Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]




A lei da religião

por Thynus, em 31.01.16
Nos 300 anos decorridos desde a crucificação de Cristo até a conversão do imperador Constantino, os imperadores romanos politeístas iniciaram não mais que quatro perseguições gerais aos cristãos. Os administradores e governantes locais também incitaram certa violência contra os cristãos. Ainda assim, se considerarmos todas as vítimas de todas essas perseguições, veremos que, nesses três séculos, os romanos politeístas mataram não mais que alguns milhares de cristãos.
Os cristãos, por sua vez, ao longo dos 15 séculos seguintes, assassinaram cristãos aos milhões por defenderem interpretações ligeiramente diferentes da religião do amor e da compaixão.
 
A chamada "civilização cristã ocidental" nasce no dia em que os líderes de uma nascente religião se deram conta de ter um deus todo-poderoso, mas não uma espada com que levar o seu verbo pelo mundo; enquanto o imperador de Roma se deu conta de ter uma espada poderosa, mas não um ideal superior ao qual legá-la. Foi assim que numa noite Constantino… "sonhou" que um anjo lhe mostrou uma cruz e lhe disse "In hoc signo vinces" ("Por este sinal conquistarás ")
E o Sacro Império Romano nasceu.
(In hoc signo vinces)
 
“A intolerância é intrínseca apenas ao monoteísmo: um deus único é, por natureza, um deus ciumento, que não tolera nenhum outro além dele mesmo.”
 
"Os homens nunca fazem o mal
tão plenamente e com tanto entusiasmo
como quando o fazem por convicção religiosa"
(Pascal
 
O monoteísmo é filho da escrita. Sem a escrita, não havreia a Torá, a Bíblia e o Alcorão
 
 
NO MERCADO MEDIEVAL EM SAMARCANDA, UMA CIDADE CONSTRUÍDA EM UM OÁSIS no centro da Ásia, mercadores sírios acariciavam finas sedas chinesas, membros de tribos ferozes das estepes exibiam o último lote de escravos de cabelo de palha do extremo oeste, e lojistas embolsavam moedas de ouro brilhantes gravadas com letras exóticas e imagens de reis pouco familiares. Ali, na época uma das principais encruzilhadas entre Ocidente e Oriente, Norte e Sul, a unificação da humanidade era um fato cotidiano. O mesmo processo pôde ser observado quando o exército de Kublai Khan se reuniu para invadir o Japão em 1281. Cavaleiros mongóis usando peles de animais lutavam lado a lado com soldados de infantaria chineses que usavam chapéus de bambu, auxiliares coreanos bêbados brigavam com marinheiros tatuados do mar do sul da China, engenheiros da Ásia Central ouviam boquiabertos as histórias fantásticas das aventuras europeias, e todos obedeciam ao comando de um único imperador.
Enquanto isso, em volta da Caaba sagrada em Meca, a unificação humana acontecia por outros meios. Se você fosse um peregrino em Meca, circundando o santuário mais sagrado do Islã no ano 1300, possivelmente se veria na companhia de um grupo da Mesopotâmia, com suas túnicas flutuando ao vento, os olhos brilhando em êxtase e a boca repetindo, um após outro, os 99 nomes de Deus. Logo à frente você poderia ver um patriarca turco castigado pelo clima das estepes asiáticas, andando pesadamente com um cajado e acariciando a barba de modo pensativo. De um lado, com joias de ouro reluzindo sobre a pele cor de azeviche, poderia haver um grupo de muçulmanos do reino africano de Mali. O aroma de cravo, cúrcuma, cardamomo e sal marinho teria sinalizado a presença de irmãos da Índia, ou, talvez, das misteriosas ilhas de especiarias mais ao leste. Hoje a religião é, muitas vezes, considerada uma fonte de discriminação, desavença e desunião. Mas, na verdade, a religião foi o terceiro maior unificador da humanidade, junto com o dinheiro e os impérios. Uma vez que todas as hierarquias e ordens sociais são imaginadas, elas são todas frágeis, e, quanto maior a sociedade, mais frágil ela é. O papel histórico crucial da religião foi dar legitimidade sobre-humana a essas estruturas frágeis. As religiões afirmam que nossas leis não são resultado de capricho humano, e sim determinadas por uma autoridade suprema e absoluta. Isso ajuda a tornar inquestionáveis pelo menos algumas leis fundamentais, garantindo, desse modo, a estabilidade social.
A religião pode ser definida, portanto, como um sistema de normas e valores humanos que se baseia na crença em uma ordem sobre-humana. Isso envolve dois critérios distintos: (1) A religião postula a existência de uma ordem sobre-humana, que não é produto de caprichos ou acordos humanos. O futebol profissional não é uma religião, porque, apesar de suas muitas leis, cerimônias e, com frequência, rituais estranhos, todos sabemos que os próprios seres humanos inventaram o futebol, e a FIFA pode, a qualquer momento, aumentar o tamanho da goleira ou anular a regra do impedimento.
(2) Com base nessa ordem sobre-humana, a religião estabelece normas e valores que considera obrigatórios. Hoje, muitos ocidentais acreditam em fantasmas, fadas e reencarnação, mas essas crenças não dão origem a padrões morais e de comportamento. Sendo assim, não constituem uma religião.
Apesar de sua capacidade de legitimar ordens políticas e sociais disseminadas, nem todas as religiões usaram esse potencial. A fim de unir sob sua égide uma grande extensão de território habitado por grupos diferentes de seres humanos, uma religião precisa ter outras duas qualidades. Em primeiro lugar, precisa sustentar uma ordem sobre-humana abrangente que seja verdadeira sempre e em toda parte. Em segundo lugar, precisa insistir em difundir essa crença para todos. Dito de outro modo, precisa ser universal e missionária.
As religiões mais conhecidas da história, como o islamismo e o budismo, são universais e missionárias. Em consequência, as pessoas tendem a acreditar que todas as religiões são como elas. Na verdade, a maioria das religiões antigas eram locais e exclusivas. Seus seguidores acreditavam em espíritos e deidades locais e não tinham interesse algum em converter toda a raça humana. Até onde sabemos, as religiões universais e missionárias só começaram a aparecer no primeiro milênio a.C. Seu surgimento foi uma das revoluções mais importantes da história e fez uma contribuição vital à unificação da humanidade, assim como o surgimento de impérios universais e do dinheiro universal.

Silenciando os inocentes
Quando o animismo era o sistema de crença dominante, as normas e os valores humanos tinham de levar em consideração a perspectiva e os interesses de uma infinidade de outros seres, tais como animais, plantas, fadas e fantasmas. Por exemplo, um bando de caçadores-coletores no vale do Ganges pode ter estabelecido uma lei proibindo as pessoas de cortarem uma figueira particularmente grande, para evitar que o espírito da figueira ficasse furioso e se vingasse. Outro bando de caçadores-coletores vivendo no vale do Indo pode ter proibido as pessoas de caçar raposas de cauda branca, porque uma raposa de cauda branca certa vez revelou a uma velha sábia onde o bando poderia encontrar obsidiana preciosa.
Tais religiões tendiam a ter uma perspectiva muito local e a enfatizar as características singulares de lugares, climas e fenômenos específicos. A maioria dos caçadores-coletores passava a vida inteira em uma área de não mais de mil quilômetros quadrados. Para sobreviver, os habitantes de um determinado vale precisavam entender a ordem sobre-humana que regulava esse vale e adequar seu comportamento a tal ordem. Não fazia sentido tentar convencer os habitantes de um vale distante a seguir as mesmas regras. As pessoas do Indo não se preocupavam em enviar missionários ao Ganges para convencer os locais a não caçarem raposas de cauda branca.
A Revolução Agrícola parece ter sido acompanhada de uma revolução religiosa. Os caçadores-coletores caçavam animais selvagens e coletavam plantas silvestres, que podiam ser vistos como iguais em status ao Homo sapiens. O fato de que os homens caçavam ovelhas não tornava as ovelhas inferiores aos homens, assim como o fato de que os tigres caçavam homens não tornava os homens inferiores aos tigres. Os seres se comunicavam diretamente uns com os outros e negociavam as regras que governavam o habitat por eles partilhado. Já os agricultores possuíam e manipulavam plantas e animais e dificilmente se rebaixavam ao negociar suas posses. Portanto, o primeiro efeito religioso da Revolução Agrícola foi transformar as plantas e os animais de membros iguais de uma mesa-redonda espiritual em propriedade.
Isso, no entanto, criou um grande problema. Os agricultores podem ter desejado o controle absoluto de suas ovelhas, mas sabiam perfeitamente bem que seu controle era limitado. Eles podiam trancar as ovelhas em currais, castrar os carneiros e criar ovelhas seletivamente, mas não tinham como garantir que as ovelhas conceberiam e dariam à luz cordeiros saudáveis, tampouco tinham como evitar a erupção de epidemias mortais. Como, então, proteger a fecundidade dos bandos? Uma teoria bastante aceita sobre a origem dos deuses afirma que estes ganharam importância porque ofereciam uma solução para tal problema. Deuses como a deusa da fertilidade, o deus do céu e o deus da medicina se tornaram protagonistas quando plantas e animais perderam sua capacidade de falar, e a principal função dos deuses era fazer a mediação entre os humanos e as plantas e os animais calados. Grande parte da mitologia antiga é, na verdade, um contrato em que os humanos prometem a devoção eterna aos deuses em troca do domínio de plantas e animais – os primeiros capítulos do livro do Gênesis são um exemplo excelente. Durante milhares de anos após a Revolução Agrícola, a liturgia religiosa consistiu principalmente em humanos sacrificando cordeiros e ofertando-os com pão e vinho aos poderes divinos, que, por sua vez, prometiam colheitas abundantes e rebanhos fecundos.
No início, a Revolução Agrícola teve um impacto muito menor no status de outros membros do sistema animista, como rochas, nascentes, fantasmas e demônios. No entanto, pouco a pouco estes também perderam status em favor dos novos deuses. Enquanto as pessoas passavam a vida toda em territórios limitados de algumas centenas de quilômetros quadrados, a maior parte de suas necessidades podia ser atendida por espíritos locais. Mas, quando os reinos e as redes de comércio se expandiram, as pessoas precisaram contatar entidades cujo poder e autoridade abarcassem um reino inteiro ou uma região comercial inteira.
A tentativa de satisfazer essas necessidades levou ao surgimento de religiões politeístas (do grego poli = muitos e theos = deuses). Essas religiões entendiam que o mundo era controlado por um grupo de deuses poderosos, como a deusa da fertilidade, o deus da chuva e o deus da guerra. Os humanos podiam rogar a esses deuses, e os deuses podiam, se recebessem devoções e sacrifícios, dignar-se a trazer chuva, vitória e saúde.
O animismo não desapareceu totalmente com o advento do politeísmo. Demônios, fadas, fantasmas, rochas sagradas, nascentes sagradas e árvores sagradas continuaram sendo parte integral de quase todas as religiões politeístas. Esses espíritos eram muito menos importantes que os grandes deuses, mas eram bons o bastante para satisfazer as necessidades mundanas de muitas pessoas comuns. Enquanto o rei em sua capital sacrificava dezenas de carneiros gordos para o grande deus da guerra, rezando para que ele lhe concedesse a vitória sobre os bárbaros, o camponês em sua cabana acendia uma vela para a fada da figueira, rezando para que ela o ajudasse a curar seu filho doente. Mas o maior impacto da ascensão dos grandes deuses não foi sobre ovelhas ou demônios, e sim sobre o status do Homo sapiens. Os animistas acreditavam que os humanos fossem apenas uma das muitas criaturas que habitam o mundo. Os politeístas, por outro lado, cada vez mais viam o mundo como um reflexo da relação entre deuses e humanos. Nossas preces, nossos sacrifícios, nossos pecados e nossas boas ações determinavam o destino de todo o ecossistema. Uma inundação terrível poderia exterminar bilhões de formigas, gafanhotos, tartarugas, antílopes, girafas e elefantes, só porque alguns poucos sapiens estúpidos exasperaram os deuses. O politeísmo, portanto, exaltava não só o status dos deuses como também o da humanidade. Os membros menos afortunados do velho sistema animista perderam sua estatura e se tornaram figurantes ou objetos de cena silenciosos no grande drama da relação do homem com os deuses.

Os benefícios da idolatria
Dois mil anos de lavagem cerebral monoteísta fizeram com que a maioria dos ocidentais veja o politeísmo como uma idolatria ignorante e infantil. Esse é um estereótipo injusto. Para entender a lógica inerente ao politeísmo, é necessário compreender a ideia central por trás da crença em muitos deuses.
O politeísmo não necessariamente contesta a existência de um único poder ou lei que governa o universo inteiro. Na verdade, a maioria das religiões politeístas e mesmo animistas reconhecia tal poder supremo por trás dos diferentes deuses, demônios e rochas sagradas. No politeísmo grego clássico, Zeus, Hera, Apolo e seus colegas estavam sujeitos a um poder onipotente que abarcava tudo – o Destino (Moira, Ananke). Os deuses nórdicos também eram servos do destino, que os condenou a perecer no cataclismo de Ragnarök (o Crepúsculo dos Deuses). Na religião politeísta dos iorubás, da África Ocidental, todos os deuses nasciam do deus supremo Olodumare e continuavam sujeitados a ele. No politeísmo hindu, um único princípio, Atman, controla os vários deuses e espíritos, a humanidade e o mundo físico e biológico. Atman é a essência ou alma eterna de todo o universo, bem como de cada indivíduo e de cada fenômeno.
A ideia fundamental do politeísmo, que o distingue do monoteísmo, é que o poder supremo que governa o mundo é destituído de interesses e inclinações e, portanto, não está preocupado com os anseios, os cuidados e os desejos mundanos dos humanos. Não faz sentido pedir a esse poder a vitória na guerra, a saúde ou a chuva, porque de sua perspectiva universal não faz diferença se um reino específico ganha ou perde, se uma cidade específica prospera ou definha, se uma pessoa específica se recupera ou morre. Os gregos não desperdiçavam sacrifícios com o Destino, e os hindus não construíam templos para Atman.
O único motivo para abordar o poder supremo do universo seria para renunciar a todos os desejos e abraçar o mal junto com o bem – abraçar até mesmo a derrota, a pobreza, a doença e a morte. Desse modo, alguns hindus, conhecidos como sadhus ou sannyasis, dedicam a vida a se unir com Atman, atingindo assim a iluminação. Eles se esforçam para ver o mundo do ponto de vista desse princípio fundamental, para perceber que, de sua perspectiva eterna, todos os desejos e temores mundanos são fenômenos efêmeros e sem sentido.
A maioria dos hindus, no entanto, não são sadhus. Eles estão imersos no lamaçal das preocupações mundanas, onde Atman não é de grande ajuda. Para obter auxílio em tais questões, os hindus se dirigem aos deuses com poderes parciais. Precisamente porque seus poderes são parciais em vez de universais, deuses como Ganesha, Lakshmi e Saraswati têm interesses e inclinações. Os humanos podem, portanto, negociar com esses poderes parciais e contar com sua ajuda a fim de vencer guerras e se recuperar de enfermidades.
Há, necessariamente, muitos desses poderes menores, já que, quando começamos a dividir o poder universal de um princípio supremo, inevitavelmente acabamos chegando a mais de uma deidade. Daí a pluralidade de deuses.
A ideia do politeísmo leva a uma tolerância religiosa muito maior. Como os politeístas acreditam, por um lado, em um poder supremo e completamente desinteressado e, por outro lado, em muitos poderes parciais e tendenciosos, não há dificuldade para os devotos de um deus aceitarem a existência e a eficácia de outros deuses. O politeísmo é inerentemente tolerante e raramente persegue “hereges” e “infiéis”.
Mesmo quando conquistaram impérios gigantescos, os politeístas não tentaram converter seus súditos. Os egípcios, os romanos e os astecas não enviaram missionários a terras estrangeiras para disseminar o culto a Osíris, Júpiter ou Huitzilopochtli (o principal deus asteca) e certamente não mandaram exércitos com esse propósito. Esperava-se que os súditos em todo o império respeitassem os deuses e os rituais do império, já que esses deuses e rituais protegiam e legitimavam o império. Mas não se exigia que eles abdicassem de seus deuses e rituais locais. No Império Asteca, os súditos eram obrigados a construir templos para Huitzilopochtli, mas esses templos eram construídos junto com os dos deuses locais, e não em substituição a eles. Em muitos casos, a própria elite imperial adotava os deuses e os rituais dos súditos. Os romanos incluíram de bom grado a deusa asiática Cibele e a deusa egípcia Ísis em seu panteão.
O único deus que, durante muito tempo, os romanos se recusaram a tolerar foi o deus monoteísta e evangelizador dos cristãos. O Império Romano não exigia que os cristãos abdicassem de suas crenças e rituais, mas esperavam que eles respeitassem os deuses protetores do Império e a divindade do imperador. Isso era visto como uma declaração de lealdade política. Quando os cristãos se recusaram veementemente a fazer isso, rejeitando todas as tentativas de se chegar a um acordo, os romanos reagiram perseguindo o que entendiam como uma facção politicamente subversiva. Nos 300 anos decorridos desde a crucificação de Cristo até a conversão do imperador Constantino, os imperadores romanos politeístas iniciaram não mais que quatro perseguições gerais aos cristãos. Os administradores e governantes locais também incitaram certa violência contra os cristãos. Ainda assim, se considerarmos todas as vítimas de todas essas perseguições, veremos que, nesses três séculos, os romanos politeístas mataram não mais que alguns milhares de cristãos.(W.H.C. Frend, Martyrdom and Persecution in the Early Church (Cambridge: James Clarke & Co., 2008), 536-537) Os cristãos, por sua vez, ao longo dos 15 séculos seguintes, assassinaram cristãos aos milhões por defenderem interpretações ligeiramente diferentes da religião do amor e da compaixão.
As guerras religiosas entre católicos e protestantes que varreram a Europa nos séculos XVI e XVII são particularmente conhecidas. Todos os envolvidos aceitavam a divindade de Cristo e Seu evangelho de amor e compaixão. No entanto, eles discordavam quanto à natureza desse amor. Os protestantes acreditavam que o amor divino é tão grande que Deus encarnou e se permitiu ser torturado e crucificado, redimindo, desse modo, o pecado original e abrindo as portas do Céu a todos aqueles que professassem a fé Nele. Os católicos defendiam que a fé, embora essencial, não era suficiente. Para entrar no Céu, os crentes tinham de participar de rituais na igreja e fazer boas ações. Os protestantes se recusavam a aceitar isso, argumentando que essa compensação diminuía a grandeza e o amor de Deus. Quem quer que pense que a entrada no Céu depende de suas boas ações magnifica sua própria importância e insinua que o sofrimento de Cristo na cruz e o amor de Deus pela humanidade não são suficientes.
Essas disputas teológicas ficaram tão violentas que durante os séculos XVI e XVII católicos e protestantes mataram uns aos outros às centenas de milhares. Em 23 de agosto de 1572, católicos franceses, que enfatizavam a importância de boas ações, atacaram comunidades de protestantes franceses, que salientavam o amor de Deus pela humanidade. Nesse ataque, o Dia do Massacre de São Bartolomeu, entre 5 mil e 10 mil protestantes foram assassinados em menos de 24 horas. Quando o papa em Roma ficou sabendo do ocorrido na França, foi tomado de tanta alegria que organizou preces festivas para celebrar a ocasião e encarregou Giorgio Vasari de decorar um dos aposentos do Vaticano com um afresco do massacre (o aposento atualmente está inacessível aos visitantes).(Robert Jean Knecht, The Rise and Fall of Renaissance France, 1483-1610 (Londres: Fontana Press, 1996), 424) Mais cristãos foram mortos por outros cristãos naquelas 24 horas do que pelo Império Romano politeísta durante toda a sua existência.

