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QUÍRON, O CENTAURO

por Thynus, em 30.11.15
Enfrentando a injustiça da vida 
É difícil nos resignarmos à injustiça da vida. Estamos sempre tentando racionalizá-la através de doutrinas e filosofias capazes de restabelecer nossa confiança na equidade do Universo — em geral convencendo-nos de que os bons acabam sendo recompensados, se não nesta vida, pelo menos na próxima, e que os maus serão punidos. O mito grego de Quíron, como a história bíblica de Jó, é uma narrativa de dor e sofrimento injustos. Longe de estimular nossa ingenuidade, ele nos ensina que o sofrimento injusto pode não ter razão alguma, mas que, entretanto, talvez haja nele um sentido, dependendo de permitirmos ou não que nossa dor nos transforme internamente.
Quíron, pintura
 
Numa gruta nos picos nevados do Monte Pelíon vivia Quíron, o mais velho e mais sábio dos centauros — uma raça misteriosa, cujo corpo era metade cavalo e metade homem. Esses centauros eram filhos de Cronus, que violentara uma ninfa metamorfoseado num cavalo, e por isso os descendentes dessa união eram metade animais e metade divinos.
Enquanto quase todos os outros centauros eram ariscos e selvagens, Quíron era de uma sabedoria e gentileza incomuns, e era amigo dos homens. Possuía um raro talento para tocar harpa e, muitas vezes, oferecia conselhos sábios na linguagem dos homens, acompanhado pela música melodiosa de seu instrumento. Conhecia todos os segredos das ervas e era capaz de curar muitas doenças que os remédios humanos não conseguiam aliviar; e compreendia a sabedoria das estrelas, ensinando a arte da astrologia. Tão grande era sua fama, que os filhos de muitos reis foram confiados a seus cuidados. Com Quíron, esses jovens pupilos aprendiam a temer os deuses, respeitar os idosos e apoiar uns aos outros na dor e nas dificuldades. O velho e sábio centauro lhes ensinava a compor, a ter uma postura graciosa na dança, a lutar com o corpo e os punhos, e a correr, escalar os altos rochedos e caçar animais selvagens. Eles aprendiam a interpretar os augúrios celestes e a encontrar as plantas capazes de servir de antídoto para a infecção e a dor. Os jovens educados por Quíron aprendiam a rir do perigo, a desdenhar da preguiça e da ganância, e a enfrentar com coragem e ânimo tudo o que lhes acontecia. Cresciam hábeis e fortes, modestos e valentes, e estavam aptos a governar, por terem aprendido a obedecer.
Entre os maiores amigos de Quíron estava o poderoso herói Hércules. Esse homem gigantesco havia travado um combate com um monstro assustador, a Hidra, e, depois de finalmente matá-la, tinha molhado a ponta de algumas de suas flechas no sangue venenoso do monstro, para torná-las mais mortais. Quando estava indo visitar seu amigo Quíron, o herói foi atacado por uma tribo de centauros selvagens e violentos; seguiu-se uma grande batalha, na qual Hércules se viu sozinho contra a horda de agressores. Ao ouvir os ruídos da batalha, Quíron saiu de sua gruta e, erguendo as mãos num gesto de paz, interpôs-se entre Hércules e um centauro contra o qual o herói havia lançado uma flecha. A flecha já estava zunindo em seu curso, e atingiu em cheio a coxa de Quíron.
Se fosse inteiramente animal ou inteiramente humano, Quíron teria morrido instantaneamente. Mas era semidivino, e o dom da vida eterna revelou-se então um fardo terrível para ele. O ferimento era realmente uma agonia e, aos gritos, o centauro se recolheu a sua gruta. Esse sábio curandeiro não pôde encontrar um antídoto para o veneno da Hidra, e não havia cura para sua dor lancinante. Ele não teve alternativa senão conviver com ela, pois não podia morrer como as outras criaturas mortais. Quíron experimentou muitos remédios novos, alguns dos quais foram de grande valor para outros sofredores, mas nenhum foi capaz de aliviar seu próprio sofrimento.
Em desespero, Quíron implorou a Zeus, o rei dos deuses, que lhe concedesse a morte. Compadecendo-se dele, Zeus permitiu que ele adentrasse o mundo subterrâneo, como os mortais comuns, e assim, através da morte, Quíron foi enfim libertado do sofrimento.
Quíron intruindo o jovem Aquiles, pintura romana
 
