sociais. Concorda com os filósofos quanto ao que se refere à submissão à suposta vontade de Deus, mas ele não a substituiria pela vontade dos “artistas-tiranos” terrenos. A submissão é licita, salvo para os super-homens, mas não a submissão ao Deus cristão. Quanto ao fato de as Igrejas cristãs «serem aliadas dos tiranos e inimigas da democracia», isso, diz ele, constitui o verdadeiro reverso da verdade. A Revolução Francesa e o socialismo são, segundo ele, essencialmente idênticos, quanto ao espírito, ao Cristianismo; a tudo isso se opõe, e pela mesma razão: que ele não tratará todos os homens como iguais sob nenhum aspecto.
O Budismo e o Cristianismo, diz ele, são ambas duas religiões “niilistas”, no sentido de que negam qualquer diferença última de valor entre um homem e outro, mas o Budismo é a menos refutável das duas. O Cristianismo é degenerador, cheio de elementos excrementícios e decadentes; sua força propulsora é a rebelião dos esfarrapados. Esta revolta começou com os judeus e foi trazida ao Cristianismo pelos “santos epiléticos” como São Paulo, que não tinham honestidade. “O Novo Testamento é o evangelho de uma classe de homem completamente ignóbil”. O Cristianismo é a mentira mais fatal e sedutora que já existiu. Nenhum homem notável se pareceu jamais ao ideal cristão; considere-se, por exemplo, os heróis da Vidas de Plutarco. O Cristianismo deve ser condenado por negar o valor do “orgulho, o sentimento das distâncias, a grande responsabilidade, o entusiasmo exuberante, os instintos da guerra e da conquista, a deificação da paixão, a vingança, a cólera, a voluptuosidade, a aventura, o conhecimento”. Todas estas coisas são boas, e todas elas são consideradas más pelo Cristianismo — diz Nietzsche.
O Cristianismo, afirma ele, propõe-se a domesticar o coração do homem, mas isto é um erro. Um animal selvagem tem certo esplendor, que perde quando é domesticado. Os criminosos de Dostoiewsky eram melhores do que ele, porque tinham mais respeito por si mesmos. O arrependimento e a redenção causam asco a Nietzsche sendo por ele qualificados como folie circulaire”. É difícil livrar-nos deste modo de pensar com respeito à conduta humana: “somos herdeiros da vissecção da consciência e da autocrucificação de dois mil anos”. Há uma passagem muito eloquente, acerca de Pascal, que deve ser citada, pois que nos mostra da maneira mais perfeita a objeção de Nietzsche ao Cristianismo.
“Que é que combatemos no Cristianismo? Sua aspiração a destruir os fortes, a quebrantar lhes o espírito, e a explorar os seus momentos de cansaço e fraqueza, a converter a sua orgulhosa segurança em preocupação e ansiedade; porque sabe envenenar os instintos mais nobres e contaminá-los com a enfermidade, até que seu vigor, sua vontade de poder, se voltem para dentro, contra si mesmos — até que os fortes pereçam pelo excessivo desprezo de si mesmos e sua própria imolação: essa horrenda maneira de perecer, da qual Pascal é o exemplo mais famoso”.
Em lugar do santo cristão, Nietzsche deseja ver o que ele chama o homem “nobre”, não, de modo algum, como um tipo universal, mas como aristocrata governante. O homem “nobre” será capaz de crueldade e, em certas ocasiões, do que vulgarmente se considera como crime; só reconhecerá deveres para com os seus iguais. Protegerá artistas, poetas e todos os que chegarem a ser mestres de alguma arte, mas o fará como membro de uma ordem mais alta do que a dos que só saibam fazer alguma coisa. Do exemplo dos guerreiros, aprenderá a associar a morte aos interesses pelos quais luta; a sacrificar o número e a levar sua causa suficientemente a sério a ponto de não poupar homens; a praticar uma disciplina inexorável e a permitir a si mesmo a violência e a astúcia na guerra. Compreenderá o papel desempenhado pela crueldade na perfeição aristocrática: “quase tudo que chamamos “alta cultura” está baseado na espiritualização e intensificação da crueldade. O homem “nobre” é, essencialmente, a encarnação da vontade de poder.
Que devemos pensar das doutrinas de Nietzsche? Até que ponto são verdadeiras? São, de algum modo, úteis? Há nelas algo objetivo, ou são simples sonhos de poder de um inválido?
É inegável que Nietzsche teve grande influência, não entre filósofos técnicos, mas entre pessoas de cultura literária e artística. Deve-se também reconhecer que suas profecias quanto ao futuro provaram, até agora, estar mais próximas da verdade do que as dos liberais e socialistas. Se ele é um mero sintoma de enfermidade, tal doença deve estar muito disseminada no mundo moderno.
Não obstante, há nele muita coisa que tem de ser posta de lado como simplesmente megalomaníaca. Falando de Spinoza, diz: “Quanta timidez e vulnerabilidade revela esta máscara de recluso enfermiço!” Exatamente o mesmo poderia dizer-se dele, com menos repugnância, já que não hesitou em dizê-lo de Spinoza. É óbvio que, em seus sonhos, é um guerreiro, não um professor; todos os homens que admira são militares. Sua opinião das mulheres, como a de todos os homens, é uma objetivação de sua própria emoção com respeito a elas, que é claramente um sentimento de temor. “Não esqueças teu chicote” — mas, em cada dez mulheres, nove teriam arrebatado o chicote, e ele o sabia, de modo que se conservava afastado delas, curando sua vaidade ferida com observações nada amáveis.
Condena o amor cristão porque o considera um produto do temor: receio que meu vizinho me faça mal e, por isso, lhe asseguro que o amo. Se eu fosse mais forte e mais ousado, demonstraria abertamente o desprezo que, certamente, sinto. Não ocorre a Nietzsche a possibilidade de que um homem sinta realmente um amor universal, e isto, sem dúvida, porque ele sente um ódio e um temor quase universal, que procura disfarçar com altiva indiferença. Seu homem “nobre” — que é ele próprio em seus devaneios — é um ser totalmente destituído de simpatia, implacável, astuto, cruel, preocupado só com o seu próprio poder. O Rei Lear, à beira da loucura, diz:
 
Farei tais coisas –
Não sei ainda quais – mas elas serão
O terror da terra.
 
A vida como afirmação de si, como criação, como inventividade, como liberação dos instintos, como arte e como dança!
 
