Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]



Porque para deliberar é preciso lidar com opostos. Neste campo, o tempo todo estamos nos ocupando com contradições, com uma gigantesca complexidade de situações, em conflitos de máximas e deveres.
 
 

 

As crises agravam as incertezas, favorecem os questionamentos; podem estimular a busca de novas soluções e também provocar reações patológicas, como a escolha de um bode expiatório. São, portanto, profundamente ambivalentes.
Para entender o que acontece e o que vai acontecer no mundo, é preciso ser sensível à ambiguidade. O que é a ambiguidade? Ela se traduz pelo fato de que uma realidade, pessoa ou sociedade se apresenta sob o aspecto de duas verdades diferentes ou contrárias, ou então apresenta duas faces, não se sabendo qual é a verdadeira. Tomemos o exemplo dos Estados Unidos: podemos ver neles a imagem da democracia, de um anteparo contra a ditadura, mas também do imperialismo, do intervencionismo no Iraque, do massacre das populações indígenas. Eles apresentam, portanto, esses dois rostos, e talvez um deles seja mais marcante que o outro em determinados momentos de sua história. Pascal tinha o senso da ambiguidade para ele, o ser humano traz em si o melhor e o pior. Descartes, não. Devemos ser pascalianos.
A segunda coisa necessária para esse entendimento é a ambivalência: quando um processo apresenta dois aspectos de valores diferentes e às vezes contrários, é ambivalente. Tomemos um exemplo na história da Europa ocidental: a partir do século XVI, a Europa conquista o mundo, a África, a América, coloniza esses continentes e se mostra cruel, exterminadora, escravagista. Simultaneamente, vale dizer, exatamente na época em que ela exerce sua crueldade nessas regiões do mundo, a Europa também é o único lugar onde se desenvolveram as ideias de direitos do homem, de fraternidade universal. Essa Europa, portanto, é ao mesmo tempo cruel e civilizada, dupla face de que dão testemunho, à sua maneira, dois grandes espíritos da época, o primeiro, por seu combate, o segundo, por seus escritos: Bartolomé de Las Casas, católico (de origem judaica), obriga a Igreja a reconhecer que os indígenas têm alma; Montaigne (cuja família paterna era marrana, donde sua experiência da diferença) exclama: “São chamadas bárbaras as pessoas de uma outra civilização. E nós somos mais ferozes que os canibais que comem os inimigos mortos, considerando que o que fazemos é torturar pessoas vivas.” Em sua face positiva, portanto, a Europa oferece uma mensagem de compreensão dos outros, do humanismo cristão que nasce da confluência do evangelismo com as ideias gregas. Embora nos primeiros séculos esse aspecto fosse muito secundário, a Europa transformou-se em defensora dos valores de liberdade. A ambivalência é assim integrada a um processo, como qualquer valor, podendo tornar-se mais ou menos importante.
Tomemos ainda como exemplo o processo de globalização, favorecido pela técnica e pelo desenvolvimento das comunicações, como a Internet e o telefone celular. Experimentamos uma ruptura temporal (1989-1990), com a implosão da União Soviética e a explosão do liberalismo na Rússia e na China. Esse duplo fenômeno levou à hegemonia da economia, do lucro e também dos Estados Unidos, processo que, por sua vez, gerou suas próprias ambivalências: criação de novas zonas de prosperidade, de novas classes médias na Índia, na China, no Brasil, mas também de novas zonas de miséria. A esse respeito, devemos estabelecer uma diferença entre a pobreza e a miséria: uma família que vive em um pequeno lote de terra com policultura e animais de criação é pobre mas tem um mínimo de dignidade e autonomia, ao passo que as pessoas tiradas do campo para serem jogadas em favelas se encontram em uma dependência absoluta, isto é, na miséria, a exemplo dos habitantes das favelas da América Latina, sempre em expansão. Podemos discutir longamente as vantagens e desvantagens dessa globalização, mas acredito que é a miséria que domina. O importante, contudo, é sua profunda ambivalência; esse processo não tem regulação interna — ao contrário dos antigos Estados, é um processo desmedido e incontrolável, que pode gerar crises. A globalização é a pior e a melhor das coisas.
É preciso ter sensibilidade para as contradições: quando chegamos, pelo estudo e pela análise, a duas verdades contraditórias, nosso hábito lógico consiste em mudar de raciocínio para eliminar a contradição. O que ocorre não apenas nos problemas políticos e sociais, mas também na física. É preciso assumir e transcender as contradições.

Entender o Mundo que nos espera
 
 A inadequação, com efeito, tem crescido constantemente entre nossos saberes parcelados, compartimentados entre disciplinas, e entre os problemas multidimensionais, transnacionais, globais, planetários. A divisão das disciplinas nos torna incapazes de apreender a complexidade, da palavra complexus, “o que é tecido junto”. O desafio da globalidade é um desafio da complexidade. Na história planetária, as interações e retroações entre os processos econômicos, políticos, religiosos, demográficos, científicos, técnicos, já incontáveis, estão constantemente aumentando. Ora, uma das tragédias do pensamento atual é que nossas universidades e escolas superiores produzem eminentes especialistas cujo pensamento é muito compartimentado. O economista enxerga apenas a dimensão econômica das coisas, assim como o religioso e o demógrafo nas suas respectivas áreas, e todos encontram dificuldade para entender as relações entre duas dimensões. A inteligência que sabe apenas separar quebra a complexidade do mundo em fragmentos isolados, diminuindo as chances de compreensão e reflexão. Assim, quanto mais os problemas se tornam planetários, mais se tornam impensados; quanto mais avança a crise, mais avança a incapacidade para pensá-la.
O conhecimento pertinente é capaz de situar toda informação em seu contexto e, se possível, no conjunto em que se insere. Da mesma forma, devemos conceber simultaneamente a retroação: um fenômeno circular, no qual o próprio efeito atua sobre a causa, e a recursão: um processo em que os efeitos e os produtos são necessários para sua própria produção e causa. A democracia, por exemplo, é nutrida por dois círculos recursivos: em primeiro lugar, os governantes dependem dos cidadãos, que dependem dos governantes. Em segundo lugar, a democracia produz cidadãos, que produzem a democracia. Estamos diante de círculos, círculos virtuosos nos quais dois contrários podem ajudar-se reciprocamente. Por exemplo, nas relações Israel/Palestina, Estados Unidos/Irã, nas quais, de ambos os lados, os mais extremistas é que vêm a ser favorecidos pelo processo conflituoso. Cada provocação de Bush favorecia a provocação de Ahmadinejad. Era o mais grandioso desses maniqueísmos: segundo a visão ocidental, um império do bem contra a Al Qaeda, o império do mal; e segundo a visão inversa, a Al Qaeda, o império do bem, contra os infiéis ocidentais. A luta dos dois impérios do bem impossibilita a compreensão de um pelo outro.
Trata-se, assim, de uma condição prévia: se não houver essas múltiplas sensibilidades para a ambiguidade, para a ambivalência (ou a contradição), para a complexidade, será muito pequena a capacidade de entender o sentido dos acontecimentos. A compreensão humana comporta o entendimento não só da complexidade do ser humano, mas também das condições em que são modeladas as mentalidades e praticadas as ações. As situações são determinantes, como demonstram as circunstâncias de guerra em que as virtualidades mais odiosas podem concretizar-se. Os terroristas, de certa maneira, vivem uma ideologia de guerra em tempos de paz.
Existe uma ética da compreensão que nos convida, antes de mais nada, a compreender a incompreensão, que tem numerosas origens: o erro, a indiferença ao próximo, a incompreensão entre culturas, a possessão por deuses, por mitos, por ideias, o egocentrismo, a abstração, a cegueira, o medo de compreender... Uma palavra sobre essa última incompreensão: compreender não é justificar, compreender o assassino não significa tolerar o assassinato que ele cometeu. A compreensão complexa comporta uma terrível dificuldade. Ao levar em conta as bifurcações, as engrenagens que levam ao pior ou ao melhor, e não raro a ambos, ela enfrenta constantemente o paradoxo da responsabilidade/irresponsabilidade humana.

*

A maior contribuição do século XX no terreno do conhecimento foi a noção dos limites de nosso conhecimento. A incerteza é onde nos movemos, não só na ação, mas também no conhecimento. A condição humana, assim, é marcada por duas grandes incertezas: a incerteza cognitiva e a incerteza histórica. Quando entram em ação as interações e interferências, não é possível ter certeza absoluta. A incerteza cognitiva é resumida nesta frase de um biólogo: “Para saber tudo o que acontece em um corpo seria necessário matá-lo, e então o que nele acontece deixa de acontecer.” É preciso aceitar pensar com certa incerteza. A incerteza histórica está ligada ao caráter caótico da história humana. Não podemos ignorar a grande revelação do século XX: nosso futuro não é teleguiado pelo progresso histórico. Simultaneamente à globalização econômica, uma outra globalização muito mais frágil se afirmou, a da democracia: muitos países que viviam sob ditadura se emanciparam; existem, é verdade, democracias vacilantes, violentas, corruptas, mas há avanços nos direitos do homem e da mulher. Para além das aparências, descobrimos também uma globalização plural.
A segunda globalização faz parte do mesmo processo que a primeira, ao mesmo tempo que lhe é oposta. É a globalização cultural, por sua vez extremamente ambivalente. Marx dizia, no século XIX, que o capitalismo, unificando o mundo pelo lucro, criaria condições de uma verdadeira literatura mundial. Hoje, temos acesso aos romances japoneses, chineses, e não apenas contemporâneos, mas também medievais.
Embora a indústria do cinema tenha aplicado uma extrema divisão do trabalho (o montador, o realizador...) e atendido a um imperativo de lucro, não deixou de produzir filmes de qualidade, às vezes obras-primas. Um criador pode impor sua obra, como Orson Welles, assim como pode ser varrido pelo sistema. A planetária difusão cinematográfica nos proporciona obras-primas do cinema coreano ou japonês. Por quê? Porque sempre existe necessidade de originalidade, de criação; e entre a invenção e a produção ocorrem, simultaneamente, conflito e colaboração. É o que define a complexidade: uma relação antagônica e complementar. Se a padronização passou a ser um fenômeno mundial, como evidenciam tantas séries de televisão produzidas atualmente, a originalidade também está presente: um notável estudo sobre a pizza mostrou de que maneira ela se transforma em cada país, integrando elementos culturais próprios.
A mestiçagem cultural pode ser criadora. Tomemos um exemplo que me toca particularmente, o do flamenco. Temos aí uma música que expressa a alma do povo cigano, uma música simbiótica, cheia de influências, indiana, árabe, judaica, celta... fundidas em uma música original. O flamenco estava em decadência na década de 1950, de tal maneira degradado que sua morte era prevista. Mas, se regenerou por influência de dois fatores: primeiro, graças à juventude andaluza, movida pelo desejo de uma volta às origens, às raízes culturais, e depois graças a gravadoras que, como a Ducretet Thomson, produziram antologias, puseram no mercado “compilações” que lhe permitiram conquistar aficionados em todo o mundo. Vemos, portanto, que o flamenco também deve sua regeneração à globalização. E, por sinal, outros fenômenos de mestiçagem se desenvolvem tangencialmente: o raï, o rock... Todos esses processos são ambivalentes. Condenar a globalização cultural como padronização, degradação, ou então louvá-la por sua capacidade de transmissão não é suficiente. Vivemos em processos ambivalentes que podem modificar-se, o que não significa que devemos apenas contemplá-los.

*

Poderíamos dizer que a nave espacial Terra é transportada por um quadrimotor: a ciência, a técnica, a economia e o lucro. Cada um desses motores é profundamente ambivalente. A própria ciência, que permitiu descobertas, conhecimentos extraordinários, gerando benefícios para a humanidade, também gerou armas de destruição em massa e agora concebe meios de manipulação genética. A ciência gerou um poder extraordinário ao se associar cada vez mais estreitamente à técnica, cujos aperfeiçoamentos propulsionam ininterruptamente a economia e transformam profundamente as sociedades. A técnica serviu para domesticar as energias materiais, mas também os seres humanos, que por sua vez interferem nas máquinas. Os espíritos formados por um modo de conhecimento que recusa a complexidade não são capazes de conceber a ambivalência fundamental inerente à atividade científica, na qual conhecimento e manipulação são duas faces do mesmo processo. Além disso, é difícil controlar a ciência, que sempre foi um canteiro de obras caótico; como as grandes descobertas nunca foram programadas, as regulações devem vir de outras fontes: do político, entre outros, que intervêm de maneira modesta, quando, por exemplo, proíbem a clonagem humana. Como não sentir medo? A produção de armas de destruição em massa se dissemina, se miniaturiza, cria um perigo cada vez mais pesado, tanto mais que entramos em um pré-período de guerra de civilizações, que, espero, não ocorrerá, no qual o maniqueísmo é transformado em princípio em que um grupo sem localização territorial, como a Al Qaeda, sonha explodir uma bomba atômica artesanal para eliminar cidades de perdição e infiéis. A degradação da biosfera tem prosseguimento, denunciada desde 1970 pelo Clube de Roma, ao passo que uma consciência ecológica leva muito tempo para se disseminar. O aquecimento global é acompanhado das ameaças que pesam sobre a vida oceânica, da diminuição da biodiversidade animal, do aumento da poluição urbana e da agricultura industrial, que multiplica pesticidas empobrecendo os solos e contaminando os lençóis freáticos. Essa degradação generalizada é gerada pelo nosso próprio processo de civilização, que também dá origem a antídotos, a formas de reparação. É muito bom que haja iniciativas de controle ambiental como as que ficaram conhecidas na França como Grenelle de l’Environnement, pois é importante desenvolver energias renováveis, limitar a poluição. Mas seria necessária uma reforma de maior envergadura. Foi-se buscar o quantitativo, esquecendo-se do qualitativo. Os economistas têm os olhos fixos apenas nos resultados numéricos, ignorando as realidades humanas, que envolvem sensibilidades, ódio, amor, paixões. O lucro é um processo descontrolado que também comporta sua própria ambivalência. Estamos envolvido sem um processo que tende para a catástrofe, não obstante as tentativas, aqui e ali, de salvar uma região, um rio... Em tais condições, o provável é catastrófico. Não sei sob que forma, talvez uma mistura de guerra e catástrofe ecológica. O provável é aquilo que, em determinado lugar e momento, projeta um observador inteligente, dispondo das melhores informações sobre o passado e o presente, para o futuro. O provável, portanto, é que caminhamos para o abismo. E, no entanto, sempre houve o elemento improvável na história humana. Seis séculos antes da nossa era, o imenso Império Persa quis absorver as pequenas cidades gregas, entre elas Atenas. Era para ter sido muito fácil, bastando para isso lançar em campo seu gigantesco exército. Mas, Atenas, com a ajuda de Esparta, rechaçou os persas na batalha das Termópilas. A cidade de Atenas foi destruída, até Salamina, mas lá os navios gregos armaram uma cilada para os persas, salvando o Estado de Atenas. E algumas dezenas de anos depois nasciam a democracia e a filosofia atenienses.
Eu mesmo vivi uma situação improvável: em dezembro de 1941, o exército nazista dominava a Europa e havia chegado às portas de Moscou. Mas eis que um inverno precoce enfraqueceu o exército alemão. Stalin, informado por um espião de que o Japão não atacaria, destaca uma parte de seu exército do Extremo Oriente e nomeia Yukov, que desencadeia uma contraofensiva em 5 de dezembro e rechaça o exército alemão; é a primeira derrota dos nazistas. Acontece que, no dia seguinte, o Japão ataca Pearl Harbor, provocando a entrada dos Estados Unidos na guerra. Em poucos dias, o provável diminui, o improvável começa a se desenvolver e se torna provável depois de Stalingrado. O futuro nunca é certo. Outro exemplo mais distante no tempo: o planeta era povoado por uma humanidade arcaica vivendo em pequenas sociedades de caçadores-coletores, sem Estado, sem agricultura, sem exército. Em dado momento, no Oriente Médio, na bacia do Indo e, depois, na China, no México, não se sabe mediante qual processo de dominação, de reagrupamento, nossas sociedades históricas foram criadas, com cidades, Estados, agricultura, um exército, classes sociais, religiões. Ocorreu uma espécie de metamorfose, uma transformação radical, como costuma ocorrer no mundo animal. Em uma primeira etapa, por exemplo, a lagarta se destrói, até o sistema digestivo, para melhor se tornar uma borboleta. Nós mesmos somos pequenas larvas no ventre de nossa mãe, antes de nos transformarmos em seres humanos, passando pelo teste extremamente duro do nascimento.

Arrisco a hipótese de que talvez tenhamos chegado a um momento de ruptura. O destino da humanidade acaso seria a história (um processo, justamente, que tem fim), que tem apenas 6.000 anos no fim das contas? Não teríamos chegado a uma etapa que serve de prelúdio a uma metamorfose da qual nasceria uma sociedade-mundo de novo tipo? O que caracteriza a metamorfose, como qualquer criação, é não ser previsível. Como imaginar o Réquiem de Mozart, mesmo dispondo eletrodos em sua cabeça, antes de sua criação? Naturalmente, falta-nos a consciência de humanidade planetária, que se encontra em estado germinal nas grandes religiões universalistas, assim como no humanismo ocidental, a qual ainda não se desenvolveu. A humanidade se concretizou pela comunhão de um destino em comum e agora se encontra diante de ameaças mortais. A metamorfose não é provável, apenas possível, e talvez distingamos a possibilidade de escapar dela. Não será uma salvação imediata, e certamente teremos de superar grandes dificuldades, empreender vários tipos de reformas, da sociedade, das mentalidades, dos valores... Por que não? Na história, vemos que os grandes acontecimentos começam de maneira minúscula: na Galileia, o cristianismo é sustentado por uma dúzia de apóstolos antes de se transformar em uma religião universal. Um profeta expulso de Meca refugia-se em Medina e vem a fundar uma outra grande religião. Um primeiro desvio no fluxo das coisas transforma-se em uma tendência, e depois em uma força histórica. Essa evolução também é complexa, paradoxal e ambivalente: todos os nossos fatores de desesperança trazem em si elementos de esperança: “Onde cresce o perigo, cresce também o que salva” (Hölderlin).