COMENTÁRIO: Este mito sombrio não é fácil de aceitar. Parece terrivelmente injusto que uma criatura bondosa como Quíron, sábia e civilizada, seja levada a sofrer, apenas por estar no lugar errado no momento errado. Ao nos depararmos com acontecimentos como esse, a sensação é de uma raiva e uma perplexidade impotentes. “Por que tinha de acontecer uma coisa tão terrível com alguém tão jovem… tão gentil… tão bondoso? Por que não aconteceu com uma pessoa má ou indigna?” Queremos acreditar na justiça da vida, porque essa crença faz com que a vida pareça controlável. Se somos recompensados por sermos bons, tudo o que precisamos fazer para receber a recompensa é sermos bons. Isso é simples e controlável. A ideia de sermos bons e sermos atingidos por um acidente que nos destrói a vida é praticamente insuportável. As catástrofes coletivas, quer arquitetadas pela invenção humana, como a guerra, quer precipitadas pela própria natureza, como os terremotos, as secas e as inundações, colocam-nos diante da profunda injustiça da vida no nível global. Por mais que desejemos acreditar num cosmo justo, cedo ou tarde deparamos com o enigma do sofrimento imerecido.
Quando uma coisa injusta acontece, não temos alternativa senão suportá-la, quer a “mereçamos” ou não. A princípio, podemos procurar responsabilizar alguém ou alguma coisa, e tentar aliviar nossa aflição encontrando um bode expiatório a quem possamos atribuir a culpa. Culpamos os pais, a sociedade, o governo ou algum grupo minoritário, ou qualquer outra coisa que esteja à mão, porque simplesmente não conseguimos tolerar situações em que não há culpa ou culpados. No final das contas, a única resposta possível está na compreensão e na compaixão. A palavra “compaixão” vem de uma raiz latina que significa “sofrer junto”. O sofrimento injusto é compartilhado por todos nós e pode dar margem a um profundo sentimento de ligação com outros seres vivos. Embora possamos não descobrir nenhuma justificativa para essa dor imerecida, podemos perceber seu poder curativo na maneira como ela é capaz de purificar e transformar o coração humano.
Há nessa história a sugestão de que existe um preço a ser pago pela tentativa de civilizar o aspecto selvagem da natureza humana. Embora esse preço seja incontestavelmente injusto, há uma inevitabilidade no sacrifício, porque essa é a natureza da vida. A luta entre o ego consciente — simbolizado por Hércules — e as forças instintivas destrutivas que há nos seres humanos — simbolizadas pelos centauros selvagens — é necessária para que possamos criar um mundo melhor para nós. E, às vezes, a dor e a perda injustas são o resultado dessa luta. Somente ao considerarmos essa história por uma perspectiva mais ampla é que podemos vislumbrar um propósito mais profundo, mesmo que não encontremos justiça.
A morte voluntária de Quíron pode ser vista como um símbolo profundo; ele troca sua imortalidade pelo destino de todas as criaturas mortais. Essa morte pode ser entendida como uma transformação psicológica, uma aceitação íntima das limitações humanas. Somente ao nos julgarmos tão especiais a ponto de sermos isentos das vicissitudes da vida é que sofremos o verdadeiro veneno do ferimento de Quíron. Esse veneno pode ser entendido como a amargura do ressentimento corrosivo e permanente. Quando esperamos ser protegidos da vida, ficamos amargos e cheios de veneno ao descobrir que, afinal, não somos especiais. Quando o sofrimento injusto entra em nossa vida, a reação humana inevitável — “Por que eu?” — deve ser substituída por uma pergunta mais sábia: “Por que não eu?”. Os dotes e a natureza imortal de Quíron não o protegem da vida, como tampouco o podem fazer nossos próprios dons ou uma espiritualidade “superior”. Também nós precisamos aceitar nossas limitações mortais e passar pela morte e transformação internas que nos permitem fazer as pazes com a vida humana corriqueira.
Embora o centauro seja uma criatura fantástica, o mito de Quíron é, na verdade, um mito da humanidade. Somos uma mescla de opostos e contradições, metade bestiais e metade divinos, com capacidades idênticas de grande sabedoria e bondade e de selvageria e brutalidade. Os centauros selvagens com quem Hércules se bate estão dentro de nós tanto quanto a nobreza de Quíron. Esses opostos estão inextricavelmente ligados nos seres humanos, e nunca podem ser inteiramente separados. Por mais sábios que sejamos, temos a capacidade de ser selvagens uns com os outros, e partilhamos essa dualidade coletiva mesmo que, como indivíduos, optemos por nos alinhar com a luz. Assim, todos podemos sofrer dores injustas, físicas ou emocionais, e, uma vez feridos dessa maneira, nunca podemos nos curar realmente, porque nossa inocência jamais será recuperada. Cabe a nós escolhermos o caminho cicatrizante da compaixão e da aceitação das limitações mortais, em vez da corrupção persistente do ressentimento íntimo contra a vida.

  (Liz Greene & Juliet Sharman-Burke - Uma Viagem através dos Mitos) 

publicado às 18:51


PARSIFAL: A descoberta do Graal

por Thynus, em 30.11.15
O famoso crítico Ernest Newman considera essa obra “a suprema canção de amor e piedade”. Debussy, que sempre foi um grande crítico da música de Wagner, declarou: “Esse é o mais lindo monumento erigido para a eterna glória da música”. Mahler anotou em seu diário: “Quando saí do Teatro dos Festivais, incapaz de dizer uma só palavra, eu sabia que havia experimentado a suprema grandeza e o supremo sofrimento”. A cantora Nellie Melba, escreveu em seu livro “Melodies and Memories”: “Eu não posso explicar o que aconteceu comigo durante o 1º ato. O teatro deixou de existir, eu deixei de existir e apenas meu espírito, fora de meu corpo, flutuava no reino da música pura. Para que estranha esfera aquela música me transportou? Suponho que eu nunca saberei”.
(Ópera Parsifal, Richard Wagner)

Na Parte II, encontramos o jovem Parsifal no momento em que ele partia para muitas aventuras. Depois, Parsifal topou com o Castelo do Graal e teve uma visão de um rei ferido e um Graal, aos quais não soube reagir com as perguntas certas. Muitas vezes, a visão da realidade espiritual surge espontaneamente na juventude, mas nos falta maturidade para compreender ou indagar o que ela significa para nós. Agora encontraremos Parsifal numa etapa posterior de sua vida, amadurecido por suas lutas e sofrimentos, e finalmente capaz de perguntar o que realmente significa o Graal.
 