Esta é a filosofia de Nietzsche, em poucas palavras.
Jamais ocorreu a Nietzsche que a ânsia de poder, com que adorna o seu super-homem, é em si um produto do medo. Os que não temem os seus vizinhos não veem a necessidade de tiranizá-los. Os homens que venceram o medo não têm a qualidade frenética do “artista-tirano” de Nietzsche, Nero, que procura gozar a música e os massacres, enquanto o seu coração está cheio do terror da inevitável revolução em palácio. Não negarei que, em parte como resultado de seu ensinamento, o mundo real se tornou muito semelhante ao seu pesadelo, mas isto não o torna, de modo algum, menos horrível.
Deve-se admitir que há um certo tipo de moral cristã a que se pode aplicar a severa crítica de Nietzsche. Pascal e Dostoiewsky — seus próprios exemplos — tem algo de abjeto em sua virtude. Pascal sacrificou ao seu Deus o seu magnífico talento matemático, atribuindo-lhe, assim, uma barbaridade que era uma ampliação cósmica das mórbidas torturas mentais de Pascal. Dostoiewsky não sabia o que fazer com o orgulho; pecaria para arrepender-se e gozar da volúpia da confissão. Não discutirei a questão de saber até que ponto se pode atribuir com justiça tais aberrações ao Cristianismo, mas admitirei que concorrendo com Nietzsche ao considerar digna de desprezo a prostração de Dostoiewsky. Um certo aprumo e altivez, e até certa afirmação de si mesmo, são, tenho de admitir, elementos do caráter melhor; nenhuma virtude que tenha suas raízes no medo é digna de ser muito admirada.
Há duas espécies de santos: o santo por natureza, e o santo por medo. O santo por natureza sente um amor espontâneo pela humanidade; faz o bem porque isso o torna feliz. O santo por medo, como o homem que só se abstém de roubar por receio da polícia, seria um perverso, se não se visse refreado pelo pensamento do fogo do inferno e pela vingança do próximo. Nietzsche só pode imaginar esta espécie de santo; sente-se tão cheio de temor e de ódio que o amor espontâneo à humanidade lhe parece impossível. Jamais concebeu um homem que, com todo o destemor e o inflexível orgulho do super-homem, não inflija, apesar disso, sofrimento algum, por não ter desejo de o fazer. Suporá alguém que Lincoln agisse como agiu por medo do inferno? No entanto, para Nietzsche, Lincoln é abjeto, e Napoleão magnífico.
Resta considerar o principal problema ético suscitado por Nietzsche, isto é: deveria a nossa ética ser aristocrática, ou deveria, em certo sentido, tratar todos os homens por igual? Esta é uma questão que, como acabo de expor, não tem um sentido muito claro e, como é natural, o primeiro passo é procurar torná-la mais precisa.
Devemos, em primeiro lugar, distinguir uma ética aristocrática de uma teoria política aristocrática. Um crente no princípio de Bentham, da maior felicidade para o maior número, tem uma ética democrática, mas poderá pensar que se obtém melhor a felicidade geral com uma forma de governo aristocrático. Esta não é a posição de Nietzsche. Afirma ele que a felicidade das pessoas comuns não faz parte do bem per se. Tudo o que é bom ou mau existe apenas nos poucos superiores; o que acontece com o resto não tem importância.
A segunda questão é: Como definir os poucos superiores? Na prática, tem sido, usualmente, uma raça conquistadora ou uma aristocracia hereditária — e as aristocracias tem sido, pelo menos na teoria, composta de descendentes de raças conquistadoras. Creio que Nietzsche aceitaria esta definição. “Nenhuma moral é possível sem um bom nascimento”, diz-nos ele. E acrescenta que a casta nobre é sempre, a princípio, bárbara, mas que toda a elevação do Homem se deve à sociedade aristocrática.
Não está claro se Nietzsche considera congênita a superioridade do aristocrata ou devido à educação ou ao meio. Se este último é o caso, torna-se difícil defender a exclusão de outros das vantagens para as quais, ex hypothesi, estão igualmente qualificados. Presumirei, pois, que ele considera as aristocracias conquistadoras e seus descendentes como biologicamente superiores a seus súditos, como os homens são superiores aos animais domésticos, embora em grau menor.
Que é que devemos entender por “biologicamente superior”? Devemos entender, quando estivermos interpretando Nietzsche, que os indivíduos da raça superior e seus descendentes tem mais probabilidade de ser “nobres” no sentido nietzschiano: terão mais força de vontade, mais coragem, mais ânsia de poder, menos simpatia, menos medo e menos bondade.
Podemos, agora, expor a ética de Nietzsche. Creio que os que se seguem é uma análise imparcial da mesma.
Os vencedores na guerra e seus descendentes são, em geral biologicamente superiores aos vencidos. É, pois, desejável que mantenham o poder e dirijam os negócios exclusivamente em seu próprio interesse.
Temos ainda de considerar, aqui, a palavra “desejável”. Que é “desejável” na filosofia de Nietzsche? Do mundo de vista de um estranho, o que Nietzsche chama “desejável” é o que Nietzsche deseja. Com esta interpretação, a doutrina de Nietzsche poderia ser exposta, de maneira mais simples e honesta, numa frase: “Quem me dera ter vivido na Atenas de Péricles ou na Florença dos Médicis!” Mas isto não é uma filosofia; é um fato biográfico referente a determinado indivíduo. A palavra “desejável” não é sinônimo de “desejado por mim”; tem certo direito, embora impreciso, de jurisdição universal. Um teísta pode dizer que o desejável é aquilo que Deus deseja, mas Nietzsche não pode dizer tal coisa. Poderia dizer que sabe o que é bom por uma intuição ética, mas não diria isto porque tais palavras soam de um modo demasiado kantiano. O que pode dizer, como uma expansão da palavra “desejável”, é isto: “Se os homens lerem minhas palavras, uma certa porcentagem deles compartilhará de meus desejos quanto ao que se refere à organização da sociedade, esses homens, inspirados pela energia e determinação que minha filosofia lhes dará, podem preservar e restaurar a aristocracia, com eles próprios como aristocratas ou (como eu) como bajuladores da aristocracia. Deste modo, conseguirão uma vida mais plena do que a que poderão ter como servidores do povo”.
Há um outro elemento em Nietzsche, estreitamente afim à objeção feita pelos “individualistas inflexíveis” contra os sindicatos. Numa luta de todos contra todos, é provável que o vencedor possua certas qualidades que Nietzsche admira, tais como coragem, espírito de iniciativa e força de vontade. Mas se os homens que não possuem estas qualidades aristocráticas (que são a imensa maioria) se unirem, podem vencer, apesar de sua inferioridade individual. Na luta da canaille coletiva contra os aristocratas, o Cristianismo constitui a frente ideológica, como a Revolução Francesa foi a frente combatente. Devemos, por conseguinte, opor-nos a qualquer espécie de união entre os individualmente fracos, por receio de que seu poder combinado supere o dos individualmente fortes; por outro lado, devemos promover a união entre os elementos vigorosos viris da população. O primeiro passo para a criação de tal união é pregar-se a filosofia de Nietzsche. Ver-se-á que não é fácil manter a distinção entre a ética e a política.
Suponha-se que desejamos — como eu certamente desejo — encontrar argumentos contra a moral e a política de Nietzsche. Que argumentos poderemos achar?
Há argumentos práticos de peso, que mostram que o intento de assegurar os fins a que ele se propunha produzem, de fato, algo inteiramente diferente. As aristocracias de nascimento estão, hoje em dia, desacreditadas; a única forma praticável de aristocracia é uma organização como o partido fascista ou o nazista. Tal organização suscita oposição, e é provável que seja derrotada na guerra; mas, se não for derrotada, converte-se, dentro de pouco tempo, num Estado policial, onde os governadores vivem no terror de ser assassinados e os heróis se encontram em campos de concentração. Numa tal comunidade, a fé e a honra são minadas pela delação, e a pressuposta aristocracia de super-homens se degenera num bando de trêmulos poltrões.
Estes são, no entanto, argumentos para a nossa época, não teriam sido defendidos em épocas passadas, quando a aristocracia não era posta em dúvida. O governo egípcio foi conduzido, durante vários milênios, de acordo com os princípios nietzschianos. Os governos de quase todos os grandes Estados foram aristocráticos até as revoluções francesa e americana. Temos, portanto, de perguntar a nós mesmos se há alguma boa razão para se preferir a democracia a uma forma de governo que tem uma história tão longa e triunfante — ou, antes, já que nos ocupamos de filosofia e não de política, se há razões objetivas para se rejeitar a ética em que Nietzsche baseia a aristocracia.
A questão ética, ao contrário da política, é de simpatia. A simpatia, no sentido de nos tornarmos infelizes com o sofrimento dos outros, é, até certo ponto, natural às criaturas humanas; as crianças pequenas mostram-se preocupadas quando ouvem chorar outras crianças. Mas o desenvolvimento deste sentimento é muito diferente em pessoas diversas. Alguns sentem prazer em infligir torturas; outros, como Buda, acham que não podem ser completamente felizes enquanto alguma coisa viva estiver sofrendo. A maioria das pessoas divide emocionalmente a humanidade em amigos e inimigos, sentindo simpatia pelos primeiros, mas não pelos segundos. Uma ética como a do Cristianismo ou o Budismo tem sua base emotiva na simpatia universal; a de Nietzsche, numa ausência completa de simpatia.
(Prega, frequentemente, contra a simpatia e, a este respeito, sente-se que não tem dificuldade alguma em seguir seus próprios preceitos). A questão é: se Buda e Nietzsche se defrontassem, poderia um deles apresentar algum argumento que impressionasse o ouvinte imparcial? Não estou pensando em argumentos políticos. Podemos imaginá-los comparecendo diante do Todo-poderoso, como no primeiro capítulo do Livro de Jó, e a dar conselhos sobre a espécie de mundo que Ele deveria criar. Que poderia cada um deles dizer?
Buda iniciaria sua exposição falando dos leprosos, proscritos e miseráveis; do pobre, labutando com os membros doloridos e mal mantendo-se vivo com a alimentação escassa; os feridos nas batalhas, morrendo em lenta agonia; os órfãos, os maltratados por guardiães cruéis — e mesmo dos mais afortunados, perseguidos pelo pensamento do fracasso e da morte. Diante de toda esta carga de sofrimento, diria, era preciso que se encontrasse uma maneira de salvação — e que a salvação só pode vir pelo amor.
Nietzsche, a quem só o Onipotente poderia impedir que interrompesse, irromperia, quando chegasse a sua vez: “Por Deus, homem, devias aprender a ter mais fibra. Por que andar a choramingar porque as pessoas vulgares sofrem? Ou, mesmo, porque os grandes homens sofrem? As pessoas vulgares sofrem vulgarmente, os grandes homens sofrem grandemente, e os grandes sofrimentos não devem ser lamentados, pois são nobres. Teu ideal é puramente negativo, a ausência de sofrimento, coisa que pode ser assegurada com a não – existência. Eu, pelo contrário, tenho ideais positivos: admiro Alcibíades, Frederico o Grande, Napoleão. Em benefício destes homens, qualquer sofrimento vale a pena. Apelo para Vós, Senhor, como o maior dos artistas criadores: não permitais que os Vossos impulsos artísticos se curvem ante o balbuciar atemorizado deste infeliz psicopata”.
Buda, que, nas cortes celestiais, aprendeu toda a história posterior à sua morte, e que dominou a ciência, deleitando-se com o conhecimento e sentindo tristeza ante o uso a que os homens o destinaram, replica, com calma urbanidade: “O senhor está enganado, Prof. Nietzsche, ao pensar que o meu ideal é puramente negativo. Na verdade, inclui um elemento negativo — a ausência de sofrimento; mas, além disso, contém tanto de positivo quanto se possa encontrar em sua doutrina. Embora não sinta admiração especial por Alcibíades e Napoleão, eu também tenho os meus heróis: o meu sucessor Jesus, por haver dito aos homens que amassem os seus inimigos; os homens que descobriram a maneira de se dominar as forças da natureza e assegurar alimento com menos trabalho; os médicos que mostraram a maneira de se diminuir as enfermidades; os poetas, os artistas e os músicos que captaram vislumbres da Beatitude Divina. O amor, o conhecimento e o deleite da beleza não são negações; são suficientes para encher as vidas dos maiores homens que já existiram”.
“De qualquer modo — responde Nietzsche — vosso mundo seria insípido. Teríes de estudar Heráclito, cujas obras se conservam completas na biblioteca celestial. Vosso amor é compaixão, produzido pela dor; vossa verdade, se é que sois honestos, é desagradável, e só pode ser conhecida através do sofrimento; quanto à beleza, que existe de mais belo do que o tigre, que deve seu esplendor à sua ferocidade? Não, se o Senhor se decidisse pelo vosso mundo, receio que morreríamos todos de tédio”.
«O senhor poderia morrer de tédio — responde Buda — porque ama a dor e o seu amor à vida é uma impostura. Mas aqueles que realmente amam a vida, seriam felizes como ninguém pode ser feliz no mundo tal como ele é”.
De minha parte, concordo com Buda tal como o imaginei. Mas não sei de que maneira provar que ele tem razão, por meio de argumentos como os que podem ser usados numa questão matemática ou científica. Nietzsche não me agrada porque aprecia a contemplação da dor, porque erige o desprezo em dever, porque os homens a quem ele mais admira são conquistadores, cuja glória se baseia na habilidade em fazer com que os homens morram. Mas creio que o argumento final contra a sua filosofia, como contra qualquer ética desagradável, mas intimamente coerente, reside não no apelo aos fatos, mas num apelo às emoções. Nietzsche despreza o amor universal; eu o considero a força motriz de tudo o que desejo com respeito ao mundo. Seus adeptos tiveram sua vez no mundo, mas podemos esperar que esta chegue rapidamente ao fim.
 
(Bertrand Russel - História da Filosofia Ocidental)

publicado às 05:28


Leviatã

por Thynus, em 24.09.16
“Tudo, portanto, que advém de um tempo de Guerra, onde cada homem é Inimigo de outro homem, advém igualmente do tempo em que os homens vivem sem outra segurança além do que sua própria força e sua própria astúcia conseguem provê-los. Em tal condição, não há lugar para a Indústria, porque seu fruto é incerto; e, consequentemente, nenhuma Cultura da Terra existe; nenhuma Navegação, nem uso nenhum das mercadorias que podem ser importadas através do Mar; nenhuma Construção confortável; nada de Instrumentos para mover e remover coisas que requerem muita força; nenhum Conhecimento da face da Terra; nenhuma estimativa de Tempo; nada de Artes; nada de Letras; nenhuma Sociedade; e o que é o pior de tudo, medo contínuo e perigo de morte violenta. E a vida do homem, solitária, pobre, sórdida, brutal e curta.”

  « Em primeiro lugar, apresento uma disposição geral de toda a humanidade, um desejo perpétuo e inquieto de poder e mais poder, que cessa apenas com a morte. » 
Thomas Hobbes, 1951 
A destruição de Leviatã
 
Passagem mais famosa de uma obra-prima da filosofia política, essa visão distópica da humanidade é pintada pelo filósofo inglês Thomas Hobbes em seu livro Leviatã, publicado em 1651. Abatido, no rescaldo da Guerra Civil inglesa, Hobbes apresenta uma imagem da humanidade que é sempre pessimista e sombria: a visão dos seres humanos que vivem em um imaginado “estado da natureza”, que estão isolados, indivíduos autointeressados cujo único objetivo é sua própria segurança e seu próprio prazer; que estão constantemente em competição e conflito com o outro, preocupados apenas em obter sua própria retaliação em primeiro lugar; entre os quais não existe confiança e, portanto, nenhuma cooperação é possível. A questão para Hobbes é como os indivíduos atolados nessa discórdia miserável e implacável poderão algum dia se livrar dela. De que maneira qualquer forma de sociedade ou organização política pode se desenvolver tendo por base essas origens pouco promissoras? Sua resposta: “um poder comum para mantê-los todos sob jugo”; o poder absoluto do Estado, simbolicamente chamado “Leviatã”.