*

Ortega dizia: “Não sabemos o que acontece, e é justamente o que acontece.” Estamos condenados a avançar na ignorância, que é favorecida por esse pensamento parcelar que vê apenas fenômenos separados, incapaz de compreender suas relações.
Mas se preparar para esse mundo incerto não significa resignar-se. É preciso, pelo contrário, empenhar-se em bem pensar, elaborar estratégias, fazer apostas em plena consciência. Bem pensar significa tratar de contextualizar e globalizar nossos conhecimentos, como vimos, e também estar consciente da ecologia da ação. Primeiro princípio: toda ação, uma vez lançada, entra em um jogo de interações e retroações no meio em que se dá, e esse jogo pode desviá-la de seus fins e até mesmo levar a um resultado oposto ao que se esperava. Segundo princípio: as derradeiras consequências da ação são imprevisíveis. Os efeitos da ação dependem não só das intenções do ator, mas também das condições próprias do meio em que se desenrola. Ora, não é possível contemplar a totalidade das inter-retroações em um meio complexo como o meio histórico-social.
A estratégia se opõe ao programa, estabelece, como ele, um objetivo e hipóteses de ação, mas, ao contrário dele, modifica sua ação em função das informações recolhidas e do acaso. Traz em si a consciência da incerteza com que se vai deparar, comportando por isso mesmo uma aposta.
Acredito muito em uma política regenerada. É verdade que na França a política está muito esclerosada, tanto as mentalidades quanto os partidos, sugerindo que nada mais poderá sair daí; mas, ao mesmo tempo, estão em ação forças subterrâneas. Repensemos a metáfora de Hegel, sobre a velha toupeira que cava suas galerias subterrâneas e, um belo dia, volta à superfície. Existem muitas toupeiras trabalhando, tal como a jovem toupeira de 1968, e é difícil detectá-las. É preciso ter a mente aberta. É muito difícil conhecer o presente, movimentos imperceptíveis ocorrem na profundidade. O presente, o real, não é aquilo que parece estável. Ser realista, que utopia! É preciso estar aberto para o incerto, para o inesperado. É preciso ser sensível ao fraco, ao acontecimento que nos surpreende; é preciso estar pronto para repensar incansavelmente o estado do mundo.
Qual seria, então, a boa notícia? Uma conscientização da amplitude, da profundidade da complexidade, dando conta de um novo começo. Estamos em um período de crise planetária e não sabemos o que sairá disso; tudo aquilo que der conta da possibilidade de transcender essa crise será uma boa notícia. Creio que a complexidade favorece a ação, pois dá a medida dos verdadeiros riscos e das verdadeiras oportunidades. A ecologia da ação significa isto: no momento em que a empreendemos, ela nos escapa e pode transformar-se em seu contrário. Queremos levar a democracia ao Iraque e favorecemos o terrorismo; casamos, julgamos que vamos ser felizes e é o contrário. É preciso fazer como Pascal, uma aposta, e mudar de direção se necessário. Nossos antepassados caçadores-coletores viviam em um mundo incerto, sem garantias de encontrar caça, completamente sujeitos aos caprichos da natureza. A conscientização do risco pode estimular as defesas; é preciso apostar. Como as consequências de uma ação são incertas, a aposta ética, longe de abrir mão da ação por medo das consequências, assume essa incerteza, reconhece os riscos, elabora uma estratégia. A aposta é a integração da incerteza na esperança. É um erro acreditar que a ação só é possível através de uma visão simplista e maniqueísta da situação. A complexidade induz à temporização, suscita hesitação, pode por longo tempo representar um obstáculo para a ação, mas não impede de decidir. A incerteza estimula porque convoca a aposta e a estratégia. Não se deve, é verdade, avançar de maneira pulsional e irrefletida, mas é preciso agir. Aposta e estratégia, e adiante!

(Edgar Morin, Patrick Viveret - Como viver em tempo de crise?)
Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma
Mesmo quando o corpo pede um pouco mais de alma
Eu sei, a vida não para.
A vida não para não’.

publicado às 12:08

(Para encontrar o nosso lugar no cosmos), para aprender a nele viver e nele inscrever as ações, é necessário antes conhecer o mundo que nos cerca. Essa é, como lhe disse, a primeira tarefa da teoria filosófica.
Em grego, ela se chama também theoria, e a etimologia da palavra merece nossa atenção: to theion ou ta theia orao significa “eu vejo (orao) o divino (theion)”, “eu vejo as coisas divinas (theia)”. Para os estoicos, de fato, a the-oria consiste exatamente em esforçar-se por contemplar o que é “divino” no real que nos cerca. Em outras palavras, a tarefa primeira da filosofia é ver o essencial do mundo, o que nele é mais real, mais importante, mais significativo. Ora, pela tradição que culmina no estoicismo, a essência mais íntima do mundo é a harmonia, a ordem, simultaneamente justa e bela, que os gregos designam pelo nome de cosmos
.

(Theoria e comtemplação)

 

 

Quando eu era estudante — é preciso dizer que comecei meus estudos em 1968 e que, naquele tempo, as questões religiosas não estavam na moda — praticamente não se abordava a história das ideias da Idade Média. Isso significa que zapeávamos alegremente todas as grandes religiões monoteístas. Apenas isso! Prestávamos exames e até mesmo nos formávamos professores sem saber nada de judaísmo, islamismo ou mesmo cristianismo. Precisávamos, é claro, escolher cursos sobre a Antiguidade — sobretudo grega — e, em seguida, passávamos diretamente a Descartes. Sem transição. Saltavam-se 15 séculos, de uma vez, do fim do século II, quer dizer, dos últimos estóicos, até o início do século XVII. De modo que, durante anos, eu não sabia praticamente nada da história intelectual do cristianismo — a não ser o que a cultura comum nos permite aprender, ou seja, sobretudo banalidades.

É um absurdo, e não gostaria que você cometesse esse erro. Mesmo quando não se é crente, com muito mais razão quando se é hostil às religiões, como veremos em Nietzsche, não temos o direito de ignorá-las. Mesmo que seja para criticá-las, é preciso ao menos conhecê-las e saber um pouco do que falam. Sem contar que elas ainda explicam uma infinidade de aspectos do mundo no qual vivemos, que saiu inteiramente do universo religioso. Não existe museu de obras de arte, mesmo contemporâneo, que não exija um mínimo de conhecimento teológico. Não há também um só conflito no mundo que não esteja mais ou menos secretamente ligado à história das comunidades religiosas: católicas e protestantes na Irlanda, muçulmanas, ortodoxas e católicas nos Bálcãs, animistas, cristãs e islamitas na África etc.

Apesar de tudo, segundo a definição que eu mesmo dei da filosofia no início deste livro, não deveria incluir um capítulo dedicado ao cristianismo. Não apenas a noção de “filosofia cristã” dá a impressão de ficar “à margem do tema”, mas parece até contraditória com o que lhe expliquei longamente, já que a religião é exemplo de uma busca da salvação não filosófica, porque é realizada por Deus, pela fé — e não pelo indivíduo e pela razão.

Então, por que falar dela aqui?

Em virtude de quatro razões muito simples que merecem, contudo, uma breve explicação.

A primeira, como sugeri no fim do capítulo anterior, é que a doutrina cristã da salvação, embora fundamentalmente não filosófica, até mesmo antifilosófica, vai competir com a filosofia grega. Vai, por assim dizer, aproveitar-se das lacunas que enfraquecem a resposta estóica sobre a questão da salvação para subvertê-la internamente. Vai até, como logo vou demonstrar, alterar o vocabulário filosófico em seu próprio proveito, dar-lhe significações novas, religiosas, e propor, por sua vez, uma resposta inédita, inteiramente nova, para a questão de nossa relação com a morte e com o tempo — o que lhe permitirá suplantar durante séculos, quase que sem restrições, as respostas da filosofia. Merece, portanto, nosso interesse.

A segunda razão é que, embora a doutrina cristã da salvação não seja filosófica, não deixará de haver, no seio do cristianismo, lugar para o exercício da razão. Ao lado da fé, a inteligência racional vai encontrar modo de se exercer pelo menos em duas direções: por um lado, para compreender os grandes textos evangélicos, quer dizer, para meditar e interpretar a mensagem do Cristo, mas, por outro, para conhecer e explicar a natureza que, enquanto obra de Deus, deve certamente trazer em si algo como a marca de seu criador. Vamos voltar ao assunto, mas isso já basta para que você compreenda que, paradoxalmente, vai haver, no seio do cristianismo, um lugar subalterno e modesto, no entanto real, para um momento de filosofia — se com isso se designa o uso da razão humana destinada a esclarecer e reforçar uma doutrina da salvação que, certamente, continuará, em seu princípio religioso, fundada na fé.

A terceira razão decorre diretamente das duas primeiras: não há nada mais esclarecedor para se compreender a filosofia do que compará-la ao que ela não é e ao que ela se opõe radicalmente, embora lhe seja tão próximo, ou seja, a religião! Tão próximo, porque ambas visam, em última instância, à salvação, à sabedoria entendida como uma vitória sobre as inquietações associadas à finitude humana; tão opostas, já que os caminhos seguidos por cada uma delas não são apenas diferentes, mas, na verdade, contrários e incompatíveis. Os Evangelhos, o quarto em particular, redigido por João, comprovam certo conhecimento da filosofia grega, especialmente do estoicismo. Houve, pois, efetivamente, uma confrontação, para não dizer competição, entre duas doutrinas da salvação, a dos cristãos e a dos gregos, de modo que o entendimento dos motivos pelos quais a primeira se sobrepôs à segunda é altamente esclarecedor para que se perceba não apenas a exata natureza da filosofia, mas também como, depois do grande período de dominação de ideias cristãs, ela vai abrir-se a novos horizontes — os da filosofia moderna.

Por fim, existem no conteúdo do cristianismo — especialmente no plano moral, das ideias que, mesmo para os incrédulos, têm ainda hoje enorme importância — ideias que, uma vez separadas de suas fontes puramente religiosas, vão adquirir tal autonomia que serão retomadas pela filosofia moderna, e mesmo por ateus. Por exemplo, a ideia de que o valor moral de um ser humano não depende de seus dons ou de seus talentos naturais, mas do uso que ele faz deles, de sua liberdade e não de sua natureza, foi oferecida à humanidade pelo cristianismo, e muitas morais modernas, não cristãs e até mesmo anticristãs, vão adotá-la apesar de tudo. Eis por que seria inútil querer passar sem transição do momento grego à filosofia moderna sem dizer uma palavra sobre o pensamento cristão.

Gostaria, para começar, de retomar o assunto a que nos referimos no último capítulo, e lhe explicar por que o pensamento cristão se sobrepôs à filosofia grega a ponto de dominar a Europa até o Renascimento. Não é pouca coisa: deve haver alguns motivos para tal hegemonia que mereçam que nos interessemos — e deixemos de guardar silêncio sobre uma história do pensamento cujos efeitos profundos se prolongam até nossos dias. A bem da verdade, como você logo verá, os cristãos inventaram respostas para as nossas interrogações sobre a finitude, que não têm equivalência entre os gregos; respostas, se ouso dizer, tão “eficientes”, tão “tentadoras”, que se impuseram a uma boa parte da humanidade como literalmente incontornáveis.
Para que a comparação entre essa doutrina da salvação religiosa e os pensamentos filosóficos da salvação sem Deus se torne mais cômoda, vou retomar nossos três grandes eixos — teoria, ética, sabedoria. Assim, não perderemos o fio do que já vimos. E para ir diretamente ao essencial, eu lhe indicarei primeiramente cinco traços fundamentais que estabelecem uma ruptura radical do cristianismo com o mundo grego — cinco traços que vão fazer você compreender como, a partir de uma nova theoria, o cristianismo vai também elaborar uma moral totalmente inédita e, em seguida, uma doutrina da salvação fundada no amor, o que lhe possibilitará conquistar o coração dos homens e reduzir, por longo tempo, a filosofia ao estatuto subalterno de simples “serva da religião”.

I. Theoria: como o divino deixa de se identificar com a ordem cósmica para se encarnar numa pessoa — o Cristo; como a religião nos convida a limitar o uso da razão para dar lugar à fé 

Primeiro traço, o mais fundamental de todos: o logos que, como vimos, para os estóicos se confundia com a estrutura impessoal, harmoniosa e divina do cosmos todo, para os cristãos vai se identifícar com uma pessoa singular, o Cristo . Para escândalo dos gregos, os novos crentes vão afirmar que o logos, ou seja, o divino, não é absolutamente, como afirmam os estóicos, idêntico à ordem harmoniosa do mundo enquanto tal, mas é encarnado num ser excepcional, o Cristo!
A priori, talvez você me diga que o acontecimento o deixa petrificado. Afinal, que diferença faz, sobretudo para nós, hoje, que o logos, que designava para os estóicos a ordem “lógica” do mundo, se identifique, para os crentes, com o Cristo? Eu poderia responder que ainda existem mais de um bilhão de cristãos pelo mundo afora e que, só por esse motivo, entender o que os anima, captar os motivos, o conteúdo e a significação de sua fé não é necessariamente absurdo para quem se interessa, mesmo que só um pouco, por seus semelhantes. Mas seria uma resposta que, embora correta, não deixaria de ser insuficiente. Pois o que está em jogo nesse debate aparentemente muito abstrato, para não dizer bizantino, sobre saber onde e em que se encarna o divino — o logos —, se é a estrutura do mundo ou, ao contrário, uma pessoa excepcional, é simplesmente a passagem de uma doutrina da salvação anônima e cega à promessa de que vamos ser salvos não apenas por uma pessoa, o Cristo, mas também enquanto pessoa.

Ora, essa “personalização” da salvação, como você verá, permite logo compreender, por meio de um exemplo concreto, como se pode passar de uma visão de mundo a outra; como uma resposta nova consegue suplantar outra mais antiga porque contém um “mais”, um poder de convicção maior, e também vantagens consideráveis em relação à precedente. E mais ainda: apoiando-se na definição da pessoa humana e num pensamento inédito do amor, o cristianismo vai deixar marcas incomparáveis na história das ideias. Não compreendê-las é também não se permitir qualquer entendimento do mundo intelectual e moral no qual vivemos ainda hoje. Para lhe dar um único exemplo, é perfeitamente claro que, sem essa valorização tipicamente cristã da pessoa humana, do indivíduo como tal, jamais a filosofia dos direitos do homem, à qual damos tanta importância ainda hoje, teria vindo à luz.

É, pois, essencial, ter uma ideia mais ou menos exata da argumentação com a qual o cristianismo vai romper radicalmente com a filosofia estoica.

Para tanto, é preciso antes que você saiba, do contrário não compreenderá nada, que na versão francesa dos Evangelhos que contam a vida de Jesus, o termo logos, diretamente tomado aos estóicos, é traduzido pela palavra “Verbo”. Para os pensadores gregos em geral, e para os estóicos em particular, a ideia de que o logos, o “Verbo”, possa designar outra coisa além da organização racional, bela e boa do conjunto do universo não tem rigorosamente nenhum sentido. Para eles, supor que um homem, qualquer um, mesmo o Cristo, seja o logos, o “Verbo encarnado” segundo a fórmula do Evangelho, é puro delírio: é atribuir o caráter de divindade a um simples humano, enquanto o divino, você se lembra, só pode ser algo de grandioso, já que se confunde com a ordem cósmica universal, mas em hipótese alguma com uma pessoa, com uma pequena pessoa particular, quaisquer que sejam seus méritos.

Os romanos — notadamente sob Marco Aurélio, o último grande pensador estóico e imperador de Roma no fim do século II, período em que o cristianismo ainda é muitíssimo malvisto no império — vão massacrar os cristãos por causa desse insuportável “desvio”. Porque na época não se brincava com as ideias...

Por que, exatamente, e o que é que está em discussão por detrás dessa mudança aparentemente inocente do sentido de uma simples palavra? Nada menos do que uma verdadeira revolução na definição do divino. Ora, hoje sabemos que tais revoluções não acontecem sem sofrimento.

Voltemos um pouco ao texto no qual João, autor do quarto Evangelho, opera esse desvio em relação aos estóicos. Eis o que ele diz — e que comento livremente entre colchetes:

“No princípio era o Verbo [logos], e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Tudo foi feito por meio dele e sem ele nada foi feito.” [ Até aí, tudo bem, e os estóicos podem estar de acordo com João, especialmente com a ideia de que o logos e o divino são uma única e mesma realidade.] “E o Verbo se fez carne [agora ficou ruim!] e habitou entre nós [daí em diante, piorou: o divino tornou-se homem, encarnado em Jesus, o que não tem nenhum sentido aos olhos dos estóicos!] e nós vimos a sua glória, glória que ele tem junto ao Pai como filho único, cheio de graça e de verdade [Do ponto de vista dos sábios gregos, o delírio agora é total, já que os discípulos do Cristo são apresentados como testemunhas da transformação do logos/Verbo=Deus, em homem=Cristo, como se este fosse o filho do primeiro!].”

O que isso significa? Simplesmente, se ouso dizer, mas na época era uma questão de vida ou morte, que o divino, como demonstrei acima, mudou de sentido, não é mais uma estrutura impessoal, mas, ao contrário, uma pessoa singular, a de Jesus, o “Homem-Deus”. Mudança de sentido abissal, que vai levar a humanidade europeia por um caminho completamente diferente do preconizado pelos gregos. Em algumas linhas, as primeiras de seu Evangelho, João nos convida a acreditar que o Verbo encarnado, o divino como tal, não designa mais a estrutura racional e harmoniosa do cosmos, a ordem universal enquanto tal, mas um simples ser humano. Como um estóico, por menos sensato que fosse, poderia admitir que caçoassem tanto dele, que zombassem de tudo aquilo em que ele acreditava? Porque, evidentemente, esse desvio não tem nada de inocente. Terá forçosamente consequências consideráveis para a doutrina da salvação, para a questão de nossa relação com a eternidade, e até mesmo com a imortalidade.

Veremos adiante de que modo, nesse contexto, Marco Aurélio ordenará a morte de São Justino, ex-estóico que se tornou o primeiro Pai da Igreja e primeiro filósofo cristão.

Aprofundemos um pouco mais os aspectos novos dessa theoria inédita. Você se lembra de que a theoria compreende sempre dois aspectos: de um lado, a estrutura essencial do mundo que ela desvela (o divino); de outro, os instrumentos de conhecimento que ela mobiliza para alcançá-lo (a visão). Ora, não é apenas o divino, o theion, que muda completamente ao se tornar um ser pessoal, mas também o orao, o ver, ou, se você assim preferir, o modo de contemplá-lo, de compreendê-lo e aproximar-se dele. A partir daí, não será mais a razão a faculdade teórica por excelência, mas a fé. Nesse ponto, a religião vai rapidamente pretender, e com todas as suas forças, opor-se ao racionalismo que estava no centro da filosofia e com isso destronar a própria filosofia.