 

O jovem Parsifal se afastou do Castelo do Graal sem compreender o que nele tinha visto. Na floresta, encontrou uma bela moça que, ao saber que ele tinha visitado o Castelo do Graal mas não havia aprendido coisa alguma, ficou horrorizada com sua tolice. — Ah, homem infeliz!, exclamou ela. Tantas coisas poderiam ter sido resolvidas se houvesses feito as perguntas! O rei enfermo ficaria curado e tudo correria bem. Agora, porém, virão dificuldades maiores. Tu foste incompetente.
Envergonhado, Parsifal seguiu seu caminho. Passado algum tempo, encontrou outra mulher, mas essa era de aparência medonha, como se tivesse nascido do inferno. Carregava nas mãos um chicote. Também ela repreendeu Parsifal por não ter indagado sobre o Graal, prevenindo-o de que muitas pessoas sofreriam por seu egoísmo e sua estupidez.
Durante cinco anos Parsifal vagou pela Terra e, nesse tempo, não pensou em Deus. Buscava apenas atos violentos e aventuras curiosas. Um dia, encontrou três cavaleiros e suas damas, todos a pé e usando trajes de penitência. O grupo ficou surpreso com o fato de Parsifal andar armado no dia santo da Sexta-Feira da Paixão. Porventura não sabia que nesse dia não se deviam portar armas? Eles estavam voltando de uma visita a um santo eremita, com quem tinham se confessado e de quem tinham recebido a absolvição. Ao ouvir isso, Parsifal chorou e quis visitar o eremita. Encontrou o ancião e confessou que, durante cinco anos, tinha se esquecido completamente de Deus e não fizera nada além do mal. Quando o ermitão lhe perguntou por quê, Parsifal lhe disse que certa vez visitara o rei Fisher e vira o Graal, mas não fizera perguntas sobre eles. Essa omissão lhe havia pesado tanto na consciência que ele tinha abandonado a fé em Deus.
O eremita, conhecendo a história de Parsifal, concedeu-lhe a absolvição, e o rapaz tornou a partir. Ainda não estava em condições de fazer a pergunta decisiva, mas recuperara mais uma vez a esperança.
Depois disso, Parsifal tomou a firme decisão de encontrar novamente o Castelo do Graal, para poder redimir sua falha anterior. Enfrentou muitas outras aventuras, mas o Graal sempre dominava seu pensamento. E então, um dia, encontrou uma donzela sentada sob um carvalho. Como a tratou com gentileza, a moça lhe deu um anel com uma pedra mágica, que lhe permitiria atravessar uma estranha ponte de vidro e uma segunda ponte perigosa, que girava em torno de seu próprio eixo. Na manhã seguinte, perdido numa floresta misteriosa, Parsifal ergueu a Deus uma prece, pedindo que Ele o conduzisse ao Castelo do Graal. Continuou cavalgando e, ao anoitecer, avistou a distância uma árvore mágica, na qual havia muitas luzes acesas. Lá encontrou um caçador, que lhe disse que finalmente ele estava perto do Castelo do Graal. Por fim, chegou ao castelo. Os criados o conduziram ao Rei do Graal, que estava sentado num sofá púrpura. Dessa vez, Parsifal olhou para o rei enfermo com compaixão, condoendo-se do sofrimento dele e entristecendo-se com a longa tristeza do rei. Ao ser perguntado, fez ao rei um humilde relato de suas longas aventuras e falou com franqueza de seus fracassos. Em seguida, finalmente perguntou de que sofria o rei e, mais importante, o que era o Graal e a quem ele servia. Diante dessas palavras, o rei doente ergueu-se do leito, curado, e abraçou Parsifal. Revelou-lhe então que era seu avô e que só permaneceria vivo por mais três dias, depois do que Parsifal passaria a usar a coroa e governaria o reino.
E assim, Parsifal, que iniciara sua jornada jovem e tolo, finalmente compreendeu que o Graal era uma visão de seu próprio espírito imortal, reconhecido unicamente pelo sofrimento e pela compreensão, e que ele servia à totalidade da vida; e compreendeu que, ao finalmente indagar sobre o sentido dessa visão, havia redimido suas próprias trevas e conquistado o direito de ser um veículo adequado para a luz.

 