Contratos sociais 
 A ideia de fazer um contrato legal como modelo para a compreensão do funcionamento de um Estado ocorreu a vários filósofos desde Hobbes. A celebração de um contrato confere a alguém que é parte dele certos direitos e impõe certas obrigações; supõe-se que uma forma paralela de justificativa esteja subjacente ao sistema de direitos e obrigações que existem entre cidadãos de um Estado e as autoridades que o controlam. Mas exatamente que tipo de contrato é entendido ou implicado aqui? O contrato entre o cidadão e o Estado não é entendido de modo literal, e o “estado de natureza” que se imaginava existir na ausência da sociedade civil é igualmente hipotético, um dispositivo planejado para distinguir aspectos naturais e convencionais da condição humana. Mas então podemos perguntar, como fez o filósofo escocês David Hume, qual o peso que pode ser colocado em tais noções hipotéticas ao se determinar os poderes reais e as prerrogativas do cidadão e do Estado. O mais influente sucessor de Hobbes foi o filósofo francês Jean-Jacques Rousseau, autor de O contrato social, obra publicada em 1762. Desde então, tem aumentado o número de teóricos partidários do contrato social (ou “contratários”), dos quais o mais importante é o filósofo e político norte-americano John Rawls (veja a página 185).

“Contratos, sem a Espada, são apenas Palavras” Na visão de Hobbes, o instinto natural de todo mundo é cuidar dos próprios interesses, e é do interesse de todos cooperar: só desse modo podem escapar de uma condição de guerra e de uma vida que é “solitária, pobre, desagradável, brutal e curta”. Se as coisas funcionam assim, por que não é simples para as pessoas no estado de natureza concordar em cooperar umas com as outras? Não é simples porque há sempre um custo a ser pago ao se cumprir um contrato e há sempre um ganho a ser obtido pelo não cumprimento do contrato – no curto prazo, pelo menos. Mas se o interesse próprio e a autopreservação são a única bússola moral, como você pode ter certeza de que alguém não vai buscar preventivamente uma vantagem por não conformidade? Na verdade, com certeza tal vantagem será procurada; então o melhor que você pode fazer é quebrar antes o contrato? Claro que todo mundo pensa dessa maneira, por isso não existe confiança e, portanto, nenhum acordo. No estado de natureza de Hobbes, juros no longo prazo sempre darão lugar a ganhos no curto prazo, sem deixar espaço para romper o ciclo de desconfiança e violência.


 
« O homem nasce livre; e em todos os lugares ele está acorrentado. Imagina ser o mestre dos outros, e ainda continua a ser um escravo maior do que eles. Como se dá essa mudança? Não sei. O que pode torná-la legítima? Essa pergunta eu acho que posso responder. »
Jean-Jacques Rousseau, 1782
 
 
“Contratos, sem a Espada, são apenas Palavras”, conclui Hobbes. É necessário algum tipo de poder externo ou sanção que obrigue as pessoas a cumprirem os termos de um contrato que beneficie a todos – desde que todos o cumpram. As pessoas devem, de bom grado, restringir suas liberdades em prol da cooperação e da paz, com a condição de que todo mundo faça o mesmo; elas devem “conferir todo o seu poder e toda a sua força a um Homem, ou a uma Assembleia de homens, que possa reduzir todas as suas Vontades, por pluralidade de vozes, a uma só Vontade”. Dessa maneira, os cidadãos concordam em ceder sua soberania ao Estado, com poder absoluto para que “atenda as vontades de todos eles, a Paz em casa e a ajuda mútua contra seus inimigos no estrangeiro”.
 
a ideia resumida: 
O contrato social
 
 
(Dupré, Ben - 50 ideias de filosofia que você precisa conhecer)

publicado às 16:32


Bichinhos na gente 2

por Thynus, em 20.09.16
A regulamentação dos antibióticos, parte 1
Em 1937, uma companhia farmacêutica dos EUA produziu uma droga à base de sulfa com sabor de framboesa. Que simpático da parte deles. Menos simpático foi o fato de utilizarem dietilenoglicol como solvente. Depois da morte de mais de 100 pessoas por envenenamento por essa substância , descobriu-se que a companhia não tinha realizado testes de segurança para checar seu produto. Pior ainda foi o fato de que a companhia não havia quebrado nenhuma lei, a não ser pela inclusão da palavra “elixir” no nome do produto, quando na verdade este não continha álcool. Esse ato foi ilegal; envenenar as pessoas não foi, e a companhia se safou sem grandes punições. A revolta contra esse absurdo trágico fez com que a Food and Drug Administration (FDA), a agência reguladora de drogas e alimentos dos EUA, ganhasse muito mais poder. Desde então, a FDA, cujos parâmetros são muito estritos, tornou-se responsável por aprovar (ou não) todas as drogas vendidas nos EUA, o que tem importantes repercussões globais.
 
Descoberta e produção de antibióticos

 

Chegamos agora a um dos eventos mais encantadores da história da ciência: em 1928, o dr. Alexander Fleming retorna de umas longas férias a seu notoriamente desorganizado laboratório no Hospital St. Mary, em Londres. Entre as muitas placas de cultura empilhadas em sua embalagem desinfetante, ele notou uma que estava fortuitamente equilibrada no topo de uma pilha de placas e, portanto, não fora tocada pelo banho antisséptico. A placa estava contaminada por um fungo, e embora toda ela estivesse cheia de uma mistura opaca de colônias de bactérias, um círculo ao redor do fungo contaminante continuava livre delas.
Esse momento singular — quando, em meio a tudo o que certamente passava por sua mente naquele instante, Fleming notou um detalhe curioso e compreendeu suas possíveis implicações — é a ciência no que ela tem de melhor.8
Fleming isolou o fungo, identificando-o corretamente como o Penicillium notatum (P. notatum), e conseguiu isolar o composto antibacteriano produzido, que denominou penicilina. Os resultados foram publicados um ano depois, sendo amplamente ignorados pelos poucos que os leram.
Esse evento desperta algumas das perguntas mais inquietantes da história médica e científica: qual é o lugar da sorte nas descobertas científicas? E se Fleming tivesse sido só um pouquinho mais organizado? E se aquela cepa específica de fungo — uma cepa que, como se descobriu posteriormente, havia sido uma enorme hiperprodutora de penicilina, muito além da taxa normal para o P. notatum — não tivesse pairado pelo ar até cair naquele laboratório em particular? E se o clima tivesse sido diferente e não estimulasse o crescimento do fungo? E se Fleming tivesse voltado mais cedo, antes que o fungo tivesse tempo de provocar sua marca visível na placa? E se ele estivesse preocupado, ou apenas de ressaca, e não notasse o fungo? Como seria nosso mundo nesse caso? Em termos mais práticos, será possível que coisas assim aconteçam o tempo todo sem que as percebamos, e que tenhamos como melhorar nossa chance de notá-las?
Com base em casos semelhantes e no senso comum, parece seguro dizermos que a penicilina teria sido descoberta mais cedo ou mais tarde e que os desenvolvimentos médicos e científicos não teriam sido radicalmente diferentes. Qualquer especulação sobre a diferença que isso teria feito para a história em geral não passa de um chute.
Vale a pena ressaltarmos dois pontos: as pessoas começaram a notar as propriedades antibacterianas dos fungos Penicillium antes de Fleming (ainda que ele tenha sido o primeiro a isolar o ingrediente ativo), e o próprio Fleming, ao que parece, não percebeu inteiramente, naquele momento (ou na década que se seguiu), o grande potencial de sua descoberta. Ele explorou outras opções antibacterianas que julgou serem mais promissoras, fez uso da penicilina para modestos fins diagnósticos em seu laboratório e para tratar infecções cutâneas e não explorou as possibilidades clínicas da penicilina, nem tentou atrair vigorosamente o interesse da comunidade científica sobre o composto.
Por mais de uma década após sua purificação, não havia penicilina suficiente no mundo para curar um único paciente. Em 1939, os pesquisadores Howard Florey e Ernest Chain ficaram curiosos e finalmente deram atenção à descoberta de Fleming. Seguiu-se um esforço em grande escala para produzir quantidades viáveis de penicilina. Inicialmente, a produção só tinha objetivos científicos; porém, quando seu potencial pleno foi notado, o Departamento de Defesa dos EUA se envolveu na história. Para a produção em grande escala, foi necessária a colaboração transatlântica (durante a guerra, quando era muito perigoso atravessar o Oceano Atlântico) e outras grandes medidas de sorte, acaso e trabalho duro bastante concentrado, além de contribuições generosas da parte de um grande número de pessoas muito inventivas.9
Fleming merece grande parte do mérito por sua contribuição, mas a imagem popular segundo a qual ele foi o salvador solitário da humanidade presta um grande desserviço a todos aqueles que trabalharam antes e depois dele de modo a trazer a descoberta até seus estágios aplicáveis. Um momento “eureca”, por mais brilhante que seja, nunca é suficiente.
Perto do final da Segunda Guerra Mundial, já havia grande disponibilidade de penicilina. Ela foi inicialmente administrada aos soldados Aliados (para substituir as drogas à base de sulfa, mais primitivas, que tinham a desvantagem adicional de serem uma inovação alemã), salvou muitas vidas e curou muitas doenças (entre elas, uma condição muito prevalente e bastante relacionada aos combates, a gonorreia).
Seguiu-se uma onda de inovações científicas, e novos antibióticos passaram a ser descobertos e produzidos regularmente. O futuro parecia mais brilhante que nunca. A humanidade havia finalmente ganhado a dianteira na luta contra o mundo natural. O átomo fora dominado para a geração de energia, o espaço sideral estava a nosso alcance e a humanidade seguia firmemente no caminho de se livrar da maldição ancestral da morte e do sofrimento causados pelas doenças — era um admirável mundo novo. Em 1967, conta-se que o cirurgião-geral do serviço de saúde dos EUA, William H. Stewart, afirmou que a ciência médica já podia “parar de se preocupar com as doenças infecciosas” e voltar seus esforços para outras aflições, como as doenças cardíacas.10
Mais recentemente, a produção de antibióticos passou para o âmbito do mundo comercial, no qual responde a considerações de mercado, tais como facilidade de produção, preço e estabilidade. Afinal de contas, uma droga maravilhosa que perde a validade ao ser estocada por uma semana, não podendo mais ser utilizada, ou cuja produção é excessivamente cara, não tem muita utilidade.
 