E agora, o segundo traço: a fé vai ocupar o lugar da razão, e mesmo levantar-se contra ela. De fato, para os cristãos, o acesso à verdade não passa mais — em todo caso, não em primeiro lugar, como para os filósofos gregos — pelo exercício de uma razão humana que conseguia captar a ordem racional, “lógica”, do Todo cósmico, porque ela própria seria um emérito componente dele. O que vai permitir a aproximação do divino, seu conhecimento e contemplação é, a partir de então, de uma ordem inteiramente outra. O que conta, antes de tudo, não é mais a inteligência, mas a confiança dada à palavra de um homem, o Homem-Deus, o Cristo, que tem a pretensão de ser o filho de Deus, o logos encarnado. Acreditarão nele, porque ele é digno de fé — e os milagres realizados por Ele aumentarão a confiança que depositam n’Ele.

Lembre-se ainda de que confiança, originalmente, também significa “fé”. Para contemplar Deus, o instrumento teórico adequado é a fé, não a razão. Para isso, é preciso depositar confiança na palavra do Cristo que anuncia a “Boa-nova”: aquela segundo a qual seremos salvos exatamente pela fé, e não por nossas próprias “obras”, quer dizer, por nossas ações demasiado humanas, mesmo as mais admiráveis. Não se trata mais tanto de pensar por si mesmo, mas de ter confíança num Outro. Sem dúvida, é nisso que reside a diferença profunda e significativa entre filosofia e religião.

Donde também a importância do testemunho, que deve ser o mais direto possível para ser crível, como insiste, no Novo Testamento, a Primeira Epístola de João: O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os olhos, o que contemplamos e nossas mãos apalparam no tocante ao Verbo da vida — porque a vida se manifestou e nós vimos e testemunhamos, anunciando-vos a vida eterna que estava com o Pai e nos foi manifestada —, o que vimos e ouvimos, nós também anunciamos a fim de que também vós vivais em comunhão connosco. É certamente do Cristo que João fala aqui, e você vê que o estatuto de seu discurso repousa sobre uma lógica diferente da que pertence à reflexão e à razão; não se trata de argumentar a favor ou contra a existência de um Deus que se fez homem, pois, evidentemente, tal argumentação excede a razão e se mostra impossível. Mas, primordialmente, trata-se de testemunhar e crer, de dizer que o “Verbo encarnado”, o Cristo, foi visto, “apalpado”, tocado, ouvido; que conversaram com ele, e que esse testemunho é digno de fé. Você pode acreditar ou não, isso depende de você, que o logos divino, a vida eterna que estava com o Pai, encarnou-se no Homem-Deus descido à Terra. De qualquer modo, não é mais uma questão de inteligência ou de raciocínio. A rigor, trata-se do contrário: “bem-aventurados os pobres de espírito”, diz o Cristo nos Evangelhos, pois eles acreditarão e verão a Deus. Ao passo que os “inteligentes”, os “soberbos”, como diz Santo Agostinho ao se referir aos filósofos, atarefados com seus raciocínios, passarão, com orgulho e arrogância, à margem do essencial...

Donde o terceiro traço: o requisito para se aplicar e praticar convenientemente a nova teoria não é mais o entendimento dos fílósofos, mas a humildade das pessoas simples . Justamente porque não se trata de pensar por si mesmo, mas de acreditar por meio de outro. O tema da humildade é onipresente entre aqueles que, sem dúvida, foram, com São Tomás, os dois maiores filósofos cristãos: Santo Agostinho, que viveu no Império romano, no século IV depois de Cristo, e Pascal, na França, no século XVII. Ambos fundamentam a crítica que fazem da filosofia — e eles nunca deixam de criticá-la, tanto que percebemos que, para eles, ela é a inimiga por excelência — no fato de que ela seria, por natureza, orgulhosa.

Podemos citar inúmeras passagens em que Agostinho, em especial, denuncia o orgulho e a vaidade dos filósofos que não quiseram aceitar que Cristo pudesse ser a encarnação do Verbo, do divino, que não admitiram a modéstia de uma divindade reduzida ao estatuto de humilde mortal, suscetível ao sofrimento e à morte. Como diz num de seus principais livros, A Cidade de Deus, dirigindo-se aos filósofos: “Os soberbos desdenharam de tomar esse Deus como senhor, porque o ‘Verbo se fez carne e habitou entre nós’”, e isso eles não podiam admitir. Por quê? Porque seria necessário que eles deixassem a inteligência e a razão no vestiário e as substituíssem pela confiança e pela fé.

Se você pensar bem, há, portanto, na religião, uma dupla humildade que se opõe de saída à filosofia grega, e que corresponde, como sempre, aos dois momentos da theoria, ao divino (theion) e ao ver (orao). Por um lado a humildade, se ouso dizer, “objetiva”, de um logos divino que fica “reduzido”, com Jesus, ao estatuto de modesto ser humano (o que parece muito pouco para os gregos). Por outro, a humildade “subjetiva” de nosso próprio pensamento que é obrigado pelos crentes a “se soltar”, a abandonar a razão para ter confiança, para dar lugar à fé. Nesse aspecto, nada é mais significativo do que os termos utilizados por Agostinho para caçoar dos filósofos:

Inchados de orgulho pela alta opinião que têm de sua ciência, eles não ouvem o Cristo quando diz: aprendei de mim porque sou manso e humilde de coração, e encontrareis repouso para vossas almas.

O texto fundador, aqui, se encontra no Novo Testamento, na primeira Epístola aos Coríntios, redigida por São Paulo. É um pouco difícil, mas terá tamanha posteridade, uma importância tão considerável no desenvolvimento da história cristã, que vale a pena lê-lo com atenção. Ele mostra como a ideia de encarnação do Verbo, a ideia, portanto, de que o logos divino se fez homem e que o Cristo é o Filho de Deus, é inaceitável, tanto para os judeus como para os gregos. Para os judeus, porque um Deus fraco, que se deixa martirizar e pregar na cruz sem reagir, parece desprezível e contrário à imagem do Deus deles, cheio de poder e cólera. Para os gregos, porque uma encarnação tão medíocre contradiz a grandeza do logos tal como a concebe a “sabedoria do mundo” dos filósofos estóicos. Aqui vai o texto:

Deus não tornou louca a sabedoria deste século? Com efeito, visto que o mundo por meio da sabedoria não reconheceu a Deus na sabedoria de Deus, aprouve a Deus pela loucura da pregação salvar aqueles que crêem. Os judeus pedem sinais, e os gregos andam em busca da sabedoria; nós, porém, anunciamos Cristo crucificado que para os judeus é escândalo, para os gregos é loucura, mas para aqueles que são chamados, tanto judeus como gregos, é Cristo poder de Deus e sabedoria de Deus. Pois o que é loucura de Deus é mais sábio do que os homens, e o que é fraqueza de Deus é mais forte do que os homens.

Paulo descreve a imagem, inaudita na época, de um Deus que não é mais grandioso: não é nem colérico, nem terrível, nem cheio de poder como o dos judeus, mas fraco e misericordioso a ponto de se deixar crucificar — o que, aos olhos do judaísmo da época, bastaria para provar que não tinha nada de divino! Mas ele também não é nem cósmico nem sublime como o dos gregos que, de modo panteísta, fazem dele a estrutura perfeita do Todo do universo. E é justamente esse escândalo e essa loucura que constituem sua força: é por sua humildade, e exigindo-a dos que vão crer nele, que ele vai se tornar o porta-voz dos fracos, dos pequenos, dos subalternos. Centenas de milhões de pessoas se reconhecem, ainda hoje, na estranha força dessa fraqueza.

Ora, é justamente isso o que, segundo os crentes, os filósofos não souberam aceitar. Voltarei ao assunto para que você possa avaliar a amplitude do tema da humildade religiosa oposta à arrogância filosófica. Está presente em toda A Cidade de Deus (livro X, capítulo 29), na qual Santo Agostinho se volta contra os filósofos mais importantes de seu tempo (no caso, discípulos tardios de Platão) que se recusam a aceitar que o divino tenha podido se fazer homem (o Verbo se tornar carne) exatamente quando o pensamento deles deveria, segundo Santo Agostinho, levá-los a concordar com os cristãos. Mas, para consentir nessa verdade, precisaríeis de humildade, virtude tão difícil de incutir em vossas cabeças altivas. O que há de inacreditável, sobretudo para vós, cujas doutrinas vos convidam mesmo a essa crença; o que há de inacreditável quando dizemos que Deus assumiu a alma e o corpo do homem?... Sim, por que as opiniões que são as vossas e que aqui vós combateis vos impedem de ser cristãos, senão porque o Cristo veio na humildade e que vós sois soberbos?

Onde encontramos a dupla humildade de que lhe falava há pouco: a de um Deus que aceita se “rebaixar” até se fazer homem entre os homens; a do crente que renuncia ao uso da razão para depositar toda a confiança na palavra de Jesus, e assim dar lugar à fé...

Como agora você percebe claramente, os dois momentos da theoria cristã, definição do divino, definição da atitude intelectual que permite entrar em contato com ele, são antípodas daqueles da filosofia grega a que Agostinho visa. É o que explica perfeitamente o quarto traço que eu gostaria de apresentar.

Quarto traço: nessa perspectiva que atribui primazia à humildade e à fé sobre a razão, o “pensar por meio de Outro” de preferência a “pensar por si mesmo” , a filosofia não vai desaparecer inteiramente, mas vai se tornar “serva da religião”. A fórmula aparece no século XI, na escrita de São Pedro Damião, teólogo cristão ligado ao papa. Ela terá enorme posteridade porque significa que a partir daquele momento, na doutrina cristã, a razão deve ser inteiramente submissa à fé que a conduz.

À pergunta “Existe uma filosofia cristã?” deve se dar uma resposta nuançada. É preciso dizer: não e sim.

Não, na medida em que as mais altas verdades são, no cristianismo, bem como nas grandes religiões monoteístas, o que chamamos de “Verdades elevadas”, quer dizer, verdades transmitidas pela palavra de um profeta, de um messias, no caso, pela revelação do próprio filho de Deus, o Cristo. É a esse título, em razão da identidade Daquele que as anuncia e revela, que essas verdades são objeto de adesão, de crença ativa. Poderíamos, então, ser tentados a dizer que não há mais lugar para a filosofia no seio do cristianismo, já que tudo o que é essencial se decide pela fé, de modo que a doutrina da salvação — vamos voltar a isso adiante — é inteiramente uma doutrina da salvação por Outro, pela graça de Deus e de modo algum por nossas próprias forças.

Em outro sentido, porém, pode-se, apesar de tudo, afirmar que resta uma atividade filosófica cristã, embora num lugar secundário, que não é o da doutrina da salvação propriamente dita. Para que serve ela nesse quadro onde é subalterna, mas por vezes importante?

Em diversas ocasiões, São Paulo acentua em suas epístolas: resta um duplo lugar para a razão e, consequentemente, para a atividade puramente filosófica. Por um lado, como você deve saber, se por acaso alguma vez abriu um dos Evangelhos, o Cristo sempre se exprime por símbolos e parábolas. Ora, sobretudo elas devem ser interpretadas, se quisermos absorver-lhes o sentido mais profundo. As parábolas do Cristo, mesmo tendo a particularidade, como as lendas orais e os contos de fadas, de falar para todos, não deixam de exigir um esforço de reflexão e de inteligência para que se consiga compreendê-las em profundidade. Essa será a nova tarefa da filosofia tornada serva da religião.

Mas não se trata apenas de ler as Escrituras. É necessário também descodificar a natureza, quer dizer, a “criação”, da qual uma abordagem racional deve ressaltar o fato de que ela “demonstra”, por assim dizer, a existência de Deus pela bondade e beleza de suas obras. Notadamente a partir de São Tomás, no século XIII, a atividade da filosofia cristã vai se tornar cada vez mais importante. Ela levará à elaboração daquilo que os teólogos vão chamar de “provas da existência de Deus”, particularmente a que consiste em tentar mostrar que, por ser o mundo perfeitamente bem-feito — no que os gregos não estavam totalmente errados —, é preciso admitir que existe um criador inteligente de todas essas maravilhas.

Não entro aqui em detalhes, mas agora você vê em que sentido se pode, ao mesmo tempo, dizer que existe e que não existe uma filosfia cristã. É claro que sobra pouco espaço para a atividade da razão que deve, fundamentalmente, interpretar as Escrituras e compreender a natureza, a fim de retirar dela ensinamentos divinos. Mas também, evidentemente, a doutrina da salvação não é mais apanágio da filosfia, e, embora em princípio não haja contradição entre elas, as verdades reveladas pela fé precedem as verdades da razão.

Daí, o quinto e último traço: por não ser mais a doutrina da salvação, mas apenas uma serva, a filosofia vai se tornar uma “escolástica”, quer dizer, no sentido literal , uma disciplina escolar, não mais uma sabedoria ou uma disciplina de vida. O ponto é absolutamente crucial, pois explica em grande parte que ainda hoje, no momento em que muitos pensam ter definitivamente deixado a era cristã, a maioria dos filósofos continua a rejeitar a ideia de que a filosofia possa ser uma doutrina da salvação ou até mesmo uma aprendizagem da sabedoria. No colégio, bem como na universidade, ela se tornou basicamente uma história das ideias acompanhada de um discurso reìexivo, crítico ou argumentativo. Nesse aspecto, ela continuou sendo uma aprendizagem puramente “discursiva” (quer dizer: da ordem exclusiva do discurso) e, nesse sentido, uma escolástica, contrariamente ao que era na Grécia antiga.

Ora, é incontestavelmente com o cristianismo que a ruptura se instaura, e que a filosofia deixa de chamar seu discípulo para participar da prática dos exercícios de sabedoria que constituíam o essencial no ensino das escolas gregas. E isso é perfeitamente compreensível, já que a doutrina da salvação, fundada na fé e na Revelação, não pertence mais ao domínio da razão. A partir daí, é natural que ela escape à filosofia. Esta vai, então, com frequência, se reduzir a um simples esclarecimento de conceitos, a um comentário erudito de realidades que a ultrapassam e lhe são, em todo caso, externas: filosofa-se sobre o sentido das Escrituras ou sobre a natureza como obra de Deus, mas não mais sobre as finalidades últimas da vida humana. Ainda hoje parece óbvio que a filosofia deve, ao mesmo tempo, partir e falar de uma realidade exterior a ela: é a filosofia das ciências, do direito, da linguagem, da política, da arte, da moral etc., mas quase nunca, sob pena de parecer ridícula ou dogmática, amor à sabedoria. Com raras exceções, a filosofia contemporânea, embora não seja mais cristã, assume, sem desconfiar, o estatuto servil e secundário a que a submeteu a vitória do cristianismo sobre o pensamento grego.

Pessoalmente, acho uma pena — e tentarei lhe dizer por quê, no capítulo dedicado à filosofia contemporânea.

Mas, por enquanto, vejamos como, baseado nessa nova theoria, ela mesma fundada numa concepção radicalmente inédita do divino e da fé, o cristianismo vai desenvolver também uma moral em ruptura, em vários pontos decisivos, com o mundo grego.

II. Ética: Liberdade, Igualdade, Fraternidade — o nascimento da ideia moderna de humanidade

Poderíamos esperar que o confisco do pensamento pela religião e a relegação da filosofia a segundo plano tivessem como consequência uma regressão no plano ético. Em muitos aspectos, pode-se pensar que aconteceu o inverso. O cristianismo vai trazer, no plano moral, pelo menos três novas ideias não gregas — ou não essencialmente gregas —, todas ligadas à revolução teórica que acabamos de ver em ação. Ora, essas ideias são de uma modernidade espantosa. Não podemos, de fato, conceber, mesmo com enorme esforço de imaginação, o quanto elas pareceram perturbadoras para os homens da época. O mundo grego era basicamente aristocrático, um universo hierarquizado no qual os melhores por natureza deviam, em princípio, estar “acima”, enquanto se reservavam aos menos bons os níveis inferiores. Não se esqueça de que a pólis grega se baseava na escravidão.

O cristianismo vai trazer até ela a noção de que a humanidade é fundamentalmente uma e que os homens são iguais em dignidade — ideia incrível na época, e da qual nosso universo democrático será em parte herdeiro. Mas essa ideia de igualdade veio de algum lugar e é importante compreender bem como a teoria que acabamos de ver em ação trazia em germe o nascimento desse novo mundo de igual dignidade dos homens.

Mais uma vez, para lhe apresentar as coisas do modo mais simples, vou me limitar a apontar três traços característicos da ética cristã, decisivos para sua boa compreensão.

Primeiro traço: a liberdade de escolha, o “livre-arbítrio”, se torna fundamento da moral, e a noção de igual dignidade de todos os seres humanos faz sua primeira aparição. Vimos em que sentido os grandes cosmólogos gregos tomavam a natureza como norma. Ora, a natureza é profundamente hierarquizada, quer dizer, desigual: para cada categoria de seres ela desenvolve gradações que vão desde a excelência mais sublime até a maior mediocridade. Com efeito, é evidente que somos, se nos colocarmos apenas sob o ponto de vista do natural, muito desigualmente dotados: mais ou menos fortes, rápidos, grandes, belos, inteligentes etc. Todos os dons naturais são suscetíveis de uma distribuição desigual. No vocabulário moral dos gregos, a noção de virtude está diretamente ligada às de talento ou dom naturais. A virtude é, antes de tudo, a excelência de uma natureza bem-dotada. Eis por que — para lhe dar um exemplo bem típico do pensamento grego — Aristóteles pode tranquilamente falar, num de seus livros dedicados à ética, de “olho virtuoso”. Para ele, isso significa apenas olho “excelente”, um olho que vê perfeitamente, que não é nem hipermetrope, nem míope.

Em outras palavras, o mundo grego é um mundo aristocrático, quer dizer, um universo que repousa inteiramente sobre a convicção de que existe uma hierarquia natural dos seres. Olhos, plantas ou animais, certamente, mas também homens: alguns são naturalmente feitos para comandar, outros, para obedecer — e é por isso, aliás, que a vida política grega se adapta, sem dificuldade, à escravidão.

Para os cristãos, e nisso eles anunciam as morais modernas das quais falarei no próximo capítulo, essa convicção é ilegítima, e falar de um “olho virtuoso” não tem nenhum sentido. Porque o importante não são os talentos naturais em si, os dons recebidos no nascimento. É claro, e quanto a isso não há dúvida, que eles são muito desigualmente repartidos entre os homens, e alguns, com certeza, são mais fortes e inteligentes do que outros, exatamente como existem, por natureza, olhos mais ou menos bons.