Deus é um só
Com o tempo alguns seguidores de divindades politeístas apegaram-se tanto a seu deus que acabaram por se afastar da ideia politeísta básica. Eles começaram a acreditar que seu deus era o único Deus, e que Ele era, na verdade, o poder supremo do universo. Porém, ao mesmo tempo, continuaram a vê- Lo como tendo interesses e inclinações, e acreditaram que poderiam chegar a acordos com Ele. Assim nasceram as religiões monoteístas, cujos seguidores rogam ao poder supremo do universo auxílio para se recuperar de uma doença, ganhar na loteria e vencer uma guerra.
A primeira religião monoteísta de que temos notícia apareceu no Egito por volta de 1350 a.C., quando o faraó Aquenáton declarou que uma das deidades menores do panteão egípcio, o deus Aton, era, na verdade, o poder supremo governando o universo. Aquenáton institucionalizou o culto a Aton como religião do Estado e tentou controlar o culto a todos os outros deuses. Sua revolução religiosa, no entanto, não teve êxito. Após sua morte, o culto a Aton foi abandonado em favor do antigo panteão.
Aqui e ali, o politeísmo continuou a dar origem a outras religiões monoteístas, mas elas permaneceram marginais, sobretudo porque foram incapazes de condensar sua própria mensagem universal. O judaísmo, por exemplo, afirmava que o poder supremo do universo tem interesses e inclinações, mas seu principal interesse é na minúscula nação judaica e na obscura terra de Israel. O judaísmo tinha pouco a oferecer a outras nações e durante a maior parte de sua existência não foi uma religião missionária. Esse estágio pode ser chamado de estágio do “monoteísmo local”.
O grande avanço veio com o cristianismo. Essa fé começou como uma seita judaica esotérica que procurava convencer os judeus de que Jesus de Nazaré era seu tão esperado messias. No entanto, um dos primeiros líderes da seita, Paulo de Tarso, ponderou que, se o poder supremo do universo tem interesses e inclinações, e se Ele se deu ao trabalho de encarnar e morrer na cruz para a salvação da humanidade, então isso é algo que deve ser comunicado a todos, e não só aos judeus. Portanto, era necessário difundir a boa palavra – o evangelho – sobre Jesus para o mundo inteiro.
Os argumentos de Paulo caíram em solo fértil. Em toda parte, os cristãos começaram a organizar atividades missionárias dirigidas a todos os humanos. Em uma das guinadas mais estranhas da história, essa seita judaica esotérica controlou o poderoso Império Romano.
O sucesso dos cristãos serviu de modelo para outra religião monoteísta que apareceu na Península Arábica no século XVII: o islamismo. Como o cristianismo, o islamismo também começou como uma pequena seita em um canto remoto do mundo, mas em uma surpresa histórica ainda mais estranha e mais rápida, conseguiu escapar dos desertos da Arábia e conquistar um império imenso que ia do oceano Atlântico à Índia. Daí em diante, a ideia monoteísta exerceu um papel central na história mundial.
Os monoteístas são no geral muito mais fanáticos e missionários que os politeístas. Uma religião que reconhece a legitimidade de outras crenças implica ou que seu deus não é o deus supremo do universo, ou que ela recebeu de Deus apenas parte da verdade universal. Como os monoteístas costumam acreditar que são detentores de toda a mensagem de um único Deus, são compelidos a descrer de todas as outras religiões. Nos últimos dois milênios, os monoteístas tentaram, repetidas vezes, se fortalecer exterminando de maneira violenta toda concorrência. Funcionou. No começo do século I, quase não havia monoteístas no mundo. Por volta do ano 500, um dos maiores impérios do mundo – o império romano – era um regime cristão, e os missionários estavam ocupados difundindo o cristianismo para outras partes da Europa, da Ásia e da África. No fim do primeiro milênio da era cristã, a maioria das pessoas na Europa, no oeste da Ásia e na África do Norte eram monoteístas, e impérios do oceano Atlântico ao Himalaia afirmavam ser ordenados pelo único grande Deus. No início do século XVI, o monoteísmo dominou a maior parte da Afro-Ásia, com exceção do leste da Ásia e de partes no sul da África, e começou a estender seus tentáculos para a África do Sul, a América e a Oceania. Hoje, a maioria das pessoas fora do leste da Ásia segue alguma religião monoteísta, e a ordem política global foi erguida sobre bases monoteístas.
Mas, assim como o animismo continuou a sobreviver no interior do politeísmo, o politeísmo também continuou a sobreviver no interior do monoteísmo. Em teoria, quando uma pessoa acredita que o poder supremo do universo tem interesses e inclinações, qual o sentido de cultuar poderes parciais? Quem ia querer conversar com um burocrata inferior quando o gabinete do presidente está à disposição? A teologia monoteísta tende a negar a existência de todos os deuses exceto o Deus supremo e a condenar ao fogo do inferno qualquer um que ouse cultuá-los.
Mas sempre houve um cisma entre as teorias teológicas e as realidades históricas. A maioria das pessoas considerou difícil assimilar totalmente a ideia monoteísta. Elas continuaram a dividir o mundo em “nós” e “eles” e a ver o poder supremo do universo como estranho e distante demais para suas necessidades mundanas. As religiões monoteístas expulsaram os deuses pela porta da frente com muito barulho, para em seguida aceitá-los de volta pela janela lateral. O cristianismo, por exemplo, desenvolveu seu próprio panteão de santos, cujos cultos pouco diferiam dos cultos aos deuses politeístas.
Assim como o deus Júpiter defendia Roma e Huitzilopochtli protegia o Império Asteca, todo reino cristão tinha seu próprio santo patrono que o ajudava a superar dificuldades e vencer guerras. A Inglaterra era protegida por São Jorge; a Escócia, por Santo André; a Hungria, por Santo Estêvão; e a França, por São Martinho. Cidades e vilas, profissões e até mesmo doenças – cada uma delas tinha seu próprio santo. A cidade de Milão tinha Santo Ambrósio, ao passo que São Marcos protegia Veneza. São Floriano protegia os limpadores de chaminés, enquanto são Mateus ajudava os cobradores de impostos em desespero. Se você tivesse dor de cabeça, teria de rezar para santo Acácio, mas, se tivesse dor de dente, santa Apolônia era uma plateia melhor.
Os santos cristãos não só lembravam os velhos deuses politeístas como, muitas vezes, eram esses mesmos deuses disfarçados. Por exemplo, a principal deusa da Irlanda celta antes da chegada do cristianismo era Brígida. Quando a Irlanda foi cristianizada, Brígida também foi batizada. Ela se tornou santa Brígida, que até hoje é a santa mais reverenciada na Irlanda católica.

A batalha entre o bem e o mal
O politeísmo deu origem não só a religiões monoteístas como também a religiões dualistas. Estas reconhecem a existência de dois poderes opostos: o bem e o mal. Ao contrário do monoteísmo, o dualismo acredita que o mal é um poder independente, nem criado pelo Deus bom e nem subordinado a ele. O dualismo explica que todo o universo é um campo de batalha entre essas duas forças e que tudo que acontece no mundo é parte dessa batalha.
O dualismo é uma visão de mundo muito atraente, porque tem uma resposta simples e sucinta para o famoso problema do mal, uma das preocupações fundamentais do pensamento humano. “Por que há mal no mundo? Por que há sofrimento? Por que acontecem coisas ruins com pessoas boas?” Os monoteístas têm de praticar uma ginástica intelectual para explicar como um Deus onisciente, todo-poderoso e perfeitamente bom permite tanto sofrimento no mundo. Uma explicação conhecida é que essa é a maneira que Deus encontrou de dotar os humanos de livre-arbítrio. Se não houvesse mal, os humanos não poderiam escolher entre o bem e o mal; por conseguinte, não haveria livre-arbítrio. Isso, no entanto, é uma resposta pouco intuitiva que imediatamente levanta uma série de novas perguntas. O livre-arbítrio permite que os humanos escolham o mal. Com efeito, muitos escolhem o mal, e, de acordo com o relato monoteísta padrão, essa escolha deve ter como consequência a punição divina. Se Deus soubesse de antemão que determinada pessoa usaria seu livre-arbítrio para escolher o mal, e que, em consequência, ela seria punida por isso com torturas eternas no Inferno, por que Deus a criaria? Os teólogos escreveram inúmeros livros para responder a tais perguntas. Alguns consideram as respostas convincentes. Outros não. O que é inegável é que os monoteístas têm dificuldade de lidar com o problema do mal.
Para os dualistas, é fácil explicar o mal. Coisas ruins acontecem até mesmo para pessoas boas porque o mundo não é governado tão-somente por um Deus bom. Há um poder maligno independente à solta no mundo. O poder maligno faz coisas ruins.
O dualismo tem suas próprias desvantagens. Embora ofereça uma solução para o problema do mal, é incomodada pelo problema da ordem. Se o mundo foi criado por um só Deus, fica claro por que razão trata-se de um lugar tão ordeiro, onde tudo segue as mesmas leis. Mas se o Bem e o Mal lutam pelo controle do mundo, quem faz com que se cumpram as leis que governam essa guerra cósmica? Dois Estados rivais podem lutar um com o outro porque ambos obedecem às mesmas leis da física. Um míssil lançado do Paquistão pode acertar alvos na Índia porque a gravidade funciona do mesmo jeito em ambos os países. Quando Deus e o Diabo lutam, a que leis em comum obedecem, e quem decretou essas leis?
Assim, o monoteísmo explica a ordem, mas não o mal. O dualismo oferece uma explicação para o mal, mas não para a questão da ordem. Há uma maneira lógica de resolver essa charada: afirmar que há um único Deus onipotente que criou o universo inteiro – e Ele é um Deus maligno. Mas ninguém, em toda a história, teve estômago para tal crença.
As religiões dualistas floresceram por mais de mil anos. Em algum momento entre 1500 a.C. e 1000 a.C., um profeta chamado Zoroastro (Zaratustra) teve voz ativa em algum lugar no centro da Ásia. Seu credo passou de geração em geração até que se tornou a mais importante das religiões dualistas: o zoroastrismo. Os zoroastristas viam o mundo como uma batalha cósmica entre o deus bom Ahura Mazda e o deus mau Angra Mainyu. Os humanos tinham de ajudar o deus bom nessa batalha. O zoroastrismo foi uma religião importante durante o Império Persa Aquemênida (550-330 a.C.) e mais tarde se tornou a religião oficial do Império Persa Sassânida (224-651). Ele exerceu grande influência sobre quase todas as religiões subsequentes no Oriente Médio e no centro da Ásia e inspirou uma série de outras religiões dualistas, como o gnosticismo e o maniqueísmo.
Durante os séculos III e IV, o credo maniqueísta se alastrou da China à África do Norte e por um momento pareceu que derrotaria o cristianismo para se tornar a religião predominante no Império Romano. Mas os maniqueístas perderam a alma de Roma para os cristãos, o Império Sassânida zoroastrista foi derrotado por muçulmanos monoteístas, e a onda dualista se acalmou. Hoje, apenas um punhado de comunidades dualistas sobrevive na Índia e no Oriente Médio. No entanto, a onda cada vez maior de monoteísmo não eliminou verdadeiramente o dualismo. O monoteísmo judeu, cristão e muçulmano absorveu inúmeras crenças e práticas dualistas, e algumas das ideias mais elementares do que chamamos “monoteísmo” são, na verdade, dualistas em origem e espírito. Muitos cristãos, muçulmanos e judeus acreditam numa poderosa força do mal – como a que os cristãos chamam de diabo ou satã – que pode agir autonomamente, combater o Deus benévolo e criar destruição sem a permissão de Deus.
Como pode um monoteísta aderir a tal crença dualista (que, aliás, não é encontrada em lugar nenhum no Velho Testamento)? Logicamente, é impossível. Ou você acredita em um único Deus onipotente ou você acredita em duas forças opostas, nenhuma das quais é onipotente. Porém, os humanos têm uma capacidade incrível de acreditar em contradições. Então não deveria nos causar surpresa o fato de milhões de fiéis cristãos, muçulmanos e judeus conseguirem acreditar ao mesmo tempo em um Deus onipotente e em um Diabo autônomo. Muitos cristãos, muçulmanos e judeus chegaram a imaginar que o Deus bom até mesmo precisa da nossa ajuda em sua luta contra o Diabo, o que os inspirou, entre outras coisas, a convocar os jihads e as cruzadas.
Outro conceito dualista essencial, em particular no gnosticismo e no maniqueísmo, era a nítida distinção entre corpo e alma, entre matéria e espírito. Os gnósticos e os maniqueístas afirmavam que o deus bom criou o espírito e a alma, ao passo que a matéria e o corpo foram criação do deus mau. O homem, de acordo com essa visão, serve como um campo de batalha entre a alma boa e o corpo mau. De uma perspectiva monoteísta, isso não faz sentido – por que distinguir tão nitidamente entre corpo e alma, ou entre matéria e espírito? E por que argumentar que o corpo e a matéria são maus? Afinal, tudo foi criado pelo mesmo Deus bom. Mas os monoteístas se deixaram cativar por dicotomias dualistas, precisamente porque elas os ajudavam a resolver o problema do mal. Desse modo, tais oposições acabaram por se tornar pilares do pensamento cristão e muçulmano. A crença no Céu (o reino do deus bom) e no Inferno (o reino do deus mau) também tem origem dualista. Não há nenhum vestígio dessa crença no Velho Testamento, que tampouco afirma que a alma das pessoas continua a viver após a morte do corpo.
Na verdade, o monoteísmo, tal como se desenvolveu ao longo da história, é um caleidoscópio de legados monoteístas, dualistas e politeístas que se misturam sob um único conceito divino. O cristão típico acredita no Deus monoteísta, mas também no Diabo dualista, em santos politeístas e em fantasmas animistas. Os estudiosos das religiões têm um nome para essa aceitação simultânea de ideias diferentes e até mesmo contraditórias e a combinação de rituais e práticas tirados de fontes diferentes: sincretismo. O sincretismo talvez seja, de fato, a única grande religião mundial.

A lei da natureza
Todas as religiões que discutimos até agora têm em comum uma característica importante: giram em torno de uma crença em deuses e em outras entidades sobrenaturais. Isso parece óbvio para os ocidentais, que estão familiarizados principalmente com credos monoteístas e politeístas. No entanto, a história religiosa do mundo não se resume à história dos deuses. Durante o primeiro milênio a.C., religiões de um tipo totalmente diferente começaram a se espalhar pela Afro-Ásia. As recémchegadas, como o jainismo e o budismo na Índia, o taoismo e o confucionismo na China e o estoicismo, o cinismo e o epicurismo na bacia do Mediterrâneo, se caracterizavam por prescindir dos deuses.
Esses credos sustentavam que a ordem sobre-humana que governa o mundo é produto de leis naturais, e não de vontades e caprichos divinos. Parte dessas religiões baseadas em leis naturais continuou a aceitar a existência de deuses, mas seus deuses estavam sujeitos às leis da natureza tanto quanto os humanos, os animais e as plantas. Os deuses tinham seu nicho no ecossistema, assim como elefantes e porcos-espinhos tinham os seus, mas, como os elefantes, não podiam mudar as leis da natureza. Um ótimo exemplo é o budismo, a mais importante das antigas religiões baseadas em leis naturais, até hoje um dos credos principais.
A figura central do budismo não é um deus, e sim um ser humano, Sidarta Gautama. De acordo com a tradição budista, Gautama era herdeiro de um pequeno reino no Himalaia, em algum momento por volta de 500 a.C. O jovem príncipe ficou profundamente abalado com o sofrimento que viu à sua volta. Ele viu que homens e mulheres, crianças e velhos; todos sofriam não só de calamidades ocasionais como guerra e praga, mas também de ansiedade, frustração e descontentamento, que pareciam ser parte inseparável da condição humana. As pessoas almejam riqueza e poder, adquirem conhecimento e posses, geram filhos e filhas e constroem casas e palácios, mas, não importa o que conquistem, nunca estão contentes. Os que vivem na pobreza sonham com riquezas. Os que têm 1 milhão querem 2 milhões. Os que têm 2 milhões querem 10. Mesmo os ricos e famosos raramente estão satisfeitos. Eles também são assombrados por preocupações e angústias incessantes, até que a doença, a idade avançada e a morte lhes dão um fim amargo. Tudo o que foi acumulado desaparece como fumaça. A vida é uma corrida desenfreada e sem sentido. Mas como escapar disso?
Com 29 anos, Gautama fugiu de seu palácio no meio da noite, deixando para trás sua família e suas posses. Ele viajou por todo o norte da Índia como um vagabundo sem teto, procurando uma forma de se livrar do sofrimento. Visitou ashrams e sentou aos pés de gurus, mas nenhum o libertou totalmente – sempre restava alguma insatisfação. Ele não se desesperou. Resolveu investigar o sofrimento por conta própria, até que descobriu um método para a libertação total. Passou seis anos meditando sobre a essência, as causas e as curas da angústia humana. No fim, chegou à conclusão de que o sofrimento não é causado por má sorte, por injustiças sociais ou por caprichos divinos. Na verdade, o sofrimento é causado pelos padrões de comportamento da nossa própria mente.
O que Gautama compreendeu é que não importa o que a mente experimente, ela geralmente reage com desejo, e o desejo sempre envolve insatisfação. Quando a mente experimenta algo desagradável, deseja se livrar da irritação. Quando experimenta algo agradável, deseja que o prazer permaneça e se intensifique. Desse modo, a mente está sempre insatisfeita e inquieta. Isso fica muito claro quando experimentamos coisas desagradáveis, como dor. Enquanto a dor persiste, estamos insatisfeitos e fazemos tudo que está a nosso alcance para evitá-la. Mas mesmo quando experimentamos coisas agradáveis nunca estamos contentes. Tememos que o prazer desapareça, ou esperamos que se intensifique. As pessoas sonham durante anos em encontrar o amor, mas raramente ficam satisfeitas quando o encontram. Algumas temem que o parceiro as deixe; outras sentem que se contentaram com pouco e que poderiam ter encontrado alguém melhor. E todos conhecemos pessoas que conseguem sentir as duas coisas ao mesmo tempo.
Grandes deuses podem nos enviar chuva, instituições sociais podem proporcionar justiça e um bom serviço de saúde, e coincidências afortunadas podem nos transformar em milionários, mas nada disso pode mudar nossos padrões mentais elementares. Por isso, até mesmo os maiores reis estão condenados a viver em agonia, fugindo constantemente da tristeza e da angústia, o tempo todo indo atrás de prazeres maiores.
Gautama descobriu que havia uma maneira de escapar desse ciclo vicioso. Se, quando sentir algo agradável ou desagradável, a mente simplesmente entender as coisas como são, não haverá sofrimento. Se você vivenciar a tristeza sem desejar que a tristeza desapareça, continuará a sentir tristeza, mas não sofrerá com isso. Com efeito, pode haver riqueza na tristeza. Se você vivenciar a alegria sem desejar que a alegria perdure e se intensifique, continuará a sentir alegria sem perder a paz de espírito.
Mas como fazer com que a mente aceite as coisas como são, sem desejar? Aceitar a tristeza como tristeza, a alegria como alegria, a dor como dor? Gautama desenvolveu um conjunto de técnicas meditativas que treinam a mente para experimentar a realidade tal como é, sem desejos. Essas práticas nos ensinam a focar toda a atenção na pergunta “O que estou sentindo agora?” em vez de “O que eu preferiria estar sentindo?”. É difícil alcançar esse estado de espírito, mas não impossível. Gautama baseou essas técnicas de meditação em um conjunto de regras éticas para ajudar as pessoas a se concentrarem na experiência real e a evitarem cair em desejos e fantasias. Ele instruiu seus seguidores a evitarem o assassinato, o sexo promíscuo e o roubo, já que tais atos necessariamente alimentavam o fogo do desejo (de poder, de prazer sensual, ou de riqueza). Quando as chamas estão completamente extintas, o desejo é substituído por um estado de perfeito contentamento e serenidade, conhecido como nirvana (cujo significado literal é “a extinção do fogo”). Aqueles que alcançaram o nirvana se libertaram totalmente de todo sofrimento. Eles vivenciam a realidade com clareza absoluta, livres de fantasias e ilusões. Embora muito provavelmente ainda encontrem desprazer e dor, essas experiências não lhes causam sofrimento. Uma pessoa que não deseja não sofre.
De acordo com a tradição budista, o próprio Gautama alcançou o nirvana e se libertou totalmente do sofrimento. Daí em diante, ele ficou conhecido como “Buda”, que significa “o iluminado”. Buda passou o resto da vida explicando suas descobertas para outros, para que todos pudessem se livrar do sofrimento. Ele condensou seus ensinamentos em uma única lei: o sofrimento surge do desejo; a única forma de se livrar totalmente do sofrimento é se livrar totalmente do desejo; e a única forma de se livrar do desejo é ensinar a mente a experimentar a realidade tal como é. Essa lei, conhecida como dharma ou dhamma, é vista pelos budistas como uma lei universal da natureza. Que “o sofrimento surge do desejo” é sempre e em toda parte verdadeiro, assim como na física moderna “e” é sempre igual a “mc2”. Os budistas são pessoas que acreditam nessa lei e fazem dela o sustentáculo de todas as suas atividades. A crença em deuses, por outro lado, é de menor importância para eles. O primeiro princípio da religião monoteísta é “Deus existe. O que Ele quer de mim?”. O primeiro princípio do budismo é “O sofrimento existe. Como fugir dele?”.
O budismo não nega a existência de deuses – eles são descritos como seres poderosos que podem trazer chuvas e vitórias –, mas eles não têm influência alguma na lei segundo a qual o sofrimento deriva do desejo. Se a mente de uma pessoa for livre de todo desejo, nenhum deus poderá torná-la miserável. Por outro lado, quando o desejo surge na mente de uma pessoa, nem todos os deuses do universo reunidos são capazes de salvá-la do sofrimento.
Mas, de maneira muito similar às religiões monoteístas, as religiões pré-modernas baseadas em leis naturais, como o budismo, nunca se livraram totalmente do culto aos deuses. O budismo dizia às pessoas que elas deveriam almejar o objetivo supremo da completa libertação do sofrimento, e não algumas paradas ao longo do caminho, como prosperidade econômica e poder político. No entanto, 99% dos budistas não alcançam o nirvana, e mesmo que esperem alcançá-lo em alguma vida futura, dedicam a maior parte de sua vida presente à busca de realizações mundanas, de modo que continuam a cultuar vários deuses, como os deuses hindus na Índia, os deuses bön no Tibete e os deuses xintoístas no Japão.
Além disso, com o passar do tempo várias seitas budistas criaram panteões de budas e bodisatvas. Estes são seres humanos e não humanos com a capacidade de se livrar totalmente do sofrimento, mas que abriram mão dessa libertação por compaixão, a fim de ajudar os inúmeros seres que continuam presos no ciclo de sofrimento. Em vez de cultuar deuses, muitos budistas começaram a cultuar esses seres iluminados, pedindo ajuda não só para alcançar o nirvana como também para lidar com problemas mundanos. Assim, encontramos muitos budas e bodisatvas em todo o leste da Ásia que se dedicam a trazer chuvas, impedir pragas e até mesmo vencer guerras sanguinárias – em troca de preces, flores coloridas, incensos perfumados e oferendas de arroz e doces.