O império contra-ataca
No fim das contas, a batalha não foi tão simples quanto parecia: a Lua continua a se mover em seu trajeto regular, e podemos ter confiança de que não se desviará quando tentarmos aterrissar nela pela segunda ou pela centésima vez; um átomo é algo difícil de dividir, mas não é cada vez mais difícil dividir átomos com o passar do tempo. As entidades biológicas, no entanto, têm um comportamento diferente — elas se adaptam.
Temos o mérito de ter antevisto a chegada do problema: os pesquisadores (Fleming inclusive) observaram, já em 1946, que a resistência bacteriana aos antibióticos era possível. Temos também o demérito de não ter feito muito a esse respeito: recém-descobertos, os poderes dos antibióticos se mostraram tão incrivelmente úteis que tivemos dificuldade em exercitar a cautela. Além disso, por que nos preocuparíamos? As bactérias não podem evoluir tão rápido assim, podem? Certamente devemos ser capazes de acabar com todas elas antes que fiquem mais espertas.
Hoje em dia, temos uma noção mais clara da situação: sabemos que há grandes obstáculos ante a eliminação de toda uma espécie de bactérias patogênicas, e sabemos que as bactérias não só evoluem muito rapidamente — quando uma geração dura 20 minutos, isso é bastante fácil de acontecer —, como também ajudam umas às outras a fazê-lo.
Também estamos começando a enxergar toda a escala dos efeitos da THG, que ninguém conhecia há 50 anos: se uma espécie bacteriana consegue desenvolver um gene que a torna resistente contra um antibiótico, outras espécies podem assimilar esse gene — elas não precisam reinventar a roda a cada vez. Os patógenos resistentes a antibióticos, por exemplo, apareceram com bastante rapidez (especialmente em hospitais, onde convergem muitas doenças e muitos antibióticos), e agora estão se disseminando pelo mundo de maneira lenta, porém estável.
A situação é agravada pelo fato de que os antibióticos foram (e em grande medida, ainda são) utilizados de maneira não adequada. Alguns médicos continuam a administrá-los inapropriadamente para tratar doenças que não responderão a eles — geralmente para satisfazer os pedidos dos pacientes, para não serem vistos como negligentes, ou como uma medida de segurança geral, quando o diagnóstico é incerto. Os pacientes muitas vezes deixam de tomar sua medicação quando se sentem melhor, o que não é necessariamente o momento em que os germes prejudiciais foram exterminados de seu organismo.
O pior uso dos antibióticos, entretanto, deriva de um interesse puramente econômico: são dados rotineiramente aos animais de abate para prevenir doenças e estimular seu crescimento. Isso faz com que uma quantidade enorme de antibióticos (estimada em aproximadamente 90% de todo o contingente utilizado em todo o mundo) seja dada a animais perfeitamente saudáveis. Isso funciona bastante bem para o fazendeiro a curto prazo, mas significa que haverá muitos antibióticos desnecessários por aí, o que gera um problema: se um germe for exposto a um antibiótico a um nível abaixo do letal, ou por um período de tempo mais curto que o letal, sua chance de desenvolver resistência a esse medicamento aumenta (especialmente se a situação persistir por diversas gerações), como ocorreria com qualquer adaptação a condições ambientais. Estamos, por assim dizer, aclimatando o germe aos antibióticos.
 
Como resolver um problema como a resistência?
A resistência aos antibióticos ocorre por muitas razões: pode se dar pela presença de uma enzima bacteriana que desintegra o antibiótico, por uma modificação no alvo do antibiótico, de modo que uma droga que atue ligando-se a uma proteína crítica dentro do micróbio não encontre mais a proteína, ou pela presença de uma estrutura proteica chamada bomba de efluxo de múltiplas drogas na membrana externa da bactéria. Também chamada de “aspirador molecular”, a bomba de efluxo elimina substâncias das células bacterianas — o que faz com que o micróbio, em um ato de grande desconsideração por todo o trabalho que tivemos para encontrar um veneno apropriado contra ele, jogue-o imediatamente para o exterior e continue a viver. Essas bombas são muito eficazes (não só com bactérias, como também em outros tipos de células, inclusive tumores cancerígenos), porque não são específicas para nenhum tipo particular de substância, conferindo resistência contra muitos antibióticos de uma só vez.
Não é fácil driblar a resistência aos antibióticos. Existem duas abordagens complementares: a primeira é fazer com que a ciência médica jogue no ataque, e a segunda é deixar que o resto do mundo melhore sua defesa.
O ataque consiste em encontrarmos drogas mais novas e melhores contra outras estruturas e mecanismos exclusivos das bactérias, ou contra os próprios mecanismos de resistência. A descoberta de novos medicamentos pode ser feita testando-se vários organismos vivos em busca de moléculas ativas (foi assim que os antibióticos se originaram, lembra?) ou pela criação racional de drogas: geramos modelos por computador do alvo bacteriano de modo a projetar uma molécula artificial que irá se ligar a ele ou inibir sua ação. A criação racional de drogas pode ser realizada em um laboratório e não requer que caminhemos pela selva selecionando milhares de moléculas, mas para isso precisamos de boas informações iniciais sobre o alvo molecular e uma potência computacional descomunal. Até agora, esse sistema tem sido menos eficaz que o método tradicional, mas temos de lhe dar algum tempo.
Uma estratégia de tratamento simples e inteligente que utiliza drogas existentes e que muitas vezes traz bons resultados é o golpe duplo: dar ao paciente dois antibióticos diferentes de uma só vez, na esperança de que, se houver ali germes resistentes somente ao antibiótico A, eles sucumbirão ao antibiótico B e vice-versa. Isso muitas vezes funciona bem, mas nem sempre: germes multirresistentes são cada vez mais comuns, e nossas opções se reduzem a cada vez que experimentamos essa estratégia.
A abordagem defensiva é mais uma questão de saúde pública: requer um aumento da consciência e leis mais rígidas para eliminar o uso desnecessário de antibióticos em humanos e animais, e essas medidas estão fora da jurisdição da comunidade médica e científica.
 
A regulamentação dos antibióticos, parte 2 (e um pouco de política)
Na disputa entre humanos e micróbios, o time dos microrganismos é mais rápido: eles jogam em equipe e têm mais experiência. Nós somos novatos, e os únicos aspectos que temos a nosso favor são nossa inteligência, uma certa estratégia de jogo e, potencialmente, um orçamento maior para o campeonato.
Neste momento, porém, as companhias farmacêuticas estão fazendo pesquisas em temas mais lucrativos, como doenças cardíacas, diabetes, câncer, mal de Alzheimer, obesidade e impotência. As doenças infecciosas ainda não são um problema grande o suficiente para justificar o investimento — trocando em miúdos, não há uma quantidade suficiente de pessoas em sofrimento para tornar o mercado lucrativo.11 A pesquisa governamental tem recursos limitados, e ainda não há suficientes clamores públicos para chamar a atenção dos políticos. Se você está lembrado do que eu disse antes, a pesquisa sobre a penicilina só decolou quando o governo dos EUA decidiu (após ser persuadido pelo pesquisador australiano Howard Florey) que isso fazia parte do esforço de guerra. Um fato triste, na minha opinião.
Um problema bastante relacionado é a velocidade limitada na qual conseguimos avançar quando estamos falando em desenvolvimento científico: a quantidade de tempo necessária para desenvolvermos uma nova droga é medida em anos, quando não em décadas. Sempre há muitas pistas promissoras por onde podemos começar: eu já perdi há tempos o número de artigos profissionais ou propostas de pesquisa que li terminadas nas seguintes palavras: “Estas descobertas podem ter importantes aplicações terapêuticas.” O problema é que as exigências a serem atendidas são tantas que somente uma minúscula porcentagem das pesquisas inovadoras acaba dando em uma nova droga ou tratamento na prateleira da farmácia ou no hospital, e o processo de separar o útil do inútil é longo e tortuoso.
Os micróbios, por outro lado, além de erigirem defesas com mais rapidez, também não se veem impedidos por considerações morais ou políticas. Quando morre um bilhão de bactérias e uma única delas resistente sobrevive, tudo correu perfeitamente conforme o esperado. Para nós, até mesmo uma única morte humana é excessiva. Temos maneiras de proteger os indivíduos — entre elas, principalmente as leis e regulamentações governamentais. Hoje em dia, antes que o uso de uma droga seja aprovado, é preciso demonstrar que ela não vai prejudicar ninguém, o que requer estudos clínicos prolongados (e caros). Eu não gostaria que fosse de outra forma (gosto tanto de ser envenenado por empresas quanto você), mas ainda assim trata-se de um obstáculo, e é necessário atingir um equilíbrio delicado entre segurança e urgência — um problema que as agências regulatórias enfrentam constantemente. Nos idos de 1988, por exemplo, pessoas que sofriam com a Aids cercaram o escritório central da FDA e o fecharam por um dia em protesto contra o que, para eles, era uma regulamentação excessivamente estrita que retardava a aprovação de novas drogas antivirais. Estamos morrendo agora, diziam, permitam que usemos essas drogas, por favor; não vamos estar por aqui mais tarde. A FDA concordou em acelerar a aprovação de drogas em certos casos, mas esse equilíbrio tenso entre os interesses da indústria, da comunidade e do governo persiste.
 
Nós somos o mundo?

 

Enquanto isso, mais de seis décadas após seu início, a revolução dos antibióticos ainda está para chegar a muitas partes do mundo. Fora dos países ocidentais, as pessoas (especialmente as crianças) continuam a morrer das mesmas velhas doenças — doenças que podem ser curadas por medicamentos já existentes e baratos, mas aos quais não têm acesso por falta de recursos. Doadores privados e organizações humanitárias decidiram recentemente assumir uma parcela da responsabilidade por essa situação, provendo fundos para financiar parte das pesquisas e tratamentos necessários para essas doenças. Na minha opinião, isso é fantástico, e espero que funcione. Também espero que esteja sendo feito com sabedoria. Além disso, ver Bill Gates e Bob Geldof concordarem em alguma coisa me traz um inesperado prazer.
 
Dois futuros
O que temos pela frente? Tentei procurar “profetas” na lista telefônica, mas a categoria mais próxima que encontrei foi a de “consultor financeiro” (uma estranha coincidência), portanto vou ter de apresentar os dois cenários possíveis que consigo antever:
No primeiro, as gerações futuras sofrem com bactérias resistentes e disseminadas, padecem novamente de doenças que todos já tínhamos esquecido e nos culpam por nosso egoísmo e incapacidade de prever o que viria pela frente.
No segundo, uma ou mais das linhas de pesquisa atualmente em curso geram novas soluções, e as gerações vindouras sentem pena de nós por nossas medidas primitivas e nosso sofrimento, assim como nós, hoje, sentimos pena das gerações passadas.
Estou torcendo pelo segundo futuro. É bastante possível que uma solução situada fora dos paradigmas correntes venha a nos ajudar. Fizemos enormes avanços na área da imunologia, o que melhorou nossa compreensão sobre a atuação de nosso corpo contra os invasores, e podemos encontrar novas maneiras de reforçar essas defesas. Outros desenvolvimentos, como a terapia fágica, a terapia por RNA, os probióticos (uma palavra de efeito usada por produtores de iogurte, mas que também se trata de uma área com certo potencial) ou algo inteiramente diferente do qual ainda não suspeitamos, podem vir a ser a nossa salvação, ao menos temporariamente.
O passado nos mostrou que os grandes avanços científicos muitas vezes têm origens humildes e inesperadas. Qualquer coisa que venhamos a aprender sobre os antibióticos poderá trazer a nova grande inovação — quem sabe, a próxima droga maravilhosa poderá entrar flutuando pela janela, como ocorreu com Fleming.
 