Mas, no plano moral, essas desigualdades não têm nenhuma importância. Porque importa apenas o uso que fazemos das qualidades recebidas no início, não as qualidades em si. O que é moral ou imoral é a liberdade de escolha, o que os filósofos vão chamar de “livre-arbítrio”, e, de modo algum, os talentos da natureza enquanto tais. Esse ponto pode lhe parecer secundário ou evidente. Na verdade, é literalmente extraordinário na época, pois, com ele, é todo um mundo que oscila. Para falar com clareza: com o cristianismo, saímos do universo aristocrático para entrar no da “meritocracia”, quer dizer, num mundo que vai, inicialmente e antes de tudo, valorizar não as qualidades naturais da origem, mas o mérito que cada um desenvolve ao usá-las. Assim, saímos do mundo natural das desigualdades para entrar no mundo artificial, no sentido em que é construído por nós, da igualdade. Pois a dignidade dos seres humanos é a mesma para todos, quaisquer que sejam as desigualdades de fato, já que ela repousa, desde então, na liberdade e não mais nos talentos naturais.

A argumentação cristã — que será retomada pelas morais modernas, inclusive as mais laicas — é, ao mesmo tempo, simples e forte.

Substancialmente, ela nos diz o seguinte: existe uma prova indiscutível de que os talentos herdados naturalmente não são intrinsecamente virtuosos, que não têm nada de moral em si mesmos, e que todos, sem exceção, podem ser utilizados tanto para o bem como para o mal. A força, a beleza, a inteligência, a memória etc., em resumo, todos os dons naturais, herdados no nascimento, são, com certeza, qualidades, mas não no plano moral, pois todos podem ser postos a serviço do pior ou do melhor. Se você utiliza sua força, inteligência ou beleza para realizar o crime mais abjeto, você demonstra por esse fato mesmo que os talentos naturais não têm absolutamente nada de virtuosos em si!

Porque apenas o uso que se faz deles pode ser chamado de virtuoso, como, aliás, indica uma das mais célebres parábolas do Evangelho, a parábola dos talentos. Você pode fazer dos seus dons naturais o uso que quiser, bom ou mau. Mas é o uso que é moral ou imoral, não os dons em si! Falar de um olho virtuoso se torna, portanto, um absurdo. Apenas uma ação livre pode ser chamada de virtuosa, não uma coisa da natureza. Assim é que a partir de então o “livre-arbítrio” é posto no princípio de todo julgamento sobre a moralidade de um ato.

No plano moral, o cristianismo opera, portanto, uma verdadeira revolução na história do pensamento, uma revolução que ainda se fará sentir até na grande Declaração dos Direitos do Homem, de 1789, cuja herança cristã, nesse aspecto, é indubitável. Pois, talvez, pela primeira vez na história da humanidade, é a liberdade e não mais a natureza que se torna o fundamento da moral.

Ao mesmo tempo, como eu dizia há pouco, a ideia de igual dignidade de todos os seres humanos faz sua primeira aparição: então, o cristianismo estará mais ou menos secretamente na origem da democracia moderna. Paradoxalmente, embora a Revolução Francesa seja por vezes fortemente hostil à Igreja, ela não deixa de dever ao cristianismo uma parte essencial da mensagem igualitária que vai contrapor ao Antigo Regime. Aliás, constatamos ainda hoje o quanto as civilizações que não conheceram o cristianismo têm dificuldade em dar à luz regimes democráticos, porque a ideia de igualdade, em especial, não é evidente para elas.

A segunda perturbação está diretamente ligada à primeira: consiste em estabelecer que, no plan o moral , o espírito é mais importante do que a letra, o “foro íntimo” mais decisivo do que a observância literal da lei da cidade, que é sempre uma lei exterior . Ainda há pouco evoquei a parábola dos talentos. Outro episódio dos Evangelhos pode servir como modelo: trata-se da famosa passagem em que o Cristo toma a defesa de uma mulher adúltera a quem a multidão, segundo o costume, se prepara para apedrejar. É certo que o adultério, o fato de enganar o marido ou a mulher, é considerado por todos naquela época como um pecado. Evidentemente existe uma lei que ordena que a mulher adúltera seja apedrejada. É essa a letra do código jurídico em vigor. Mas e o espírito, o “foro íntimo”? O Cristo se coloca à margem da multidão. Sai do círculo dos conformistas, daqueles que só pensam na aplicação estrita, mecânica da norma. E apela para as consciências, e lhes diz o seguinte: no fundo de suas consciências, vocês têm certeza de que está certo o que estão fazendo? E se vocês se examinassem, seriam capazes de se considerar melhores do que esta mulher que estão prestes a matar, e que talvez tenha pecado apenas por amor? Que aquele que nunca pecou lhe atire a primeira pedra... E todos aqueles homens, em vez de seguirem a letra da lei, olham para dentro de si mesmos para entender o sentido daquilo, para refletir, também, sobre seus próprios defeitos e começar a duvidar, a partir daí, de que eles pudessem ser juízes impiedosos...

Por aí talvez você possa avaliar tudo o que o cristianismo possui de inovador, não apenas em relação ao mundo grego, porém mais ainda em relação ao mundo judaico. É porque o cristianismo concede esse enorme lugar à consciência, ao espírito, mais do que à letra, que ele não vai impor praticamente nenhuma juridicidade à vida cotidiana. Os rituais despojados de sentido do tipo “peixe da sexta-feira” são invenções tardias, frequentemente do século XIX, que não têm nenhuma raiz nos Evangelhos. Você pode lê-los e relê-los, não encontrará nada, ou praticamente nada sobre o que se deve comer ou não, sobre o modo como deve ser o casamento, sobre os rituais que é preciso realizar para provar e se provar ainda que é um bom crente etc. Enquanto a vida dos judeus e dos muçulmanos ortodoxos é cheia de imperativos exteriores, de deveres referentes às ações a se realizar na cidade dos homens, o cristianismo se contenta em remetê-los a eles mesmos para que se descubra o que é bom ou não; remete-os ao espírito do Cristo e à sua mensagem, e não à letra cerimonial dos rituais que são respeitados sem que se preste atenção a eles...

Também nesse ponto essa atitude favorecerá consideravelmente a passagem para a democracia, o surgimento de sociedades laicas, não religiosas: na medida em que a moral se tornou, no que tange ao essencial, uma questão interior, ela tem ainda menos razão para entrar em conflito com as convenções exteriores. Pouco importa que se reze uma ou cem vezes ao dia, pouco importa que seja proibido ou não comer isto ou aquilo. Todas as leis, ou quase todas, são aceitáveis, desde que não ataquem o fundo, o espírito de uma mensagem crística que não tem nada a ver com o que comemos, com as roupas que vestimos ou com os rituais que respeitamos.

Terceira inovação fundamental: é simplesmente a ideia moderna de humanidade que entra em cena. Não é que ela seja desconhecida dos gregos ou de outras civilizações, é claro. Ninguém, sem dúvida, ignorava que existia uma “espécie humana”, diferente das espécies animais. Os estóicos, em especial, eram muito apegados à ideia de que todos os homens pertenciam à mesma comunidade. Eles eram, como se dirá depois, “cosmopolitas”.

Com o cristianismo, porém, a ideia de humanidade adquire uma dimensão nova. Fundada na igual dignidade de todos os seres humanos, ela vai assumir uma conotação ética que não possuía antes. E isso pela razão profunda que acabamos de ver juntos: uma vez que o livre-arbítrio é posto como fundamento da ação moral, uma vez que a virtude reside não nos talentos naturais que são distribuídos desigualmente, mas no uso que se decide fazer deles, numa liberdade em face da qual estamos todos em igualdade, então, é óbvio que todos os homens se equivalem. Pelo menos, é certo que de um ponto de vista moral — pois é evidente que os dons naturais continuam tão desigualmente distribuídos quanto antes. Mas, no plano ético, isso não tem nenhuma importância.

Fica transparente que, a partir daí, a humanidade não poderia ser dividida, segundo uma hierarquia natural e aristocrática, entre melhores e menos bons, entre superdotados e ineptos, entre senhores e escravos. Eis por que, segundo os cristãos, é preciso que se diga que somos todos “irmãos”, todos situados no mesmo patamar enquanto criaturas de Deus, dotadas das mesmas capacidades de escolher livremente o sentido de suas ações. Que os homens sejam ricos ou pobres, inteligentes ou néscios, bem-nascidos ou não, dotados ou não, não importa mais. A ideia de uma igual dignidade dos seres humanos vai levar a fazer da humanidade um conceito ético de importância primordial. Com ela, a noção grega de “bárbaro” — sinônimo de estrangeiro — tende a desaparecer em benefício da convicção de que a humanidade é UNA, ou não existe. No jargão filosófico, e aqui ele ganha todo o sentido, pode-se dizer que o cristianismo é a primeira moral universalista.

Apesar de tudo, a questão da salvação, como sempre, não segue a da moral, com a qual ela não se confunde. Ora, é justamente nesse campo, mais ainda talvez do que no da ética, que a religião cristã vai inovar de modo extraordinário, desferindo, assim, um golpe mortal na filosofia. É preciso dizer que em relação aos termos da questão inicial — grosso modo: como vencer as inquietações que a consciência da finitude suscita no homem — o cristianismo vem com força total. Enquanto os estóicos nos apresentavam a morte como a passagem de um estado pessoal a um estado impessoal, como uma transição do estatuto de indivíduo consciente para o de fragmento cósmico inconsciente, o pensamento cristão da salvação não hesita em nos prometer categoricamente a imortalidade pessoal.

Como resistir? Além do mais, essa promessa, como você vai ver, não é feita irrefletidamente, de modo superficial. Ao contrário, está integrada num dispositivo intelectual de imensa profundidade, no pensamento do amor e da ressurreição dos corpos, que, como se diz, é nota dez. De resto, se não fosse o caso, não se compreenderia por que a religião cristã teve um sucesso colossal, sempre confirmado até os dias de hoje.

publicado às 20:18

III. Sabedoria: uma doutrina da salvação pelo amor que nos promete, enfim, a imortalidade pessoal

O fundamento da doutrina cristã da salvação está diretamente ligado à revolução teórica que vimos em ação na passagem de uma concepção cósmica a uma concepção pessoal do logos, ou seja, do divino. Donde decorrem diretamente os três principais traços que lhe são mais característicos. Na apresentação do primeiro deles, você poderá avaliar plenamente como a doutrina cristã da salvação tinha argumentos bastante fortes para suplantar a dos estóicos.

Primeiro traço: se o logos , o divino, se encarna numa pessoa, a do Cristo, a providência muda de sentido. Ela deixa de ser, como era para os estóicos, um destino anônimo e cego, par a se tornar uma atenção pessoal e benigna, comparável à de um pai para com os filhos. Nessa medida, a salvação à qual podemos almejar se nos ajustarmos não mais à ordem cósmica, mas aos mandamentos dessa pessoa divina, será, também, pessoal. É a imortalidade singular que nos será prometida pelo cristianismo, e não mais uma espécie de eternidade anônima e cósmica na qual não somos senão um pequeno fragmento inconsciente de uma totalidade que nos engloba e ultrapassa.

Essa virada crucial é perfeitamente descrita desde a segunda metade do século II depois de Cristo (no ano de 160, para ser exato) numa obra do primeiro Pai da Igreja, São Justino. Trata-se de um diálogo com um rabino — sem dúvida Trifão — que Justino conheceu em Éfeso. O emocionante no livro de Justino é que ele escreve de modo incrivelmente pessoal para a época. Justino conhece bem a filosofia grega e se preocupa em situar a doutrina cristã da salvação, comparando-a com as principais obras de Platão, de Aristóteles e dos estóicos. Mas, sobretudo, ele conta, se ouso dizer, como “testou para nós” as diferentes doutrinas pagãs da salvação (hoje, diríamos “laicas”, não religiosas), como e por que ele foi sucessivamente estóico, aristotélico, pitagórico e fervoroso platônico antes de se tornar cristão. Seu testemunho é, pois, extremamente precioso para entendermos como, para um homem daquela época, a doutrina cristã da salvação podia ser sentida em relação àquelas que a filosofia tinha elaborado até então. É por isso que vale a pena lhe dizer em poucas palavras quem foi Justino e em que contexto ele publica o diálogo.

Ele pertence ao movimento dos primeiros cristãos que chamamos de “apologistas”. Na verdade, é seu principal representante no século II. De que se trata, e o que quer dizer a palavra “apologia”? Se você se lembra das aulas de história antiga, deve saber que, naquela época, no Império Romano, as perseguições aos cristãos ainda eram muito frequentes. Além das perseguições das autoridades romanas, o cristianismo provocava a hostilidade dos judeus, de modo que os primeiros teólogos cristãos escreveram “apologias” da religião, quer dizer, espécies de defesas dirigidas aos imperadores romanos, a fim de proteger a comunidade dos rumores que pesavam sobre o culto. De fato, acusavam-nos, erradamente, é claro, de todos os tipos de horrores que encontravam eco na opinião pública, entre outros, o de adorar um deus com cabeça de burro, fazer sacrifícios em ritos antropofágicos (praticar o canibalismo), cometer assassinatos rituais, entregar-se a todo tipo de devassidão, como o incesto, o que não tinha, evidentemente, nenhuma ligação com o cristianismo.

As apologias redigidas por Justino tinham como objetivo dar testemunho, para se opor a essa difamação, da realidade da prática cristã. A primeira, que data do ano 150, foi enviada ao imperador Antonino, e a segunda, a Marco Aurélio, aquele que, como você deve se lembrar, foi um dos maiores representantes do pensamento estóico. Aproveitando a ocasião, devo lembrar que não era proibido ser político e filósofo.

Na época, a lei romana ordenava que os cristãos não fossem perturbados, salvo se denunciados por pessoa “digna de confiança”. Foi um filósofo pertencente à escola dos cínicos, Crescêncio, que exerceu esse papel sinistro: adversário irredutível de Justino, invejoso da repercussão de seu ensino, fez com que ele fosse condenado junto com seus seis alunos, decapitados com ele, em 165... sob o reino do mais eminente entre os filósofos estóicos da época imperial, Marco Aurélio, o que é bastante emblemático. A narrativa do processo foi conservada. É o único documento autêntico que reporta o martírio de um pensador cristão na Roma do século II.

É, portanto, particularmente interessante ler o que declara Justino diante dos estóicos que vão executá-lo. O pomo da discórdia, no fundo, diz respeito à doutrina da salvação e corresponde ao que já vimos. Se o Verbo é encarnado, a providência muda totalmente de sentido: de anônima e impessoal, como era para os estóicos, torna-se pessoal não apenas devido Àquele que a exerce, mas também para aquele a quem ela se dirige. Assim sendo, de acordo com Justino, a doutrina cristã da salvação é de longe superior à dos estoicos, bem como a imortalidade consciente de uma pessoa individual, singular, é superior à de um fragmento inconsciente do cosmos:

Certamente — escreve ele — os pensadores gregos tentam nos convencer de que Deus cuida do universo, dos gêneros e das espécies como um todo. Mas a mim, a ti, a cada um em particular, não é o que acontece, pois, de outro modo, não rezaríamos a ele dia e noite!

O destino implacável e cego dos Antigos cede lugar à sabedoria benigna de uma pessoa que nos ama como pessoa, nos dois sentidos da expressão. É assim que o amor se torna a chave da salvação.

Como você vai ver, não se trata de um amor qualquer; trata-se do que os filósofos cristãos vão chamar de “amor em Deus”. Uma vez mais precisamos compreender o que designa a expressão, a fim de perceber em que ponto essa forma de amor vai não apenas se distinguir das outras, mas também nos permitir alcançar a salvação — quer dizer, ultrapassar o medo da morte e, se possível, a própria morte.

Segundo traço: o amor é mais forte que a morte. Talvez você me pergunte que ligação pode haver entre o sentimento do amor e o debate sobre o que pode nos salvar da finitude e da morte. Você tem razão. Não é evidente, a priori. Para compreender isso, o mais simples é partir da ideia de que, na verdade, existem três figuras do amor, que formam como que um “sistema” coerente, uma configuração que esgotaria todas as possibilidades.

Há um amor que poderíamos chamar de “amor-apego”: é o que experimentamos quando nos sentimos, como se diz tão bem, ligados a alguém a ponto de não poder imaginar a vida sem esse alguém. Pode-se conhecer esse amor tanto em relação à família quanto em relação a alguém por quem nos apaixonamos. É uma das faces do amor-paixão. Ora, nesse ponto, os cristãos se aproximam dos estóicos e dos budistas por pensarem que esse amor é o mais perigoso, o menos sábio de todos. Não é apenas porque com ele corremos o risco de nos afastar dos verdadeiros deveres para com Deus, mas, sobretudo, porque, por definição, ele não suporta a morte, não tolera rupturas e mudanças, embora elas sejam inevitáveis. Além do fato de ser de modo geral possessivo e ciumento, o amor-apego nos prepara os piores sofrimentos que existem. Já havíamos evocado esse raciocínio; por isso, não o desenvolvo.

No extremo oposto, encontra-se o amor ao próximo em geral, o que se chama também de “compaixão”: é o que nos leva a cuidar até daqueles que não conhecemos quando estão em desgraça, o que vemos ainda hoje tanto nos gestos da caridade cristã quanto no universo, embora muitas vezes ateu, da ação caridosa ou, como se diz, “humanitária”. A esse respeito, você notará que, curiosamente, apesar de ser quase a mesma palavra, o prochain, o “próximo”, é o contrário perfeito do proche, do “achegado”: o próximo é o outro em geral, o anônimo, aquele a quem não se é apegado, que mal conhecemos, ou não conhecemos, e a quem ajudamos, por assim dizer, por dever; enquanto o achegado, no mais das vezes, é o principal objeto do amor-apego.

Em seguida, a igual distância dessas duas faces do amor, há o “amor em Deus”. Ora, é ele e apenas ele que vai ser a fonte última da salvação, é ele e apenas ele que, para os cristãos, vai se revelar mais forte do que a morte.

Examinemos mais detalhadamente essas definições do amor, pois elas são tanto mais interessantes quanto atravessaram os séculos e continuam tão presentes quanto eram na época em que foram criadas. Comecemos retomando as críticas do amor-apego para avaliar bem em que o cristianismo vai se encontrar, nesse ponto, com alguns grandes temas do estoicismo e do budismo, antes de novamente se afastar deles.