O culto do homem
Os últimos 300 anos muitas vezes são retratados como uma era de secularismo crescente, em que as religiões perderam cada vez mais sua importância. Se estamos falando de religiões teístas, isso é, em grande parte, correto. Mas, se levarmos em consideração as religiões baseadas em leis naturais, veremos que a modernidade é uma era marcada por intenso fervor religioso, esforços missionários sem paralelos e as guerras religiosas mais sanguinárias da história. A era moderna testemunhou a ascensão de uma série de religiões baseadas em leis naturais, como o liberalismo, o comunismo, o capitalismo, o nacionalismo e o nazismo. Esses credos não gostam de ser chamados de religiões e se referem a si mesmos como ideologias. Mas esse é apenas um exercício semântico. Se uma religião é um sistema de normas e valores humanos que se baseia na crença de uma ordem sobre-humana, então o comunismo soviético é uma religião tanto quanto o islamismo.
O islamismo é, obviamente, diferente do comunismo, porque o islamismo vê a ordem sobrehumana governando o mundo como o decreto de um deus criador onipotente, ao passo que o comunismo soviético não acreditava em deuses. Mas o budismo também dá pouca importância aos deuses, e ainda assim nós o classificamos como uma religião. Como os budistas, os comunistas acreditavam em uma ordem sobre-humana de leis naturais e imutáveis que devem guiar as ações humanas. Enquanto os budistas acreditam que a lei da natureza foi descoberta por Sidarta Gautama, os comunistas acreditavam que a lei da natureza foi descoberta por Karl Marx, Friedrich Engels e Vladimir Ilitch Lenin. A similaridade não termina aí. Como outras religiões, o comunismo também tem seus escritos sagrados e seus livros proféticos, como O Capital, de Marx, que previu que a história logo terminaria com a vitória inevitável do proletariado. O comunismo tinha seus feriados e festividades, como o Primeiro de Maio e o aniversário da Revolução de Outubro. Tinha teólogos adeptos da dialética marxista, e cada unidade no exército soviético tinha um capelão, chamado de comissário, que monitorava a devoção de soldados e oficiais. O comunismo teve mártires, guerras santas e heresias, como o trotskismo. O comunismo soviético foi uma religião fanática e missionária. Um comunista devoto não podia ser cristão nem budista, e se esperava que difundisse o evangelho de Marx e Lenin mesmo que isso lhe custasse a própria vida.
Alguns leitores podem se sentir desconfortáveis com essa linha de raciocínio. Se isso o faz se sentir melhor, continue chamando o comunismo de ideologia em vez de religião. Não faz diferença. Podemos dividir os credos em religiões centradas em deus e ideologias sem deus que afirmam se basear em leis naturais. Mas então, para sermos coerentes, precisaríamos catalogar pelo menos algumas seitas budistas, taoistas e estoicas como ideologias em vez de religiões. Por outro lado, devemos notar que a crença em deuses persiste no seio de muitas ideologias modernas e que algumas delas, mais notadamente o liberalismo, têm pouco sentido sem essa crença.
Seria impossível investigar, aqui, a história de todos os credos modernos, especialmente porque não há fronteiras claras entre eles. São tão sincréticos quanto o monoteísmo e o budismo popular. Assim como um budista pode cultuar deidades hindus e um monoteísta pode acreditar na existência de Satã, o norte-americano típico de nossos dias é simultaneamente um nacionalista (acredita na existência de uma nação norte-americana com um papel especial a exercer na história), capitalista de livre mercado (acredita que a competição aberta e a busca dos próprios interesses são as melhores maneiras de criar uma sociedade próspera) e humanista liberal (acredita que os humanos foram dotados pelo criador de certos direitos inalienáveis). O nacionalismo será discutido no capítulo 18. O capitalismo – a mais bem-sucedida das religiões modernas – tem um capítulo inteiro, o capítulo 16, que expõe suas principais crenças e rituais. Nas páginas restantes deste capítulo, abordarei as religiões humanistas.
As religiões teístas focam o culto aos deuses (por isso são chamadas “teístas”, da palavra grega para deus, theos). As religiões humanistas cultuam a humanidade ou, mais corretamente, o Homo sapiens. O humanismo é a crença de que o Homo sapiens tem uma natureza única e sagrada, que é fundamentalmente diferente da natureza de todos os outros animais e todos os outros fenômenos. Os humanistas acreditam que a natureza única do Homo sapiens é a coisa mais importante do mundo e determina o significado de tudo que acontece no universo. O bem supremo é o bem do Homo sapiens. O resto do mundo e todos os outros seres só existem para o benefício dessa espécie.
Todos os humanistas cultuam a humanidade, mas eles não concordam quanto à sua definição.
Os humanistas se dividiram em três seitas rivais que disputam a definição exata de “humanidade”, assim como seitas cristãs rivais disputaram a definição exata de Deus. Hoje, a seita humanista mais importante é o humanismo liberal, que acredita que “humanidade” é uma qualidade de indivíduos humanos, e que a liberdade de indivíduos é portanto sacrossanta. De acordo com os liberais, a natureza sagrada da humanidade reside em cada Homo sapiens individual. A essência dos indivíduos humanos dá significado ao mundo e é a fonte de toda autoridade ética e política. Se nos depararmos com um dilema ético ou político, devemos olhar para dentro e escutar nossa voz interior – a voz da humanidade. Os principais mandamentos do humanismo liberal visam a proteger a liberdade dessa voz interior contra a intrusão ou o dano. Esses mandamentos são coletivamente conhecidos como “direitos humanos”.
É por isso, por exemplo, que os liberais se opõem à tortura e à pena de morte. Nos primórdios da Europa moderna, considerava-se que os assassinos violavam e desestabilizavam a ordem cósmica. Para restaurar o equilíbrio cósmico, era necessário torturar e executar publicamente o criminoso, para que todos pudessem ver a ordem restabelecida. Comparecer a execuções horrendas era um dos passatempos favoritos dos habitantes de Londres e de Paris na época de Shakespeare e de Molière. Na Europa de hoje, o assassinato é visto como uma violação da natureza sagrada da humanidade. Para restaurar a ordem, os europeus de hoje não torturam e executam criminosos. Em vez disso, punem um assassino da forma que consideram a mais “humana” possível, de modo a proteger e até mesmo reconstruir sua santidade humana. Ao honrar a natureza humana do assassino, todos são lembrados da santidade da humanidade, e a ordem é restabelecida. Ao defender o assassino, corrigimos o que o assassino estragou.
Embora o humanismo liberal santifique os humanos, não nega a existência de Deus e, com efeito, se baseia em crenças monoteístas. A crença liberal na natureza livre e sagrada de cada indivíduo é um legado direto da crença cristã tradicional em almas individuais livres e eternas. Sem poder recorrer a almas eternas e um Deus Criador, fica embaraçosamente difícil para os liberais explicar o que há de tão especial nos indivíduos sapiens.
Outra seita importante é o humanismo socialista. Os socialistas acreditam que a “humanidade” é coletiva, e não individualista. Eles consideram sagrada não a voz interna de cada indivíduo, mas da espécie Homo sapiens como um todo. Enquanto os humanistas liberais buscam tanta liberdade quanto possível para os indivíduos humanos, o humanismo socialista busca a igualdade entre todos os humanos. De acordo com os socialistas, a desigualdade é a pior blasfêmia contra a santidade da humanidade, porque privilegia qualidades periféricas dos humanos em detrimento de sua essência universal. Por exemplo, quando os ricos têm privilégios sobre os pobres, significa que damos mais valor ao dinheiro do que à essência universal de todos os humanos, que é a mesma para ricos e pobres.
Como o humanismo liberal, o humanismo socialista também se baseia no monoteísmo. A ideia de que todos os humanos são iguais é uma versão renovada da convicção monoteísta de que todas as almas são iguais diante de Deus. A única seita humanista que rompeu com o monoteísmo tradicional é o humanismo evolutivo, cujos representantes mais famosos são os nazistas. O que distinguia o nazismo de outras seitas humanistas era uma definição diferente de “humanidade”, que era fortemente influenciada pela teoria da evolução. À diferença de outros humanistas, os nazistas acreditavam que a humanidade não é algo eterno e universal, e sim uma espécie mutável que pode evoluir ou se degenerar. O homem pode evoluir e se tornar um super-homem, ou degenerar e se tornar um subhumano.
A principal ambição dos nazistas era proteger a humanidade da degeneração e encorajar sua evolução progressiva. É por isso que os nazistas afirmavam que a raça ariana, a forma mais avançada de humanidade, tinha de ser protegida e encorajada, ao passo que tipos degenerados de Homo sapiens, como judeus, ciganos, homossexuais e doentes mentais, tinham de ser colocados em quarentena e até mesmo exterminados. Os nazistas explicavam que o Homo sapiens surgiu quando uma população “superior” de humanos antigos evoluiu, ao passo que populações “inferiores” como os neandertais foram extintas. Essas populações diferentes, no início, eram não mais diferentes do que raças, mas evoluíram de maneira independente por seus próprios caminhos evolutivos. Isso poderia muito bem acontecer novamente. De acordo com os nazistas, o Homo sapiens já havia se dividido em várias raças distintas, cada uma delas com suas qualidades únicas. Uma dessas raças, a raça ariana, tinha as melhores qualidades – racionalismo, beleza, integridade, diligência. A raça ariana, portanto, tinha o potencial de transformar o homem em super-homem. Outras raças, como os judeus e os negros, eram os neandertais de hoje, apresentando qualidades inferiores. Se lhes fosse permitido procriar – e, em particular, procriar com arianos –, eles adulterariam todas as populações humanas e condenariam o Homo sapiens à extinção.
Desde então, os biólogos têm desmascarado a teoria racial nazista. Em particular, as pesquisas genéticas realizadas após 1945 demonstraram que as diferenças entre as várias linhagens humanas são muito menores do que os nazistas postulavam. Mas essas conclusões são relativamente novas. Dado o estado do conhecimento científico em 1933, as crenças nazistas dificilmente estavam em dissonância com o pensamento da época. A existência de raças humanas diferentes, a superioridade da raça branca e a necessidade de proteger e cultivar essa raça superior foram crenças amplamente aceitas pela maior parte das elites ocidentais. Acadêmicos nas universidades ocidentais mais prestigiosas, usando os métodos científicos ortodoxos da época, publicaram estudos que supostamente comprovavam que membros da raça branca eram mais inteligentes, mais éticos e mais habilidosos que africanos ou indianos. Políticos em Washington, Londres e Camberra davam como certo que era seu dever evitar a adulteração e a degeneração da raça branca ao, por exemplo, restringir a imigração da China ou mesmo da Itália para países “arianos” como os Estados Unidos e a Austrália.
Essas posições não mudaram simplesmente porque novas pesquisas científicas foram publicadas. Os progressos sociológicos e políticos foram agentes muito mais poderosos de mudança. Nesse sentido, Hitler cavou não só o seu próprio túmulo como também o do racismo em geral.
Quando iniciou a Segunda Guerra Mundial, ele compeliu seus inimigos a fazerem distinções claras entre “nós” e “eles”. Mais tarde, precisamente porque a ideologia nazista era tão racista, o racismo caiu em descrédito no Ocidente. Mas a mudança levou tempo. A supremacia branca continuou sendo uma ideologia dominante na política norte-americana pelo menos até os anos 1960. A política da Austrália branca, que restringia a imigração de povos não brancos ao país, continuou vigente até 1973. Os aborígenes australianos não tinham direitos políticos iguais até os anos 1960, e muitos eram proibidos de votar nas eleições porque eram considerados inaptos para atuarem como cidadãos.
Os nazistas não detestavam a humanidade. Eles combatiam o humanismo liberal, os direitos humanos e o comunismo precisamente porque admiravam a humanidade e acreditavam no grande potencial da espécie humana. Mas, seguindo a lógica da evolução darwinista, argumentavam que era preciso permitir que a seleção natural eliminasse os indivíduos inaptos e deixasse que apenas os mais aptos sobrevivessem e se reproduzissem. Ao socorrer os fracos, o liberalismo e o comunismo não só permitiam que indivíduos inaptos sobrevivessem como também lhes davam oportunidade de se reproduzir, dessa formam boicotando a seleção natural. Em tal mundo, os humanos mais aptos inevitavelmente afundariam em um mar de degenerados inaptos. A humanidade se tornaria cada vez menos apta com o passar das gerações – o que poderia levar à sua extinção.
Um livro de biologia alemão de 1942 explica, no capítulo “As leis da natureza e a humanidade”, que a lei suprema da natureza é que todos os seres estão condenados a uma luta cruel pela sobrevivência. Depois de descrever como as plantas lutam por território, como os besouros lutam para encontrar parceiros para acasalar e assim por diante, o livro conclui que: A batalha pela existência é árdua e inclemente, mas é a única maneira de manter a vida. Essa luta elimina tudo que é inapto para a vida e seleciona tudo que é capaz de sobreviver. [...] Essas leis naturais são incontroversas; as criaturas vivas as demonstram com sua própria sobrevivência. Elas são implacáveis. Os que resistem a elas serão exterminados. A biologia não nos fala apenas de animais e de plantas – também nos mostra as leis que devemos seguir em nossa vida e fortalece nossa disposição para viver e lutar de acordo com essas leis. O significado da vida é luta. Ai daquele que transgredir essas leis.
Então, segue-se uma citação de Mein Kampf: “A pessoa que tenta lutar contra a lógica férrea da natureza luta contra os princípios aos quais deve agradecer por sua vida como ser humano. Lutar contra a natureza é provocar a própria destruição”.(Marie Harm e Hermann Wiehle, Lebenskunde fuer Mittelschulen – Fuenfter Teil. Klasse 5 fuer Jungen (Halle: Hermann Schroedel Verlag, 1942), 152-157.)
No início do terceiro milênio, o futuro do humanismo evolutivo não está claro. Durante 60 anos após o fim da guerra contra Hitler, foi um tabu associar humanismo com evolução e defender o uso de métodos biológicos para “aprimorar” o Homo sapiens. Mas hoje tais projetos estão em voga novamente. Ninguém fala de exterminar raças ou pessoas inferiores, mas muitos cogitam usar nosso conhecimento cada vez maior da biologia humana para criar super-humanos.
Ao mesmo tempo, uma brecha enorme está se abrindo entre os dogmas do humanismo liberal e as últimas descobertas das ciências da vida, uma brecha que não podemos ignorar por muito tempo. Nossos sistemas jurídicos e políticos liberais se baseiam na crença de que todo indivíduo tem uma natureza interna sagrada, indivisível e imutável, que dá significado ao mundo e que é a fonte de toda autoridade ética e política. Essa é uma reencarnação da crença cristã tradicional em uma alma livre e eterna que reside em cada indivíduo. Mas, nos últimos 200 anos, as ciências da vida minaram totalmente essa crença. Os cientistas que estudam o funcionamento interno do organismo humano não encontraram ali nenhuma alma. Eles argumentam cada vez mais que o comportamento humano é determinado por hormônios, genes e sinapses, e não pelo livre-arbítrio – as mesmas forças que determinam o comportamento de chimpanzés, lobos e formigas. Nossos sistemas jurídicos e políticos tentam varrer tais descobertas inconvenientes para debaixo do tapete. Mas, com toda a franqueza, por quanto tempo poderemos manter o muro que separa o departamento de biologia dos departamentos de direito e ciência política?

 (Yuval Noah Harari - Sapiens, uma breve história da humanidade)
 
LINKS:
A religião faz as pessoas se comportarem melhor?
A Grande Conspiração
O CRESCIMENTO DA IGREJA
"Vaticano S. A." e os negócios de Deus (1976-1978)
O beijo de Judas e o beijo de Constantino
<a href="http://divagacoe

publicado às 22:09


Conhece-te a ti mesmo

por Thynus, em 31.01.16

A filosofia começou com essa frase de Sócrates, do oráculo de Delfos: “conhece-te a ti mesmo!” Você tem que se conhecer para saber onde é o melhor lugar de se encaixar no todo e viver bem. Conhece-te a ti mesmo! Conhecer-se a si mesmo é conhecer as próprias idiossincrasias, é conhecer as próprias habilidades, talentos, inclinações, apetites, desejos, etc. Quando você gosta de alguma coisa, você está sendo informado sobre você.