Exatamente o que o médico receitou

 

Os cientistas adoram o trabalho de pesquisa. Ele certamente os mantém ocupados. O que o resto de nós pode fazer enquanto isso é bem simples: além de tomar o remédio correto, como boas criancinhas, nosso melhor método de proteção é o mais antigo de todos — precisamos dar suporte ao complexo sistema imune que nos protege a cada momento de nossas vidas. O corpo é capaz de se defender bastante bem, e precisamos lhe dar condições para fazê-lo — atitudes simples, como comer adequadamente, fazer exercício e dormir bem. Não é uma apólice de seguros, mas vale a pena.
 
Uma pitada de antibiótico

 

Diz-se que um homem sábio aprende com os erros dos outros. Já que meu objetivo é fazer com que os leitores deste livro se tornem mais sábios que o resto de seus companheiros humanos, ofereço aqui estes conselhos dolorosamente aprendidos: depois de servir o zhoug verde, não lamba a colher.
Zhoug é um condimento de origem iemenita. É preparado com pimenta malagueta, alho, salsa e outros trecos admiráveis. Tem um gosto incrivelmente forte — em especial a variedade verde. Vai bem, se usado cautelosamente, com carne, peixe e outros pratos. Não vai bem com o meu sistema digestivo quando misturo uma porção tamanho pronto-socorro no meu húmus para tornar o jantar mais interessante. Ainda assim, eu cometo o mesmo erro repetidamente. Por que me tentais, ó mistura demoníaca?
Temperar; salgar; conservar as frutas no açúcar e os vegetais no vinagre; defumar a carne ou o peixe; fermentar praticamente qualquer coisa para gerar álcool; ferver; cozinhar; fritar — são muitas as maneiras incríveis inventadas por nós, humanos, para tratarmos os alimentos ao longo das eras.
Não vemos outros animais fazendo o mesmo: ninguém jamais observou esquilos apimentando delicadamente suas nozes, e as chitas não acrescentam canela a seu antílope tartare. Tudo bem, algumas vespas mantêm suas presas (aranhas) vivas porém paralisadas, de modo que suas crias tenham carne fresca quando eclodirem dos ovos, e a desconcertante abelha tropical Trigona hypogea tempera sua comida (carne semidigerida de carcaças animais) com bactérias Bacillus para ajudar suas larvas a digeri-la à perfeição. Elas também parecem secretar substâncias antibióticas que evitam que esse caldo de carne estrague no calor tropical. Porém, a não ser por esses casos, a culinária mais sofisticada que conheço por parte de algum organismo não humano consiste em deixar a comida ao relento, ou enterrada, até que amadureça um pouco mais. Os humanos, nós apenas, temos que complicar as coisas.
O motivo óbvio pelo qual temperamos e preparamos nossos alimentos é porque somos capazes de fazê-lo. Isso melhora o sabor, facilita a digestão e torna a comida mais interessante. Temos mãos capazes de operar um saleiro e conseguimos domesticar o fogo — uma inovação cuja melhor aplicação de todos os tempos certamente deve ser o churrasco. Mas isso não resume toda a história. Temos boas razões para acreditar que o fato de que todas essas medidas impeçam a sobrevivência de micróbios em nossa comida não seja uma coincidência.
Este é um ponto sutil: nós não tínhamos uma preferência inerente pela comida preparada dessa maneira. Na verdade, ao longo de milhares e milhares de anos, fomos adaptando lentamente nosso paladar coletivo.12 Nós, como espécie, acabamos por nos acostumar ao sabor da comida quando preservada dessas maneiras.
Não é por coincidência que a comida picante vem de países quentes. Nos lugares em que o calor estraga os alimentos com mais rapidez, temperar a comida é uma boa maneira de preservá-la — não indefinidamente, é claro, mas isso ajuda por algum tempo, quando não temos uma geladeira onde guardar os alimentos.
Condições extremas como o calor, a salinidade ou a acidez não atuam como um escudo contra os micróbios; já os vimos sobreviver em tais condições nos capítulos anteriores. Porém, é interessante notar que, como regra, os microrganismos que conseguem sobreviver em condições extremas não causam doenças. Um micróbio que cause uma doença infecciosa é, quase por definição, aquele cujas condições ideais de crescimento estão muito próximas às encontradas dentro do corpo humano. Faz sentido, não é mesmo?13
Você talvez tenha se perguntado por que eu incluí o açúcar na lista de conservantes. Desde quando o açúcar é uma substância antimicrobiana? Será que estou sendo financiado por algum produtor de pirulitos?
O que temos que entender aqui é que concentrações diferentes de substâncias afetam os micróbios de distintas maneiras. Os microrganismos preferem certas condições: a barreira entre seu ambiente interno e o resto do mundo é muito fina, e seu contato com o mundo exterior, portanto, é bastante intenso. Uma geleia ambiental repleta de açúcar ou sal provoca o caos em seu metabolismo — a água literalmente será sugada de seu interior pela alta concentração de solutos existente do lado de fora. Em concentrações reduzidas, o açúcar e o sal podem se tornar uma ameaça, pois os micróbios os buscam avidamente. O apodrecimento dos dentes, por exemplo, é causado por micróbios que vivem em nossos dentes à espera do açúcar que passará por lá. Eles ficam por ali secretando um ácido que dissolve o esmalte protetor de nossos dentes — este é apenas um efeito colateral de suas vidas; eles não têm a intenção de causar qualquer dano (um fato que certamente dará a você um grande consolo quando tiver que pagar a próxima conta do dentista).
Os condimentos, por outro lado, têm uma relação diferente com os micróbios. São encontrados em plantas vivas, defendendo-as da invasão de micróbios de diversas maneiras. Quando colocamos manjericão ou orégano em um prato, o que estamos fazendo é temperá-lo com antibióticos naturais. O alho e a cebola estão no topo da lista quando falamos em força antimicrobiana — e consumir esses alimentos também previne doenças de outra maneira: eles evitam que as pessoas se aproximem de nós, o que minimiza nossa chance de pegarmos qualquer resfriado, gripe ou DST que esteja passando por aí.
 
FAIXA BÔNUS № 5: Minha amada

Como pude ter feito isso contigo? Estivemos juntos por tanto tempo. Doze anos se passaram desde nosso primeiro encontro. Não lembro onde foi que o acaso nos aproximou pela primeira vez, mas tens estado comigo desde então.

Tu sabes, tanto quanto eu, que nossa união foi turbulenta desde o início. Já naqueles cálidos primeiros dias, muitas vezes desejei que te fosses. Escondi tua existência de todos os meus conhecidos — muitos são os que desdenham de encontros como o nosso. Eu não poderia suportar a ideia de expô-los publicamente, e sempre tive de guardar o tempo que passamos juntos como algo intensamente privado.

Oh, mas quanta alegria me trouxeram esses momentos. Os prazeres da carne tornados duas vezes mais doces, por ilícitos. O êxtase passado nesses breves momentos roubados; e ainda assim, eu me arrependeria após cada encontro. “Nunca mais”, repreendia-me, “entregar-me-ei a essas paixões primitivas, animais. Este é um caso maldito que só me trará a desdita.”

Por vezes, convenci-me de que te havias ido definitivamente de minha vida — um tema do passado, a ser recordado com a mescla apaziguante da nostalgia e da compunção, isto quando rememorado. Porém, uma e outra vez regressaste a mim, chamando-me com a brisa do verão, e eu aquiesci. Posso dizer, em minha defesa, que nem uma única vez aspirei apressar tua chegada ou delongar voluntariamente tua estada, mas estou perfeitamente ciente de que estas não passam de meras escusas.

A princípio, eras modesta e comedida — satisfeita com teu lugar em minha vida. Mas com o passar dos anos, tornaste-te mais exigente, tuas visitas mais acaloradas, e as marcas que me deixavam, mais indeléveis. Tentei chamar-te à razão. Falei: “Sou agora um homem tomado — não posso mais prosseguir com isto.” Mas tu persististe, e nada pude fazer ante teu ardente canto de sereia, quando este se aproximava.

A última gota, minha querida, veio quando surgiste mais uma vez, no verão passado, fervente como sempre. Guardarei eternamente essa temporada com apreço em minha memória, pois foi um tempo apaixonado, e meu prazer atingiu alturas que eu jamais conhecera contigo. Ainda assim, tu te tornaste ainda mais possessiva. Não te limitavas ao lugar em que sempre te havias mantido, querias expandir-te, explorar. Necessitavas apropriar-te de mim como nunca antes.

Eu não podia com isso. Nossa relação chegava ao ocaso. Eu já não era o jovem despreocupado que fora quando nos conhecemos. Tentei encerrar nosso caso com delicadeza; um rompimento puro e amigável — mas tu não o aceitaste. Não te culpo, pois eu deveria ter sido mais rigoroso desde o início, jamais poderia ter permitido que te aferrastes a mim. Peço perdão, minha querida. Não me deste opção além da derradeira.

Por fim, executei o feito. Permiti que meu coração endurecesse, ignorei as tuas súplicas e te sufoquei repetidamente, até que perecesses.

Agora te fostes, Tinea pedis, partiste de meu pé esquerdo para sempre. O creme antifúngico cumpriu bem sua função. Ainda assim, lembro-me de ti com carinho. Um envolvimento com alguém como tu não passava de um tabu em nossa sociedade, e qualquer traço de satisfação extraído da experiência jamais poderia ser mencionado. És algo do qual devemos nos livrar, e não saborear — ainda assim, suspeito não ser o único mortal a ter sucumbido a tal pecado. Por vezes me surpreendo contemplando o lugar que guardavas, ali entre o segundo e terceiro dedos de meu pé, e a pontada pungente e inebriante da proibição ecoa novamente em minha memória. Jamais te esquecerei.
 