COMENTÁRIO: Nesta história, o longo e espinhoso caminho para o reencontro do Castelo do Graal não é trilhado pela realização de feitos heroicos. Passo a passo, ele é percorrido através dos encontros de Parsifal com mulheres. Isso nos diz algo de profunda importância sobre a busca espiritual: ela não é configurada e facilitada pelo ascetismo ou pela negação da vida terrena, mas pelos relacionamentos. Seja qual for o sexo do sujeito, é pelo envolvimento afetivo com os outros que ele começa a descobrir suas prioridades e, à medida que a avança da juventude para a meia-idade, o remorso pela própria insensibilidade e pelos atos de indiferença mexe com alguma coisa que está profundamente arraigada na alma.
O mito do Graal tem sido interpretado em muitos planos diferentes ao longo dos séculos, e todos eles contêm uma dose de verdade. Do ponto de vista psicológico, trata-se de uma viagem interior e, embora a imagem da história original seja cristã, essa viagem interior é compatível com qualquer credo religioso profundo, seja ele ortodoxo ou não. Trata-se, na verdade, de uma viagem de descobrimento da compaixão, que só pode ocorrer quando nos permitimos sentir o que os outros sentem e sofrer as consequências de nossos atos. É a compaixão que permite a Parsifal responder corretamente ao rei enfermo, e é a compaixão que nos permite enxergar além de nossas próprias preocupações e vermos o deserto que nos cerca e a necessidade de todos os seres humanos encontrarem um pequeno raio de luz que ilumine sua jornada mortal. O rei enfermo e o Graal são imagens internas do próprio Parsifal, assim como estão dentro de cada um de nós. O rei representa a doença espiritual da falta de sentido, e o Graal é a taça transbordante da união com o resto da vida, que é o único antídoto para a falta de sentido. Dispomos de muitos termos religiosos para descrever a experiência fundamental da compaixão, mas talvez a terminologia religiosa não seja necessária, pois todas as nossas experiências mais transformadoras vêm do misterioso sentimento de união que pode ocorrer quando compartilhamos a dor e a alegria de outrem. O sentido e a compaixão, portanto, acham-se inextricavelmente ligados nesse mito.
O rei doente cura-se no final da história, mas aceita de bom grado a morte, para que a coroa possa ser transmitida a seu neto. Temos aí, como na história de Quíron que vimos há pouco, uma outra representação da morte como símbolo de transformação. O que foi ferido pode agora curar-se e desaparecer, e o que foi renovado e está cheio de esperança pode agora reger as motivações pelas quais vivemos. Com isso, o sofrimento que experimentamos na vida, e que parece tão irreversivelmente profundo, pode ser abandonado, para que a vida recomece com espírito de esperança e generosidade. É correto e apropriado que o jovem Parsifal se comporte como um jovem, e seus erros e tolices são apropriados a essa fase de sua vida. Também é certo e apropriado que, pouco a pouco, ao envelhecer e experimentar um cansaço e um ceticismo crescentes, a busca espiritual comece a substituir nele a determinação anterior de ser um grande cavaleiro e conquistar reconhecimento no mundo externo. E é assim que também nós podemos indagar, num certo momento em que nos cansamos de acumular bens ou de lutar pelo sucesso mundano, a que propósito serve realmente nossa vida.

 (Liz Greene & Juliet Sharman-Burke - Uma Viagem através dos Mitos) 

publicado às 18:22


ÓRION E ENOPIÃO

por Thynus, em 30.11.15
A possessividade de um pai em relação à filha
Este triste mito grego é sobre a tentativa de um pai de ser dono de sua filha e sobre a destruição que ele desencadeia quando surge um pretendente para ela. A narrativa revela as obscuras correntes subterrâneas que podem existir no laço entre pais e filhos. Mas, embora retrate emoções violentas e situações extremadas que não tendemos a encontrar na vida cotidiana, ela esclarece a confusão e a cegueira emocionais que nos afligem quando, consciente ou inconscientemente, tentamos ser donos de nossos filhos.
Órion e Enopião, “o que bebe vinho”
 
Órion, o caçador, tinha a reputação de ser o homem mais belo da Terra. Um dia, apaixonou-se por Mérope, filha de Enopião, rei de Quio. Mas Enopião não era um simples mortal; filho de Dioniso, o deus do vinho e do êxtase, tinha ascendência imortal, e abrigava em seu íntimo as paixões intensas do pai.
Enopião prometeu ao caçador Órion a mão de Mérope em casamento, mas só se ele conseguisse livrar suas terras das feras assustadoras que ameaçavam a vida dos habitantes. Isso não era problema para um caçador experiente, e Órion aceitou o desafio de bom grado. Concluída sua tarefa, voltou a se apresentar a Enopião, ansioso por receber sua recompensa. Mas o rei de Quio encontrou motivos para adiar o casamento — ainda havia outros ursos, lobos e leões espreitando nas montanhas. Na verdade, Enopião não tinha intenção de dar a mão de sua filha em casamento, porque estava secretamente apaixonado por ela.
Órion ficava cada vez mais frustrado com a situação. Percorreu novamente as montanhas à procura de animais ferozes, e novamente Enopião arranjou motivos para retardar o casamento. Certa noite, Órion embebedou-se com o mais fino vinho do rei (e o vinho de um filho de Dioniso era realmente bom, e mais forte do que a maioria) e, completamente bêbado, invadiu o quarto de Mérope e a estuprou. Como resultado desse ato de violência, Enopião sentiu-se justificado para se vingar do rapaz. Obrigou-o a beber mais vinho, até o caçador cair num estupor de embriaguez. Em seguida, arrancou-lhe os olhos e o atirou na praia, cego e inconsciente. Com a ajuda dos deuses, Órion recobrou a visão e viveu para buscar muitas novas aventuras. Não sabemos o que aconteceu com a pobre Mérope, violentada e abandonada, e aprisionada por um pai que não tinha nenhuma intenção de deixar que ela se tornasse mulher.
 