(Clóvis Barros Filho

 
 
Se a felicidade se baseia em ter sensações agradáveis, para sermos mais felizes precisamos reformular nosso sistema bioquímico. Se a felicidade se baseia em sentir que a vida tem sentido, para sermos mais felizes precisamos nos iludir de maneira mais eficaz. Existe uma terceira alternativa?
Ambas as visões anteriores partem do pressuposto de que a felicidade é uma espécie de sensação subjetiva (de prazer ou de sentido) e, para avaliar a felicidade das pessoas, tudo que precisamos fazer é lhes perguntar como elas se sentem. Para muitos de nós, isso parece lógico porque a religião dominante da nossa era é o liberalismo. O liberalismo santifica as sensações subjetivas dos indivíduos. Vê essas sensações como fonte suprema de autoridade. O que é bom e o que é mau, o que é bonito e o que é feio, o que tem de ser e o que não tem de ser, tudo isso é determinado por aquilo que cada um de nós sente.
A política liberal se baseia na ideia de que os eleitores sabem o que é melhor e não há necessidade de um Grande Irmão para nos dizer o que é bom para nós. A economia liberal se baseia na ideia de que o cliente sempre tem razão. A arte liberal declara que a beleza está nos olhos de quem vê. Os estudantes em escolas e universidades liberais são ensinados a pensarem por si mesmos. “Just do it!”, nos encorajam os comerciais. Filmes de ação, dramas de teatro, telenovelas, romances e canções de sucesso pegajosas nos doutrinam constantemente: “seja verdadeiro consigo mesmo”, “ouça a si mesmo”, “siga seu coração”. Jean-Jacques Rousseau afirmou sua visão de maneira mais clássica: “Tudo o que sinto ser bom, é bom; tudo o que sinto ser mau, é mau”. As pessoas que foram criadas desde a infância à base de uma dieta de tais slogans tendem a acreditar que a felicidade é uma sensação subjetiva e que cada indivíduo sabe melhor do que ninguém se é feliz ou infeliz. Mas essa visão é peculiar ao liberalismo. A maioria das religiões e ideologias ao longo da história afirmou que há parâmetros objetivos para o bem, para a beleza e para como as coisas deveriam ser. Elas desconfiavam das sensações e das preferências das pessoas comuns. Na entrada do templo de Apolo em Delfos, os peregrinos eram recebidos pela inscrição: “Conhece-te a ti mesmo!”. A implicação era que o indivíduo médio ignora seu verdadeiro eu e, portanto, tende a ignorar a verdadeira felicidade. Freud provavelmente concordaria.[Paradoxalmente, enquanto os estudos psicológicos do bem-estar subjetivo se apoiam na capacidade das pessoas de diagnosticarem corretamente sua felicidade, a principal razão de ser da psicoterapia é que as pessoas não se conhecem realmente e às vezes precisam de ajuda profissional para se livrarem de comportamentos autodestrutivos]
E também os teólogos cristãos. São Paulo e Santo Agostinho sabiam perfeitamente bem que, se as pessoas fossem indagadas a respeito, a maioria delas preferiria fazer sexo do que rezar para Deus. Isso prova que fazer sexo é o segredo para a felicidade? Não de acordo com São Paulo e Santo Agostinho. Só prova que a humanidade é pecadora por natureza e que as pessoas são facilmente seduzidas por Satã. De uma perspectiva cristã, a grande maioria das pessoas está mais ou menos na mesma situação que viciados em heroína. Imaginemos um psicólogo que embarca em um estudo de felicidade entre usuários de drogas. Ele os interroga e cada um deles declara que só é feliz quando injeta. O psicólogo publicaria um artigo declarando que a heroína é o segredo para a felicidade? A ideia de que os sentimentos podem nos enganar não se restringe ao cristianismo. Pelo menos quando se trata do valor de sentimentos, até mesmo Darwin e Dawkins podem encontrar pontos em comum com São Paulo e Santo Agostinho. De acordo com a teoria do gene egoísta, a seleção natural faz com que as pessoas, assim como outros organismos, escolham o que é bom para a reprodução de seus genes, mesmo que isso seja ruim para elas como indivíduos. A maioria dos machos passa a vida trabalhando, se preocupando, competindo e lutando, em vez de desfrutar de felicidade pacífica, porque seu DNA os manipula para atender seus próprios objetivos egoístas. Como Satã, o DNA usa prazeres fugazes para tentar os indivíduos e subjugá-los.
Por conseguinte, a maioria das religiões e filosofias adotou uma abordagem muito diferente da do liberalismo para tentar compreender a felicidade. A posição budista é particularmente interessante. O budismo deu mais importância à questão da felicidade do que possivelmente qualquer outro credo humano. Durante 2,5 mil anos, os budistas estudaram de maneira sistemática a essência e as causas da felicidade, e é por isso que, na comunidade científica, há um interesse cada vez maior pela filosofia e pelas práticas de meditação budistas. O budismo concebe a felicidade da mesma forma que a biologia, isto é, entende que a felicidade resulta de processos que ocorrem em nosso corpo, e não de acontecimentos no mundo externo. No entanto, partindo da mesma noção elementar, o budismo chega a conclusões muito diferentes.
De acordo com o budismo, a maioria das pessoas identifica sensações agradáveis como felicidade e sensações desagradáveis como sofrimento. Em consequência, as pessoas atribuem enorme importância ao que sentem, ávidas por vivenciar cada vez mais sensações agradáveis e por evitar sensações desagradáveis. Independentemente do que fizermos ao longo de nossa vida, seja coçar a perna, remexer-se na cadeira, ou travar guerras mundiais, estamos apenas tentando obter sensações agradáveis.
O problema, de acordo com o budismo, é que os nossos sentimentos e sensações são apenas vibrações transitórias, que mudam a cada instante, como as ondas do oceano. Se há cinco minutos eu me sentia alegre e cheio de propósito, agora esses sentimentos se foram, e posso muito bem me sentir triste e deprimido. Então, se quero ter sensações agradáveis, devo persegui-las constantemente, enquanto trato de afastar as sensações desagradáveis. Mesmo que eu consiga fazer isso, logo tenho de começar tudo de novo, sem jamais obter recompensas duradouras por meus esforços. O que há de tão importante em obter tais prêmios efêmeros? Por que se esforçar tanto para conquistar algo que desaparece quase no mesmo instante em que surge? De acordo com o budismo, a raiz do sofrimento não é a sensação de dor nem de tristeza e nem mesmo de falta de sentido. Em vez disso, a raiz do sofrimento é essa incessante e inútil busca de sensações efêmeras, que nos leva a estar em um constante estado de tensão, inquietude e insatisfação.
Devido a essa busca, a mente nunca está satisfeita. Mesmo quando sentimos prazer, ela não está contente, porque teme que essa sensação logo desapareça e deseja ardentemente que permaneça e se intensifique.
As pessoas só se libertam do sofrimento não quando experimentam essa ou aquela sensação de prazer, e sim quando entendem a natureza transitória de todos os seus sentimentos e param de persegui-los. Esse é o objetivo das práticas de meditação budistas. Na meditação, espera-se que você observe sua mente e seu corpo com atenção, que testemunhe o incessante ir e vir de todos os seus sentimentos e perceba como é inútil persegui-los. Quando a busca cessa, a mente fica tranquila, clara e satisfeita. Sentimentos de todo tipo continuam indo e vindo – alegria, raiva, tédio, desejo –, mas quando você para de ansiar por sentimentos específicos, pode simplesmente aceitá-los tal como são. Você vive o momento presente em vez de fantasiar sobre o que poderia ter sido.
A serenidade resultante é tão profunda que aqueles que passam a vida inteira em uma busca desenfreada por sensações agradáveis mal conseguem imaginá-la. É como um homem parado durante décadas à beira do mar, abraçando certas ondas “boas” e tentando impedir que elas quebrem e simultaneamente repelindo as ondas “más” para evitar que se aproximem. Dia sim, dia não, o homem está na praia, indo à loucura com esse exercício inútil. Ele acaba por se sentar na areia e apenas permite que cada onda venha e se vá a seu bel-prazer. Que paz!
Essa ideia é tão alheia à cultura liberal moderna que, quando os movimentos ocidentais da New Age descobriram ensinamentos budistas, eles os traduziram em termos liberais e, assim, os distorceram. Com frequência, os cultos da New Age afirmam: “A felicidade não depende de condições externas. Só depende do que sentimos dentro de nós. As pessoas devem parar de almejar conquistas externas como riqueza e status e, em vez disso, se conectar com suas sensações internas”. Ou, de maneira mais sucinta, “a felicidade começa dentro de você”. Isso é exatamente o que os biólogos afirmam, mas praticamente o oposto do que Buda disse.
Buda concordava com a biologia moderna e com os movimentos da New Age ao afirmar que a felicidade independe de condições externas. Mas sua compreensão mais importante e mais profunda foi que a verdadeira felicidade também independe de nossas sensações interiores. Com efeito, quanto mais importância damos a nossas sensações, mais ansiamos por elas, e mais sofremos. A recomendação de Buda era parar a busca não só de conquistas externas, como também, acima de tudo, a busca de sensações internas.
Para resumir, os questionários de bem-estar subjetivo identificam nosso bem-estar com nossas sensações subjetivas, e a busca de felicidade com a busca de certos estados emocionais. Por outro lado, para muitas filosofias e religiões tradicionais, como o budismo, o segredo da felicidade é conhecer a verdade sobre você mesmo – entender quem, ou o que, você é realmente. A maioria das pessoas se identifica, de maneira errônea, com suas sensações, pensamentos, gostos e desgostos. Quando sentem raiva, pensam: “Eu estou com raiva. Esta é minha raiva”. Em consequência, passam a vida evitando certos tipos de sensação e almejando outros. Elas nunca percebem que não são suas sensações e que a busca incessante por determinadas sensações só as aprisiona ao sofrimento. Se é assim, toda a nossa compreensão da história da felicidade pode estar equivocada. Talvez não seja tão importante saber se as expectativas das pessoas são satisfeitas e se elas têm sensações agradáveis. A principal questão é se as pessoas conhecem seu verdadeiro eu. Que evidências nós temos de que as pessoas de hoje se conhecem melhor essa verdade do que os antigos caçadorescoletores ou os camponeses medievais?
Os acadêmicos começaram a estudar a história da felicidade há apenas alguns anos, e ainda estamos formulando as hipóteses iniciais e procurando os métodos de pesquisa adequados. É cedo demais para adotar conclusões rígidas e encerrar um debate que mal começou. O que é importante é conhecer tantas abordagens quanto possível e fazer as perguntas certas.
A maioria dos livros de história se concentra nas ideias dos grandes pensadores, na ousadia dos guerreiros, na caridade dos santos e na criatividade dos artistas. Eles têm muito a dizer sobre a construção e a destruição de estruturas sociais, sobre a ascensão e queda de impérios, sobre a descoberta e disseminação de tecnologias. Mas não dizem nada sobre como tudo isso influenciou a felicidade e o sofrimento dos indivíduos. Essa é a maior lacuna em nossa compreensão da história. É melhor começarmos a preenchê-la.

(Yuval Noah Harari - Sapiens, uma breve história da humanidade)

publicado às 21:05


CHRISTA

por Thynus, em 31.01.16
Contrariamente ao que pensam alguns renovadores da Igreja católica, temerosos desta não se saber moldar aos novos tempos e por isso apressar o seu desaparecimento, jamais esta Igreja aceitará as palavras de Jesus (de Kazantzakis) para a sua amante, Maria Madalena: "Eu não sabia, minha bem-amada, que o mundo era tão belo e a carne tão santa... Eu não sabia que a alegria do corpo não era pecado."

 
Existe na Grécia uma montanha que jamais foi pisada por mulher, desde que foi consagrada à Virgem, há mais de mil anos. É o monte Athos, a Montanha Sagrada. Não só mulheres estão proibidas de pisar o solo sagrado, como toda e qualquer fêmea, seja cabra, ovelha ou galinha. No cais do porto pelo qual se chega à montanha, monges com olhos treinados vigiam para que nenhuma mulher vestida de homem profane o monte Athos.
Em sua autobiografia, Testamento para El Greco, Nikos Kazantzakis conta sua visita a esta montanha só pisada por homens. O amigo que acompanhava Kazantzakis quis saber como os monges distinguiam as mulheres dos homens.
 — Pelo cheiro, respondeu um jovem monge. E pediu ao rapaz que se dirigisse a um monge mais velho, que já fora sentinela no cais.
— As mulheres têm outro cheiro, Santo Padre? Que cheiro têm?
— Como gambás, fedorentas, respondeu o velho.
Nas culturas de inspiração cristã, tem sido mais ou menos esse o conceito da mulher ao longo de uma História feita por homens. Cristo perdoou a adúltera, confraternizou com Madalena. Mas seus seguidores sempre associaram a mulher à imundície, pecado, demônio. Sprenger e Kramer, teólogos dominicanos encarregados da Inquisição na Alemanha, no livro significativamente intitulado O Malho das Feiticeiras, afirmam: “Uma mulher é um ser bonito de se contemplar; é contaminadora ao toque; e conservá-la é ato mortal. A mulher é inimiga da amizade, um mal necessário, uma tentação natural, um perigo doméstico, um mal da Natureza. Não há fúria maior que a fúria de uma mulher. Visto que são mais fracas, tanto no espírito como no corpo, não surpreende que acabem se colocando no âmbito da feitiçaria”.
Os dois teólogos não poupam o malho. Continuam afirmando que a mulher é mais carnal que o homem, e toda a feitiçaria procede dos impulsos carnais, impulsos que, nas mulheres, são insaciáveis. E se os poderosos se entregavam à orgia com mulheres, a culpa era destas. Pois as mulheres satisfaziam “sua imunda luxúria não apenas em si mesmas, mas também na pessoa dos poderosos de sua época, sejam eles de que condição forem, provocando, por meio de toda a espécie de feitiçaria, a morte das respectivas almas através da excessiva intensidade do amor carnal”.
Diz Ney Messias, em uma de suas crônicas, que o feitiço é essencialmente um dom da mulher. E que estamos entrando em uma nova era de encantamento e demonismo, pois as religiões de Brahman, Buda, Confúcio e Cristo estão sendo atacadas por um estranho vírus. “A civilização do homem, as instituições do princípio masculino e a dominância de valores alquímicos vão sendo marginalizadas. O macho recua em todas as frentes, com suas ideias lógicas, com suas deduções e inferências. O silogismo entra em agonia. De novo as feiticeiras, as antigas sacerdotisas dos templos pagãos, vão ter a palavra”.
Edwira Sandys, neta de Winston Churchill, certamente não leu Ney Messias, provavelmente conhece Kazantzakis, conhecerá ou não O Malho das Feiticeiras. Mas deve ter sentido na carne que os homens têm crucificado a mulher ao longo da História. Pois Edwira está expondo, em uma galeria em Nova Iorque, uma escultura em bronze de um Cristo na cruz, encarnado nas formas ondulantes de uma mulher.
— Eu quis apenas traduzir o sofrimento das mulheres, afirma Sandys. A escultura foi batizada com o nome de Christa.

(Janer Cristaldo -  A Força dos MItos)

A boceta de Pandora
 

LINKS:
 A CAÇA ÀS BRUXAS (INQUISIÇÃO)
 A caça às bruxas
 De como as Bruxas, por assim dizer, privam um homem de seu membro viril.
 A FEITICEIRA DE ÉVORA — PODEROSA BRUXA
 XAMANISMO – WICCA
 Inquisição - As acusações
 Igreja "casta e putana"
 O Culto à Virgem Maria e a Cultura de Submissão da Mulher
 Misoginia na Igreja romana
A sexualidade é uma espécie de patologia do cristianismo e da Igreja
O RISCO DA INVISIBILIDADE
O mito grego da criação do homem

publicado às 15:37


A origem de tudo

por Thynus, em 30.01.16
 
 
Primeiro havia o Caos, uma matéria completamente crua, indiferenciada, indefinível, indescritível que existia desde toda a eternidade e que era o princípio de todas as coisas. É impossível saber o que havia antes – como acontece no Universo do mundo real, em que os físicos não se arriscam a dizer o que havia antes do Big Bang.
Para os gregos, o Caos não diferenciava o úmido do seco, a direita da esquerda, o leve do pesado, o concreto do abstrato, o quente do frio (embora para os físicos era definitivamente mais quente que o inferno). O sol não iluminava o dia, pois o dia não existia, nem havia a lua para sucedê-lo, pois tudo era obscuro demais para que a noite fosse noite. Não havia o espaço, o tempo, as coisas, a vida, o amor. Nada, senão uma tremenda confusão.
 
Mas, em meio ao próprio Caos, eis que surge o seu oposto – a fértil deusa Terra “dos seios fartos”, que os gregos chamam de Gaia. Em vez da confusão obscura do Caos, Gaia apresenta uma forma distinta, nítida, precisa, firme e estável. É a Mãe Natureza, o conjunto de todas as partículas do mundo físico que darão origem aos seres e à força que os nutre, formando tudo o que existe no mundo natural – das mais altas montanhas às mais profundas grutas subterrâneas; às florestas, aos rios, ao céu, ao mar.
Os gregos, como qualquer povo da época, acreditavam que a Terra fosse o centro do universo – o que faz nosso paralelo com o Big Bang parar por aqui. Localizada bem no centro do Universo, ela não cai nem sobe. É o chão sobre o qual pisamos, o fundamento para todos os seres, ponto de referência para tudo o que existe, a partir do qual surgem as relações de espaço. É o alicerce eternamente inabalável de onde as coisas podem começar a se organizar e fazer sentido.
Mesmo sendo o ponto de referência de tudo, Gaia tinha limites físicos, tanto acima quanto abaixo dela. Se atravessássemos em suas entranhas a distância percorrida por uma bigorna de bronze em queda livre por nove dias, chegaríamos novamente à desordem e à escuridão. Esse, no entanto, não era mais o Caos, mas uma derivação sua: o Tártaro, abismo das trevas insondáveis, terror de qualquer deus. Para eles, essa versão grega do inferno era pior que a morte. Em vez de morrer, eles passariam a eternidade presos sem ver um raio sequer de luz. Bom, com Gaia, que trouxe a matéria da qual o mundo é feito, nasce uma insaciável força motriz capaz de unir elementos diferentes para criar novos seres, sejam eles deuses, animais, vegetais ou minerais. Seu nome é Eros, o “amor”. E, com sua flecha, a história do Universo começava para valer. Eros não era o amor entre humanos. Afinal, o mundo estava tão no princípio que nem sequer existiam os seres sexuados. Caos, em grego, é um substantivo neutro, nem masculino nem feminino. E, ainda que a Gaia fosse indiscutivelmente feminina, ainda não havia a quem ela amar, senão ao indiferenciado nada do Caos.
A vontade de gerar vida impulsionada por Eros faz com que Gaia crie à sua imagem o céu – ou Urano, em grego. E assim o Universo se divide em três camadas – a superior, que dará morada aos imortais deuses; a intermediária, dos homens; e a inferior, da morte e dos deuses subterrâneos. Tudo isso parido de Gaia sozinha, como que por partenogênese.
Mas Urano, que é tão grande e tão forte quanto ela, tem algo de especial. É o oposto de Gaia, só que numa relação diferente daquela ordem versus desordem que há entre Gaia e Caos. O nascimento de Urano cria o princípio do masculino, que complementa a feminilidade da fértil Gaia. Assim que Gaia gera Urano, o céu se deita sobre a Terra, e os dois ficam bem colados, como se um fosse o reflexo do outro num espelhod’água. É claro que Eros não demoraria a agir sobre o primeiro casal do mundo. A princípio, a virgem e solitária Gaia fica feliz por poder contemplar o céu estrelado sobre seu leito. Mas, ao se dar a ligação entre o macho e a fêmea, algo novo acontece. O ventre de Gaia começa a estufar, estufar de vidas que acabam de ser criadas.
Primeiro são gerados os seis terríveis Titãs – Oceano, Céos, Crios, Hipérion, Jápeto e Cronos – e as seis Titânidas – Teia, Reia, Têmis, Mnemosine, Febe e Tétis. Gaia já está um pouco cansada de segurar tanto filho dentro da barriga, mas Urano não quer por nada deste mundo sair de cima da esposa. Sua essência masculina manda que não faça nada senão fecundá-la. Nada de permitir que seus filhos saiam do ventre da mãe para povoá-la.
E a mãe Terra não para de gerar novas vidas, cada vez mais gigantes e monstruosas.
Nascem os três Ciclopes – criaturas fortes e engenhosas, com um único potente olho na testa que trarão consigo a luz do relâmpago, as nuvens de tempestade e o rugir do trovão – e três Hecatônquiros, gigantes com cem braços e cinquenta cabeças cada um, capazes de estremecer o mundo lançando rochas com a maior facilidade.
Sim, eram duros os primeiros tempos do Universo, quando não havia o que limitasse o egoísmo e a crueldade de Urano. Para que dividir algo tão perfeito e tão simétrico? Para Urano, era como o amor ideal, em que dois corpos se complementam em um só ser. Tudo o que podia sentir por seus filhos era ódio, pois sabia que, tão logo viessem à luz, tentariam destroná-lo.
Se os filhos vivem frustrados por estar presos e não poder se tornar deuses individualizados, mais triste ainda está Gaia, inchada e sufocada pelos 18 enormes filhos que guarda na escuridão de sua barriga. Gaia sabe que não adianta apenas lamentar a tirania de seu marido-irmão celeste. E então decide tomar uma iniciativa. Numa explosão de raiva, arranca um pedaço de seu corpo e com ele produz o ferro, com o qual molda uma grande foice dentada. Chega até seus filhos e lhes propõe um plano:
– “Filhos, se acreditais em mim, revoltai-vos contra vosso pai, pois ele vos ultraja e vos submete a agressões horríveis”.
Sem jamais ter saído da escuridão, nenhum dos irmãos ousa rebelar-se contra um pai tão grande, poderoso e vil. Isto é, nenhum, exceto Cronos, deus do tempo, o mais novo e mais ambicioso dos Titãs.
– “Mãe, prometo que cumprirei essa tarefa. Não temo meu abominável pai, que já tramou contra nós tantas obras indignas.” Gaia fica contente com a resposta. Logo em seguida, põe Cronos em tocaia, dá em suas mãos a foice de ferro e lhe conta o engenhoso estratagema para separar-se do céu. Se não é possível matar um deus, que ao menos ele nunca mais possa deitar-se sobre ela. À noite, Urano se prepara para mais uma vez fertilizar o ventre de Gaia, sem perceber que seu filho Cronos espera por ele escondido. O rapaz salta então de seu esconderijo, agarra com a mão esquerda a genitália paterna e, com a direita, decepa tudo e joga no mar.
Urano dá um longo grito de dor, e, num único movimento, afasta-se de Gaia até instalar-se na abóbada celeste, em cima do mundo, para nunca mais voltar ao solo. E lá do alto dispara uma terrível maldição contra Cronos: “Por terdes estendido os braços alto demais, ireis pagar pelo crime de ter levantado a mão contra vosso pai!”.
* * *
O plano parecia ter dado certo, não fosse um detalhe. Gaia é tão fértil que, tal como a chuva faz brotar as plantas, os jatos de sangue de Urano acabam engravidando-a mais uma vez. Desse sangue não nasceriam deuses, e sim três tipos de personagem, que encarnam a violência, o castigo, a guerra. A paz demorará muito para reinar no Universo.
Primeiro surgem do sangue paterno as vingativas Erínias – terríveis moradoras do Tártaro, de onde saem vestidas de preto, com olhos vermelhos e cabeleira entremeada de serpentes. Com elas vêm as pestes, o rancor e a loucura que punirão quem desobedecer aos pais, desrespeitar os mais velhos, fizer falso juramento ou matar. Depois, brotam os Gigantes, seres enormes, de formas humanas, mas de aparência monstruosa e espírito violento, que inspirarão as guerras. Cabeludos, barbudos e com o corpo terminando em um rabo de serpente, sempre carregam consigo brilhantes lanças de bronze. Nascem já adultos, sem jamais terem conhecido a inocência das crianças, e não ficariam velhos, embora sejam mortais – os Gigantes só podem ser mortos por outro mortal, nunca por um deus. Por fim, vêm as Melíades, ninfas também guerreiras, que vivem nos freixos, árvores das quais são feitas as lanças dos guerreiros. Esses são, pois, os filhos do sangue.
E o pênis de Urano, lançado ao mar bravo? Com o movimento incessante de suas ondas, a genitália imortal de Urano não para de se excitar, e assim que atinge o clímax, ejacula uma imensidão de esperma que se une às espumas da água salgada. E desse movimento de vai e vem nasce Afrodite, a deusa do instinto natural de fecundação, da úmida fertilidade, capaz de agir sobre deuses e mortais, desde os homens até as criaturas do mundo vegetal.
Sangue e esperma, desentendimento e concordância, violência e sensualidade, separação no semelhante e aproximação no diferente. Conforme Cronos, nosso amigo deus do tempo, sai do ventre materno e mutila seu pai, dá origem a duas forças complementares, motoras da criação e da destruição.