 
(Idan Ben-Barak - Pequenas Maravilhas: como os micróbios governam o mundo) 
1 Quando eu era adolescente, tive uma camiseta que usei incessantemente. Não era especialmente bonita, e, além disso, ela já tinha 20 anos quando a herdei. No final, eu já não sabia direito quais eram os buracos originais destinados aos braços e à cabeça. Tive que a resgatar duas vezes do cesto de lixo, e uma vez consegui evitar que minha mãe a usasse como pano de chão. Por fim, minha irmã, desesperada, colocou-a em uma moldura e a entregou a mim em uma cerimônia curta, mas muito emocionante.
2 De maneira interessante – muito interessante – o estudo de 2009 que mencionei na seção anterior mostra que vírus de resfriado podem praticar uma versão do mesmo truque de mixagem como vírus da gripe. Esses malandrinhos!
3 A menos, é claro, que você goste dessas imagens.
4 Esse é, obviamente, o modo como funcionam as vacinas: elas expõem o corpo a uma versão inócua do patógeno, o que nos permite gerar resistência contra ele.
5 O outro lado da moeda — um corpo que consegue finalmente se livrar de um invasor persistente — também ocorre, mas como não se manifesta por meio de nenhum sintoma ou surto, normalmente não nos damos conta de sua ocorrência.
6 O alcoolismo, outro aspecto dos contatos interculturais, tem muita semelhança com a dinâmica das doenças infecciosas, já que as populações que não haviam sido expostas ao consumo de álcool antes do contato com os europeus (e cujos corpos não precisaram desenvolver evolutivamente as adaptações necessárias para lidar com ele) foram afetadas severamente por seus efeitos.
7 Você pensa que eu estou brincando? O dr. Ignaz Semmelweis, possivelmente o herói mais desconhecido da história humana, foi ridicularizado quando sugeriu, em 1861, que os médicos deveriam lavar as mãos ao passarem de um paciente ao seguinte. Lentamente, descobrimos que ele estava certo. O sabão salvou mais vidas do que os mais maravilhosos remédios.
8 Isso também trouxe esperança e conforto a incontáveis cientistas desorganizados, que ganharam uma excelente desculpa para largar suas coisas por aí em vez de limparem a bagunça.
9 Também foi necessária uma fruta estragada. Das mil cepas de Penicillium testadas, a que crescia em um melão mofado encontrado em uma feira resultou ser a melhor produtora de penicilina.
10 Não está claro exatamente onde, e para quem, ele disse essas palavras. Stewart disse recentemente que não conseguia se lembrar de ter feito essa declaração, e ninguém consegue encontrar uma boa fonte. Pode ser uma dessas inesquecíveis citações equivocadas — como o “que comam brioches” de Maria Antonieta — que acabam servindo como um bom alvo para a indignação moralista na geração seguinte.
11 Essa é uma das limitações do sistema de livre mercado.
12 Naturalmente existem variações regionais e pessoais.
13 Uma exceção bastante conhecida e da qual já falamos são os micróbios esporulantes: eles conseguem sobreviver em condições inóspitas dentro de seus esporos, e então retornam à forma ativa ao infectarem o hospedeiro.

O que são esses "bichinhos" que flutuam no olhos da gente?

publicado às 22:47


Bichinhos na gente 1

por Thynus, em 20.09.16
IMAGINE QUE UM AMIGO chega para você e diz: “Ficou sabendo da última? Todos os micróbios da Terra decidiram ir embora. Eles todos deram no pé!” Se isso acontecesse antes do dia em que tomou a sábia decisão de ler este livro, talvez você tivesse dado de ombros e perguntado: “E daí?”, voltando a fazer o que quer que estivesse fazendo. Se você fosse uma pessoa um pouco mais instruída, talvez se lembrasse de todas as doenças horríveis causadas pelos micróbios e dissesse: “Já vão tarde!” No entanto, se você andou prestando atenção até agora, sem dúvida perceberá todas as implicações dessa nova situação:
  1. A vida na Terra já não seria remotamente parecida com a atual, nunca mais.
  2. Todos estaríamos mortos dentro de alguns dias, se não horas.
  3. Temos um monte de coisas pela casa das quais não precisaríamos mais.
As primeiras duas imagens são deprimentes, portanto vamos nos concentrar na terceira, que nos dará a oportunidade de vender objetos, ganhar dinheiro, abrir algum espaço livre em casa e, de modo geral, tornar a vida mais aprazível. Voltando nossa atenção para dentro de casa, portanto, se não existem mais micróbios, do que podemos nos livrar?
Bem, da maior parte das grandes caixas brancas, para começar. Se não há mais micróbios, a comida não ficará estragada, portanto não precisaremos realmente de uma geladeira. O leite, os ovos e a carne ficarão perfeitamente bem na estante. Talvez queiramos um pequeno isopor para manter as bebidas e o sorvete gelados no verão, mas isso é tudo. Portanto, podemos jogar a geladeira e o freezer no lixo.
A maior parte da despensa também poderá ser posta de lado: lá se vão as latas (por que nos preocuparíamos com elas?), lá se vai a estante de vinhos (não há vinho sem leveduras; aliás, nem cerveja) e também o purificador de água.
A seguir, a lava-louças: realmente não precisamos de tanto esforço só para lavar uns pratos. Basta enxaguá-los um pouquinho na pia, e tudo bem. Os restos de comida não mais nos deixarão doentes ou terão gosto ruim, portanto podemos deixá-los ali, se quisermos.
O mesmo vale para a máquina de lavar roupa e a secadora. Quem se importa se as roupas estão usadas? Se não tiverem manchas grandes e feias, podemos simplesmente continuar a usá-las. Não se preocupe, elas não vão feder: são os micróbios em nossa pele que provocam o cheiro ruim (bem, provocavam). Agora que eles se foram, não precisamos mais lavar as roupas. Se você for como eu, isto significa que poderá usar a mesma camisa todos os dias, até que ela se desintegre completamente.1 Até mesmo quem adora roupas e o mundo da moda provavelmente poderia liberar algum espaço no armário — certamente seria prático para estocar mais algum leite, caso a estante esteja cheia.
Portanto, podemos abrir mão da máquina de lavar roupas, secadora, roupas, detergentes, desodorante, sabonete e todo o chuveiro, se quisermos. Não precisamos mais escovar os dentes, por isso podemos jogar fora a escova, a pasta, o fio dental e o antisséptico bucal, além do desinfetante e dos curativos — todos para o lixo. Também não vamos mais precisar da privada, assim não teremos mais gastos desnecessários com encanamento… e assim por diante — e estamos falando apenas de utilidades domésticas.
Quando enxergamos a situação dessa forma, boa parte da marcha da civilização humana pode ser vista como uma série de tentativas de nos livrarmos das influências microbianas, e outra parte será formada por tentativas de utilizá-las para proveito próprio (o que será o núcleo do próximo capítulo). Não podemos rever aqui toda a gama de interações entre humanos e micróbios, é claro, por isso vamos nos limitar às mais importantes, interessantes ou particularmente incomuns.
Primeiro, porém, permita-me falar um pouco de uma das coisas mais comuns que se veem por aí.
 
Precaução e canja de galinha…
Meu sogro, que Deus o abençoe, tem um remédio contra resfriados no qual deposita confiança absoluta. Os detalhes da receita são uma espécie de segredo de família, mas tenho permissão para revelar que ela inclui ferver um refrigerante de cola com boa quantidade de alho. Vou deixar que você imagine como é a experiência singular de ingerir essa poção; basta dizer que o líquido faz com que a pessoa que o bebeu passe a ter desejos ardentes de que os cientistas encontrem logo uma cura para o resfriado.
Parece um desejo bastante trivial, não é mesmo? A ciência médica triunfou sobre doenças tão terríveis que não deveria ser muito difícil achar a cura para uma coriza — é algo que certamente poderá ser feito em umas poucas semanas, se alguém se dedicar a pensar no assunto, não é mesmo?
Bom, não é bem assim que funciona. Um dos grandes problemas é que o resfriado comum não é realmente uma doença. Esse é apenas um nome geral para um conjunto de sintomas que pode ser causado por mais de 200 tipos de vírus de muitas famílias diferentes. Nós sequer sabíamos o que era um vírus algumas décadas atrás, mas temos fungado desde tempos pré-históricos.
Quando falamos de tratar resfriados em sua essência, ainda temos muito que aprender, pois eles não têm essência nenhuma — quer dizer, na verdade, têm dezenas de essências diferentes. O que é pior, esses vírus podem sofrer mutações muito rapidamente, portanto mesmo que encontremos de fato uma solução para um tipo de vírus causador de resfriados, ela poderá se tornar inútil pouco tempo depois. Nosso sistema imune se vê diante do mesmo problema, e é por isso que ficamos resfriados cerca de duas vezes por ano, em vez de pegarmos um resfriado uma vez e depois nos tornarmos naturalmente imunizados contra ele pelo resto da vida, como ocorre com as doenças da infância.
Tudo isso faz com que o resfriado seja uma condição muito difícil de curar: podemos tratar os sintomas, dos quais a maior parte é causada pela luta do corpo contra o vírus infectante, e confiamos em que nosso corpo fará o resto do trabalho.
As últimas notícias: em fevereiro de 2009, um grupo de pesquisadores anunciou ter conseguido mapear as sequências de DNA de todas as 99 variações do rhinovirus, uma família virótica responsável pela maioria dos casos de resfriado mundo afora. Esse é um enorme passo à frente e nos ajudará a imaginar o que exatamente esses vírus fazem e como pará-los quando estiverem fazendo, mas remédios eficazes, vacinas e erradicação ainda são uma saída.
Assim, nesse meio-tempo, embora eu não seja nenhuma autoridade médica, mas sinto que você tem o direito de conhecer as últimas tendências da opinião especializada sobre o tratamento de resfriados, portanto permita que eu lhe transmita aqui alguns conselhos práticos:
Para prevenir: lave as mãos.
Para curar: descanse e tome canja de galinha.
Evite: Coca-cola fervida com alho.
 