Diana junto do cadáver de Órion
 
COMENTÁRIO: A história de Órion não diz respeito apenas aos padrões afetivos patológicos na família. Um vínculo sadio de amor e afeição entre pai e filha, se exacerbado pela inconsciência, pode levar a problemas. O pai costuma ser o primeiro amor da filha, e na filha pequena muitos pais veem uma imagem mágica de beleza e juventude, que abriga todos os seus mais acalentados sonhos românticos. Isso é natural e agradável, e de modo algum implica abuso ou doença. Mas, quando o casamento do pai é infeliz, ou quando ele não consegue aceitar as satisfações de um casamento humano comum e insiste em querer a magia de uma “alma gêmea”, pode buscar na filha essa fantasia do amor perfeito. Nesse caso, talvez lhe seja difícil permitir que ela tenha vida própria. É preciso um coração generoso para deixar que uma filha tão amada parta, especialmente com um jovem tão belo quanto Órion. A beleza e a virilidade juvenis do rapaz funcionam como um doloroso lembrete de que Enopião já não é tão jovem, e de que sua menininha é agora uma mulher que quer para si um homem moço e forte. Não há referência à mãe de Mérope no mito. Esse pai e essa filha vivem num mundo próprio, o que constitui a realidade psicológica de muitos pais que se relacionam melhor com as filhas do que com a mulher.
O pai que tenta transformar a filha numa alma gêmea pode infligir-lhe, sem querer, prejuízos para a vida toda. Isso às vezes se revela na antiquíssima tática de insistir em que o parceiro escolhido pela filha “não é bom o bastante”. Quando um pai cria ideais impossíveis para a filha, como ela pode deixá-lo e viver feliz com seu próprio parceiro? Quanto maior o amor, maior o prejuízo potencial que pode, inconscientemente, decorrer dele, pois a filha que ama e admira o pai dá ouvidos a sua aparente “sabedoria” e vê em cada pretendente falhas intoleráveis.
Aparentemente Enopião quer que Mérope tenha um marido. Esse marido deve satisfazer certos padrões. E quem pode culpar um pai por querer o melhor para seus filhos? Assim, a possessividade inconsciente do pai se esconde sob a máscara das boas intenções, e ele consegue garantir que ninguém jamais seja bom o bastante para a filha. Com isso, justifica a destruição de todos os potenciais relacionamentos que ela possa ter — sutil ou escancaradamente —, pois acredita estar pensando no bem dela. Órion se enfurece porque Enopião está sempre mudando as metas a serem atingidas, e acaba violentando Mérope. Isso dá ao pai a desculpa perfeita para se livrar do criminoso. Mas, ao longo de toda a história, Enopião não pretende deixar que sua preciosa filha se vá, porque a quer para si mesmo.
O grande poeta Kahlil Gibran (1883-1931) escreveu, certa vez, que nossos filhos nascem através de nós, mas não nos pertencem. Um pai solitário, contudo, pode sentir-se justificado para tratar a filha como um objeto precioso, a ser possuído apenas por ele. Os jovens só podem progredir na vida quando os mais velhos lhes dão asas. Quando, movida pelo ciúme do pai, a filha é levada a escolher entre o pai e o amado, sua felicidade é destruída e as recompensas de seu amor, estragadas. Os filhos não devem ser obrigados a fazer essas escolhas; qualquer um fica com o coração dilacerado pelas imposições do ciúme. Todo pai tem nas mãos a chave da realização das filhas, ao lhes permitir que desfrutem o amor do pai e do marido. Trata-se de um desafio difícil para qualquer pai, mas são enormes as recompensas. Para isso, porém, é preciso reconhecermos e contermos nossa inveja e ciúme secretos. Como nos diz o mito, esses sentimentos são antigos, universais e quintessencialmente humanos. Mas a possessividade, a rigor, tem tudo a ver com o poder, e o amor e o poder não podem coexistir.

 (Liz Greene & Juliet Sharman-Burke - Uma Viagem através dos Mitos)

publicado às 06:11


TÉTIS E AQUILES

por Thynus, em 30.11.15
... tudo, na natureza, é cíclico. O
dia vem sempre após a noite; a bonança acaba sempre sucedendo à tempestade, como o
verão à primavera e o outono ao verão. Todo ano, as árvores perdem as folhas com as
primeiras brumas frias e, também todo ano, voltam a despontar com os dias bonitos, de
forma que os principais acontecimentos que pontuam a vida do mundo natural nos
impõem, por assim dizer, a sua lembrança. Para falar ainda mais simplesmente: não há
a menor possibilidade de os esquecermos, e se porventura tal ocorresse, eles nos
voltariam por si só ao pensamento. No mundo humano, pelo contrário, tudo passa, tudo
é perecível, tudo acaba sendo levado pela morte e pelo esquecimento: as palavras que
pronunciamos, assim como as ações que executamos. Nada dura... exceto o escrito!
Isso mesmo! Os livros se conservam melhor do que as palavras, melhor do que os fatos
e os gestos, e se, por suas ações heroicas, pela glória que estas ocasionam, um dos
nossos heróis — Aquiles, Hércules, Ulisses ou outro qualquer — conseguir se tornar o
tema principal de uma obra histórica ou literária, ele, então, vai sobreviver, de certa
maneira, ao desaparecimento, nem que seja como lembrança em nossas mentes. Prova
disso? Ainda hoje são feitos filmes sobre a guerra de Troia ou os trabalhos de
Hércules, e alguns de nós, toda noite ou quase, contamos as aventuras de Aquiles, de
Jasão ou de Ulisses a nossos filhos, e isso porque um punhado de poetas e de filósofos,
muitos séculos antes de Jesus Cristo, deixou por escrito as suas façanhas.
Mesmo assim, apesar da força da convicção subjacente a essa apologia da glória
perenizada pelo Escrito, a questão da salvação, no sentido etimológico do termo — o
que pode nos salvar da morte ou, pelo menos, dos medos que ela suscita —, continua
na verdade não resolvida.
Concordo, evoquei ainda há pouco o nome de Aquiles, e alguns dirão que, neste
sentido, ele não está totalmente morto... Em nossas memórias, sem dúvida, mas e na
realidade? Perguntem à sua mãe, Tétis, o que acha! É claro, é uma imagem, pois esses
personagens não são reais — são apenas lendários. Mas imaginemos um pouco: tenho
certeza de que ela trocaria todos os livros da Terra e todas as glórias do mundo para
poder apertar nos braços seu menino. Para ela, sem sombra de dúvida, o filho está pura
e simplesmente morto, e o fato de se “conservar” sob forma impressa, nas estantes das
nossas bibliotecas, certamente lhe dá pouco consolo. E o próprio Aquiles, o que
pensa? Se dermos ouvidos a Homero, parece que aos olhos do próprio herói a morte
gloriosa, no decorrer de combates de grande bravura, não valia tanto a pena! Pelo
menos é o que ensina uma surpreendente passagem da Odisseia.
(Luc Ferry - A Sabedoria dos Mitos Gregos)