O INFORTÚNIO
Algo mais acontecia paralelamente à mutilação do céu. Sem satisfazer-se com o romance e a tragédia de Gaia e Urano, Eros estende seu arco e flecha também para o velho e indiferenciado Caos. E faz brotar dele, por geração espontânea, dois gêmeos, que, de certa forma, são uma continuidade da escuridão caótica. Um é o deus Érebo, o mais absoluto negro, a falta de vida, o vácuo total, que se volta imediatamente para o mundo subterrâneo. Já sua irmã, a deusa Nix, é a noite, a escuridão que paira sobre Gaia, a rainha dos astros noturnos, patrona das feiticeiras.
O masculino de Érebo e o feminino de Nix se aproximam imediatamente, e, no meio de tanta escuridão, Nix faz surgir a luz. De um lado, nasce Hemera, a deusa do dia, o oposto de Nix. Mãe e filha começam então a alternar-se sem parar sobre o manto de Gaia, noite e dia, sem jamais se encontrar. De outro lado, aparece o Éter, o brilho em seu estado mais puro, ar que os deuses respiram, o oposto de Érebo, as trevas confinadas nas profundezas do Tártaro, o inferno dos infernos. Assim, os deuses celestes passarão a viver a luz eterna, e abaixo da Terra, os deuses subterrâneos e os derrotados viverão as trevas eternas.
A pulsão de Eros não sai do corpo feminino de Nix. Ela quer mais filhos, ainda que tenha de concebê-los sozinha. Mas da solidão da misteriosa noite não nasceria nada senão os aspectos mais obscuros da vida dos homens e dos deuses. Assim, Nix pare o inelutável, inflexível, obscuro e invisível Destino (Moros). Sentado em seu trono de ferro, com olhos vendados, um pé sobre o globo terrestre e um cetro na mão, ele ditará leis às quais mesmo os mais poderosos deuses serão submetidos.
Para ajudá-lo numa tarefa tão árdua, Moros ganha três irmãs chamadas Moiras: Cloto, que tece o fio da vida de todos os homens, Láquesis, que determina o tamanho desse fio e o enrola num novelo, estabelecendo a qualidade da vida que cada um teria, e Átropos, que o corta quando chega a hora da morte.
Em seguida, Nix tem os gêmeos Morte (Tânatos) e Sono (Hipnos). Tânatos, com sua espada de sacrifício, desfaz as amarras que separam os morimbundos do mundo subterrâneo. O Sono é sua versão mais suave: Hipnos sobrevoa a Terra para fazer os mortais dormir. Com eles vêm também os Sonhos (os Oneiros), espíritos com grandes asas de morcego que toda noite emergem da tenebrosa caverna de Érebo, uns para contar presságios verdadeiros (saídos de um portal de marfim), outros para mentir (estes, vindos de um portal de osso de chifre). Mais temíveis, porém, são as irmãs Mortes Violentas (Queres), seres negros alados, com grandes dentes e unhas, que sobrevoam às centenas os campos de batalha para antecipar o destino, dilacerar corpos e tomar o sangue dos mortos.
Nix não se satisfez em dar à luz tanta infelicidade. Teve ainda a Ternura (Filotes), que alimenta as pequenas mentiras; o Escárnio (Momo), que mais tarde seria expulso do céu por ridicularizar os deuses; a Indignação (Nêmesis), que retribui àqueles que agem mal ou que se dão bem sem merecer; a Miséria (Oizys); as três ninfas do pôr do sol (Hespérides), guardiãs dos jardins dos deuses; a Fraude (Apate), que encanta mostrando sua amável cabeça, escondendo sob as águas dos rios do mundo subterrâneo a cauda de serpente; e a Velhice (Geras), um ancião vestido de preto e coberto de folhas mortas que, apoiado num cajado, segura uma ampulheta para lembrar-nos da decrepitude trazida pelo tempo.
Como se não bastasse tanta desgraça, Nix pare ainda Éris, deusa da discórdia, que sozinha dará continuidade aos infortúnios do mundo com mais uma linhagem de espíritos nefandos: a Fadiga, o Esquecimento, a Fome, as Dores do Corpo e da Alma, as Batalhas, os Combates, os Homicídios, os Massacres, os Litígios, as Mentiras, as Disputas, a Falta de Lei, a Desilusão e o Espírito dos Juramentos. (Não é à toa que, milênios depois, astrônomos nomearam Éris o planeta anão cuja descoberta culminou no rebaixamento de Plutão no panteão dos corpos celestes.)
* * *
Finalmente o céu e a terra estão separados por um enorme espaço livre. Entre o leito de Gaia e a abóbada de Urano, as criaturas poderão viver, reproduzir-se, transformarse. Com a liberação de Cronos do ventre da terra, como vimos, é desbloqueado também o tempo. Nix e Hemera passam a se alternar, dia e noite. E, com a ação de Eros, o amor, agora inspirado pela sensualidade de Afrodite, gerações e gerações de criaturas vão se suceder. O mundo começa a ter cara de mundo.
Mas esse espaço será ocupado também pela rivalidade entre os Titãs, os Ciclopes, os Hecatônquiros e os filhos dos Titãs. Éris, a deusa da disputa, e seus filhos infames, além dos filhos do sangue de Urano, encontrarão um campo para agir livremente. Como poderá haver estabilidade num mundo em que vários deuses coexistem e não param de se reproduzir, lutando entre si para estabelecer seu poder? Quem será o soberano desse Universo para que Gaia não sucumba ao desgosto de uma eterna briga entre irmãos, netos, bisnetos e quantas gerações vierem?

(José Francisco Botelho, Maurício Horta, Salvador Nogueira - Mitologia: Deueses, Heróis e Lendas)

publicado às 23:42


ADÔNIS

por Thynus, em 30.01.16
Adônis (Grécia) e Tammuz (Síria) eram os mesmos. Representavam a vegetação e eram tão
belos que Vênus e Perséfone apaixonaram-se por eles. Eles eram filhos de virgens e morreram no
outono ao serem feridos por um javali (Tifão). Enviados ao inferno, eles retornavam à superfície a
cada seis meses, passando a primavera e o verão com Vênus e o outono e o inverno com Perséfone.
O seu retorno à Terra representava a sua ressurreição. O renascimento de Adônis ou Tammuz era
celebrado na primavera, quando as mulheres saiam às ruas e colocavam o corpo do deus ressurgido
(uma imagem de madeira) em um caixão ou tronco de árvore oco, faziam os rituais selvagens e
lamentações, seguidos por festejos por sua ressurreição.[291]
A lenda do deus frígio Átis também é bastante parecida. A frase latina “suspenso lingo”’,
achada na sua história, indica a maneira de sua morte: ele foi suspenso em uma árvore pela língua,
mutilado, enterrado e, depois, ressuscitou.
 
(Élvio Gusmão Santos - As Histórias da Bíblia e os Mitos da Antiguidade)
 
 A semelhança entre o ato sexual e o trabalho agrícola é freqüente em
inúmeras culturas. No Satapatha Brahmana (VII, 2, 2, 5), a terra é comparada
com o órgão feminino da geração (yoni) e a semente ao sêmen masculino.
"Vossas mulheres são vossos cultivos; portanto, entrai na vossa lavoura da
maneira como escolheres" (Qur'ân, II, 223).
(Mircea Eliade - Mito do eterno retorno)
 
E o pênis de Urano, lançado ao mar
bravo? Com o movimento incessante de suas
ondas, a genitália imortal de Urano não pára
de se excitar, e assim que atinge o clímax,
ejacula uma imensidão de esperma que se
une às espumas da água salgada. E desse
movimento de vai e vem nasce Afrodite, a
deusa do instinto natural de fecundação, da
úmida fertilidade, capaz de agir sobre deuses
e mortais, desde os homens até as criaturas
do mundo vegetal.
Sangue e esperma, desentendimento e
concordância, violência e sensualidade, separação
no semelhante e aproximação no
diferente. Conforme Cronos, nosso amigo
deus do tempo, sai do ventre materno e mutila
seu pai, dá origem a duas forças complementares,
motoras da criação e da destruição.
(José Francisco Botelho, Maurício Horta, Salvador Nogueira
- Mitologia: Deuses, Heróis e Lendas)


A deusa grega Afrodite é a deusa romana Vênus: o cognome de deusa do amor procede de uma interpretação redutiva do seu nascimento.
 
Adônis foi o homem mais belo que a Grécia já conheceu. Por ele se apaixonaram duas deusas, e um rio de lágrimas correu por sua causa. Vivos e mortos pasmaram diante de sua estonteante beleza.
Vamos conhecer melhor a sua história.
Adônis era um jovem caçador. Seu rosto era tão belo que parecia ter sido esculpido, possuindo testa, olhos, nariz e queixo absolutamente perfeitos. Seus cabelos loiros lhe escorriam pelos ombros firmes e não havia ninfa dos bosques que não cobiçasse alisá-los.
Um dia Vênus, a deusa do amor, estava conversando com seu filho Cupido. quando teve a atenção desviada pelo surgimento inesperado do jovem mortal.
— Quem será este rapaz? Nunca vi nenhum mais belo — disse a deusa ao filho. Cupido deu uma olhadela rápida. Sem responder, voltou-se novamente para suas flechas, as quais estava afiando amorosamente.
Vênus, percebendo que o seu garoto estava com ciúmes, abraçou-o. enternecida. — Vamos, deixe de ciúmes! É apenas um belo rapaz, mas nenhum é tão belo quanto o meu filho!
Ao tomá-lo nos braços, porém, a deusa acabou ferindo-se com uma das flechas. — O que foi, mamãe? — perguntou Cupido, alarmado, ao escutar o seu grite de dor. — Não foi nada, meu filho, continue o seu trabalho... — disse a deusa, afastando-se. Descendo à Terra, Vênus decidiu seguir discretamente o jovem caçador "Preciso conhecê-lo melhor!", pensava a deusa, enquanto o seguia.
Adônis havia parado um pouco, no bosque; estava inclinado sobre uma pedra, enquanto amarrava as tiras soltas de uma das sandálias. Uma das pernas apoiava-se na rocha, descobrindo um pouco de sua rija musculatura, enquanto a outra apoiava-se no chão.
Venus, oculta por detrás de um teixo, alisava distraidamente a casca rugosa da árvore, de um intenso marrom avermelhado. Seus olhos estudavam o corpo do jovem, cujas formas ressaltavam por entre a fina túnica que o cobria. Após amarrar a sandália, Adônis, num gesto viril, estirou os dois braços para o alto. Os cabelos dourados das axilas do jovem agitaram-se levemente sob a brisa que soprava na mata. A deusa, sem poder conter-se mais, saiu lentamente do esconderijo. Seus passos leves ressoavam sobre o tapete difuso de folhas caídas.
O jovem caçador, cujos ouvidos estavam treinados para captar o menor ruído no bosque, sentiu logo a aproximação de alguém. Voltando-se, encarou Vênus com um ar surpreso — pois não é todo dia que um caçador tem o privilégio de ser surpreendido pela própria deusa do amor. — Olá rapaz! — disse Vênus, procurando imprimir um tom natural às suas palavras. — Você... é Vênus, não é? — disse Adônis, certo de que mortal alguma poderia ser dona de tamanha beleza e encanto.
— Sim, sou — disse a deusa, procurando sempre manter a naturalidade. — E você, quem é?
— Sou Adônis.
— Caça sempre por aqui? — Bem, sempre não diria, mas é meu bosque preferido. — Você não é um deus, é? — Não, bela deusa, na verdade eu...
— Como pode ter a beleza de um deus e não ser um deles? — disse Vênus, erguendo os belos olhos e dardejando um olhar intenso sobre a face do jovem, como se desferisse uma estocada certeira e imprevista.
Vênus parecia um pouco enraivecida — sim, ela havia sido golpeada primeiramente pela beleza do rapaz e parecia disposta a se vingar amorosamente daquela involuntária audácia. — Veja, o outro pé de sua sandália também está desatado — disse ela, abaixando o olhar. Adônis fez menção de abaixar-se.
— Vamos, coloque o pé sobre a pedra, outra vez — disse a deusa, impositiva. — Por favor, deusa, deixe que eu... — Vamos, Adônis — insistiu Vênus. O jovem apoiou o seu pé esquerdo sobre a pedra. Colocando-se à sua frente, a deusa inclinou-se, tomando as duas tiras soltas em seus dedos macios. De cabeça baixa, seus cabelos roçavam involuntariamente a cintura de Adônis. Foi a sua vez de ser docemente surpreendida. O jovem, no seu orgulho viril de caçador, achava que já cedera demais às pequenas audácias da deusa — que era sempre, apesar de deusa, uma mulher — e tomou docemente as tiras de sua mão. — Mortais inclinam-se diante dos deuses, e não o contrário — disse ele. — Por que tem de ser sempre assim? — disse Vênus. — Deixe-me reverenciar também a sua beleza.
Adônis, sem poder conter mais seu desejo, fez com que ela se erguesse novamente. Antes, porém, que Vênus estivesse completamente equilibrada, recebeu da boca do rapaz um beijo longo e ardente.
Naquela tarde as corças puderam passear descansadas por todo o bosque. A partir daí a deusa passou a descer todos os dias de sua morada celestial para trocar carícias e beijos com o belo amante.
— Vou fazer de você um deus... — prometia ela, aninhada em seus braços. Entre carícias e abraços passavam os dois os seus dias. Adônis, entregue à sua nova paixão, havia esquecido momentaneamente do seu arco. Mas com o tempo o jovem foi readquirindo o seu gosto pelas caçadas.
— Cuidado, Adônis! Não se exponha demais aos animais ferozes — disse Vênus a ele. — Sua beleza pode agradar aos seres humanos e aos deuses, porém às feras ela é indiferente. Elas haverão de querer sempre o seu sangue.
— E eu o deles! — disse Adônis, empunhando alegremente o seu arco. Vênus ainda tentou reter o seu amado, mas Adônis estava surdo aos seus apelos. A deusa, respeitando a vontade dele, partiu em seu carro através dos ares.
— Cuide-se, meu amor! — disse ela, lançando um último olhar a Adônis, que tão logo a viu desaparecer, meteu-se na mata com os seus cães.
Fazia tempo que Adônis não exercitava os seus dons de caçador; seus cães, a seu turno, já haviam farejado a presença de um javali nos arredores e andavam agora em ziguezague, à frente do jovem, varrendo o chão com seus focinhos alertas. Adônis estava radiante, pois possuía, agora, as duas coisas que fazem a alegria da vida: o amor e a diversão.
Os latidos dos cães o despertaram de seu devaneio.
— Vamos, tirem-no da toca! — ordenou o caçador, ao ver que os cães haviam se concentrado ao redor de um esconderijo.
Um ruído surdo escapou do interior da toca: o maior dos cães havia descoberto uma entrada lateral e entrado por ela, o que obrigaria o javali a sair pela entrada principal, guarnecida pelos demais cães. De repente o animal surgiu da boca da toca, espumando e arremessando suas presas em todas as direções.
— Para trás, todos! — gritou Adônis, empunhando o seu arco e fazendo a mira.
Os cães recuaram um pouco, abrindo um claro e deixando à mostra a fera. O caçador, retesando bem a corda, disparou a flecha, que foi cravar-se no flano: esquerdo do animal. Um grito agudo, misto de dor e de raiva, partiu da goela da presa. Girando o corpo, o javali enxergou o seu agressor; em seguida, arremessou-se em sua direção, espumando uma baba vermelha, cujos flocos aderiam às suas cerdas completamente eriçadas.
Adônis ainda tentou abater o animal, mas não teve sucesso; o javali, num salto ágil e preciso, já enfiara antes suas duas enormes presas no peito do jovem. Com um grito de dor, Adônis caiu sobre a relva, enquanto o animal escapava para o interior da mata, levando atrás de si os cães enfurecidos.
O jovem arrastou-se até uma árvore próxima e ali, reclinando o corpo ferido, começou a gemer, pressentindo a morte.
Entre moitas de rosas e jacintos,
 Vênus não ia tão longe que pudesse deixar de escutar os gemidos de seu amado. Por isto, retornou imediatamente, pressentindo o pior. — Adônis, meu amor, o que houve? — exclamou a deusa, tomada pelo pavor, ao ver o jovem encostado ao tronco, com o corpo coberto de sangue.
— É o meu fim... — balbuciou o jovem, enquanto recostava a cabeça sobre o ombro da deusa, que o amparava amorosamente em seus últimos momentos. Vênus, após chorar todas as lágrimas, enterrou ali mesmo o corpo de seu amado. No lugar onde Adônis foi enterrado começaram a brotar algumas flores cor do sangue — flores de vida tão curta que, assim que floresciam, o vento arrancava-lhes as pétalas, provocandolhes a morte.
No mesmo dia a sombra de Adônis adentrou o Hades — a morada dos mortos. Todos pararam para ver e admirar aquele belo rapaz, que chegava trazendo ainda no peito as marcas das feridas. Prosérpina — rainha dos infernos e esposa de Plutão — encantou-se também com a beleza do novo súdito, tomando-o imediatamente sob a sua proteção.
Vênus, enquanto isto, continuava inconformada com a perda de seu amado:
— Preciso trazê-lo de volta! — repetia, com o rosto em prantos. No auge de sua dor, resolveu descer até os infernos para tentar revivê-lo. Prosérpina, no entanto, não se mostrou muito satisfeita com a idéia:
— Ele é agora meu súdito — disse, invocando os seus direitos de soberana. As duas deusas pareciam dispostas a iniciar uma briga, quando Plutão interveio, sugerindo que Adônis estivesse um tempo entre os mortos e outro entre os vivos.
Se Plutão, no entanto, fosse mais atento — ou, ao menos, mais previdente -, teria se dado conta, também, de que o mesmo acontecia com sua esposa, que durante seis meses do ano era obrigada a subir para a morada dos vivos, conforme antigo trato — exatamente à mesma época que o magnífico rapaz.
De qualquer modo, Vênus, que era a principal interessada, conseguiu o que queria e durante seis meses do ano tinha a felicidade de rever o seu adorado Adônis.