Remix
A gripe é diferente do resfriado. Ambas são doenças virais, mas causadas por famílias diferentes de vírus e com funcionamentos distintos; entretanto, efetivamente provocam sintomas semelhantes e são teimosas como poucas outras doenças.
Ambas, pelo visto, parecem fazer aparições regulares no inverno, e isso pode ter diversas causas. Na estação fria, as pessoas estão em contato mais próximo (pois passamos mais tempo em ambientes fechados), as temperaturas mais baixas e o ar mais seco contribuem para reduzir a resistência de nosso sistema imune, além de permitirem que os vírus sobrevivam por mais tempo nas superfícies externas, e a menor luz solar faz com que produzamos menos vitamina D.
Não vamos procurar um médico para tomar vacinas contra resfriados, pois elas não existem (pelos mesmos motivos pelos quais ainda não encontramos curas contra eles); entretanto, felizmente, existem vacinas contra a gripe, e podemos (de fato, devemos) tomá-las uma vez por ano. Dessa forma podemos evitar os sintomas desagrad… espere aí. Por que uma vez por ano? A maior parte das vacinas que tomamos são administradas apenas uma vez em toda a vida, talvez com uma ou duas doses de reforço alguns meses depois. Por que a gripe é diferente?
Porque o vírus que a causa, chamado influenza, consegue fazer certas modificações esquisitas em seus genes. A primeira delas é elegante, ainda que conhecida: um mecanismo de mutação simples nos genes do vírus faz com que suas proteínas de superfície se alterem. Assim, sua aparência superficial se modifica e nosso sistema imune não consegue reconhecer a nova cepa.
Essa é a epidemiologia normal e corriqueira dos vírus. Entretanto, aproximadamente uma vez por década ocorre algo muito diferente, o que causa as epidemias maiores e mais problemáticas de gripe. Para entender por que isso acontece, precisamos aprender um pouco mais sobre os vírus. Um vírus é muito diferente de uma bactéria: enquanto uma bactéria, ao infectar uma célula, se mantém íntegra e se multiplica, um vírus é desmontado dentro da célula hospedeira. Em muitos casos, a estrutura do vírus nem sequer entra no hospedeiro; ele apenas injeta nele seu conteúdo interno (DNA, RNA e às vezes algumas proteínas). Esses componentes invasores assumem o comando dos mecanismos produtores da célula hospedeira (que até esse momento tinham estado cuidando da manutenção regular da célula) e os forçam a passar a produzir muitas cópias de partes do vírus. Os novos vírus são então montados e partem em busca de novas células para infectar.
O material genético de um vírus geralmente consiste em um único segmento de DNA ou RNA, o que é muito conveniente para a replicação rápida. Um vírus da gripe, entretanto, é diferente: seu genoma é formado por oito segmentos curtos e separados de RNA. Isso, em praticamente todos os casos, é bastante irrelevante para nós. Esse vírus funciona como qualquer outro, só que a replicação de seu RNA é efetuada em oito etapas curtas, em vez de em uma longa. O vírus da gripe tem maneiras para garantir que, na maior parte das vezes, esses oito segmentos sejam encapsulados em um único revestimento externo, produzindo uma nova partícula viral funcional. Como seu material genético é formado por RNA, e não DNA, ele sofre mutações a uma taxa mais rápida, o que faz com que, em média, cada novo vírus seja ligeiramente diferente (o que provoca as variações anuais das cepas).
Mas esse não é o grande problema. O grande problema ocorre muito raramente, quando uma pessoa ou animal (geralmente um porco) é infectado por duas cepas diferentes da gripe. Nesse caso, poderá ocorrer que uma única célula hospedeira seja atacada simultaneamente por duas versões do vírus. Digamos que o porco calhe de pegar uma cepa de um pato e uma segunda cepa de uma pessoa (se você não consegue entender como isso poderia ocorrer, talvez devesse sair mais de casa), e as duas cepas infectam então as células do trato respiratório do animal. Por acaso, partículas virais de ambas as cepas atingiram e infectaram uma certa célula ao mesmo tempo, e agora temos oito segmentos de RNA flutuando na célula e sendo encapsulados, formando novas partículas virais. Em vez de 1 2 3 4…, temos agora 1a 1b 2a 2b 3a…, e há uma boa probabilidade de que algumas partículas contenham segmentos das duas versões — por exemplo, 1a 2a 3b 4a
Voilà — as cartas acabaram de ser reembaralhadas: foi criada uma nova combinação, e uma nova cepa de vírus da gripe foi solta no mundo. Se esse embaralhamento influenciar apenas o funcionamento interno da partícula viral, não será um grande problema para nós. Mas se os componentes da superfície da célula viral forem embaralhados, isso fará com que o novo vírus represente um enigma para nosso sistema imune, tornando-nos suscetíveis à infecção.
O vírus pode então se espalhar para outras células do porco, para outros porcos, de volta para porcos e humanos, e de humanos para humanos, e até a Noviça Rebelde, em suas doces montanhas austríacas, poderá ecoar o belo som da tosse.
Você verá que essa descrição depende de muitas condições: o porco tem de ser infectado por duas cepas, tudo isso deve acontecer em uma só célula, as partículas devem ser embaralhadas, as proteínas de superfície devem ser remixadas. E ainda há outras: a nova combinação deve ser infectante de célula a célula, deve ser infectante de porco a porco, deve ser infectante de porco a humano, deve ser infectante de humano a humano… qual é a chance de que isso ocorra? Não é muito elevada, mas se pegarmos uma probabilidade muito pequena e repetirmos o evento muitas e muitas vezes (você percebe quantas partículas virais andam por aí em um só corpo, que dirá no mundo inteiro?), ocasionalmente até mesmo probabilidades muito pequenas podem se materializar. E basta que isso ocorra uma só vez, em qualquer lugar, para que todo o mundo seja afetado. Esse é o poder da mutação e da seleção natural.
Esses embaralhamentos são muito incomuns entre os vírus (até onde sabemos), mas dão a impressão de serem estranhamente familiares.2 Embora os detalhes sejam muito diferentes, o embaralhamento de elementos genéticos é justamente o objetivo da reprodução sexuada — ele ocorre sempre que um novo ser humano é criado. Como indivíduo, você não passa, como diria um vírus, de uma nova subcepa da humanidade.
A cepa da gripe aviária de 2005 constitui um bom estudo de caso para essa situação. Foi um vírus que parou na barreira humano-humano. Apesar de ter havido seres humanos infectados (262 mortes haviam sido registradas até junho de 2009), eles se infectaram a partir de aves, e não de outras pessoas. Essa é uma boa notícia (a menos que você seja uma galinha): embora a morte de qualquer número de pessoas nunca seja uma coisa boa, o que poderia ocorrer potencialmente é muito, muito pior. A cepa da gripe espanhola de 1918, por exemplo, dizimou algo entre 2% e 5% de toda a população humana. Esperamos estar mais bem preparados agora do que há 90 anos Temos melhores tratamentos para a gripe em si, e também para seus sintomas e complicações; sabemos mais sobre os vírus e estamos desenvolvendo vacinas contra eventuais surtos futuros. Também é possível que, na forma de transmissão de humano a humano, a gripe não venha a ser tão problemática quanto tememos. Ainda assim, não podemos dizer que estamos seguros. Para falar a verdade, nunca estamos.
Mas não precisa ficar desanimado — vou tentar explicar agora, brevemente, quase toda a história do mundo, e por que ainda não estamos todos mortos. E também vou falar de rãs.
 
Pulando a cerca
Quando eu estava estudando microbiologia, vi-me como parte de uma equipe que pesquisava os Mycoplasmas (os “mestres do disfarce aleatório” do capítulo passado). Eu estava me concentrando nos elementos genéticos do Mycoplasma bovis, que, como o nome sugere, é encontrado em bois. Entre outros tipos de Mycoplasma estudados em nosso laboratório, havia o Mycoplasma gallisepticum, encontrado em galinhas, e o Mycoplasma capricolum, encontrado em cabras.
Eu já estava trabalhando havia muitos meses em meu projeto e vivia ocupado mapeando as sequências de DNA de meu patógeno bovino e as comparando a sequências de espécies de Mycoplasma que infectam galinhas e humanos — para mapear as relações entre genes, patógenos e hospedeiros — quando me deparei com o livro Armas, germes e aço, de Jared Diamond. Imediatamente, tive vontade de bater em mim mesmo. Eu tinha ficado tão concentrado nos detalhes de meu projeto que me esquecera de fazer uma pergunta óbvia — justamente a pergunta que Diamond respondera em seu livro. Por que um patógeno humano deveria estar relacionado aos patógenos de bois ou aos das malditas galinhas?
Pense nisto: enquanto uma espécie passa pelo processo evolutivo, o mesmo ocorre com seus parasitas e patógenos. Como o nicho ecológico de um parasita é outro organismo, é natural que ao menos algumas de suas modificações sejam reflexos e adaptações às mudanças sofridas pelo hospedeiro. Se uma espécie alterar sua dieta, seus hábitos ou o ambiente em que vive, o parasita deverá se adaptar, caso contrário acabará por se extinguir. Se observarmos duas espécies animais bastante relacionadas, é razoável esperar que seus parasitas e patógenos também sejam semelhantes e relacionados, ao menos até certo grau — e, inversamente, quanto mais afastados estiverem na árvore filogenética, mais diferentes serão seus patógenos.
Como, então, as galinhas se relacionam com nossa herança evolutiva? Elimine toda imagem de obscenidade de sua mente.3 A resposta, em termos simples, é que os humanos e os animais criados em fazendas viveram em grande proximidade durante milhares de anos e, durante esse tempo, ocasionalmente pegamos alguns patógenos deles. Um evento como esse não é nada insignificante. Como vimos em relação ao vírus da gripe, é bastante raro que um micróbio salte de uma espécie a outra, e quanto mais afastadas estiverem as espécies na árvore filogenética, menor será a probabilidade de que isso ocorra — não podemos, por exemplo, esperar pegar doenças de rãs, independentemente do que fizermos com a rã. Isso ocorre porque a mesma célula que estava infectando a espécie X deverá agora não só sobreviver na espécie Y (que é, como já dissemos, um ambiente diferente), como também ser transmitida entre membros da espécie Y. Trata-se de uma tarefa bastante complicada para os processos evolutivos. Ainda assim, o contato constante ao longo de eras provocou puladas de cerca ocasionais entre as espécies. Depois de um período inicial de aclimatação, a nova espécie hospedeira se tornaria apta a lidar razoavelmente bem com o recém-chegado, evitando assim uma morte em massa.
Isso nos leva às pragas — o resultado mais terrível das relações entre humanos e micróbios. Diversas pragas causadas por microrganismos provocaram perdas temíveis para a humanidade ao longo da história. Somente em tempos recentes, com o auxílio das vacinas e antibióticos, conseguimos nos proteger, até certo ponto, dos estragos por elas causados. Ainda assim, mesmo nas piores situações, uma praga não persiste indefinidamente, matando todo mundo. Sua extensão se reduz após algum tempo. Por que isso ocorre? Por que as pragas não exterminam espécies inteiras?
As respostas, como de costume, não são simples — entre elas há motivos sociais e geográficos, além de muitos outros. Mas eu gostaria de me deter em uma força inerente ao próprio micróbio.
Um micróbio que mate todo hospedeiro pouco tempo após a infecção é realmente muito assustador, mas, do ponto de vista do micróbio, essa também é uma estratégia fatal. Por mais detestável que seja a doença causada, um micróbio não é uma entidade maligna. Ele não está preocupado em causar destruição entre as pessoas, e sim em se propagar. A destruição de seu ambiente (nós) é, na maioria das vezes, um acidente — e não é um acidente benéfico para o patógeno, pois um hospedeiro morto, ou gravemente doente, não entra muito em contato com outros possíveis hospedeiros, e portanto não gera boas oportunidades de infecção para o micróbio. Um hospedeiro morto geralmente é um beco sem saída para os patógenos que o habitam, que acabarão por morrer também, sem terem para onde escapar.
Um patógeno bem-sucedido, portanto, não é necessariamente o mais perigoso, e sim aquele que encontra uma maneira de se disseminar continuamente na população hospedeira sem causar confusões indevidas. É por isso que na maioria dos surtos, depois de algum tempo, a cepa infectante é atenuada: ela perde algumas de suas propriedades mais virulentas e começa a produzir sintomas mais leves. Às vezes, a cepa atenuada acaba por não produzir praticamente nenhum sintoma, conseguindo se manter fora do alcance de nossos radares, passando de pessoa a pessoa sem que percebamos. Isso, é claro, é bastante bom para o micróbio. Dessa forma, temos micróbios como o poliovírus (que causa a poliomielite), no qual cerca de 19 em cada 20 casos de infecção são subclínicos (não geram sintomas). Antes do advento das vacinas contra a pólio, era realmente muito difícil estar protegido contra o vírus, já que um grande número de pessoas perfeitamente saudáveis também eram portadoras sem o saber. Se o vírus fosse mais virulento, teria tido muito menos oportunidades de infecção a longo prazo.
A atenuação não é a única força que atua no patógeno. Nosso sistema imune também desempenha um importante papel. Um sistema imunológico saudável pode lidar com muitos problemas, e frequentemente consegue destruir o patógeno invasor. E uma vez sendo ele destruído, a pessoa, já tendo sido exposta ao micróbio uma vez na vida, torna-se imune a seus ataques futuros.4 Mesmo que o micróbio seja resistente demais para ser destruído inteiramente, um sistema imune saudável poderá frequentemente conter o invasor problemático, mantendo-o sob controle. Dessa forma, mais ou menos como na Guerra Fria, forma-se um equilíbrio tenso, dando aos dois lados algum tempo para se ajustarem um ao outro. Às vezes um lado termina por prevalecer, e o patógeno é destruído ou causa uma doença progressiva — isso pode ocorrer especialmente se a saúde do hospedeiro sofrer com algum problema não relacionado, ou se o hospedeiro simplesmente ficar mais velho e fraco. Porém, em certas ocasiões, a situação simplesmente se mantém estável.
Tudo isso leva a uma situação na qual uma praga irrompe e mata pessoas imunologicamente fracas (os doentes, os velhos ou as crianças) ou simplesmente azaradas; as pessoas resistentes sobrevivem e acabam por formar a maioria da população. Enquanto isso, com o passar do tempo, o patógeno vai se acalmando e se torna menos virulento, ou então nosso sistema imune aprende a lidar melhor com ele (ou os dois), e a praga acaba perdendo fôlego.
Por que, então, poderíamos nos perguntar, as pragas irrompem, para começo de conversa? Se nem mesmo o patógeno se beneficia de fato com a praga, por que elas ocorrem repetidamente?
Tudo pode ser visto, até certo ponto, como um desentendimento biológico entre o hospedeiro e o patógeno — ou como uma escalada periódica na eterna corrida armamentista entre as defesas do organismo e seus invasores, que ocorre quando uma espécie de micróbio que estava sob controle sofre uma mutação aleatória e se torna forte demais para o sistema imune.5
A situação mais problemática, entretanto, ocorre quando uma cepa entra em contato com uma população nova e despreparada — que não tenha ainda criado defesas imunológicas contra ela. Isso pode ocorrer quando uma cepa virulenta em um animal consegue saltar para outra espécie de animal (como ocorreu com a gripe aviária, por exemplo); porém, mais uma vez, trata-se de um evento raro. Algo muito mais comum se dá quando duas populações da mesma espécie entram em contato, sendo que uma das populações havia estado metida em uma batalha imunológica contra um certo patógeno por um longo tempo, enquanto a outra população jamais havia sido exposta a ele. Isso foi justamente o que ocorreu quando os viajantes e colonizadores europeus entraram em contato com as populações nativas de outros continentes — os povos aborígenes da Austrália e os indígenas americanos, por exemplo.
Simplesmente por entrarem em contato com os europeus, os povos não europeus foram atingidas por pragas letais de enormes proporções. Os patógenos que causaram essas pragas não vieram de nossos ancestrais evolutivos (esses patógenos estavam naturalmente presentes em todas as populações humanas, pois já nos acompanhavam antes que qualquer porção da humanidade saísse da África), e sim de vacas, galinhas, porcos, cabras e ratos, estes sempre tão presentes — patógenos aos quais somente os povos da Ásia e da Europa, criadores de animais, haviam sido expostos e aos quais estavam acostumados. Como os micróbios infectantes haviam se adaptado aos sistemas imunes resistentes dos europeus, quando encontraram os sistemas imunes despreparados dos povos indígenas, foi como se tivessem se lançado com toda força para abrir um portão de defesa que, ao ser golpeado, não oferecesse resistência nenhuma.
Essa explicação para a dizimação histórica das populações não europeias por doenças é, naturalmente, bastante superficial e parcial. Há diferentes tipos de imunidade — inata e adaptativa —, e suas diferentes características também influenciam o modo como os patógenos afetaram as populações recém-encontradas. Existem também condições externas, como a desnutrição e o estresse (algo que as invasões europeias certamente favoreceram), que teriam afetado fortemente a vulnerabilidade de seus sistemas imunes. Por fim, outras causas de morte, como a guerra contra os invasores europeus e a fome, também cobraram seu preço.6
Neste ponto, estamos entrando em um difícil território emocional e político. Sabemos pouco sobre o verdadeiro estado imunológico dos habitantes nativos no momento em que suas terras foram invadidas, portanto as explicações biológicas para esses eventos estão longe de serem conclusivas. Já foi dito que essa teoria do “solo virgem” coloca os horrores da invasão em uma base determinista. E, ao fazê-lo, exime os colonizadores da culpa, pois implica que, por mais benévolos ou iluminados que eles fossem, muitos dos nativos teriam morrido.
Outro argumento afirma que ao enxergarmos a situação dessa maneira, aceitamos, em termos imunológicos, a ideia da supremacia do homem branco. Outros ainda sustentam que essa visão virginal segundo a qual os povos indígenas seriam “bons selvagens” puros que acabaram maculados pelos europeus, que chegaram repletos de doenças, é irremediavelmente romantizada e se baseia em pouquíssimas evidências. São muitas as acusações de parcialidade e má interpretação, portanto vou parar por aqui antes de dizer acidentalmente algo que me meta em apuros.
 