Ulisses exprimiu a ideia que acabei de expor, aquela que anima todo o heroísmo
grego, essa concepção da glória salvadora de que fala Hannah Arendt: mesmo tendo
morrido jovem, o herói, tirado do anonimato pela fama e transformado em quase deus,
não poderia ser infeliz! Por quê? Porque não pode ser esquecido, justamente, de forma
que ele escapa do terrível destino do comum dos mortais que, uma vez mortos, se
tornam “sem nome” e perdem, com isso, ao mesmo tempo que a vida, todo tipo de
individualidade ou, no sentido próprio, de personalidade. Hélas, a resposta de Aquiles
aniquila as ilusões ligadas à glória:
Ah! não me venha enfeitar a morte, meu nobre Ulisses! Preferiria viver como
pequeno criado que guarda os bois, estar a serviço de um miserável camponês,
desprovido de qualquer fortuna, do que reinar sobre os mortos, sobre todo esse
povo extinto!

Balde de água fria no amigo Ulisses! Com três frases, o mito do herói vitorioso
explode em estilhaços. E a única coisa que ainda interessa a Aquiles é ter notícias do
pai e, mais ainda, do filho, com quem ele se preocupa. Como são excelentes, ele volta
às sinistras profundezas do inferno com o coração um pouco menos pesado, como
qualquer pai de família tragado pela vida cotidiana — no extremo oposto do herói
extraordinário e glorioso que ele foi em vida! Pode-se dizer que passou a estar
absolutamente desinteressado pela glória e pelos esplendores passados.
(Luc Ferry - A Sabedoria dos Mitos Gregos)
 

Grandes expectativas
O primeiro de nossos mitos da família fala-nos de como os pais esperam de seus filhos nada menos do que tudo. O tema mais importante dessa lenda grega talvez seja a ambição de Tétis a respeito do filho: ela quer que ele seja um deus. A história tem um final triste, mas transmite um discernimento profundo sobre as esperanças, sonhos e anseios secretos que, sem nos apercebermos, pedimos a nossos filhos para realizar — às vezes, em prejuízo deles.

 
Olhar o passado
Tétis era a grande deusa do mar e dominava tudo o que se movia em suas profundezas. Mas chegou o momento de ela se casar e Zeus, o rei dos deuses, tinha ouvido uma profecia prevendo que, se Tétis desposasse um deus, teria um filho maior do que o próprio Zeus. Preocupado com a possibilidade de perder sua posição, Zeus casou a deusa do mar com um mortal chamado Peleu. Esse casamento misto não foi mal, e os dois se acomodaram com relativa harmonia — embora Peleu às vezes se ressentisse dos poderes sobrenaturais da mulher e, vez por outra, Tétis julgasse haver-se casado com um homem abaixo de sua posição.
Com o tempo, Tétis teve um filho, a quem deu o nome de Aquiles. Como o pai dele era mortal, Aquiles era um menino mortal, que teria seu tempo na terra ditado pelas Parcas, como todos os seres mortais. Mas Tétis não estava satisfeita com essa perspectiva; sendo imortal, não queria permanecer eternamente jovem, vendo seu filho envelhecer e morrer. Assim, em segredo, levou o recém-nascido até o rio Estige, em cujas águas residia o dom da imortalidade. Segurou o menino por um dos calcanhares e o mergulhou na água, acreditando que com isso tinha tornado-o imortal. Mas o calcanhar pelo qual ela o segurou não foi tocado pelas águas do Estige, e Aquiles ficou vulnerável nesse ponto.
Ao chegar à idade adulta e combater na Guerra de Troia, Aquiles foi mortalmente ferido ao ser atingido por uma flecha no calcanhar. Embora ele tenha conquistado grande glória e viesse a ser lembrado para sempre, Tétis não conseguiu enganar as Parcas nem transformar o que era humano na matéria de que são feitos os deuses.
 