(A. S. Franchini / Carmen Seganfredo - AS MELHORES HISTÓRIAS DA MITOLOGIA)

Dentro de cada mulher existe uma Afrodite!
 

publicado às 17:49


Páscoa

por Thynus, em 30.01.16
A Bíblia conta que para celebrar a saída do Egito e manter viva a lembrança da escravidão, Iahweh prescreveu uma série de rituais a serem executados pelos hebreus. Tais celebrações levam os nome de Páscoa e Festa dos Ázimos. A Páscoa, no decorrer do tempo, espalhou-se pelo Ocidente para comemorar, no mesmo período, a ressurreição de Jesus Cristo. Embora pareçam festas similares, são, na verdade, distintas e originárias de um culto pagão.
Inicialmente, as festas da Páscoa e dos Ázimos relatadas no Antigo Testamento teriam sido realizadas na época da saída do Egito. Todavia, essas celebrações já eram feitas por diversos outros povos na mesma época, mas com outros sentidos. Como festas realizadas no início da primavera no hemisfério Norte, elas celebravam o renascimento e as colheitas, após o longo período de inverno. Tanto a Páscoa como os Ázimos não são festas originariamente judaicas e nem foram criadas para celebrar a fuga do Egito. A festa dos Ázimos era uma celebração agrícola para comemorar as boas colheitas. Ela tem origem cananeia – mais uma evidência de que as culturas de Canaã e de Judá e Israel são, originalmente, as mesmas – e não foi unida à Páscoa a não ser após a reforma religiosa promovida pelo rei Josias, que implantou o monoteísmo como religião oficial do estado de Judá. A Páscoa, por sua vez, era uma celebração de origem pré-israelita feita por pastores para o bem dos seus rebanhos.[Cf: Nota explicativa constante da Bíblia de Jerusalém (Paulus, 2008), em referência ao Capítulo 12 do livro do Êxodo]
Embora os redatores do Antigo Testamento queiram fazer da Páscoa uma festa judaica, como sendo determinada pelo próprio Deus a Moisés, para que os tempos de escravidão no Egito jamais fossem esquecidos, a Bíblia conta que “foi somente no décimo oitavo ano do rei Josias que semelhante Páscoa foi celebrada em honra de Iahweh em Jerusalém.” (2 Reis, 23:23), como parte das comemorações pela “descoberta” do livro da Lei no Templo. Josias governou Judá entre os anos 640 a 609 a.C. e isso leva à conclusão de que os relatos contidos no Êxodo sobre a Páscoa são acréscimos posteriores, possivelmente da versão do Antigo Testamento denominada Sacerdotal, composta após o exílio na Babilônia.
A Páscoa – que não tinha esse nome entre os outros povos do Oriente e da Grécia - era originalmente celebrada como parte dos rituais de ressurreição do deus Adônis (Tammuz, na Síria e Babilônia)[Joseph Campbell. As Máscaras de Deus: mitologia ocidental, p. 120; Mircea Eliade. História das crenças e das ideias religiosas, volume I: da Idade das Pedras aos Mistérios de Elêusis. p.176.]. Adônis, nas mitologias fenícia e grega, era um jovem de grande beleza que despertou o amor de Perséfone e Afrodite. Elas passaram a disputar a companhia desse homem e submeteram o assunto a Zeus. Este estipulou que Adônis passaria um terço do ano com cada uma delas, mas Adônis, que preferia Afrodite, permaneceria com ela também o terço restante. No entanto, o deus Ares, da guerra, amante de Afrodite, ao saber da traição da deusa, decide atacar Adônis enviando um javali para matá-lo. O animal desferiu um golpe fatal em Adônis. O jovem morto desceu aos infernos, onde já viviam Hades e a sua esposa Perséfone – a rainha do submundo. Como ele foi viver junto a sua rival, isso provocou a ira de Afrodite, obrigando Zeus a intervir mais uma vez, determinando que Adônis seria livre por quatro meses do ano, passaria outros quatro com Afrodite e o último quarto com Perséfone. O deus da beleza tornou-se então símbolo da vegetação que morre no inverno (descendo ao submundo e juntando-se a Perséfone) e regressa à Terra na primavera (para juntar-se a Afrodite), divindade ctônia (que cumpre o ciclo da semente).
A Páscoa Judaica celebra a libertação e o renascimento (ressurreição) de um povo, ao invés de um Deus, tradição esta que foi retomada pelo cristianismo, ao comemorar o retorno de Jesus do mundo dos mortos, tal como Adônis e outros, cujo festival também era celebrado no início da primavera do Hemisfério Norte.

(Élvio Gusmão Santos - As Histórias da Bíblia e os Mitos da Antiguidade)

publicado às 17:48

“O erotismo é uma das bases do conhecimento de nós próprios, tão indispensável como a poesia.”

Disse Nietzsche que tudo seria permitido se Deus não existisse, e eu respondo que precisamente por causa e em nome de Deus é que se tem permitido e justificado tudo, principalmente o pior, principalmente o mais horrendo e cruel. Durante séculos a Inquisição foi, ela também, como hoje os talebanes, uma organização terrorista que se dedicou a interpretar perversamente textos sagrados que deveriam merecer o respeito de quem neles dizia crer, um monstruoso conúbio pactuado entre a religião e o Estado contra a liberdade de consciência e contra o mais humano dos direitos: o direito a dizer não, o direito à heresia, o direito a escolher outra coisa, que isso só a palavra heresia significa.

(José Saramago: O fator Deus)

 

 

No encontro sexual ocorre fusão e dissolução, como vimos em Leiris. Mas Bataille acredita que, neste caso, quem se desagrega é essencialmente a parte feminina, por ser passiva. O homem despe a mulher, retira-lhe a descontinuidade embutida em suas roupas, descarrega-a dela. A mulher torna-se, assim, despossuída, deixa de ser impenetrável, o homem a penetra (Bataille, 1957, p. 141). Basicamente, é a parte feminina que é aqui desagregada e o homem é aquele que participa dessa desagregação. Ela prepara a fusão, na qual se misturarão os dois seres, que, juntos, chegam ao ponto de dissolução. Esse ponto é o que Bataille chama de “crise”. É quando homem e mulher tornam-se contínuos, “comunicam-se” (no sentido que ele deu acima a esta palavra) e cada ser contribui para a negação que o outro faz de si mesmo. É uma autonegação que, contudo, não leva ao reconhecimento do parceiro. De cada lado, temos um movimento interno que faz com que o ser saia fora de si segundo diferentes velocidades: a mulher mais lentamente, o homem de forma fulminante.

O que os projeta para fora de si é a pletora sexual. Nessa acepção, a posição de Bataille é próxima à de Emmanuel Lévinas: Eros não tem nada a ver com o amor, ele é exclusivamente não-fusão, o outro é aquilo que eu não sou, é assimétrico e irredutível. Igual a Bataille, Lévinas acredita que a perda do controle pode se dar na morte ou na alteridade do Eros, momento em que o outro tem a liberdade exterior à minha.
Erotismo e sennsualidade
Os corpos, quando se desfazem das roupas, conduzem à continuidade. A nudez opõe-se ao estado fechado e é uma forma de comunicação que está além do retratar-se a si mesmo. Diz Bataille que os corpos se abrem para a continuidade por meio desses “condutos secretos” que nos provocam o sentimento de obscenidade. Aqui também vemos um paralelismo com Lévinas.
Para este, a nudez é abertura ao transcendente, à alteridade do outro. Com a vestimenta, o ser criou uma face através da qual ele passou a se anunciar; já na nudez, o ser está retirado do mundo, transferiu sua experiência para outro lugar. Em Lévinas, a relação com a nudez é a verdadeira experiência da alteridade do outro (Lévinas, 1947, p. 61).
Mas a nudez de Lévinas é distinta da de Bataille. Um rosto, para Lévinas, pode ser uma forma de nudez, nudez sem defesa, lugar em que o Infinito se mostra. E o carinho, que pode representar os “condutos secretos” de Bataille, jamais é um desnudamento do ser: a ternura da pele é o próprio desencontro entre aproximação e aproximado, é antes des-ordem, diacronia, prazer sem presente (Lévinas, 1971, p. 143-4).
Os corpos abrem-se para a continuidade por meio de condutos secretos que provocam a sensação de obscenidade, uma sensação incômoda, pois, o obsceno é algo semelhante à posse de si mesmo, àquilo que trava a abertura ao outro, um inibidor, portanto. E a abertura só se dá com a despossessão, com o jogo dos órgãos que se derramam na renovação da fusão, como diz Bataille, que é semelhante ao vai-e-vem das ondas que se penetram e se perdem umas nas outras. Também aqui a abertura no erotismo dos corpos é o mesmo que comunicação.
Ao despir uma mulher, o homem não apenas descarrega-a de sua descontinuidade, ele quer também profanar sua beleza. A beleza da mulher é uma recusa da sua animalidade e o homem deseja apaixonadamente essa beleza para poder sujá-la, profaná-la, nela introduzir sua sujeira animal. Leonardo da Vinci dizia que o ato da cópula era muito feio e que somente os belos rostos o salvavam. Mas Bataille refuta essa opinião dizendo que um rosto belo anuncia um corpo belo sob as roupas, e é preciso profanar esse rosto, essa beleza. O erotismo é o contrário disso, é sujeira, animalidade, profanação. Por isso, a feiúra não atrai, ela não pode ser profanada.
Na união do erotismo dos corpos com o erotismo dos corações, do ponto de vista do amante, apenas o ser amado pode realizar a plena fusão dos seres. Desta maneira, à fusão erótica junta-se o sofrimento, que é o mesmo que paixão. A intensidade do sofrimento revela a importância do ser amado. Nestes casos, o movimento do amor, no extremo, é um movimento de morte, a paixão faz apelo à morte, ao desejo de matar ou de suicídio. Se o amante não pode possuir o ser amado, pensa às vezes em matá-lo: prefere matá-lo a perdê-lo.

O erotismo do sacrifício já é de outra natureza. Como nos demais, ele provoca a sensação de dissolução do um no todo, portanto, a comunicação. Num rito solene, uma pessoa – um ser descontínuo – é escolhida para a cerimônia. O ato de sacrifício permite que se crie a continuidade desse ser, continuidade essa que é passada a todos aqueles que participam do rito solene, dedicando-lhe sua atenção. A vítima é subtraída do conjunto dos seres e ofertada à divindade para algum tipo de conciliação. Na linguagem de Bataille, ela é um excedente retirado da riqueza útil, que é consumida sem lucro, destruída para sempre. É o que ele denomina parte maldita, aquele ser que é escolhido e prometido ao consumo violento. No sacrifício, a vítima torna-se contínua, ilimitada, próxima ao Infinito.

(Ciro Marcondes Filho - Paixão, erotismo e comunicação. Contribuições de um filósofo maldito, Georges Bataille)
Rembrandt, Sacrifício de Isaac, 1635

publicado às 22:24


Dois lobos no coração

por Thynus, em 29.01.16
“Todos os seres sensíveis se desenvolveram pela seleção natural de maneira que as sensações agradáveis lhes servissem de guia, especialmente o prazer gerado pela sociabilidade e pelo amor familiar.”
(Charles Darwin)
 
Quem vence?

Certa vez, ouvi uma história sobre uma índia anciã americana, a quem se perguntou como havia se tornado tão sábia, feliz e respeitada. Ela respondeu: “Em meu coração, vivem dois lobos: um lobo do amor e outro do ódio. Tudo depende de qual deles eu alimento a cada dia”.
Essa lenda me dá certo arrepio. É, ao mesmo tempo, despretensiosa e esperançosa. Primeiro, o lobo do amor é muito estimado, mas quem de nós também não possui um lobo do ódio dentro de si? Ele está presente tanto em guerras distantes quanto ao nosso redor, na ira e na agressividade que dirigimos até mesmo a quem amamos. Segundo, a história sugere que todas as pessoas são capazes com base em ações cotidianas – de estimular e fortalecer a empatia, a compaixão e a bondade e também de dominar a hostilidade, o desprezo e a agressividade.
O que são esses lobos e de onde vêm? E o que devemos fazer para alimentar o lobo do amor e matar o do ódio? Este capítulo trata da primeira pergunta; os próximos dois exploram a segunda.

A EVOLUÇÃO DO RELACIONAMENTO
Embora o lobo do ódio renda mais manchetes, o do amor tem sido cuidadosamente educado pela evolução para ser mais forte – e mais fundamental para sua natureza mais profunda. No longo caminho desde as minúsculas esponjas dos mares primitivos até a humanidade de hoje, relacionar-se bem com outros membros da espécie tem sido de grande ajuda para a sobrevivência. Durante a jornada dos últimos 150 milhões de anos da evolução animal, as vantagens das habilidades sociais foram provavelmente o fator mais influente no desenvolvimento do cérebro. Houve três avanços da maior importância, e você se beneficia deles todos os dias.

Vertebrados
Os primeiros sinapsidas viveram há cerca de 180 milhões de anos; 30 milhões de anos depois, vieram as primeiras aves (essas datas são aproximadas devido a incertezas nos registros fósseis). Os mamíferos e as aves encararam desafios de sobrevivência semelhantes aos que os répteis e os peixes enfrentaram – hábitat hostil e predadores ferozes. Contudo, proporcionalmente ao peso corporal, os mamíferos e as aves têm cérebro maior. Por quê? Os répteis e os peixes geralmente não criam seus filhotes – na verdade, às vezes, até os comem! – e é típico viverem sem um parceiro. Já os mamíferos e as aves criam seus filhotes e, em muitos casos, formam casais, alguns para a vida toda.
Usando a linguagem fria da neurociência evolucionária, as “exigências computacionais” de selecionar um bom par, compartilhar os alimentos e cuidar dos filhotes demandaram maior processamento neural em mamíferos e aves (Dunbar e Shultz 2007). Um esquilo ou um pardal têm de ser mais espertos que um lagarto ou um tubarão: mais capazes de planejar, comunicar-se, cooperar e negociar. Essas são as habilidades corretas que os casais humanos descobrem ser essenciais ao se tornar pais, sobretudo se quiserem permanecer unidos.

Primatas
O próximo passo significativo na evolução do cérebro ocorreu com os primeiros primatas que surgiram, mais ou menos 80 milhões de anos atrás. Sua característica determinante era e é a grande capacidade de socializar-se. Os macacos, por exemplo, passam até um sexto de seu dia catando piolhos em outros membros do bando. Curiosamente, em uma espécie estudada – os macacos-de-gibraltar –, os que ficavam catando liberavam mais estresse do que os que tinham os pelos escarafunchados (Schutt et al. 2007). (Tentei usar esse argumento para conseguir mais cafuné de minha esposa, mas até agora não deu certo.) O fator evolucionário preponderante é que, tanto para os primatas machos quanto para as fêmeas, o sucesso social – que reflete a capacidade de relacionamento – gera mais descendentes (Silk 2007).
Na verdade, quanto mais sociável é uma espécie primata – avaliada por fatores como tamanho da prole, quantidade de parceiros que ficam se afagando e complexidade hierárquica –, maior é o córtex em comparação com o restante do cérebro (Dunbar e Shultz 2007; Sapolsky 2006). Relacionamentos mais complexos requerem cérebros mais complexos.
Além disso, apenas os grandes macacos – a família mais moderna de primatas, que inclui os chimpanzés, os gorilas, os orangotangos e o homem – desenvolveram células fusiformes, um tipo singular de neurônio que sustenta aptidões sociais avançadas (Allman et al. 2001; Nimchinsky et al. 1999). Grandes macacos, por exemplo, costumam consolar membros do bando que estão chateados, embora esse tipo de comportamento seja raro entre outros primatas (de Waal 2006). Assim como nós, os chimpanzés riem e choram (Bard 2006).
As células fusiformes são encontradas somente no córtex cingulado e na ínsula, o que indica que essas regiões – e suas funções de empatia e autoconsciência – passaram por pressão evolutiva intensa nos últimos milhões de anos (Allman et al. 2001; Nimchinsky et al. 1999). Em outras palavras, os benefícios dos relacionamentos ajudaram a orientar a evolução recente do cérebro dos primatas.

O homem
Por volta de 2,6 milhões de anos atrás, nossos ancestrais hominídeos começaram a fazer utensílios de pedra (Semaw et al. 1997). Desde então, o cérebro triplicou de tamanho, mesmo usando cerca de dez vezes mais recursos metabólicos do que a quantidade equivalente de músculo (Dunbar e Shultz 2007). Esse aumento desafiou o corpo feminino a também evoluir, com a finalidade de possibilitar que bebês com cérebro maior saíssem pelo canal vaginal (Simpson et al. 2008). Dados seus custos biológicos, esse rápido crescimento deve ter conferido muitos benefícios à sobrevivência – e muito do que foi adicionado é usado para processamentos sociais, emocionais, linguísticos e conceituais (Balter 2007). O homem, por exemplo, tem muito mais neurônios fusiformes do que os macacos de grande porte; eles criam um tipo de via expressa de informação que sai do córtex cingulado e da ínsula – duas regiões cruciais para a inteligência social e emocional – para outras partes do cérebro (Allman et al. 2001). Embora um chimpanzé adulto se saia melhor que uma criança de dois anos no processo de descoberta do mundo físico, esse pequeno ser humano já é muito mais sabido no que se refere a relacionamentos (Herrmann et al. 2007).
Esse processo de evolução neural pode parecer árido e remoto, mas ele se esgotou de diversas maneiras nas lutas diárias de vida e morte por parte de seres como nós. Por muito tempo, até o advento da agricultura, há cerca de dez mil anos, nossos ancestrais viveram em grupos de caça e coleta, em geral, com menos de 150 membros (Norenzayan e Shariff 2008). Eles se desenvolveram principalmente no próprio bando, enquanto saíam em busca de comida, evitavam predadores e competiam com outros bandos por recursos escassos. Nesse meio hostil, os indivíduos que cooperavam com outros integrantes do grupo viviam mais e deixavam mais descendentes (Wilson 1999). Além disso, bandos que trabalhavam melhor em equipe superavam os outros na obtenção de recursos, na sobrevivência e na transmissão de genes (Nowak 2006).
Até mesmo pequenas vantagens reprodutivas em uma única geração acumulam-se significativamente com o passar do tempo (Bowles 2006). Ao longo de cem mil gerações desde o surgimento das primeiras ferramentas, aqueles genes que promoveram aptidões de relacionamento e tendências cooperativas imprimiram seus traços na constituição genética da população humana. Os resultados podem ser vistos hoje nas bases neurais de muitas características essenciais da natureza humana, incluindo altruísmo (Bowles 2006; Judson 2007), generosidade (Harbaugh, Mayr e Burghart 2007; Moll et al. 2006; Rilling et al. 2002), preocupação com a reputação (Bateson, Nettle e Robert 2006), justiça (de Quervain et al. 2004; Singer et al. 2006), linguagem (Cheney e Seyfarth 2008), perdão (Nowak 2006) e moralidade e religião (Norenzayan e Shariff 2008).

CIRCUITOS DE EMPATIA
Poderosos processos evolutivos configuraram o sistema nervoso para produzir as aptidões e inclinações que promovem relacionamentos cooperativos, alimentando um grande e amável lobo no coração. Construindo-se sobre essa sociabilidade geral, as redes neurais relacionadas estimulam a empatia, a capacidade de sentir o estado interior de outra pessoa, necessária em qualquer tipo de intimidade verdadeira. Quando não há empatia, seguimos a vida como formigas e abelhas, esbarrando em outras pessoas, mas fundamentalmente sozinhos.
O ser humano é, de longe, a espécie mais empática do planeta. Nossas notáveis habilidades dependem de três sistemas neurais que simulam ações, emoções e pensamentos de outra pessoa.