A luta não vencida
Na maioria das vezes não estamos cientes dos micróbios que vivem dentro de nós. Assim que sua presença é sentida, no entanto, ficamos doentes e podemos até morrer. Ao longo da história humana, resistir a doenças infecciosas quase sempre foi uma tarefa excepcionalmente difícil. De fato, a doença era vista como algo praticamente inevitável. A ciência médica tem lutado contra os micróbios causadores de doenças há séculos — ainda que, na maior parte do tempo, os cientistas sequer soubessem da existência dos microrganismos. Nos dois últimos séculos, foram dados três grandes passos nessa luta:
  1. Antibióticos (grande passo).
  2. Vacinas (passo ainda maior).
  3. Lavar as mãos (o maior de todos os passos).7
Vou me concentrar nos antibióticos, porque para contar a história das vacinas eu precisaria de ao menos mais um livro inteiro, e suspeito que você já conheça os procedimentos básicos da lavagem das mãos.
A história dos antibióticos começa muitos milhões de anos atrás. Nós, seres humanos, nem existíamos nessa época. Os micróbios, ao lutarem uns contra os outros pela sobrevivência e por recursos, desenvolveram substâncias químicas para matar e repelir outros microrganismos. Isso ainda ocorre por toda parte, naturalmente. Porém, mais ou menos nos últimos 100 anos, nosso envolvimento nessa luta eterna trouxe algumas novidades.
Cerca de 200 mil anos atrás, a evolução gerou os seres humanos (que originalmente eram caçadores-coletores) e estes sofriam em certa medida com doenças infecciosas, como ocorre com todos os seres vivos. Aproximadamente 10 mil anos atrás, a civilização começou a ganhar velocidade: passamos a desenvolver a agricultura e então surgiram as vilas e cidades, o que levou a populações maiores e regiões mais densamente habitadas. Como todos estavam amontoados, os contágios entre as pessoas foram facilitados e as taxas de ocorrência de doenças infecciosas aumentaram rapidamente. Também começaram a surgir novas doenças, das quais a maioria se originava em animais domésticos (como vimos na seção anterior) ou numa peste urbana onipresente, o rato.
Ao longo da história, as doenças bacterianas e virais foram, em conjunto, as causas mais comuns de morte em todo o planeta. Os tratamentos (entre eles as pílulas de cascavel, talismãs mágicos e muitas poções à base de sangue) geralmente eram ineficazes, e uma pessoa que pegasse uma doença teria de contar com sua imunidade natural e constituição forte para sobreviver.
 
Primeiras observações
Ao final do século XIX, a melhoria das condições de vida e higiene foram responsáveis pela redução nas taxas de mortalidade nos países europeus. Nos últimos anos daquele século, surgiram relatos esporádicos de fungos que pareciam ter qualidades antimicrobianas. O uso de emplastos de fungos para tratar ferimentos remonta a milhares de anos atrás, mas como a conexão entre os micróbios e a saúde humana só foi estabelecida naquele século, essa foi a primeira vez em que os cientistas compreenderam em princípio o que os fungos estavam fazendo. Esses relatos foram amplamente ignorados pelos que chegaram a conhecê-los.
Assim que a humanidade entendeu que os micróbios podiam causar doenças, as equipes hospitalares passaram lentamente a implementar práticas antissépticas, o que reduziu as taxas de infecção. As vacinas também começaram a ser utilizadas. Mesmo assim, as doenças infecciosas ainda representavam um enorme problema para a humanidade.
No início do século XX começaram a surgir algumas drogas capazes de tratar doenças infecciosas: o salvarsan, um composto de arsênico, foi usado contra a sífilis, e a sulfa já era usada para combater infecções no final da década de 1930.
 
O que é um antibiótico?
Um antibiótico é definido como qualquer substância química que mate ou suprima o crescimento de microrganismos. No entanto, para ter utilidade médica, essa substância também deve ser muito menos prejudicial àqueles que a tomam (humanos ou animais) que a seus alvos. Esse atributo — a capacidade de causar danos seletivamente — é bastante esquivo.
Como as bactérias apresentam muitos processos e estruturas consideravelmente diferentes das células humanas, os antibióticos podem atingi-las sem prejudicar nossas células. Um exemplo clássico de tal estrutura é a parede celular bacteriana, que não possui contraparte nas células humanas. Seu processo de construção pode ser inibido pelo antibiótico penicilina. Dessa forma, as bactérias são atingidas sem que nossas células sejam afetadas.
Um bom contraexemplo também ilustra esse atributo: tratar o câncer normalmente é muito mais difícil que tratar uma infecção bacteriana, pois as células das quais desejamos nos livrar são células do nosso próprio organismo, mas rebeldes. As diferenças entre as células rebeldes e as normais, portanto, são muito menores e mais distintivas, e causar danos seletivos é muito mais difícil. A quimioterapia tem de atuar o máximo possível sobre essas pequenas diferenças — e, mesmo assim, trata-se apenas da esperança de envenenar o tumor a uma velocidade mais rápida que o resto do organismo.
Pelo mesmo motivo, os antibióticos não têm utilidade contra vírus ou fungos: os fungos são fundamentalmente muito mais parecidos conosco e compartilham muitas mais de nossas características básicas do que as bactérias, por isso é muito mais difícil atingi-los sem prejudicar a nós mesmos. Já os vírus representam um problema inteiramente distinto — apesar de serem muito diferentes de qualquer outra forma de vida, são um alvo mais complicado para as drogas, pois seu meio de reprodução está ligado de maneira muito íntima ao funcionamento de nossas próprias células. Até recentemente, a única maneira para lidar com eles era pelo método indireto da vacinação, isto é, apresentando-os ao organismo em uma forma inofensiva e contando que nosso sistema imune resolveria o problema no momento apropriado. Atualmente temos um pequeno número de drogas antivirais, e estão sendo realizadas intensas pesquisas (incentivadas pela necessidade de combater a epidemia de Aids) para descobrirmos novos medicamentos.
Os antibióticos tampouco têm utilidade no combate a doenças como a malária e a leishmaniose, pelo mesmo motivo: elas são causadas por parasitas, que são, em termos relativos, nossos parentes próximos.
 

 
 

publicado às 18:43

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