O calcanhar de Aquiles
COMENTÁRIO: Inconscientemente, muitos pais desejam que seus filhos sejam divinos — ainda que, em geral, não tão literalmente quanto Tétis. Não temos a expectativa de que nossos filhos vivam eternamente, mas podemos querer que sejam melhores do que as outras crianças, mais bonitos, mais talentosos, mais brilhantes, únicos e especiais, e livres das limitações corriqueiras da vida. Nenhuma criança consegue ficar à altura dessas expectativas inconscientes, e qualquer uma pode sofrer por ter sua humanidade comum relegada a segundo plano nos enormes esforços dos pais para produzir algo sobre-humano. Também podemos ter a esperança de que nossos filhos nos redimam de algum modo — que consertem o que estragamos, ou vivam aquilo que nos foi negado. É possível que façamos sacrifícios, na esperança de que os filhos deem sentido à nossa vida, em vez de permitirmos que vivam a deles. E quando eles tropeçam e caem, como acontece com todos os seres humanos, ou quando demonstram uma gratidão insuficiente por nossos esforços, talvez nos sintamos ofendidos e decepcionados. Pode-se ver tudo isso na história de Tétis e Aquiles.
Tétis, a deusa-mãe que quer que o filho tenha a divindade dela, em vez de ser mortal como o pai, é também a imagem de uma certa atitude perante a maternidade. Quando uma mãe deseja possuir seu filho por inteiro e não se dispõe ou não consegue partilhar o amor da criança, muitos problemas podem surgir. O casamento de Tétis e Peleu, cuja prole foi Aquiles, retrata um casamento em que há um desequilíbrio entre os pais. Tétis sente-se superior a Peleu e espera que o filho se pareça com ela. Esse é um dilema bastante comum: às vezes fantasiamos secretamente a identidade de um filho, em vez de reconhecer que duas pessoas contribuíram para sua existência. Isso pode acontecer quando o casamento é infeliz ou não traz realização. O pai também pode idealizar as filhas, como Tétis fez com o filho, e esforçar-se inconscientemente para separar mãe e filha, para que nenhuma pessoa de fora venha prejudicar a união do laço pai-filha. (Ver Órion e Enopião)
Todos esses dilemas da função de pai e mãe, em vez de patológicos, são meramente humanos. Mas os mitos são sobre seres humanos, mesmo quando seus personagens principais são deuses. De que maneira lidamos com essas questões da expectativa e da possessividade exageradas? Quando trazemos filhos ao mundo, devemos a eles imparcialidade e justiça na maneira como os tratamos afetivamente. Se tivermos consciência de que estamos esperando demais de nossos filhos, poderemos demonstrar-lhes amor mesmo quando eles não conseguirem o que esperamos, e poderemos também incentivá-los a seguir o caminho ditado por seu coração e sua alma, e não o que nós gostaríamos de ter seguido. Os sentimentos conhecidos e refreados não provocam destruição. Os inconscientes, que resultam em comportamentos inconscientes, podem causar grandes danos a um filho. A vida dos pais nunca é perfeita e todos acalentamos esperanças pouco realistas a respeito de nossos filhos. Isso é humano e natural. Mas eles não são divinos, nem tampouco estão na terra para nossa glorificação ou para a redenção de nossa própria vida. No casamento de Tétis e Peleu, criado pela sabedoria de Zeus, há uma imagem profunda da mescla de humano e divino que está por trás da origem de todo ser humano. Toda criança partilha de ambos. Se pudermos lembrar-nos disso e permitir que nossos filhos sejam os seres humanos que são, esse antigo mito poderá ajudar-nos a sermos pais mais sensatos e mais generosos.

(Liz Greene & Juliet Sharman-Burke - Uma Viagem através dos Mitos)

publicado às 06:08

E disseram uns aos outros: Eia, façamos tijolos e queimemo-los bem. E foi-lhes o tijolo por pedra, e o betume por cal.
E disseram: Eia, edifiquemos nós uma cidade e uma torre cujo cume toque nos céus, e façamo-nos um nome, para que não sejamos espalhados sobre a face de toda a terra.
Então desceu o Senhor para ver a cidade e a torre que os filhos dos homens edificavam;
E o Senhor disse: Eis que o povo é um, e todos têm uma mesma língua; e isto é o que começam a fazer; e agora, não haverá restrição para tudo o que eles intentarem fazer.
Eia, desçamos e confundamos ali a sua língua, para que não entenda um a língua do outro.
Assim o Senhor os espalhou dali sobre a face de toda a terra; e cessaram de edificar a cidade.
Por isso se chamou o seu nome Babel, porquanto ali confundiu o Senhor a língua de toda a terra, e dali os espalhou o Senhor sobre a face de toda a terra.
 
Se formos ao essencial, a hybris, afinal,
não passa de um retorno das forças obscuras do caos ou, falando como os ecologistas
de hoje, de justamente uma espécie de “crime contra o cosmos”
(Luc Ferry)
 
Nós somos o pedaço de uma televisão, a nossa vida só tem sentido dentro dela e a televisão, por sua vez, só funciona conosco dentro. Os gregos deram a essa televisão o nome de Cosmos. Somos partes do Cosmos. Isso quer dizer que o vento venta, a maré mareia, o sapo sapeia e tudo está mais ou menos de boa. Quando o vento venta, ele venta em harmonia com o Cosmos. Da mesma maneira a maré, o sapo, o tsunami, qualquer outra coisa. Quem é que pode comprometer? Quem é que pode comprometer o todo? O gato que vive de acordo com a sua natureza de gato? Certamente não. Como diz Hans Jonas, filósofo, verdadeiro patrono do pensamento ecologista do século vinte e um, “uma ostra não coloca em risco o universo!” O que ele quis dizer com isso? Que a ostra ostreia (vive de acordo com a sua natureza de ostra), o gato gateia, o vento venta... Então quem é que compromete, quem é que pode comprometer, quem é que pode viver em desarmonia com o todo? Quem é que pode viver errado? Só pode viver errado quem decide, quem delibera, quem escolhe: nós!
(Clóvis Barros Filho)