Ações
Redes nos sistemas perceptivo-motores do cérebro são acionadas quando uma pessoa realiza uma ação e quando vê alguém desempenhando a mesma ação, o que dá a você uma sensação igual a que essa pessoa está tendo no corpo (Oberman e Ramachandran 2007). De fato, essas redes espelham o comportamento dos outros, daí o termo neurônio espelho.

 Emoções
A ínsula e os circuitos relacionados são ativados quando você passa por emoções fortes como medo ou raiva e quando você vê outras pessoas sentindo essas mesmas emoções, principalmente se forem pessoas queridas. Quanto mais consciência você tem de seus estados emocionais e corporais, mais sua ínsula e o córtex cingulado anterior (CCA) são ativados – e melhor é sua capacidade de reconhecer o estado de outras pessoas (Singer et al. 2004).
Na verdade, as redes límbicas que produzem seus sentimentos também apreendem os sentimentos alheios. Como resultado, deficiências na expressão de emoções – como em quem sofreu um AVC – muitas vezes também afetam o reconhecimento das emoções em outras pessoas (Niedenthal 2007).

Pensamentos
Os psicólogos empregam o termo teoria da mente (TDM) para se referir à capacidade de imaginar os processos internos de alguém. A TDM envolve estruturas pré-frontais e lobo-temporais que são bem recentes no processo evolutivo (Gallagher e Frith 2003). As habilidades da TDM surgem durante o terceiro ou o quarto ano de vida e não se desenvolvem totalmente até a completa mielinização – o isolamento dos axônios que acelera os sinais neurais ao longo deles – do córtex pré-frontal no fim da adolescência ou até vinte e poucos anos (Singer 2006).
Esses três sistemas – rastreando as ações, emoções e pensamentos de outras pessoas – ajudam-se mutuamente. Por exemplo, a ressonância sensório-motora e límbica com as ações e emoções alheias lhe dá muitos dados para o processamento característico da teoria da mente. Então, uma vez que você forma uma suposição baseada em fatos – geralmente em apenas alguns segundos –, experimenta-a no corpo e nos sentimentos. Trabalhando juntos, esses sistemas o ajudam a compreender, de dentro para fora, como é ser outra pessoa. No próximo capítulo, ensinaremos diversas maneiras de fortalecê-los.

AMOR E VÍNCULO
À medida que o cérebro humano evoluiu e aumentou de tamanho, o período da infância passou a durar mais (Coward 2008). Consequentemente, os bandos hominídeos foram obrigados a desenvolver maneiras de manter seus integrantes unidos por muitos anos, pois, segundo o provérbio africano, tinham de preservar “uma aldeia inteira para educar uma criança” e, então, passar adiante os genes do bando (Gibbons 2008). Para isso, o cérebro adquiriu circuitos elétricos e neuroquímicos poderosos para gerar e manter o amor e o vínculo.
Esse é o fundamento físico sobre o qual a mente construiu suas experiências de romance, angústia e afeto profundo, bem como seus laços com os familiares. Obviamente, o amor vai muito além do cérebro: a cultura, o sexo e a psicologia pessoal também têm grande influência. No entanto, muitas pesquisas em neuropsicologia do desenvolvimento trouxeram esclarecimentos sobre por que o amor pode tomar rumos tão errados – e como endireitá-los.

Amar é bom
O amor romântico está presente em quase todas as culturas humanas, o que nos leva a concluir que está enraizado em nossa natureza biológica – e também bioquímica (Jankowiak e Fischer 1992). Embora as endorfinas e a vasopressina estejam envolvidas na neuroquímica da união e do amor, o papel mais determinante é exercido provavelmente pela oxitocina (Young e Wang 2004).
Esse neuromodulador (e hormônio) produz sentimentos de afeto e carinho, e está presente em mulheres e homens, mas em maior quantidade nas primeiras. A oxitocina estimula o contato “olhos nos olhos” (Guastella, Mitchell e Dads 2008); aumenta a confiança (Kosfeld et al. 2005); suprime a excitação da amígdala cerebelar e promove comportamentos de aproximação (Petrovic et al. 2008); e deixa as mulheres mais propensas a comportamentos que envolvem cuidado e proteção, como defender a prole, em situações de estresse (Taylor et al. 2000) – tal reação também é conhecida pelo termo em inglês tend-and-befriend. Redes neurais distintas lidam com paixões fugazes e relacionamentos de longo prazo (Fisher, Aron e Brown 2006). Em seus estágios iniciais, é normal que um relacionamento romântico seja dominado por recompensas intensas, muitas vezes inconstantes, que usam expressivamente redes neurais envolvidas com a dopamina (Aron et al. 2005). Mais adiante, o relacionamento segue gradualmente para realizações mais estáveis que contam com a oxitocina e os sistemas relacionados. Mesmo assim, entre casais juntos há muito tempo e que ainda estão profundamente apaixonados, pequenas cutucadas contínuas de dopamina mantêm estimulados os centros de prazer do cérebro de cada um dos parceiros (Schechner 2008).

Perder um amor dói muito
Além de buscar o prazer do amor, tentamos evitar o sofrimento de terminá-lo. Quando há um rompimento, parte do sistema límbico das pessoas envolvidas é acionada – a mesma parte que é ativada quando são feitos investimentos de alto risco que podem acabar muito mal (Fisher, Aron e Brown 2006). A dor física e a dor social têm como base sistemas neurais sobrepostos (Eisenberger e Lieberman 2004): pode-se dizer, literalmente, que a rejeição dói.

Filhos e vínculos
Quando associados com outras influências – como psicológicas, culturais e circunstanciais –, esses fatores neurobiológicos frequentemente resultam, compreensivelmente, em bebês. Nesse caso, também, a oxitocina incentiva a criação de laços, sobretudo na mãe.
As crianças evoluíram para ser amadas; e os pais, para amar, uma vez que ligações fortes favorecem a sobrevivência na natureza. O sistema de apego conta com diversas redes neurais – que lidam com empatia, autoconsciência, atenção, controle de emoções e motivação – para tecer fortes ligações entre a criança e os pais (Siegel 2001). As experiências recorrentes que uma criança pequena tem com seus cuidadores passam por essas redes neurais, moldando-as e, portanto, configurando a maneira como a criança se relaciona com os outros e se sente em relação a si. Espera-se que dê tudo certo – mas essas experiências ocorrem numa idade em que as crianças estão mais vulneráveis; e seus pais, geralmente mais estressados e exaustos (Hanson, Hanson e Pollycove 2002), o que cria desafios internos. O relacionamento humano entre pais e filhos é singular no reino animal, e tem um poder particular de determinar como cada um de nós busca e expressa o amor quando adulto; no próximo capítulo, aprenderemos a lidar com as formas como você pode ter sido afetado.

O LOBO DO ÓDIO
Nosso passado evolutivo exclusivo nos tornou incrivelmente cooperativos, empáticos e amorosos. Então, por que a história do homem é tão cheia de egoísmo, crueldade e violência?
Fatores econômicos e culturais sem dúvida têm um papel nisso. Contudo, passando por diversos tipos de sociedade – caçadoracoletora, agrária e industrial; comunista e capitalista; oriental e ocidental –, na maior parte dos casos, a história é basicamente a mesma: lealdade e proteção para “nós” e medo e agressividade em relação aos “outros”. Já vimos como essa postura em relação a “nós” faz parte de nossa natureza. Agora vamos analisar como o medo e a agressividade se desenvolvem contra os “outros”.

Odioso e brutal
Por milhões de anos, nossos ancestrais foram expostos à fome, a predadores e a doenças. Para piorar, as oscilações climáticas trouxeram períodos terríveis de seca e eras do gelo, intensificando a competição por recursos escassos. De modo geral, essas condições adversas mantiveram as populações hominídeas e humanas essencialmente niveladas, a despeito de aumentos potenciais de 2 por cento ao ano (Bowles 2006).
Em meios hostis como aqueles, era vantajoso para nossos ancestrais, do ponto de vista reprodutivo, ser cooperativo dentro do próprio grupo, mas agressivo em relação a outros (Choi e Bowles 2007). A cooperação e a agressividade evoluíram de maneira sinérgica: bandos com maior cooperação entre seus membros obtinham melhor resultado quanto à agressividade, e a agressividade entre bandos demandava cooperação dentro dos bandos (Bowles 2009).
Assim como a cooperação e o amor, a agressividade e o ódio também envolvem diversos sistemas neurológicos. Veja a seguir.
• Na maior parte dos casos, a agressividade é uma resposta à sensação de ameaça, que inclui até mesmo sentimentos sutis de inquietação ou ansiedade. Pelo fato de a amígdala ser preparada para registrar ameaças e ser cada vez mais sensibilizada por aquilo que “concebe”, muitas pessoas se sentem cada vez mais ameaçadas com o passar do tempo. E, portanto, mais agressivas.
• Quando o sistema SNS/HPA é ativado, se você escolhe lutar em vez de fugir, o fluxo sanguíneo aumenta nos músculos de seus braços para bater, ocorre a piloereção, quando os pelos ficam eriçados, levando-o a ficar mais ameaçador em relação a um possível agressor ou predador, e o hipotálamo pode – em caso extremo – desencadear reações de raiva.
• A agressividade está relacionada com a alta taxa de testosterona – tanto em homens quanto em mulheres – e à baixa serotonina.
• Sistemas de linguagem nos lobos temporal e frontal esquerdo trabalham com processamentos visuais-espaciais no hemisfério direito para classificar os outros como amigos ou inimigos, pessoas ou coisas sem importância.
• A agressividade “hostil” – em que há grande ativação do SNS/HPA – frequentemente domina a regulação pré-frontal das emoções. A agressividade “instrumental” envolve pouca ativação do SNS/HPA e usa prolongada atividade pré-frontal. O resultado dessa dinâmica neural nós conhecemos muito bem: cuide bem dos “seus” e tema, despreze e ataque os “outros”. Pesquisas revelam que a maioria dos bandos modernos que caçavam e colhiam – que oferecem fortes indícios dos meios sociais onde nossos antepassados se desenvolveram – mantinha-se em constante conflito com outros grupos. Essas lutas, ao mesmo tempo em que não tinham o impacto e o terror das guerras atuais, eram, na verdade, muito mais letais. Um a cada oito homens morria em conflito, contra um a cada cem nas guerras do século XX (Bowles 2006; Keeley 1997).
O cérebro ainda possui essas habilidades e tendências. E está a serviço nas rodinhas formadas no pátio da escola, na política da empresa e na violência doméstica. (A competição saudável, a assertividade e a defesa veemente de alguém ou de uma causa importante diferem muito da agressividade hostil.) Numa escala maior, nossas tendências agressivas abastecem o preconceito, a opressão, a limpeza étnica e a guerra. Muitas vezes, essas inclinações são manipuladas, como na demonização dos “outros” na clássica justificativa para o controle autoritário. Porém, essas manipulações não seriam nem de perto tão bem-sucedidas se não fosse pelo legado da agressividade entre grupos em nossa história evolutiva.

O que ficou de fora?
O lobo do amor enxerga um vasto horizonte, com todos os seres fazendo parte do círculo “nós”. Esse círculo encolhe para o lobo do ódio, de modo que apenas seu país, sua tribo, seus amigos ou familiares – ou em caso extremo somente ele mesmo – são considerados “nós”, cercados por multidões ameaçadoras de “outros”. Na verdade, às vezes o círculo fica tão pequeno que uma parte da mente tem ódio da outra parte. Por exemplo, já tive pacientes que não conseguiam se olhar no espelho porque se achavam muito feios.
Existe um ditado zen segundo o qual nada fica de fora da consciência, nada fica de fora da experiência, nada fica de fora do coração. Conforme o círculo diminui, surge naturalmente a questão: o que é deixado de fora? As pessoas do outro lado do mundo, seguidoras de outra religião, ou os vizinhos de cujas opiniões políticas a pessoa discorda? Ou parentes complicados, ou velhos amigos que a magoaram? Poderia ser qualquer um que seja considerado inferior ou que seja usado apenas como um meio para determinado fim.
Assim que alguém exclui uma pessoa do círculo do “nós”, a mente/cérebro automaticamente começa a desvalorizá-la e a justificar o tratamento inadequado de sua parte (Efferson, Lalive e Feh 2008). Isso deixa o lobo do ódio agitado e em movimento, a uma pequena distância da agressão ágil. Pense em quantas vezes por dia alguém fica de fora do círculo, sobretudo de maneira sutil: “Ele não é da minha classe social”, “Não é meu tipo” e assim por diante. Note o que acontece em sua mente quando você se livra conscientemente dessa distinção e, em vez disso, se concentra no que existe em comum entre você e outro, o que os torna “nós”. Ironicamente, uma resposta para “O que ficou de fora?” é o lobo do ódio em si, que costuma ser renegado ou subestimado. Por exemplo, não fico à vontade ao admitir que me sinto bem quando o mocinho mata o bandido em um filme. Querendo ou não, o lobo do ódio está vivo e bem dentro de cada um de nós. É fácil ouvir a notícia de um assassinato horrível em outro estado ou de um ato de terrorismo e tortura do outro lado do mundo – ou mesmo de formas mais amenas de maus-tratos contra pessoas conhecidas – e balançar a cabeça, pensando: “O que há de errado com essas pessoas?” Só que essas pessoas, na verdade, somos nós. Todos nós temos o mesmo DNA básico. Não reconhecer a agressividade como parte de nossas características genéticas constitui certa ignorância – que é a raiz do sofrimento. De fato, como vimos há pouco, os intensos conflitos entre grupos auxiliaram a evolução do altruísmo em cada grupo: o lobo do ódio ajudou a dar à luz o lobo do amor.
O lobo do ódio está profundamente incrustado no passado evolutivo do homem, bem como no cérebro de cada pessoa atualmente, pronto para se manifestar diante de qualquer ameaça. Ser realista e honesto a respeito dele – e de suas origens impessoais, evolutivas – faz surgir a compaixão por si mesmo. Seu lobo do ódio precisa ser amansado, é certo, mas não é culpa sua se ele fica à espreita nas sombras de sua mente, e ele provavelmente o aflige mais do que qualquer pessoa. Além disso, admitir sua existência incita uma prudência muito útil em situações nas quais você se sente maltratado ou agitado (discutir com o vizinho, disciplinar uma criança, reagir a uma crítica no trabalho) –, e o lobo começa a acordar.
Quando você assiste ao noticiário da noite – ou ouve as crianças brigando –, às vezes tem a impressão de que o lobo do ódio dominou a existência humana. Da mesma forma como a súbita excitação do SNS/HPA se destaca contra um pano de fundo de ativação parassimpática em repouso, nuvens negras de agressividade e conflito chamam mais atenção do que o imenso “céu” de união e amor pelo qual elas passam. Contudo, na verdade, a maioria das interações tem uma qualidade cooperativa. O homem e os outros primatas constantemente reprimem o lobo do ódio e reparam seus danos, retornando a uma linha de relacionamentos razoavelmente positivos entre si (Sapolsky 2006). Na maioria das pessoas, na maior parte do tempo, o lobo do amor é maior e mais forte que o do ódio.
Amor e ódio vivem e se embolam em todo coração, assim como filhotes se engalfinhando em uma gruta. Não dá para matar o lobo do ódio; a aversão contida em tal atitude, na verdade, criaria aquilo que você está tentando destruir. Mas você pode vigiar o lobo com cuidado, mantê-lo preso e limitar seus sobressaltos, seu senso de justiça, descontentamentos, ressentimentos, desprezos e preconceitos. Ao mesmo tempo, alimente e estimule o lobo do amor. Veremos como fazer isso nos dois próximos capítulos.

 (Rick  Hanson com Richard Mendius - O Cérebro de Buda, neurociência prática para a felicidade)
Dois lobos dentro de mim

publicado às 18:33


TRÊS ESTRATÉGIAS DE SOBREVIVÊNCIA

por Thynus, em 29.01.16
Tome cuidado com o que você ouve - pode ser que estejam lavando o seu cérebro.
Tome cuidado com que você vê - pode ser que estejam lavando seu cérebro.

Tome cuidado com o que você fala - pode ser que você esteja lavando o cérebro de alguém.

Tome cuidado com o que você escreve - pode ser que você esteja lavando o cérebro de alguém.

 
A (Des)Informação modela o seu cérebro
 
 
Ao longo da evolução, nossos ancestrais desenvolveram três estratégias fundamentais para garantir sua sobrevivência.
• Criar diferenciações – para estabelecer limites entre si e o mundo e entre um estado mental e outro.
• Manter a estabilidade – com o intuito de manter os sistemas físico e mental em um equilíbrio saudável.
• Abrir-se a oportunidades e fugir de ameaças – para obter coisas que propiciem a descendência e resistir àquelas que ameacem a prole.
Essas estratégias funcionaram bem para a sobrevivência, mas a Mãe Natureza não se importa com a forma como são sentidas.
Para motivarem os animais, incluindo nós mesmos, a seguir essas estratégias e transmitir seus genes para as gerações seguintes, as redes neurais evoluíram para criar dor e angústia sob certas condições: quando as diferenciações falham, a estabilidade é abalada, oportunidades são frustradas e ameaças são iminentes. Infelizmente, situações como essas acontecem o tempo todo, pois:
• tudo está conectado;
• as coisas estão em constante mutação;
• as oportunidades ou não são aproveitadas ou perdem seu encanto, e muitas ameaças são inevitáveis (como o envelhecimento e a morte).

NÃO TÃO SEPARADOS
Os lobos parietais estão localizados na parte posterior mais alta da cabeça. Para a maioria das pessoas, o lobo esquerdo determina que o corpo é diferente do mundo, e o direito indica onde o corpo é comparado a características de seu meio. O resultado é uma suposição automática e obscura do tipo Sou um ser isolado e independente. Embora isso seja verdade em algumas situações, em muitas circunstâncias importantes não é.

Não tão distintos
Para viver, o organismo precisa metabolizar: trocar substâncias e energia com seu ambiente. Consequentemente, ao longo de um ano, muitos dos átomos do corpo são substituídos por outros. A energia usada para beber um copo de água vem da luz solar que chega por meio da cadeia alimentar – no fim, a luz é que ergue o copo até seus lábios. O aparente muro entre seu corpo e o mundo é mais parecido com uma cerca vazada. E entre a mente e o mundo é algo como uma linha pintada na calçada. A linguagem e a cultura penetram e moldam sua mente desde o momento em que nasce (Han e Northoff 2008). A empatia e o amor sintonizam você naturalmente a outras pessoas, então sua mente e a delas entram na mesma frequência (Siegel 2007). Esses fluxos de atividade mental seguem em ambas as direções à medida que você influencia os outros.
Dentro da mente, não há nenhuma linha. Todos os conteúdos circulam uns para dentro de outros, sensações viram pensamentos, sentimentos, desejos, ações e mais sensações. Essa corrente de consciência se correlaciona com uma cascata de circuitos neurais transitórios, cada um se desfazendo e formando o próximo, geralmente em menos de um segundo (Dehaene, Sergent e Changeux 2003; Thompson e Varela 2001).

Não tão independentes
Estou aqui porque um sérvio nacionalista assassinou o arquiduque Francisco Ferdinando, desencadeando a Primeira Guerra Mundial – o que, por sua vez, levou ao improvável encontro entre meu pai e minha mãe num baile do exército em 1944.
Logicamente, há um milhão de razões para que qualquer pessoa esteja neste mundo hoje. Até que ponto do passado conseguimos chegar? Meu filho – que nasceu com o cordão umbilical enrolado no pescoço – está entre nós graças à tecnologia desenvolvida ao longo de centenas de anos.
Ou podemos ir bem mais longe: a maior parte dos átomos do corpo nasceu dentro de uma estrela. No universo remoto, o hidrogênio era praticamente o único elemento. As estrelas são reatores nucleares gigantescos que agitam átomos de hidrogênio, produzindo elementos mais pesados e liberando grande quantidade de energia no processo. Aqueles átomos da explosão da estrela nova lançaram seus conteúdos para todos os lados. Com o tempo, nosso sistema solar começou a se formar, e em cerca de 9 bilhões de anos a partir da origem do universo, havia átomos grandes em número suficiente para compor o planeta, as mãos que seguram este livro e o cérebro que compreende estas palavras. Na verdade, você só está aqui porque várias estrelas explodiram. Seu corpo é composto de poeira estelar.
Sua mente também depende de incontáveis causas anteriores. Pense nos acontecimentos da vida e nas pessoas que ajudaram a formar suas opiniões, sua personalidade, suas emoções. Imagine se tivesse sido trocado na maternidade e criado por lojistas pobres no Quênia ou por uma família abastada da área de petróleo no Texas – até que ponto sua mente seria diferente hoje?