Você se lembra de que o estoicismo, que nisso se aproxima do budismo, considera o medo da morte o pior entrave à vida bem-aventurada. Ora, essa angústia evidentemente não deixa de ter ligação com o amor. Podemos dizer que existe uma contradição aparentemente intransponível entre o amor, que leva quase que obrigatoriamente ao apego, e a morte, que é separação. Se a lei deste mundo é a da finitude e da mudança; se, como dizem os budistas, tudo é “impermanente”, quer dizer, perecível e mutável, é pecar por falta de sabedoria apegar-se às coisas ou aos seres que são mortais. Não é que se deva cair na indiferença, é claro, o que nem os estoicos nem os budistas recomendariam. A compaixão, a benevolência e a solicitude para com os outros, até mesmo para com todas as formas de vida, devem ser a regra ética mais elevada de nosso comportamento. Mas a paixão, no mínimo, não é conveniente para o sábio, e os laços familiares, quando se tornam muito “apertados”, devem ser, se necessário, afrouxados.

É por isso também que, como o sábio grego, o monge budista tem interesse em viver tanto quanto possível em certa solidão. Aliás, a palavra “monge” vem do grego monos, que quer dizer “solitário”. E é na solidão que a sabedoria pode desabrochar, sem ser estragada pelos tormentos relativos a todas as formas de apego, quaisquer que eles sejam. De fato, é impossível ter mulher ou marido, ëlhos ou amigos sem se apegar a eles. É preciso preterir esses laços se quisermos vencer o medo da morte. Como afirma à saciedade a sabedoria budista,

a condição ideal para morrer é ter abandonado tudo, interna e externamente, a ëm de que haja, no momento essencial, o menos possível de vontade, o menos de desejo e de apego ao qual o espírito possa se agarrar. Por isso, antes de morrer, deveríamos nos libertar de todos os bens, amigos e família. 17

Propósito que, certamente, não pode ser realizado no último momento, pois exige toda uma vida anterior de sabedoria.

Já nos referimos a esses temas e não voltarei mais longamente a eles. Gostaria apenas que você observasse bem que, desse ponto de vista, a argumentação cristã se liga, pelo menos num primeiro momento, à das sabedorias antigas.

Como diz o Novo Testamento (Epístola aos Gálatas, VI, 8):

Quem semear na sua carne, da carne colherá corrupção; quem semear no espírito, do espírito colherá a vida eterna.

Santo Agostinho, na mesma linha, condena aqueles que se apegam por amor às criaturas mortais:

Procurais uma vida feliz na região da morte: não a encontrareis ali. Pois, como encontrar a vida feliz onde nem sequer há vida? 18

O mesmo se encontra em Pascal, que expõe de modo luminoso, num fragmento dos Pensamentos (471), as razões pelas quais é indigno não apenas apegar-se aos outros, mas até mesmo permitir que alguém se apegue a si. Eu o aconselho a ler toda esta passagem extremamente reveladora da argumentação cristã desenvolvida contra os apegos por seres finitos e mortais, portanto, decepcionantes em algum momento:

É injusto que se apeguem a mim, embora o façam com prazer e voluntariamente. Eu iludiria aqueles em quem eu despertasse desejo, pois não sou o fim de ninguém e não tenho com o que satisfazê-los. Não estou eu pronto a morrer? E assim, o objeto do apego dessas pessoas morrerá. Logo, quando não seria eu culpado por fazer crer numa falsidade, embora eu a adoçasse e acreditasse nela com prazer, e que ela me desse prazer; ainda assim sou culpado de me fazer amar. E se atraio as pessoas para que se apeguem a mim, devo advertir aqueles que estariam prontos a consentir na mentira de que não devem acreditar, qualquer que seja a vantagem que daí me advenha; e, da mesma forma, de que não devem se apegar a mim, pois é preciso que vivam a vida e seus cuidados agradando a Deus ou procurando-o.

Exatamente no mesmo sentido Agostinho conta em suas Confissões como, quando jovem e ainda não cristão, teve o coração literalmente partido ao se prender a um amigo que a morte levou bruscamente. Toda a sua infelicidade era consequência da falta de sabedoria relacionada aos apegos a seres perecíveis:

De onde vinha aquela aflição que tão facilmente penetrou em meu coração, senão de haver disposto minha alma sobre a instabilidade da areia movediça, amando uma pessoa mortal como se ela fosse imortal?

Essa é a desgraça a que se destinam todos os amores humanos quando são por demais humanos e não procuram no outro senão os “testemunhos de afeição” que nos valorizam, nos tranquilizam e satisfazem apenas ao nosso ego:

É o que transforma em amargura as doçuras de que antes gozávamos. É o que afoga nosso coração em lágrimas, e faz com que a perda da vida daqueles que morrem se torne a morte daqueles que ficam vivos.

É preciso, pois, resistir aos apegos quando são exclusivos, já que “tudo perece neste mundo, tudo está sujeito ao declínio e à morte”. Quando se trata de criaturas mortais, é preciso que:

minha alma não se apegue a esse amor que a mantém cativa quando ela se abandona aos prazeres dos sentidos. Porque, como criaturas perecíveis que passam e correm para o próprio fim, ela é dilacerada pelas diversas paixões que sente por elas e que a atormentam incessantemente; porque a alma, desejando naturalmente repousar sobre aquilo que ama, não pode repousar em coisas passageiras, já que essas não têm subsistência e vivem num fluxo e num movimento perpétuo. 19

Não há como dizer melhor. E o sábio estóico e o budista poderiam, na minha opinião, assinar essas palavras de Agostinho.

Mas quem disse que o homem é mortal? Aí reside fundamentalmente toda a inovação da interrogação cristã. Muito bem, não podemos nos apegar ao que é passageiro. Mas por que não me prenderia ao que não passa? A recíproca se destaca como uma lacuna no raciocínio: se o objeto de meu apego não fosse mortal, em que aspecto seria ele culpado ou desarrazoado? Se meu amor fosse dirigido à eternidade no outro, por que não deveria ele me prender?

Estou certo de que você já sabe aonde quero chegar: toda a originalidade da mensagem cristã reside justamente na “boa-nova” da imortalidade real, quer dizer, da ressurreição, não apenas a das almas, mas a dos corpos singulares, das pessoas como tais. Quando se afirma que os humanos são imortais desde que respeitem os mandamentos de Deus, desde que vivam e amem “em Deus”; quando se estabelece que essa imortalidade não apenas é compatível com o amor, mas que é um de seus efeitos possíveis, então, por que se privar disso? Por que não nos apegarmos aos nossos próximos, se o Cristo promete que vamos reencontrá-los após a morte biológica e nos comunicar com eles numa vida eterna, desde que tenhamos ligado nossos atos a Deus nesta vida?

Assim, entre o amor-apego e a simples compaixão universal, que jamais poderia prender-se a um ser singular, abre-se espaço para uma terceira forma de amor: amor “em” Deus das criaturas, elas mesmas eternas. É aí que Agostinho certamente quer chegar: Senhor, bem-aventurado aquele que vos ama e ama seu amigo em vós, e seu inimigo por amor a vós. Pois só não perde nenhum de seus amigos aquele que só ama alguém Naquele que não se pode perder nunca. E quem é Ele, senão nosso Deus... Só vos perde, Senhor, aquele que vos abandona.

Podemos acrescentar, segundo essas palavras, que ninguém perde os seres singulares que ama, a não ser aquele que deixa de amá-los em Deus, quer dizer, naquilo que têm de eterno, porque ligado ao divino e protegido por ele.

Admita que a promessa é, no mínimo, tentadora. Ela vai encontrar sua forma acabada no último extremo da doutrina cristã da salvação, ou seja, na doutrina, única entre todas as religiões, da ressurreição, não só das almas, mas também dos corpos.

Terceiro traço: uma imortalidade enfím singular. A ressurreição dos corpos como ponto culminante da doutrina cristã da salvação. No ponto em que, para o sábio budista, o indivíduo não é nada mais que uma ilusão, um agregado provisório destinado à dissolução e à impermanência, no ponto em que, para o estóico, o eu é destinado a se fundir na totalidade do cosmos, o cristianismo promete, ao contrário, a imortalidade da pessoa singular. Com sua alma, é certo, mas, sobretudo, com seu corpo, seu rosto, sua voz animada, já que essa pessoa será salva pela graça de Deus. Eis aí uma promessa tanto mais original, tanto mais aliciante — eu ousaria dizer — quanto é por amor, não apenas a Deus, não apenas ao próximo, mas também aos achegados, que se ganha a salvação! Assim, o amor — e todo o milagre cristão reside nisso, todo o seu poder de sedução também —, de problema que era para os budistas e estoicos (amar é se preparar para os piores sofrimentos que possam existir), se torna, por assim dizer, solução para os cristãos. Contanto que não seja exclusivo de Deus, mas, ao contrário, tendo como objeto criaturas singulares, pessoas, não faltará amor “em Deus”, ou seja, amor ligado a ele e dirigido sobre o que, na pessoa amada, permanece.

Eis por que Agostinho, depois de ter feito uma crítica radical do amor-apego em geral, não o exclui quando seu objeto é divino, do próprio Deus, certamente, mas também das criaturas em Deus, já que elas mesmas escapam à ënitude para entrar na esfera da eternidade:

Se as almas te agradam, ama-as em Deus, porque elas são errantes e mutáveis em si mesmas, e ëxas e imóveis Nele, de quem elas obtêm toda a solidez de sua existência, e sem o qual elas desmoronariam e pereceriam... Segurai-vos ërmemente Nele, e sereis inabaláveis. 20

A esse respeito, não há nada mais impressionante do que a serenidade com a qual Agostinho evoca os lutos que sofreu, não mais antes da conversão ao cristianismo, mas depois, começando pela morte da mãe de quem era, contudo, muito próximo: Algo semelhante acontece em meu coração onde o que era fraqueza e pertencia à infância, entregando-se ao pranto, era reprimido pela força da razão, e se calava. Pois não acreditávamos que fosse justo acompanhar seu funeral com lágrimas, lamentos e suspiros, porque dele nos servimos habitualmente para deplorar a infelicidade dos mortos, como se fosse seu total aniquilamento: em vez disso, a morte de minha mãe não era desgraça, ela ainda estava viva na principal parte de si mesma. 21 Nesse mesmo sentido, Agostinho não hesita em evocar “a aventurada morte de dois amigos” muito queridos, mas que ele teve a felicidade de ver convertidos a tempo, e que puderam, consequentemente, beneficiar-se da “ressurreição dos justos”. 22 Como sempre, Agostinho encontra a palavra certa, pois é a ressurreição que, em última instância, inaugura a terceira forma de amor que é o amor em Deus. Nem apego às coisas mortais, pois ele é funesto e condenado aos piores sofrimentos — e nesse ponto, budistas e estoicos têm razão —, nem compaixão vaga e generalizada por esse tão falado “próximo” que designa deus e o mundo, mas amor apegado, carnal e pessoal por seres singulares, achegados, e não apenas próximos, desde que esse amor se realize “em Deus”, quer dizer, numa perspectiva de fé que fundamenta a possibilidade de uma ressurreição.
Daí o laço indissolúvel entre amor e doutrina da salvação. É por e no amor em Deus que o Cristo se revela, fazendo “morrer nossa morte” e “tornando imortal a carne mortal”, 23 o único que nos promete que nossa vida de amor não se acabará com a morte terrestre.

Não tenha dúvida de que, evidentemente, a ideia da imortalidade dos seres já estava presente sob múltiplas formas em inúmeras ëlosoëas e religiões anteriores ao cristianismo.

Todavia, a ressurreição cristã oferece a particularidade única de associar estreitamente três temas fundamentais para a doutrina da bem-aventurança: o da imortalidade pessoal da alma, o de uma ressurreição dos corpos — da singularidade dos rostos amados —, o da salvação pelo amor, até mesmo o mais singular, desde que seja amor “em” Deus. É assim que ela constitui o ponto nodal de toda a doutrina cristã da salvação. Sem ela — que de modo signiëcativo, nos Atos dos Apóstolos, é chamada de “boa-nova” —, toda a mensagem do Cristo desabaria, como afirma claramente no Novo Testamento a Primeira Epístola aos Coríntios (XV, 13-15):

Ora, se se prega que Cristo ressuscitou dos mortos, como podem alguns dentre vós dizer que não há ressurreição dos mortos? Se não há ressurreição dos mortos, também Cristo não ressuscitou. E se Cristo não ressuscitou, vazia é a nossa pregação, vazia também é a nossa fé.

A ressurreição é, por assim dizer, o alfa e o ômega da soteriologia cristã: ela é encontrada não apenas ao termo da vida terrestre, mas também em seu começo, conforme testemunha a liturgia do batismo considerada como primeira morte (simbolizada pela imersão) e primeira ressurreição para a vida autêntica, a da comunidade dos seres prometidos à eternidade e, assim, amáveis de um amor que poderá, sem se perder, ser singular.

Não se pode deixar de insistir: não é só a alma que é ressuscitada, mas também a “dicotomia corpo-alma”, logo, a pessoa singular enquanto tal. Quando, depois de sua morte, Jesus reaparece diante dos discípulos, ele lhes pede que não tenham mais dúvidas, que o toquem, e, como prova de sua “materialidade”, pede um pouco de alimento, que come diante deles:

E se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos habita em vós, aquele que ressuscitou Cristo Jesus dentre os mortos dará vida também a vossos corpos mortais, mediante o seu Espírito que habita em vós. (Epístola aos Romanos 8, 11.) Que a coisa seja difícil, até mesmo impossível de se imaginar (com que corpo vamos renascer? Com que idade? O que quer dizer com corpo “espiritual”, “glorioso” etc.?), que ela certamente faça parte dos mistérios insondáveis de uma Revelação que, nesse aspecto, ultrapassa em muito para os cristãos os poderes de nossa razão não muda nada. O ensinamento da doutrina cristã não deixa nenhuma dúvida.

Contrariamente a uma ideia que você ouvirá repetidas vezes dos ateus hostis à religião cristã, esta não se dedica inteiramente ao combate ao corpo, à carne, à sensualidade. Senão, como teria ela aceitado que o divino se tornasse carne na pessoa do Cristo, que o logos assumisse o corpo material de um simples ser humano? Mesmo o catecismo oficial da Igreja, texto que não pode ser chamado de extravagante, insiste:
A carne é o eixo da salvação. Cremos em Deus que é o criador da carne; cremos no Verbo feito carne para redimir a carne; cremos na ressurreição da carne, consumação da criação e da redenção da carne... Cremos na verdadeira ressurreição desta carne que possuímos agora. 24

Não se deixe, pois, impressionar por aqueles que atualmente denigrem e deformam a doutrina cristã. É possível não ser crente — afinal, e para ser franco, eu mesmo não sou crente —, nem por isso se pode dizer que o cristianismo seja uma religião inteiramente voltada para o desprezo da carne. Porque é simplesmente inexato.

Assim, é nesse ponto último da doutrina cristã da salvação que você pode facilmente compreender como foi possível que ela prevalecesse, quase que incondicionalmente, sobre a filosofia, durante perto de 15 séculos.

A resposta cristã, pelo menos caso se acredite nela, é seguramente a mais “eficaz” de todas. Se o amor e mesmo o apego não são excluídos, já que se sustentam no que há de divino no humano — e, como vimos, é o que Pascal e Agostinho admitem —, se os seres singulares, não os próximos, mas os achegados, são parte integrante do divino, já que são salvos por Deus e chamados a uma ressurreição também singular, a soteriologia cristã surge como a única que nos permite vencer não apenas o medo da morte, mas a própria morte. Agindo de modo singular, e não anônimo ou abstrato, só a resposta cristã apresenta aos homens a boa-nova, por fim efetivamente realizada, de uma vitória da imortalidade pessoal sobre nossa condição de mortais.

Para os gregos, e particularmente para os sofistas, o temor da morte era finalmente vencido no momento em que o sábio compreendia que ele próprio era parte, uma parte ínfima, sem dúvida, mas real, da ordem cósmica eterna. Era nessa qualidade, por adesão ao logos universal, que ele conseguia pensar a morte como simples passagem de um estado a outro — e não como desaparecimento radical e definitivo. Não é menos verdade que a salvação eterna, assim como a providência, e pelas mesmas razões que ela, permanecia impessoal. É enquanto fragmentos inconscientes de uma perfeição ela mesma inconsciente que podíamos pensar em nós como eternos, não enquanto indivíduos.

A personalização do logos muda todos os dados do problema. Se as promessas que são feitas pelo Cristo, esse Verbo encarnado, que testemunhas fidedignas viram com seus próprios olhos, são verídicas, se a providência divina me assume enquanto pessoa, por mais humilde que seja, então, minha imortalidade será também pessoal. É então a própria morte, e não apenas os medos que ela provoca em nós, que finalmente é vencida. A imortalidade não é mais a do estoicismo, anônima e cósmica, mas a individual e consciente da ressurreição das almas acompanhadas de seus corpos “gloriosos”. Essa é a dimensão do “amor em Deus” que vem conferir um sentido último à revolução operada pelo cristianismo nos termos do pensamento grego. É esse amor, que se encontra no seio da nova doutrina da salvação, que se revela, ao final, “mais forte do que a morte”. Como e por que essa doutrina cristã começa a declinar com o Renascimento? Como e por que a filosofia conseguiu sobrepor-se à religião a partir do século XVII? E o que vai propor em seu lugar? Eis aí toda a questão do nascimento da filosofia moderna, a mais apaixonante que há, sem dúvida, e que vamos agora abordar.

(Luc Ferry - Aprender a Viver)

NOTAS:
17 Sogyal, Rinpoché. Le Libre Tibétain de la Vie et de la Mort , Paris, La Table Ronde, 1993, p. 297. [SOGYAL, Rinpoché. O Livro Tibetano do Viver e do Morrer . Tradução de Luiz Carlos Lisboa. São Paulo: Talento/Palas Athena, 1999.]
18 Confissões, livro IV, capítulo 12.
19 Confissões, livro IV, capítulo 10.
20 Confissões, livro IV, capítulo 12.
21 Confissões, livro IX, capítulo 12.
22 Ibid., livro IX, capítulo 3.
23 Ibid.
24 Catecismo da Igreja Católica, § 1.015-1.017. F

publicado às 20:16


Fortalecendo seus Músculos Sexuais

por Thynus, em 29.07.16
Certamente você sabe o que é um pênis. E se você é um homem, você ainda vai vê-lo todos os dias. Todo mundo sabe que no corpo é uma parte importante do sistema reprodutor masculino: com a sua ajuda o homem vai urinar e copular.
Basicamente, o pênis é composto de tecido erétil. Quando o pênis endurece e aumenta de tamanho, começa a trabalhar como um órgão sexual, através do contato sexual o esperma entra em uma mulher, o que leva ao nascimento da criança.
Então, como a biologia terminou. Agora vamos falar sobre a etimologia. Cada palavra que usamos no discurso, tem as suas raízes. A palavra "pênis" - não é exceção: ele veio até nós a partir da língua latina. Em latim "pênis" significa "cauda".
  
 
pincel  –  do Latim penicillus, “pincel”, literalmente “pequena cauda”, diminutivo de peniculus, que já é um diminutivo de penis, “cauda”.
O nome do antibiótico penicilina deriva de penicillus, já que o fungo de onde ele é extraído lembra um pouco a forma de um pincel.