O sofrimento da diferenciação
Como estamos todos conectados e temos uma relação de dependência mútua com o mundo, nossas tentativas de afastamento e independência são constantemente frustradas, o que produz sinais dolorosos de perturbação e ameaça. Mesmo quando nossos esforços são temporariamente bem-sucedidos, ainda causam sofrimento. Se você considera o mundo como “Não sou eu, de jeito nenhum”, isso pode ser arriscado, levando você a temê-lo e a resistir a ele. Mas, se você disser “Eu sou este corpo separado do mundo”, as fragilidades do corpo se tornarão suas. Se pensa que ele é uma carga muito grande ou que não parece bem, você sofre. Se ele é ameaçado por doença, envelhecimento ou morte – como são todos os corpos –, você sofre.
Somos sistemas dinamicamenteinconstantes
 

NÃO TÃO PERMANENTE
O corpo, o cérebro e a mente têm diversos sistemas que devem manter um equilíbrio saudável. O problema, no entanto, é que diversas mudanças perturbam continuamente esses sistemas, gerando sinais de ameaça, dor e angústia – ou seja, sofrimento.

Somos sistemas dinamicamente inconstantes
Vamos considerar um único neurônio, que libera o neurotransmissor serotonina. Esse minúsculo neurônio é ao mesmo tempo parte do sistema nervoso e um sistema complexo em si, que requer múltiplos subsistemas para se manter em funcionamento. Quando ele dispara, filamentos na extremidade de seu axônio liberam uma explosão de moléculas nas sinapses – as conexões – com outros neurônios. Cada dendrito contém em torno de duzentas pequenas bolhas chamadas vesículas, que são cheias do neurotransmissor serotonina (Robinson 2007). Sempre que o neurônio dispara, entre cinco e dez vesículas liberam seu conteúdo. Como um neurônio típico dispara cerca de dez vezes por segundo, as vesículas de serotonina de cada filamento são esvaziadas em intervalos curtíssimos.
Como consequência, atarefadas maquininhas moleculares devem produzir nova serotonina ou reciclar aquela que flutua solta ao redor do neurônio. Então, elas precisam formar vesículas, enchê-las com serotonina e deslocá-las para onde a ação ocorre, na ponta de cada filamento. São muitos os processos a ser mantidos em equilíbrio, com diversos fatores passíveis de dar errado – isso porque o metabolismo da serotonina é apenas um dos milhares de sistemas do corpo.

(Rick  Hanson com Richard Mendius - O Cérebro de Buda, neurociência prática para a felicidade)

publicado às 17:20

A PSICANÁLISE é a psicologia das tendências ou impulsos. Vê o comportamento humano como condicionado e definido por impulsos emocionais, que interpreta como resultado de certos impulsos psicológicamente enraizados, e que não são objeto da observação imediata. Seguindo, desde o princípio, a classificação popular de impulsos de fome e impulsos de amor, Freud distingue entre o ego, ou a autopreservação, e os impulsos sexuais. Devido ao caráter libidinoso dos impulsos de autopreservação do ego, e devido à significação especial das tendências destruidoras na constituição psíquica do homem, Freud sugeriu uma divisão diferente, levando em conta o contraste entre os impulsos mantenedores de vida e os impulsos destruidores. Essa classificação não requer, aqui, maiores comentários. O importante é o reconhecimento de certas qualidades do impulso sexual que o distinguem dos impulsos do ego. Os impulsos do sexo não são imperativos, ou seja, é possível deixar suas exigências insatisfeitas sem ameaçar com isso a própria vida, o que não seria o caso com as exigências da fome, da sêde e da necessidade de dormir. Além disso, os impulsos sexuais, e até um ponto não insignificante, podem ser satisfeitos pela imaginação e com o próprio corpo. São, portanto, muito mais independentes da realidade externa do que os impulsos do ego. Intimamente relacionadas com êste estão a transferência fácil e a capacidade de intercâmbio entre os impulsos componentes da sexualidade. A frustração de um impulso libidinal pode ser compensada, com relativa facilidade, pela substituição por outro impulso cuja satisfação é possível. Tais flexibilidade e versatilidade dos impulsos sexuais são a base da extraordinária variabilidade da estrutura psíquica, e nisso estám, também, a possibilidade de as experiências individuais afetarem, de forma tão definida e marcada, a estrutura da libido. Freud vê o princípio do prazer, modificado pelo princípio da realidade, como o regulador do aparato psíquico. Diz êle:
Vamos, portanto, voltar nossa atenção para uma indagação menos ambiciosa – a de revelarem ou não os homens, pelo seu comportamento, os objetivos e intenções de suas vidas. O que pretendem da vida e o que desejam realizar nela? A resposta não deixa dúvidas. Procuram a felicidade, querem tornar-se felizes e continuar felizes. Êsse objetivo tem dois aspectos, uma finalidade positiva e outra negativa. Visa, sob um aspecto, à ausência da dor e de coisas desagradáveis, e sob outro, à experiência de fortes sensações de prazer. Em seu sentido limitado, a palavra “felicidade” se relaciona apenas com os sentimentos de prazer. De acordo com essa dicotomia de finalidade, a atividade do homem se desenvolve em duas direções, segundo busque realizar – de forma principal ou mesmo exclusiva - um ou outro dêsses objetivos.(Sigmund Freud, Civilization and its Discontents (Standard Edition), XXI, 76)
O indivíduo quer experimentar – em dadas circunstâncias uma satisfação máxima da libido e um mínimo de dor. Para evitar esta, pode aceitar as transformações ou mesmo frustrações dos diferentes componentes dos impulsos sexuais. Uma renúncia semelhante aos impulsos do ego, porém, é impossível.As peculiaridades da estrutura emocional do indivíduo dependem de sua constituição psíquica e, primordialmente, de suas experiências na infância. A realidade externa, que lhe assegura a satisfação de certos impulsos, mas que obriga à renúncia de outros, é definida pela situação social existente, e na qual vive. Essa realidade social inclui a realidade mais ampla que abarca todos os membros da sociedade e a realidade limitada das classes sociais distintas.
A sociedade tem uma função dupla na situação psíquica do indivíduo, frustrando-a e satisfazendo-a. As pessoas dificilmente renunciam aos impulsos por verem o perigo que resultará de sua satisfação. Geralmente, a sociedade impõe tais renúncias: primeiro, há as proibições estabelecidas à base do reconhecimento social de um perigo real para o próprio indivíduo, perigo que não percebe imediatamente e que está ligado à satisfação do impulso; segundo, há a repressão e frustração de impulsos cuja satisfação provocaria danos não ao indivíduo, mas ao grupo; e, finalmente, as renúncias feitas não no interêsse do grupo, mas apenas de uma classe dominante.
A função “satisfatória” da sociedade não é menos clara do que seu papel frustrativo. O indivíduo só a aceita porque, através de sua ajuda, pode, até certo ponto, esperar conseguir satisfação e evitar sofrimento, principalmente em relação à satisfação das necessidades elementares de preservação, e, em segundo lugar, em relação à satisfação das necessidades libidinosas.
O que dissemos não levou em conta as caracteristicas específicas de tôdas as sociedades conhecidas históricamente. Os membros de uma sociedade não se consultam, na realidade, para determinar o que esta pode permitir e o que deve proibir. Enquanto as fôrças produtoras da economia não são suficientes para proporcionar a todos a satisfação adequada de suas necessidades materiais e culturais (ou seja, mais do que a proteção contra o perigo externo e a satisfação das necessidades elementares do ego), a classe social mais poderosa procurará obter o máximo de satisfação de suas necessidades, primeiro. O grau de satisfação que proporciona aos que são governados por ela depende do nível das possibilidades econômicas disponíveis e também do fato de que um mínimo de satisfação deve ser proporcionado aos que são governados, de modo que possam continuar a funcionar como membros cooperantes de sociedade. A estabilidade social depende relativamente pouco do uso da fôrça externa. Depende, em sua maior parte, de se encontrarem os homens numa condição psíquica que os prenda intimamente a uma situação social existente. Para isso, como já observamos, é necessário um mínimo de satisfação das necessidades naturais e culturais instintivas. A essa altura, porém, devemos notar que para a submissão psíquica das massas algo mais é necessário, algo ligado à estratificação estrutural peculiar da sociedade em classes. Quanto a isso, Freud assinalou que a impotência do homem frente à Natureza é uma repetição da situação em que o adulto se viu quando criança, quando não podia passar sem a ajuda contra fôrças superiores e estranhas, e quando seus impulsos vitais, seguindo as inclinações narcisistas, se prendiam primeiro aos objetos que lhe proporcionavam proteção e satisfação, ou seja, a mãe e o pai. Na medida em que a sociedade é impotente em relação à Natureza, a situação psíquica da infância se repete para o membro individual da sociedade, quando adulto. Transfere do pai ou da mãe um pouco de seu amor e mêdo infantis, e também um pouco de sua hostilidade, para uma figura da imaginação, para Deus. Além disso, há uma hostilidade a certas figuras reais, particularmente aos representantes da elite. Na estratificação social repete-se a situação infantil para o indivíduo. Êle vê nos governantes os poderosos, os fortes e os sábios – pessoas a serem reverenciadas. Acredita que tais pessoas lhe desejam bem, sabe também que resistir a elas representa, sempre, um castigo; fica satisfeito quando, pela sua docilidade, lhes conquista louvores. São sentimentos idênticos aos que, quando criança, experimentava pelo pai, sendo compreensível que se disponha a acreditar, sem crítica, no que lhe é dito pelos governantes, tal como acreditava, na infância, em tudo o que lhe dizia o pai. A figura de Deus forma um complemento à situação: Deus é sempre o aliado dos governantes. Quando êstes, que são figuras reais, ficam expostos à crítica, podem valer-se de Deus, que em virtude de sua irrealidade despreza as críticas e pela sua autoridade confirma a autoridade da classe dominante.
Nessa situação psicológica de servidão infantil está uma das principais garantias da estabilidade social. Muitos se encontram na mesma situação experimentada quando criança, impotentes frente ao pai, e os mesmos mecanismos funcionam nos dois casos. Essa situação psíquica se consolida através de muitas medidas, significativas e complicadas, tomadas pela elite, cuja função é manter e fortalecer nas massas a dependência psíquica infantil e imporse a seu inconsciente como a figura do pai.
Um dos principais meios de realizar êsse objetivo é a religião. Tem ela a tarefa de impedir qualquer independência psIquica da parte do povo, de intimidar intelectualmente, de provocar uma docilidade infantil, socialmente necessária, para com as autoridades. Ao mesmo tempo, tem outra função essencial: oferece às massas certa satisfação que torna a vida suficientemente tolerável e impede que elas procurem modificar sua posição, passando de filho obediente a filho rebelde.
De que tipos são essas satisfações? Certamente, não são satisfações dos impulsos de autopreservação do ego, nem de melhor alimentação, nem outros prazeres materiais. Tais prazeres só são obtidos na realidade, e para isso não é preciso religião. Esta serve apenas para tornar mais fácil às massas se resignarem a muitas frustrações que a realidade apresenta. As satisfações que a religião oferece são de natureza libidinosa: ocorrem essencialmente em imaginação, porque, como já assinalamos, os impulsos libidinosos, em contraste com os impulsos do ego, permitem a satisfação na imaginação. Chegamos, agora, a uma indagação relacionada com uma das funções psíquicas da religião, e vamos assinalar, ràpidamente, os resultados mais importantes das pesquisas de Freud nessa área. Em Totem e Tabu, Freud mostrou que o deus animal do totemismo é o pai elevado, e que na proibição de manter e comer o animal totem e no costume festivo e contraditório de, apesar disso, violar a proibição uma vez por ano, o homem repete a atitude ambivalente que adquiriu, quando criança, para com o pai, que é ao mesmo tempo um protetor e auxiliar e um rival opressor.
Já foi mostrado, especialmente por Reik, que essa transferência para Deus da atitude infantil em relação ao pai se encontra também nas grandes religiões. A indagação formulada por Freud e seus alunos relacionava-se com a qualidade psíquica da atitude religiosa para com Deus. A resposta está em que na atitude do adulto para com Deus vemos a repetição da atitude infantil da criança para com o pai. Essa situação psíquica infantil representa o padrão da situação religiosa. Em O Futuro de Uma Ilusão, Freud passa dessa questão para outra, mais ampla. Não indaga apenas como a religião é psicológicamente possível, mas também por que ela existe ou por que tem sido necessária. A resposta que encontra leva em consideração, simultâneamente, os fatos psíquicos e sociais. Ele atribui à religião o efeito de um narcótico capaz de dar ao homem certo consolo pela sua impotência frente às fôrças da Natureza:
Pois tal situação nada tem de novo. Tem seu protótipo infantil, do qual na realidade é apenas a continuação. O individuo já se encontrou, no passado, em situação de impotência semelhante: quando criança, em relação aos seus pais. Tinha razão para temêlos especialmente ao pai, e não obstante confiava na sua proteção contra os perigos conhecidos. Assim, as duas situações se assemelham naturalmente. Também nesse caso o desejo desempenha seu papel, tal como nos sonhos. O sonhador pode ser tomado de um pressentimento de morte, que, ameaça colocá-lo num túmulo. Mas o sonho sabe selecionar uma condição que transformará até mesmo o acontecimento temido na realização de um desejo: o sonhador se vê numa antiga tumba etrusca, satisfazendo com isso seus interêsses arqueológicos. Da mesma forma, o homem faz das fôrças da Natureza não apenas pessoas com as quais se pode ligar, como se lhe fóssem iguais – o que não faria justiça à esmagadora impressão que essas fórças lhe despertam –, mas sim lhes atribui um caráter paternal. Faz delas deuses, seguindo nisso, como procurei mostrar, não só um protótipo infantil, mas também um protótipo filogenético.
No curso do tempo, fizeram-se as primeiras observações sôbre a regularidade e conformidade dos fenômenos naturais a uma lei, e com isso as fôrças da Natureza perderam seus traços humanos. Mas a impotência do homem permanece e justamente com ela seu anseio pelo pai e os deuses. Êstes conservam sua tríplice tarefa: devem servir de exorcismos contra os terrores da Natureza, devem reconciliar o homem com a crueldade do destino, particularmente revelada pela morte, e devem compensar os sofrimentos e privações que a vida civilizada em comum impôs aos homens.(Sigmund Freud, The Future of an Illusion (Standard Edition), XXI, 17-18)
Eis como Freud responde à pergunta: “O que constitui o poder intrínseco das doutrinas religiosas e em que circunstâncias essas doutrinas devem sua eficiencia, independentemente da aprovação racional?”
Essas [idéias religiosas] apresentadas como ensinamentos não são conseqüência da experiência ou de resultados finais do raciocinio: são ilusões, a realização dos mais antigos, estranhos e prementes desejos da humanidade. O segrêdo de sua fórÇa está na intensidade dêsses desejos. Como já sabemos, a aterrorizante impressão de impotência na infância despertou a necessidade de proteção – proteção através do amor – que foi proporcionada pelo pai, e o reconhecimento de que essa impotência perduraria por tôda a vida tornou necessário apegar-se à existência de um pai – mas de um pai mais poderoso. Assim, a proteção benevolente da Divina Providência afasta nosso receio dos perigos da vida; a imposição de uma ordem moral mundial assegura o cumprimento das exigências da justiça, que freqüentemente permaneceram desatendidas na civilização humana; e o prolongamento da existência terrena numa vida futura proporciona a estrutura local e temporal na qual êsses desejos-realizações ocorrerão. As respostas aos enigmas que despertam a curiosidade do homem, como o início do universo ou a relação entre o corpo e a mente, se desenvolvem de conformidade com as suposições subjacentes do sistema. Representa um alívio enorme para a psique individual se os conflitos da infância, provocados pelo pai – conflitos-complexos que jamais foram totalmente superados –, são eliminados e chegam a uma solução universalmente aceita.(Ibid., pág. 30) 
Freud vê, portanto, a possibilidade de uma atitude religiosa na situação infantil. Vê sua necessidade relativa na impotência do homem em relação à Natureza, e conclui que, aumentando o contrôle humano sôbre a Natureza, a religião passará a ser vista como uma ilusão que se está tornando supérflua. Vamos resumir o que dissemos até agora. O homem luta por um máximo de prazer; a realidade social o obriga a renunciar a muitos dos impulsos, e a sociedade procura recompensar o indivíduo por essas renúncias, proporcionando-lhe outras satisfações inofensivas para ela, ou seja, para as classes dominantes.
Tais satisfações podem, em essência, ser obtidas pela imaginação, especialmente pelas fantasias coletivas. Têm uma função importante na realidade social. Na medida em que a sociedade não permite uma satisfação real, as satisfações da imaginação servem como substitutivo e se tornam um apoio poderoso da estabilidade social. Quanto maiores as renúncias que os homens suportam na realidade, tanto mais forte deve ser o desejo de compensação. As satisfações da imaginação têm a dupla função característica de todo narcótico: agem tanto como anódino quanto como repressão de uma transformação ativa da realidade. As satisfações da imaginação ou fantasia têm uma vantagem essencial sôbre os devaneios individuais: em virtude de sua universalidade, são percebidas pela mente consciente como se reais fôssem. A ilusão partilhada por todos se torna uma realidade. A mais velha dessas satisfações fantasiosas coletivas é a religião. Com o desenvolvimento progressivo da sociedade, as fantasias se tornam mais complicadas e mais racionalizadas. A própria religião se torna distinta, e a seu lado surgem a poesia, a arte, a filosofia, como expressões das fantasias coletivas. Resumindo, a religião tem uma tríplice função: para tôda a humanidade serve de consôlo às privações impostas pela vida; para a grande maioria dos homens é um estímulo à aceitação emocional de sua situação de classe; e para a minoria dominante é um alívio dos sentimentos de culpa provocados pelo sofrimento daqueles a quem oprime.
Nossa análise procura comprovar, em detalhe, o que se disse, examinando um pequeno segmento do desenvolvimento religioso. Procuraremos mostrar que influência a realidade social teve numa situação específica, num grupo específico, e como as tendências emocionais encontraram expressão em certos dogmas, em fantasias coletivas, e mostrar ainda mais as modificações psíquicas provocadas por uma transformação na situação social. Tentaremos ver como essa modificação psíquica encontrou expressão em novas fantasias religiosas que satisfizeram certos impulsos inconscientes. Com isso, deixaremos claro como a transformação dos conceitos religiosos está intimamente ligada à experiência das várias relações infantis possíveis com o pai ou a mãe, e, ainda, com as modificações na situação social e econômica.
O curso de nossa análise é determinado pelas pressuposições metodológicas já mencionadas. A finalidade será compreender o dogma à base de um estudo das pessoas, e não as pessoas à base de um estudo do dogma. Procuraremos, portanto, descrever primeiro a situação total da classe social de onde se originou a fé cristã primitiva e compreender o sentido psicológico dessa fé em têrmos da situação psíquica total dessas pessoas. Mostraremos, então, como a mentalidade do povo tornou-se diferente num período posterior. Finalmente, procuraremos compreender o sentido inconsciente da Cristologia, cristalizada como o produto final de uma evolução de trezentos anos. Vamos focalizar principalmente a fé cristã primitiva e o dogma de Nicéia.

( Erich Fromm – O Dogma de Cristo e outros dogmas).

publicado às 15:26

Pág. 1/3



Mais sobre mim

foto do autor


Pesquisar

Pesquisar no Blog

Arquivo

  1. 2018
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2017
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2016
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2015
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2014
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2013
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2012
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2011
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2010
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2009
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2008
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
  144. 2007
  145. J
  146. F
  147. M
  148. A
  149. M
  150. J
  151. J
  152. A
  153. S
  154. O
  155. N
  156. D

subscrever feeds