Está na hora de aumentar a sua força sexual. O músculo da região pubiana, o músculo PC (o pubococcígeo), que mencionamos no capítulo anterior, é uma trança muscular que se estende desde o osso púbico (na frente) até a extremidade da espinha, ou seja o cóccix (nas costas). Muitos homens sentem o músculo PC no períneo, bem atrás de seus testículos e na frente do ânus. Este é o músculo que você usa para deter a urina quando você não encontra um banheiro. O músculo PC é também responsável pelas contrações rítmicas da pelve e do ânus durante o orgasmo.
Exercícios para fortalecer os músculos do PC
 No livro The G Spot (O Ponto G), Ladas, Whipple e Perry descrevem a importância do músculo PC: "Os homens que conseguirem aumentar a força de seu músculo PC, também podem aprender a tornarem-se multiorgasmáticos e, conseqüentemente, a separar o orgasmo da ejaculação." O orgasmo começa na próstata, logo, é essencial aprender como apertá-la com a ajuda de seus músculos pélvicos. Ao fazer esta pressão, além de atingir mais e melhores orgasmos, você irá prevenir dores e inchaço, além de evitar, ou curar, problemas da próstata.
O músculo PC (que circunda a próstata) serve como uma válvula em volta dos genitais, a qual aprenderá a contraí-la. Você sente esse músculo trabalhando quando está tentando expulsar aquelas últimas gotas de urina. Em contrapartida, as mulheres sentem mais quando estão parindo. As mulheres que têm o músculo PC fortalecido conseguem prender o pênis do homem na vagina firmemente, aumentando o prazer para ambos.
O músculo PC é também responsável pelo balançar dos rabos dos animais. Apenas como curiosidade, a palavra pênis literalmente significa "rabo" em latim. Então o que você vai aprender fazendo estes exercícios é "balançar o seu rabo", fortalecer suas ereções, intensificar seus orgasmos e a separar os orgasmos da ejaculação.

INTERROMPENDO O FLUXO DA URINA
O meio mais fácil de encontrar o seu músculo PC é, na próxima vez que for ao banheiro, interromper o fluxo da urina contraindo bem os músculos da pelve. Interromper o seu xixi foi um dos primeiros atos que você aprendeu para controlar as vontades de seu organismo. Ao usar sua capacidade de controlar o fluxo da urina, você, conseqüentemente, irá controlar a sua ejaculação, porque os canais urinário, ejaculatório e o da vesícula seminal passam através da próstata. (Quando o homem tem a próstata aumentada, tem problemas para urinar e para ejacular.)

Interrompendo o Fluxo da Urina
1. Quando você estiver quase para urinar, fique nas pontas dos pés. Se necessário, pode até usar uma parede como apoio.
2. Inspire profundamente.
3. Expire lentamente, forçando a urina a sair enquanto contrai o períneo, cerrando os dentes.
4. Inspire e contraia o músculo PC para deter a urina no meio do fluxo.
5. Expire e recomece a urinar.
6. Repita os passos 4 e 5, três a seis vezes ou até que você tenha terminado de urinar.

ESVAZIANDO A SUA BEXIGA
Devido à sua bexiga e à próstata estarem muito próximas, você deve urinar antes de se masturbar ou de fazer amor. A bexiga cheia fará você sentir necessidade de ejacular e, sendo assim, será mais difícil para quando quiser interromper a sua ejaculação.
Se você tem o músculo PC fortalecido, há possibilidades de conseguir parar no meio o fluxo da urina e depois começar de novo. Se você não é capaz disso, é porque este seu músculo está fraco. No início, interromper o fluxo da urina pode doer. Isto é perfeitamente normal e deve parar em poucas semanas, a menos que, por alguma razão, você esteja com uma infecção, o que exige a suspensão da prática e a ida ao médico para tratamento.
Se o seu músculo ficar dolorido, você só precisa praticar mais. Contrair o períneo enquanto expulsa a urina ajuda você a urinar com mais força e a revigorar os seus rins, a glândula da próstata e a bexiga, e também o músculo PC.
Ainda que ficar nas pontas dos pés e cerrar os dentes ajudem a reforçar o seu exercício, a parte mais importante dessa prática é simplesmente parar e começar a urinar 9uantas vezes puder. Um homem multiorgasmático descreveu deste jeito a sua "prática do xixi": "Mesmo que eu vá ao banheiro agora, eu tento parar e recomeçar pelo menos três vezes. E se eu não estou com pressa, tento parar e recomeçar, parar e recomeçar, algumas vezes, talvez, cinco, seis ou até sete vezes."

CONTRAÇÕES DO MÚSCULO PC
A importância do músculo PC foi descoberta no Ocidente, nos anos 40, pelo ginecologista Arnold Kegel. Ele desenvolveu os famosos exercícios Kegel, que ajudam muitas mulheres grávidas a controlar suas bexigas a fim de facilitar o parto. As mulheres descobriram que esses exercícios não só aumentavam seu apetite sexual e intensificavam o seu orgasmo como as tornavam multiorgasmáticas. Fortalecer esse músculo, conforme mencionamos anteriormente, tem a mesma importância tanto para a saúde pélvica quanto para o prazer sexual do homem.
Há muitos outros e diferentes exercícios que vêem sendo ensinados no Ocidente para fortalecer o músculo PC, e muitos deles são adaptações da técnica original de Kegel. Todos ensinam a contrair e a relaxar o músculo, independente do número de repetições e da quantidade de vezes sugeridas para segurar essas variadas contrações. O exercício a seguir está baseado na sabedoria taoísta, a qual diz que os músculos que cercam o corpo (incluindo os músculos em volta dos olhos, da boca, do períneo e do ânusj estão todos ligados. Ao contrair os músculos em volta dos olhos e da boca, você pode aumentar a intensidade do exercício das Contrações do Músculo PC. No início, é mais fácil fazer este exercício sentado. Mais tarde, você poderá fazê-lo de pé ou deitado.

Contrações do Músculo PC
1. Inspire e concentre-se na sua próstata, períneo e ânus.
2. À medida que você expira, contraia o músculo PC em volta da próstata e do ânus e, ao mesmo tempo, os músculos em volta dos olhos e da boca.
3. Inspire e relaxe, soltando os músculos PC, dos olhos e da boca.
4. Repita os passos 2 e 3, contraindo os músculos à medida que expira e relaxando-os quando inspira, de nove a trinta e seis vezes. Embora essa contração dos olhos e boca ajude você a comprimir o músculo PC em volta da próstata e do ânus, a parte mais importante deste exercício é simplesmente contrair e relaxar o músculo PC o,máximo que puder, o que você pode fazer em qualquer lugar - seja dirigindo, vendo TV, mandando um fax, ou simplesmente em um encontro nada interessante. Você pode contar quantas contrações pode fazer enquanto estiver diante do sinal vermelho no trânsito, ou pode segurar uma única contração até que o sinal fique verde.
Tente fazer o exercício pelo menos duas a três vezes ao dia; a não ser que queira fazer mais vezes, mas seus músculos poderão vir a doer. Não se esforce demais; aumente o número e a freqüência gradualmente.
A continuidade é mais importante do que a quantidade. Uma maneira de desenvolver uma rotina diária é integrar o seu exercício aos eventos do dia, como levantar cedo, tomar um banho ou deitar-se à noite na cama.
Segundo os autores do The G Spot (O Ponto G), um homem com um músculo PC sadio consegue suspender e abaixar uma toalha pendurada no seu pênis ereto apenas contraindo esse músculo. (Nas práticas mais avançadas do taoísmo, você pode até aprender a usar pesos para fortalecer seus músculos pélvicos.)
Com certeza, você pode estar querendo tentar o exercício da toalha, mas por favor, evite uma platéia. Como os autores corretamente afirmam, "'a ansiedade por uma performance' é a arquiinimiga da ereção masculina".

(Douglas Abrams & Mantak Chia - O Orgasmo Múltiplo do Homem, Os Segredos do Prazer Prolongado)

publicado às 08:36


Moral ou ética

por Thynus, em 23.07.16
.
Ética e Moral, dois conceitos de uma mesma realidade
 
Antes de tudo, um esclarecimento: do ponto de vista da história da filosofia, a diferença entre moral e éti ca é a mesma que existe entre mesa e table. Moral é a tradução latina para a palavra grega original ética. Vou usar as duas como sinônimos. Apesar disso, vale a pena esclarecer o que as pessoas têm em mente quando assumem que existe uma diferença entre elas.
Para a maioria, ética é o campo das normas de conduta, enquanto moral é a parte da filosofia que reflete sobre hábitos e costumes. Ambas são as duas coisas ao mesmo tempo, porque faz parte da refle xão sobre hábitos e costumes pensar sobre as nor mas que devem regrar esses hábitos e costumes. E mais: não existem hábitos e costumes que não sejam permeados de normas, muitas vezes quase automáticas ou espontâneas.
O que são hábitos e costumes? Generosidade, coragem, justiça, disciplina, entre outros. Para Aristóteles, os bons hábitos e costumes (as tais virtudes) deveriam ser praticados a ponto de se tornarem uma segunda natureza, portanto automáticos ou espontâneos, como eu dizia acima. A escola moral mais antiga é a de Aristóteles, conhecida como moral das virtudes ou do caráter. Para ele, ao longo da vida individual e da vida coletiva dos povos, desenvolvemos hábitos e costumes que nos definem como seres morais. A questão é que esses hábitos e costumes não são tão variados assim como se pensa quando se trata do valor deles para a vida moral de uma pessoa ou grupo. Por exemplo, coragem é coragem e covardia é covardia em qualquer que seja o lugar. Seja no campo de batalha, seja diante do chefe da firma. Generosidade é a mesma coisa, esteja em jogo um prato de comida, esteja em jogo ajudar um colega na faculdade, estejam em jogo alguns milhares de dólares. Para o filósofo grego, desenvolver boas virtudes era como aprender a tocar bem um instrumento. A ética é uma ciência prática, jamais teórica. Não se ensina coragem a não ser se vivendo a coragem. Nesse sentido, a moral não é dependente de nenhum valor do outro mundo ou de Deus; é um esforço das pessoas para vencer ví cios e dar condições aos mais jovens de desenvolver melhores hábitos e costumes. Essa é a escola moral que mais aprecio e julgo correta, apesar de que, com a modernidade e as sociedades gigantescas que surgiram, e o anonimato consequente, às vezes fica difícil pensarmos no reconhecimento das virtudes. Virtude é sempre pública, isto é, o outro reconhece em mim a virtude. Nada de marketing do bem nem autoproclamação das próprias virtudes. Quem canta as próprias virtudes é um mentiroso ou orgulhoso.
Ainda no mundo do anonimato e das distâncias nos vínculos, a escola das virtudes me parece muito consistente, sobretudo na era do marketing em que vivemos.
Voltaremos adiante à questão da associação entre marketing e moral, mas, antes, gostaria de dizer que não há consenso sobre o que é ética ou ser ético. Só gente mal informada pensa que existe. Além da escola das virtudes, há duas outras escolas éticas muito importantes. Depois de falar delas, trataremos de alguns aspectos decorrentes desse debate para o mundo contemporâneo nos capítulos a seguir.
A segunda grande escola ética é a de Immanuel Kant, conhecido por ser um racionalista e crer numa possível moral fundamentada em imperativos categóricos (!). Em filosofia, categórico é sinônimo de universal, o que significa que um imperativo deve valer para todo mundo, do contrário não vale para ninguém. Se não valer para todos, não é ético. Kant percebeu que, com a dissolução do mundo medieval rural, no qual as pessoas se conheciam, e a vergonha diante do grupo ou da comunidade exercia um fator de constrangimento no comportamento delas, surgiria a necessidade de outros fundamentos para as normas de conduta. Mesmo o cristianismo (claro que estamos falando da Europa) declinaria como fundamento suficiente do comportamento moral. Seria necessário encontrar uma fundamentação para a moral (entenda: para bons hábitos, costumes e normas) em algum terreno que estivesse ao alcance de todo homem e mulher que pensasse. Esse terreno seria a razão prática, ou seja, um comportamento racional. A evolução natural desse processo seria a transformação da ética numa “província” da lei positiva. Num mundo complexo e gigantesco como o nosso, ética e lei se confundem a fim de tornar a norma sustentável.
Daí Kant supor que se encontrássemos regras (imperativos) universais, poderíamos fundamentar a ética para além dos pequenos povoados tradicionais, em via de desaparecimento por causa do avanço burguês. O burguês, com sua técnica, sua velocidade e seu desprezo pelo passado e pelas crenças religiosas locais e ancestrais, julgava que esses marcadores morais tradicionais atrapalhavam os negócios. A crítica ao preconceito é fruto deste princípio: por que não fazer negócio com negros, judeus ou gays, se todos podem ganhar com isso? Esses imperativos seriam válidos porque teriam de ser bons para todos. Exemplo: ninguém deve mentir. Para Kant, se ninguém mentir, o mundo será melhor porque todos poderão confiar em todos e a vida será transparente. Claro que na prática a ideia não funciona 100% porque só pessoas insensíveis ou mal-educadas dizem a verdade o tempo todo. Faz parte da urbanidade e da elegância social saber que devemos evitar dizer coisas que causem mal-estar desnecessário. Porém, permanece sendo importante que mentir o tempo todo destrói o tecido social e as relações entre os seres humanos. Portanto, dizer a verdade, ainda que não seja possível sempre, deve ser visto como um mecanismo regulatório do comportamento para que possamos ter algum grau de confiança no amor, na família, nas amizades e nos negócios. Alguns acham que também na política, mas eu duvido um tanto disso. De política, falaremos um pouco mais adiante.
Outro exemplo: nunca use um ser humano como meio para algo, apenas como fim. Este nos leva ao conceito de direitos humanos, tão importante na herança da Revolução Francesa, apesar de ela ter sido um terror absoluto... A ideia de Kant não é ruim, apesar de parecer ingênua, e de fato o é. Dizer que não devemos usar um ser humano como meio, mas sim como fim, significa que não podemos fazer dele “uma coisa”, mas sim que a sociedade deve tê-lo como fim em tudo o que ela fizer: em outras palavras, o homem é o objetivo supremo da sociedade, e fazer a vida dele menos sofrida deve ser a meta de qualquer socieda de decente. Essa ideia também é um pouco irreal na medida em que as relações de sobrevivência material (e seus escassos recursos) implica que muitos de nós somos meios para que outros, como nossos filhos por exemplo, possam sobreviver. Ou seja, a necessidade econômica (ciência da escassez) implica sermos, muitas vezes, meios para a sobrevivência da sociedade ao longo dos milênios.
Se você quiser entender a validade da ideia de Kant de um modo mais simples, imagine a seguinte situação: pense que você divide a casa com amigos. Agora imagine que um deles se recusa a lavar a louça. Ele não estará sendo ético no sentido kantiano, porque se todos precisam lavar louça, não há por que um deva escapar desse encargo. A melhor forma lógica de colocar o imperativo categórico kantiano é: só é ético o que vale para todos, se não vale para um não é ético. Kant chama atenção para o fato de que se você for chamado a julgar algo em que tem interesse direto em um dos possíveis resultados, abra mão da função de julgar essa situação, uma vez que sua avaliação poderá ser prejudicada por elementos emocionais no processo. Kant via a ética como um campo de prática racional acima de tudo. Ainda que muito longe da realidade comezinha e concreta em que vivemos na realidade, a ética kantiana se sustenta como tentativa moderna essencial de somar esforços para agirmos de modo minimamente racional e levarmos em conta o maior número de pessoas envolvidas no processo, ainda que nem sempre todas de modo ideal. A perda dos vínculos próximos das comunidades pré-modernas, base dos hábitos e costumes que sustentavam a vida dentro de certos trilhos, encontrou na ética kantiana uma tentativa sincera de sustentar a vida a partir daquilo que Kant e outros julgam ser central em nossa vida: a razão. Se eles, os racionalistas, estão certos, é outra coisa. Como eu disse antes, não creio que sejamos seres racionais em sua plenitude. Ao contrário, penso que muitas são as pressões internas e externas sobre nós para que a razão seja a senhora absoluta em nossa vida. E mesmo aqueles que tentam viver puramente pela razão revelam uma tara específica: a tara de eliminar da vida tudo o que não seja limpinho e ordenado. Mesmo a paixão pela razão é, ela mesma, irracional. Mas isso não significa que não haja um valor profundo em tentar tornar a vida menos irracional. É complicado mesmo, sinto muito por aqueles que sonhavam com um mundo melhor à custa da ética. Risadas? Pensar que a ética faz o mundo melhor é para os fracos. A terceira grande escola é conhecida como utilitarismo, fundada por autores como Jeremy Bentham e John Stuart Mill (este conhecido como o primeiro feminista da filosofia) na virada do século XVIII para o XIX. Essa é a principal escola ética contemporânea, apesar de muitos posarem de kantianos. O princípio utilitarista é o seguinte: o homem foge da dor e busca o prazer ou bem-estar. Não se deve entender aqui prazer como alguma forma de hedonismo moderno do tipo realizar o meu desejo é minha ética (teremos oportunidade de tratar disso). O bem-estar utilitarista é antes de tudo um bem-estar coletivo, e não individual. Ideias como inclusão e exclusão vão bem no cardápio utilitarista, na medida em que quanto mais pessoas incluídas no bem-estar, mais bem-estar o grupo e seus integrantes experimentarão. A ideia de um bem-estar utilitário individualista é estranho a essa escola ética.
Há uma questão prévia à própria ideia de bem-estar que deve ser dita. Os utilitaristas viam a si mesmos como filósofos radicais, no sentido de levarem em conta o que eles chamavam de recursos da natureza humana – hoje em dia diríamos recursos do comportamento humano. Com isso, eles fundaram uma forma de reflexão ética que podemos chamar de empírica ou comportamental: olhemos os homens antes de criar ideias abstratas sobre o bem e o mal. Segundo esse princípio, de nada adianta definirmos o bem e o mal se não levarmos em conta que o grosso dos seres humanos jamais conseguirá escapar da máxima utilitária: fugimos da dor, buscamos o bem-estar.
No século XX, um utilitarista muito famoso chamado Peter Singer dirá que a máxima original pecava por pensar apenas nos seres que têm consciência da dor, logo, os humanos. Singer defende que os animais, com senciência (espécie de consciência sensorial) da dor, devem ser incluídos na ética utilitária. Esse pressuposto alargado criou a tese do humanismo animal, que discutiremos na sequência.
Os utilitaristas consideram qualquer tentativa de definir o bem em si ou o mal em si como formas de metafísica moral, e por isso inúteis. A observação do comportamento humano e animal revela que nós fugimos sempre da dor quando podemos, e essa fuga foi chamada de escolha racional, no sentido de que é racional (e os animais são racionais, porque sencientes o suficiente para isso) escapar do sofrimento.
As sociedades contemporâneas são bastante utilitárias, ainda que não tenham consciência explícita desse fato. Marx tinha razão quando dizia que o utilitarismo era uma ética para merceeiro inglês, porque o traço burguês é evidente: ser competente em reduzir o sofrimento é parte da proposta de controle da vida que as revoluções burguesas carregam em si.
O utilitarismo implica “cálculos” de comportamento, como dizia Bentham. Para ele, um ato que visa ao bem-estar deve levar em conta coisas como a intensidade, a duração, a fecundidade (um ato que se multiplica em outros causando mais bem-estar do que o primeiro da série), a rapidez do efeito uma vez realizado o ato, a certeza de atingir o alvo em questão e não outro, e, por último, a segurança de que o ato causará bem-estar e não mal-estar. Já para Mill, o ato utilitário deve levar em conta dimensões do humano, tais como racionalidade, imaginação, sentimentos morais e liberdade. A base do utilitarismo é uma sofisticada combinação de observação do comportamento humano em busca de bem-estar e crença na racionalidade de nossas decisões para chegar a esse bemestar. Já no início do século XX, Aldous Huxley escreveu o maior panfleto antiutilitário conhecido, Admirável mundo novo. Sua distopia de um mundo perfeito é, até hoje, me parece, o que há de melhor em calcular os resultados de uma sociedade que faria a opção pelo racionalismo utilitário de forma definitiva. Vejamos.
Nesse admirável mundo novo, a perfeição de uma sociedade que eliminou o contraditório mostra, ainda que de modo caricatural, seus efeitos colaterais danosos. Seres humanos que optam por uma vida perfeita acabam escravos dessa perfeição. Se o “erro” de Kant é apostar numa razão pura prática (nome técnico da moral em seu livro sobre o tema) que não está ao alcance de um ser humano real confuso e fraco, o “erro” dos utilitários é fruto do que “sobra de acerto” em sua ética: estão certos em dizer que fugimos da dor e buscamos o bem-estar, mas estão errados em achar que podemos construir uma sociedade em cima da busca científica de felicidade. O utilitarismo é um racionalismo burguês. Protocolos necessários na gestão de uma empresa podem causar danos na gestão da vida. As pessoas no livro de Huxley eram umas idiotas fabricadas geneticamente. As pessoas do mundo real são umas idiotas obcecadas pela saúde e pela felicidade. A vida precisa ser um pouco desperdiçada e suja, senão se torna uma natureza-morta perfeita. É isso que Huxley apreendeu ainda nos anos 1930: segundo ele, no futuro pediríamos para ser escravos de procedimentos de saúde e felicidade. E acertou em cheio, não?
O fruto do utilitarismo é o higienismo da liberdade. Huxley traduz o mundo perfeito por uma tragédia da liberdade que se vê limitada a um chiqueirinho de gente grande sempre limpinha. Imagine se um dia disserem que sexo oral causa doenças. Como seria a vida possível sem sexo oral? O risco totalitário do utilitarismo é enorme, como na ética kantiana categórica. Se lá todo mundo deve ser santinho, aqui todo mundo deve ser limpinho. Acho a ética das virtudes de Aristóteles a melhor, porque vê a vida moral como um combate em busca de bons hábitos, sem prescrição de comportamentos que tendem a normas categóricas. Nesse sentido, é a mais humana das três escolas. Nesse sentido, me considero um aristotélico em ética.
E onde ficam os animais nesse negócio? Quais as consequências da aplicação do utilitarismo de Peter Singer aos animais, uma vez que os comemos? Somos uns monstros? Aqui, de novo, o utilitarismo revela sua vocação para uma santidade da higiene perversa da vida.
Sem dúvida, há que defender os animais dos abusos. Sou um apaixonado por cachorros. Sempre levei a sério a máxima de que quem maltrata animais não merece confiança. Mas a vida tem em si um grau de violência que só os maníacos seguidores de Singer parecem não enxergar. Suspeito que sua santidade a favor dos animais é mais fruto de uma personalida de autoritária do que de qualquer bondade. E mais: é mais fácil amar os animais do que os seres humanos, esses traiçoeiros.
O utilitarismo animal (a defesa de que os animais têm senciência da dor e, por isso, devem ser tratados como “gente”) sustenta o conceito de “especismo” como analogia ao racismo (o humanismo animal seria seu contrário): achar que animais não merecem as mesmas leis que os humanos é fazer deles escravos, porque seriam considerados uma espécie inferior. Concordo em parte com essa ideia. Ver animais sofrer fere nosso afeto moral. Mas daí a dizer que devemos limpar a vida do sangue que ela mesma despeja no mundo para se manter (proibir a inserção humana na cadeia alimentar, nos condenando a uma vida de alface e tomates) me parece uma ideia idiota e típica de tiranos disfarçados de gente que ama os animais. A vida é bela, violenta e imunda, não há como fugir disso sem eliminar a própria vida. A normatividade moral sempre foi um dos terrenos em que almas violentas e autoritárias se sentem em casa. Os puritanos cristãos dos séculos XVI e XVII e os puritanos políticos dos séculos XX e XXI (os politicamente corretos) são esse tipo de gente violenta e autoritária.
O tema é interminável. Dedicaremos mais alguns capítulos a alguns desdobramentos dele, com uma cara mais contemporânea.

(Pondé, Luiz Felipe - Filosofia para corajosos)
O dilema moral surge quando devemos fazer o que é certo no entanto não queremos fazer o que é certo. Um exemplo é estar atrasado para uma festa e, no meio do caminho, encontrar alguém que precise da nossa ajuda (um acidente, por exemplo). Não queremos perder a festa, mas devemos ajudar quem precisa, esta é uma escolha moral.

publicado às 17:31


A ética dos valores

por Thynus, em 23.07.16
 
Chamamos de ética o conjunto de coisas que as pessoas fazem quando todos estão olhando. O conjunto de coisas que as pessoas fazem quando ninguém está olhando chamamos de caráter.
 
Ética é o conjunto de valores e princípios que usamos para responder a três grandes questões da vida: (1) quero?; (2) devo?; (3) posso?
Nem tudo que eu quero eu posso; nem tudo que eu posso eu devo; e nem tudo que eu devo eu quero. Você tem paz de espírito quando aquilo que você quer é ao mesmo tempo o que você pode e o que você deve.
Mario Sergio Cortella 
 

Meu conselho é que se case. Se você arrumar uma boa esposa, será feliz; se arrumar uma esposa ruim, se tornará um filósofo.
Sócrates
 


O que são valores morais? Todo mundo fala, mas ninguém sabe ao certo. Uma dica: quando você ouvir alguém falando muito de valores isso, valores aquilo, cuidado! Ele vai bater sua carteira (excluí o “ela” aqui porque não acho que as mulheres costumam ser tão criminosas como os homens, e, quando o são, o dano moral é sempre maior para elas). Outro papo comum hoje sobre o tema valores é: “Ninguém hoje tem mais valores”. O interessante dessa ladainha é que, ao mesmo tempo, quem lamenta a morte dos valores é o mesmo que acha que tudo deve ser novo e dissociado do passado. Valores só existem quando existem condutas bem marcadas por expectativas sociais que herdamos para além de nossa vontade. Essa moçada pensa que valores são coisas que você escolhe como um desodorante ou uma banda de música.
Crise de valores
 Quando se fala em valores morais se quer dizer coisas como honestidade, fidelidade, sinceridade, trabalho, liberdade, coisas assim. A filosofia moral começa a falar em valores a partir do século XIX, no sentido de marcas positivas de comportamento que se somariam ao convívio humano ou tornariam a vida menos sofrida. Valores morais são cultivados por uma sociedade ou uma tradição ao longo do tempo. Pode-se dizer, por exemplo, que a caridade é um valor cristão, porque os cristãos e seus textos sagrados a valorizam como comportamento positivo. Ao contrário, a usura não seria um valor cristão, porque seria desvalorizada ou valorizada de modo negativo pelos cristãos e seus textos sagrados.
O filósofo que mais falou desses valores foi o próprio Nietzsche, para dizer que eram uma criação dos fracos para controlar os fortes, porque estes eram fonte de valor para si mesmos. Isso significa que esse homem nietzschiano, o superhomem, não precisa de marcas de comportamento exteriores a ele, e que essas marcas sejam criadas pela sociedade para controlá-lo. Para o romântico alemão, a força, a coragem, a espontaneidade são valores que brotam da força interna do homem ou da mulher, que são superiores. Essa força interna é a vontade de potência de que tanto fala Nietzsche.
No mundo contemporâneo, a herança nietzschiana, principalmente de corte francês, em filósofos como Gilles Deleuze e Michel Foucault, e o caráter relativo dos valores ficaram expostos, e, portanto, sua validade é relativa a tempo e espaço específicos. Se formos para trás um pouco no tempo, e chegarmos ao século XVII, em filósofos como Blaise Pascal, ou no XVI, em Michel de Montaigne, ambos carregados de teor cético em seus argumentos, ou mais atrás ainda, e formos aos últimos séculos da era pré-cristã na Grécia, e ouvirmos as vozes dos sofistas e céticos, veremos que todos eles, apesar de não usarem a expressão valores, sempre foram relativistas. Pascal chega a afirmar que, se o nariz de Cleópatra fosse outro, a história do mundo seria outra. Logo, os valores seriam outros.
O problema da ética dos valores é que ela é, no fundo, uma ética que pressupõe tradições históricas que se impõem às pessoas que nelas vivem. A modernidade, e seu ódio à ideia de tradição e permanência no tempo, anseia por valores, mas é arredia à própria ideia de valores morais, porque os considera opressores. A paixão pelo novo, traço brega da modernidade, a impede que valorize qualquer noção de passado, e os valores, para funcionar, precisam estar ancorados numa experiência de perenidade.
Entretanto, não duvide que existam valores no mundo contemporâneo, e posso dar alguns exemplos deles: eficácia, objetividade, produtividade. Você já imaginou recusá-los? Como é a vida de alguém que não aceita esses valores? Boa sorte se você quiser fazer a experiência. É assim, sentindo o peso dos valores, que você percebe o que são os valores de uma cultura. Os bonitinhos de nosso mundo gostam de posar de valores éticos, mas a ética deles é mesmo a do sucesso, da vaidade e da eficácia. Suspeito que nunca existiu uma época tão ridícula como a nossa em sua farsa ética.

(Pondé, Luiz Felipe - Filosofia para corajosos)

Valores éticos

publicado às 15:51

Falávamos de progresso e perfectibilidade há pouco. Um caso particular desse progresso é a longevidade. O homem nunca viveu tanto tempo. Uma das coisas mais certas que podemos ter em mente é que, salvo suicidas ou melancólicos profundos, todo mundo faz qualquer negócio para viver mais. Mesmo os que se dizem espiritualizados. Aliás, essa é uma das razões pelas quais quase 101% das pessoas colaboram com regimes assassinos: garantir a vida e garantir o jantar, apesar de posarem de resistentes, como muitos desses franceses que fugiram da França após a queda dos nazistas em Paris e agora posam de heróis da resistência em terras tupiniquins para inteligentinhos mal informados.
Então, a história provou que a ciência estava certa, que Francis Bacon (séculos XVI e XVII) tinha razão, e que, se parássemos de perguntar coisas escolásticas (tipo de filosofia do final da Idade Média que terminou seus dias se perguntando coisas como: “Deus pode criar uma pedra que Ele mesmo não pode carregar?”, ou seja, em bom português, bullshit), inúteis, e atássemos a natureza em laboratórios, conseguiríamos inventar aviões, antibióticos e nanotecnologia. Deu certo. Como na vida real inventam-se soluções para problemas que criam novos problemas, com a medicina moderna descobrimos que os idosos não servem para muita coisa, ainda mais quando são muitos e pobres (já falamos disso antes).
Ligação científica com a doença física e redução da longevidade do adulto
 
No mundo contemporâneo, as coisas só funcionam quando viram nicho de mercado – veja a revolução gay, fruto da publicidade norte-americana que descobriu que eles eram um nicho de gente com grana, bem preparada e sem filhos (héteros são pobres porque têm filhos...), e que, portanto, deveriam ser respeitados porque compram. Quando idosos conseguem se impor como consumidores, aí ficam bonitinhos; afora isso, só quando alguém precisar dar um toque de tradição para uma marca de café...
Eis que a longevidade está aí. Vive-se muito, e uma das primeiras coisas que os governos têm de fazer é adiar a aposentadoria, porque ao lado da longevidade está a infertilidade das mulheres seculares, o que gera o famoso problema da previdência: não tem jovem bastante para bancar tanto idoso querendo ser feliz. Afora essa questão de gestão, a longevidade cria outros traumas. Como os vínculos são cada vez mais efêmeros entre as pessoas, e a atomização é crescente (já vimos isso), a tendência é a solidão ser a outra face da longevidade. Pessoas vegetam em suas casas, quando têm casas, ou abrem-se novas casas de repouso. Claro, existe até uma nova ciência: gerontologia.
Nunca estivemos tão longe do valor dos idosos (gerontes em grego); ao contrário, os jovens, com sua inexperiência, arrogância (coitados, culpa dos pais, professores e jornalistas que ficam babando em cima deles) e seu conhecimento de iPhone, são a referência dos mais velhos. O mais ridículo é que, ao lado da longevidade técnica alcançada, foi o apodrecimento, e não o amadurecimento, que se instalou como marca do envelhecimento no mundo contemporâneo (claro, mente-se sobre isso com o papinho de melhor idade). Não se amadurece, perde-se o prazo de validade, mesmo com (alguma) saúde. Longevos correm o risco de um dia parecerem um bando de zumbis, sem lugar num mundo em que, ao mesmo tempo que você pode viver noventa anos com (alguma) saúde, você já começa a envelhecer aos 25, desesperado por causa do colesterol, da estria e das rugas.

(Pondé, Luiz Felipe - Filosofia para corajosos)
Em SP, Jane Fonda fala de traumas do passado e da felicidade na velhice

publicado às 00:23


Existe um eu verdadeiro?

por Thynus, em 21.07.16

 
 
O eu se tornou uma das últimas utopias no mundo contemporâneo. Fracassadas as utopias institucionais históricas, o modelo hippie se fez tendência de marketing de comportamento. Modelo hippie: muito papo furado, estilo peculiar de se vestir, recusar a vida dura e ter pouco ônus nos vínculos.
Uma das chaves dessa tendência é o aparelhamento do eu como saída para a vida. Se tudo é incerto (amor, trabalho, família, saúde), que meu eu e meu corpo se tornem meu templo. Daí a pergunta: existe um eu verdadeiro, que devemos buscar como refúgio para uma vida tomada pela contingência de tudo (hoje tenho trabalho, amanhã talvez não; hoje tenho amor, amanhã talvez não; hoje tenho convite para a balada, amanhã talvez não)? Ou seja, existe um eu verdadeiro a salvo de uma vida onde nada seja garantido?
A ideia vem do Romantismo. Werther, personagem do livro de Goethe que leva seu nome, já dizia que em meio ao seu sofrimento pelo menos tinha um eu para se refugiar. Ao final, esse produto romântico se transformou num grande agente de consumo e de alienação, não porque não existamos como indivíduos psicológicos, mas porque esse eu, fruto de processos bioquímicos e elétricos, de laços sociais, históricos e políticos, de uma gama de experiências existenciais, não é um lugar a salvo de nada. A filosofia, desde o estoicismo antigo e do hedonismo grego, como vimos antes, busca tornar a vida menos dependente do meio a sua volta, reduzindo o desejo pelo mundo, o que pode soar, com razão, um tanto deprimente e repressivo do desejo pela vida. Como também já vimos antes, nossa concepção contemporânea de prazer, entendida como realização de um desejo eternamente insatisfeito, é um empecilho enorme à ideia de nos tornarmos independentes das demandas do mundo. Ao contrário, nosso eu verdadeiro se torna cada vez mais dependente do que existe a sua volta.
Por mais que a publicidade mostre homens e mulheres em cenários distantes e isolados em meio a uma natureza belíssima, essas cenas sempre são acompanhadas de produtos que são de alguma forma necessários para vivermos esses cenários, sejam carros, esportes radicais e suas ferramentas indispensáveis, sejam hotéis ou pousadas charmosas, sejam companhias aéreas, agências de turismo, ou bancos e suas linhas de crédito para qualidade de vida ou casa própria. Só um idiota fora do normal acredita que esse eu verdadeiro, produto de uma sopa química e de vínculos sociais materiais, pode se esconder do mundo, quando para estar escondido é preciso tantos objetos caros. No mínimo, o que é ainda mais ridículo, esse eu verdadeiro necessitará de terapias (que são bem caras) ou de uma loja com roupa de um estilo descolado específico que o torne “diferente” do restante dos mortais. Permanecendo o fato de que, se ele compra roupas numa loja de pessoas diferentes, um monte de outros consumidores “diferentes” como ele comprará roupas no mesmo lugar.
Enfim, não existe esse eu verdadeiro a não ser como mais um produto nas prateleiras do mundo contemporâneo, que há muito desistiu de qualquer ideia de personalidade em favor de uma ideia com menos ônus, que é a de estilo e de felicidade a todo custo.

(Pondé, Luiz Felipe - Filosofia para corajosos)
 
 
 

publicado às 20:32

Decidi fazer um capítulo à parte opondo religião a ceticismo porque acho que a principal crítica à religião, seguindo a tradição de Marx, Nietzsche e Freud, é nos lembrar como picaretas roubam o dinheiro das pessoas que creem neles. E isso, devo dizer, nada tem a ver com pessoas que vivem suas crenças de modo honesto e dedicado. Que fique sempre claro que não acho ateus mais ou menos inteligentes do que crentes, nem mais ou menos morais. Mas sou obrigado a reconhecer que alguns crentes são mais facilmente tomados por picaretas do espírito do que aqueles que são, por temperamento, mais descrentes no sobrenatural. A maioria dos ateus militantes sofre de outro mal: acreditam nos avanços científicos como resposta à vida, outra ilusão, mais complexa. Não vou tratar dela aqui; talvez, se me der vontade, mais à frente.
O que é um picareta do espírito? Já digo, mas, antes, vamos esclarecer o que é ceticismo.
Ceticismo é um modo de ver o mundo nascido na Grécia antiga que ensina você a duvidar de tudo. A palavra vem do verbo grego skopein e significa observar, ver com atenção. Um cético pode ser muitas vezes um pentelho, sobretudo se “acreditar no ceticismo” como última resposta a tudo. Afora esses chatos, o ceticismo é, sim, uma prática muito importante na filosofia e na vida cotidiana, porque pode ajudar você a escapar de muitos picaretas, espirituais, políticos, afetivos e comerciais.
O ceticismo é um método de confrontar teorias e vê-las ruir uma a uma, o que cria em você uma tendência a duvidar de tudo de uma vez. Cuidado, porém: um dia você pode encontrar alguma teoria que o espan te. Uma certa leveza de espírito é necessária ao cético; do contrário, ele pode virar um adolescente boçal que acha que é a primeira pessoa inteligente na face da Terra. Em alguns assuntos, a dúvida parece se sustentar com facilidade, e um deles é o campo desses picaretas do espírito. O que é mesmo um picareta do espírito? Você já deve ter visto um.
São gente que diz que pode salvar você de alguma coisa, mas quando fica doente vai ao médico e diz que o guia espiritual avisou a ele que agora era para valer. Risadas? Se você rir, eles bem que merecem. Em geral, pedem dinheiro para você de forma melosa ou dizem que uma grande ameaça ronda você. Ou que o espírito X, sábio e antigo, pediu a você essa grana para uma causa maior (grana para o picareta do espírito pagar as contas dele). Uma vez tendo sentido medo de que ele esteja dizendo a verdade, você está perdido. A armadilha é dar a ele uma ponta de credibilidade. Você estará perdido. Repito para você lembrar de mim na hora em que um desses picaretas aterrissar a sua frente. Preste atenção no que eu vou dizer.
Existem três grandes áreas de choque na vida. 1) Saúde e doença, 2) dinheiro e trabalho e 3) amor e família. Quase tudo pode ser incluído nessas áreas, e elas, pelo menos uma delas, sempre dá problema, sendo a saúde a definitiva. Esses picaretas do espírito, assim como os xamãs pré-históricos faziam, anunciam coisas que sempre podem acontecer: viagem a trabalho, doenças na família, oportunidades de grana, traições afetivas. Os coitados dos crentes que os seguem nunca percebem que nada muda na vida que possa ser provado como tendo sido resultado da ação desses picaretas. Mas quando algo de fato acontece (sempre acontece, porque essas são áreas de choque na vida), você, pobre crente, acredita que o aviso foi uma forma de proteção que os guias desses picaretas lhe deram. Aí, de novo, você estará perdido. Se algo de ruim acontece, eles avisaram. Se eles disseram para você gastar uma grana para evitar que esse algo de ruim aconteça, quando o “trabalho” feito não funciona, os picaretas do espírito dizem que não funcionou porque faltou algo em você, ou no material usado (ou seja, você errou em algo), ou aquilo de ruim tinha de acontecer para a sua evolução espiritual.
Esse argumento de evolução espiritual serve para tudo, porque ninguém sabe onde ela começou. Uns dizem que começou quando erámos pedra, mas como pedras não falam, não temos como entrevistá-las e checar a informação sobre nosso parentesco com elas. Talvez seja por isso mesmo que elas servem: porque não temos como checar a informação! Tampouco sabemos quando a evolução espiritual acaba. Alguns dizem que viramos luz, mas como luz não fala... E então todo o ciclo da impossibilidade de checar o que eles falaram se repete ao infinito. A chave do picareta do espírito é dizer o que todo mundo sabe que pode acontecer e capitalizar para si o que de fato acontece ou terceirizar tudo aquilo que ele errou ao dizer que ia acontecer. O crente parece esquecer essas coisas óbvias quando cai sob a “proteção” do picareta do espírito.
E no meio da tal evolução espiritual cabe tudo. É evidente que temos coisas a aprender na vida, mas isso nada tem a ver com picaretas espirituais que cobram grana de você e em troca vêm com historinhas que servem só para você continuar dando grana a eles. Algumas pessoas sustentam esses picaretas durante anos, compram casas para eles, carros, roupas, dão viagens. Eles testam você e, quando percebem que você tem grana e fé neles, o céu é o limite do abuso que sofrerá. Para ser um picareta do espírito você precisa ter algum talento especial. No mínimo ser observador, manipular bem as três áreas de choque às quais me referi e entender um pouco de psicologia humana para saber que somos uns desgraçados amedrontados, carentes, abandonados, e que isso se vive no dia a dia, com os pais, os filhos, os cônjuges, os colegas de trabalho. Um picareta do espírito, em geral, é uma pessoa minimamente encantadora e que domina alguma linguagem tradicional, que pode vir da África (esses são bons porque também metem medo nos desgraçados por causa de coisas conhecidas como vodu – o que necessariamente não tem a ver com o nosso aqui no Brasil), da Austrália (bem na moda) ou mesmo da Amazônia (para os mais naturebas e que não falam inglês). Quando você vir uma vítima de um picareta do espírito, lembre que isso é préhistórico. E deixe-me perguntar uma coisa: você já morreu numa grana com um desses picaretas? Que pena, quem mandou ser bobo.
Ser um pouco cético ajuda nessas coisas. Mas, antes de tudo, se pergunte: por que esses picaretas não conseguem resolver a própria vida e sempre precisam da sua ajuda para manter a picaretagem funcionando?

 (Pondé, Luiz Felipe - Filosofia para corajosos) 

publicado às 01:00


Religião e espiritualidade

por Thynus, em 21.07.16
Você é religioso? Se for, o é por alguma carência séria em você, diriam Freud, Marx e Nietzsche. De certa forma, somos todos carentes porque somos mortais, limitados, assustados e frágeis psicológica e fisicamente. A carência à qual se referem os homens de conhecimento citados acima é, antes de tudo, uma carência cognitiva, carência de conhecimento. Diante da agonia da finitude e do fracasso iminente da vida que acometem a todos em algum momento, o religioso seria aquele que “não segura a onda” e busca socorro. Essa ideia de que ser religioso implica alguma forma de carência cognitiva é comum entre pessoas que se julgam mais cultas. Tenho dúvidas de que isso seja uma verdade evidente. A maioria das pessoas que conheço que não acreditam em Deus, acredita em bobagens como alimentação balanceada, espíritos indígenas, ciência, história, política ou em si mesmas. Pessoalmente, julgo a crença em si mesmo a mais brega e ridícula de todas.
O século XX foi mortífero não em nome de Deus, mas em nome da política. Esse é um fato que, muitas vezes, escapa aos nossos péssimos professores de história que ensinam bobagens para nossos alunos. Na minha experiência pessoal, acadêmica ou na mídia, não me parece que pessoas não religiosas sejam mais sábias do que pessoas religiosas. Muita gente para de crer em Deus ou deuses e passa a crer em si mesma (como disse acima), o que acho uma bobagem ainda maior se levarmos em conta a fragilidade de nossos pequenos “eus”.
O que é religião? Sinto dizer que a resposta não é uma evidência. Para especialistas em religião, as religiões históricas são tentativas mais ou menos organizadas de modo prático, e não apenas teórico, de dar sentido à vida. Só funcionam se você estiver submetido, de fato, a elas em seu cotidiano – esse é o sentido de “prático” ao qual me referi acima. Por exemplo, a religião só funciona se a sua religião decidir o que você come ou não, quando pode ou não comer, quem pode ou não comer quem, o modo “justo e santo” de comer alguém, por exemplo, após o casamento, como deve educar seus filhos, quem está certo e errado em sua conduta, como organizar seu calendário (dividindo-o em dias sagrados e profanos). Enfim, se a religião estiver de alguma forma incorporada aos seus atos cotidianos e aos atos das pessoas à sua volta. Hoje em dia, algumas pessoas “mais cultas” pensam que se pode escolher uma religião assim como quem escolhe um prato num menu (a palavra espiritualidade acabou por flertar com essa ideia de uma “religião light”). Não, religião só tem sentido se ela submeter você ao conjunto de normas, ritos, rituais litúrgicos que ela carregar como doutrinas inquestionáveis. Fazer ioga uma vez por semana não dá a você nenhuma ideia do que é ser de fato religioso, tampouco uma estadia de um mês na Índia. O modo de vida contemporâneo prima por crer que tudo pode ser vivido na forma “mercadoria”, como disse o filósofo Theodor Adorno no século XX. Pensamos que “escolhemos” uma religião como se escolhe uma marca de creme na prateleira do free shop. A origem da religião parece estar na pré-história, como tudo o que é humano. O que os especialistas dizem é que uma gama de comportamentos ou fatos aleatórios podem ter, com o tempo e a tendência à organização que caracteriza a inteligência do Homo sapiens, de “se juntar” para dar corpo ao que chamamos de religião. Podemos elencar alguns desses comportamentos ou fatos, começando pelos fatos.
* Fatos: tempestades destrutivas; sons vindos de não sabemos onde, como o céu ou o subterrâneo; pestes e doenças; invasões de outros bandos, animais perigosos e temidos identificados como “espíritos”; sonhos assustadores com figuras estranhas e pessoas mortas; a escuridão do mundo à noite; a regularidade da natureza – o que dava, até hoje, a sensação de uma inteligência por trás dela, entre outros eventos.
* Comportamentos: sabedorias curativas advindas do conhecimento de ervas; previsões de fatos que acontecem, como invasões, tempestades, pestes e doenças, por isso mesmo parecem acertos de premonição; figuras carismáticas e estranhas.
Vale dizer uma palavra sobre essa coisa chamada “espíritos”. O que comumente chamamos de espíritos são vultos, espectros, figuras oníricas a quem atribuímos vida própria e dramaturgia específica. O fato de sonharmos, por exemplo, com mortos nos levou a crer que esses mortos ainda viviam em algum outro lugar. A força dessa hipótese reside no fato de que, ainda hoje, muita gente, quando sonha com entes queridos mortos, continua acreditando que esses entes queridos mortos permanecem vivos em algum outro lugar. O próprio kardecismo, uma das sínteses religiosas mais simplistas que já foram inventadas pela imaginação humana acerca desses espíritos, é uma evidência de nossa capacidade de construir mitos a partir dessa tendência a levar a sério sonhos com mortos ou qualquer outra experiência envolvendo essa suposição de manifestação de vida depois da morte.
O desconhecido e inexplicável (fato que ainda hoje permanece existindo) pode disparar nossa imaginação com facilidade. O melhor método para entender isso é nos imaginar 100 mil anos atrás e supor como agiríamos nessas situações sendo como somos hoje, porque somos “os mesmos”. O fato de podermos nos colocar no lugar de nossos antepassados nos torna capazes de entender grande parte da vida na pré-história.
Se pensarmos com cuidado, veremos que as religiões são a associação de elementos como os descritos, acrescidos de ritos, rituais, liturgia, narrativas míticas, textos sagrados e organizações sociais e políticas ligadas a essa “trama” de elementos. Com o passar do tempo, a “trama” se sofisticou, fez filosofia e teologia, teve códigos de conduta, reis e sacerdotes, mas a raiz permanece na mente desse Homo sapiens que caminha sobre a Terra sem saber nada de si mesmo.
Uma pergunta que se faz sempre é a razão para que, mesmo depois de tantos “avanços científicos”, a maior parte da humanidade permaneça religiosa em grande medida, ainda que sem ter uma grande adesão estrita (os fundamentalismos não chegam a ser maioria). A resposta mais direta é que os “avanços científicos” têm pouco impacto nos afetos a ver com nossa carência (cognitiva, morte, dor, sofrimento, fracassos, enfim, nós). Mesmo vivendo mais (o que pode criar mais angústias), e com maior qualidade material de vida, essas questões não são respondidas. Afinal, por que sofremos sem merecer? Por que o justo sofre? Lembra o nosso pequeno coro de demônios?
Alguns especialistas dizem que as religiões não cedem diante dos “avanços científicos” porque estão enraizadas em nosso “cérebro atrasado” ou “ancestral”, pouco racional e mais afetivo. A ciência, então, não teria nenhum efeito nesse cérebro habitado por fantasmas. Claro que os crentes respondem à mesma questão dizendo que as religiões não cedem porque existe o mundo sobrenatural, e, portanto, descobrir o átomo ou fazer aviões nada tem a ver com acabar com os deuses ou espíritos. Enfim, não parece que um dia veremos as religiões acabarem porque elas se adaptam, e como a vida é mesmo cheia de dúvidas e inseguranças, o terreno para o sapiens atormentado nunca acabará.
Outra questão importante é: as religiões dizem a mesma coisa? É possível tornar os religiosos todos irmãos no amor e na paz? Sinto muito, a resposta é um claro “não”. Os religiosos têm uma história maior de violência do que de paz, mesmo que em nome do amor de Deus e sua verdade. Quem estuda a fundo as religiões de modo comparativo sabe que elas não dizem a mesma coisa porque, de cara, não falam a mesma língua, e, portanto, seus conceitos e ideias dependem da língua e dos contextos históricos e sociais em que nasceram e se desenvolveram. Quem acha que as religiões dizem a mesma coisa é porque nunca as estudou ou porque tem uma fé religiosa de que, ao final, o bem vencerá. E então vem a pergunta: qual bem? De quem? De qual texto? De qual mitologia? De qual narrativa moral religiosa? Quer um exemplo bem claro disso?
Pense em Jesus. Não existe cara mais legal do que ele. Agora lembre que os cristãos creem que ele seja Deus (pelo menos a maioria “oficial” dos crentes em Cristo, católicos ou protestantes), o que escandaliza judeus e muçulmanos que acreditam que Deus (é o mesmo Deus) jamais “vestiria” um corpo humano. Os cristãos pensam que ele é o Messias que os judeus esperam. Agora, imagine um seminário que reúna judeus e cristãos para discutir o caráter de Messias em Jesus. Penso que o coquetel teria de ser logo servido, porque cristãos acham que os judeus perderam o bonde e não perceberam que o Messias já veio 2 mil anos atrás, e os judeus acham que os cristãos compraram gato por lebre ao tomar Jesus como Messias. A solução é falar da importância do amor e da tolerância entre as religiões, porque discutir teologia vai dar pau. A única forma de fazer as religiões dizerem a mesma coisa é desidratá-las de parte de suas crenças: Jesus = Messias. Nesse caso específico, a comparação deve ser evitada em favor de traços mais éticos como amor, generosidade, aceitação do outro por parte da figura histórica de Jesus. Isso serve para todos os casos. Afinal, devemos aceitar Maomé como o último profeta de Deus? Existe reencarnação ou os kardecistas estão viajando? Quem tem a última palavra na interpretação dos textos sagrados? Deve-se ou não matar bichos e oferecê-los aos deuses? É um Deus só, uma Deusa ou Deuses? Deus é contra matar? No texto bíblico, ele mata egípcios, cananeus, hebreus, filisteus, e por aí vai. A solução contemporânea é optar pelo convívio político de tolerância dentro de uma sociedade que só não aceita que não paguemos a fatura do Visa, e não entrar em detalhes teológicos. Por isso, devemos dizer que Jesus, Buda e Che são todos os mesmos (e lutam pela paz, o que no caso de Che é uma mentira deslavada) e servir o jantar. E daí criarmos uma teologia que diga tudo e nada ao mesmo tempo, para não criar conflitos. Logo, as religiões não dizem a mesma coisa, nem sempre elas pregam o amor a todos porque os homens não podem amar a todos o tempo todo.
Outra saída é afirmar que Deus é sempre um só, e que os místicos sabem disso, porque entram em contato com Ele para além das palavras. Ainda assim, nem todos os místicos dizem a mesma coisa, pois uns falam do Deus pessoal, de Jesus; outros, os orientais (ou alguns cristãos “hereges” como Mestre Eckhart no século XIV, ou cabalistas da Espanha medieval), falam de um “nada” acima de Deus ou dos deuses.
Mas a simplificação a serviço de uma religião menos conflituosa criou um “produto” que se chama espiritualidade, fazendo uso de uma palavra francesa surgida, até onde se sabe, no século XVII, que significava a vida do espírito humano em contato com Deus. O que vem a ser essa tal espiritualidade?
A palavra, como acabei de dizer, na sua origem fala da vida do espírito em contato com Deus. Na Bíblia hebraica (que os cristãos chamam de Velho Testamento), Deus dá o espírito ao homem para que por ele possamos nos comunicar com Ele, Deus; portanto, é uma dimensão superior que só homens e mulheres têm. Na Grécia, espírito era só um ar (pneuma) que saía pela boca na hora da morte (segundo o famoso filósofo grego Epicuro, que viveu entre 341 e 270 a.C.). Outros, como Aristóteles (384-322 a.C.), falavam em nous (intelecto), mas essa ideia dele foi assimilada por cristãos, judeus e muçulmanos como “espírito”. No início do cristianismo, gnósticos falavam em pneumáticos como os verdadeiros cristãos, porque tinham pneuma, espírito, muito mais próximo da ideia hebraica. A palavra espiritualidade em seu uso contemporâneo e de senso comum (ou seja, usada por gente comum e não especialistas) significa ter “um pouco” de religião, mas não muito. O bastante para você não se sentir um materialista que só acredita em dinheiro e átomos. E para mostrar que você é uma pessoa um pouco profunda. Na prática, significa quase nada. Talvez ler uma revista sobre natureza, ter uma alimentação balanceada, praticar turismo selvagem ou budismo light para ricos e famosos. Mas essa forma de espiritualidade de consumo serve pouco na hora do vamos ver, porque não tem aquele cotidiano de que falei antes e se faz necessário para a religião “fazer efeito”. A vantagem dela, a leveza e a falta de compromisso institucional, que tanto atraem os mais ricos e famosos, na hora do vamos ver, é sua fraqueza. Essa espiritualidade contemporânea vale tanto quanto o vento que passa.
Existe algo mais a ser dito sobre religião e espiritualidade, mas isso merece um capítulo à parte, o seguinte.

   (Pondé, Luiz Felipe - Filosofia para corajosos) 

publicado às 00:41

Pág. 1/3



Mais sobre mim

foto do autor


Pesquisar

Pesquisar no Blog

Arquivo

  1. 2018
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2017
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2016
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2015
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2014
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2013
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2012
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2011
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2010
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2009
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2008
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
  144. 2007
  145. J
  146. F
  147. M
  148. A
  149. M
  150. J
  151. J
  152. A
  153. S
  154. O
  155. N
  156. D

subscrever feeds