A exemplo de Ulisses, deve-se preferir a condição de mortal, em conformidade com a
ordem cósmica, em vez da vida de imortal, entregue ao que os gregos chamam hybris,
o descomedimento que nos afasta da reconciliação com o mundo. Deve-se viver com
lucidez, aceitar a morte, viver de acordo com o que se é; na realidade, da mesma
maneira com o que está fora de nós, em harmonia tanto com os seus próximos como
com o universo. Isso é bem melhor do que ser imortal num lugar vazio, sem sentido,
mesmo que paradisíaco, com uma mulher que não se ama, mesmo que seja sublime,
longe dos seus e de seu “lar”, naquele isolamento simbolizado não apenas pela ilha,
mas pela tentação da divinização e da eternidade que nos afastam do que somos e ainda
do que nos envolve... Inestimável lição de sabedoria para um mundo leigo como o
nosso de hoje em dia, lição de vida em ruptura com o discurso religioso dos
monoteísmos passados e futuros. É essa a mensagem que a filosofia terá também de
traduzir como razão, para elaborar à sua maneira — não menos admiráveis doutrinas
de salvação sem Deus, de vida boa para os simples mortais que somos —, que
certamente não será a mesma da mitologia.
(Luc Ferry - A Sabedoria dos Mitos Gregos)
A Torre de Babel: uma interpretação do mito
Eu já falei para você que no frontão do templo de Delfos, um dos mais famosos erguidos à glória de Apolo, provérbios com mensagens fundamentais da sabedoria grega estavam gravados na pedra. Pelo menos dois deles são célebres até os dias de hoje: “Conhece-te a ti mesmo!”, que aparece com destaque, ao lado de seu par, aparentemente mais enigmático, mas que, na verdade, significa a mesma coisa: “Nada em excesso!” Como também disse, o sentido dessas mensagens se obscureceu ao longo dos anos e, atualmente, muitas vezes nos enganamos com relação a seu verdadeiro significado. Nossos contemporâneos têm sempre a tendência a “psicologizar” a mitologia, a interpretar as lições de sabedoria antiga com um sentido moderno, apoiando-se em esquemas psicanalíticos. Isso, muito simplesmente, é um grande erro. O famoso “Conhece-te a ti mesmo”, por exemplo, sentença que um dos principais pais fundadores da filosofia, Sócrates,(Em Sócrates, a expressão, sem nenhuma conotação “psicológica”, já tem outro significado, diferente daquele da cultura da Grécia arcaica. Está ligada a uma teoria bem particular da verdade que Platão desenvolve em suas múltiplas e profundas consequências, uma doutrina segundo a qual nós teríamos, em tempos anteriores, conhecido o que é verdadeiro, mas depois esquecemos, de forma que o conhecimento vem num terceiro momento, como uma “anamnésia”, uma rememoração de algo que já se encontra em nós sem que saibamos. É com essa teoria da verdade enquanto “re-conhecimento” que Sócrates responde ao famoso paradoxo sofístico pelo qual quem busca a verdade não pode nunca encontrá-la: de fato, quem a procura é porque não a possui. Pois é preciso, para identificar uma opinião verdadeira entre tantas falsas que circulam por todo lugar, um critério — que seja, é claro, um critério verdadeiro! É necessário, então, nesse sentido um tanto particular, já possuir o verdadeiro para diferenciá-lo do falso. E, justamente, é o que a teoria da reminiscência vai permitir afirmar: sim, já temos a verdade em nós! Simplesmente, ela foi esquecida, de forma que o conhecimento é reconhecimento, rememoração. Essa visão da verdade percorre toda a posterior história da filosofia) também adotou como divisa-mestre do seu pensamento, passa a significar que temos todo interesse em saber quem somos, ou, como se diz em jargão psicanalítico, “tirar a limpo o inconsciente, para avançar na vida sem temer o retorno do reprimido”. Na verdade, no mundo grego, a sentença nada tem a ver com esse tema contemporâneo. E é importante restabelecer seu significado autêntico, original, não por pedantismo, mas por fornecer, como você vai se dar conta daqui a pouco, um fio condutor muito precioso, inclusive indispensável para a compreensão de uma série de grandes mitos antigos, que vou contar aqui.

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 Nêmesis representa a força encarregada de abater toda a desmesura (hybris)


Originalmente, na cultura grega, essa frase tem um alcance evidente até para simples cidadãos. Deve-se saber permanecer em seu lugar, não “se achar” como se diz comumente, para falar de alguém cheio de orgulho, de arrogância, que se pretende ser o que, na verdade, não é. Outra locução comum lhe corresponde perfeitamente, apoiando-se também na metáfora espacial: “pôr alguém em seu devido lugar”, dar uma “boa lição”, fazer “calar o bico”. Da mesma forma, a expressão “nada em excesso” incita os humanos a encontrarem sua justa medida na ordem cósmica, para evitar a hybris, esse arquétipo da falta de sabedoria, essa vaidade ou descomedimento que desafia os deuses e, através deles, a ordem cósmica, pois é tudo a mesma coisa. Para os mortais, a hybris sempre conduz à catástrofe, e é essa catástrofe anunciada que os mitos que nos interessam aqui expõem.
O primeiro modelo de hybris, o primeiro exemplo de comportamento que perde suas medidas, nós já vimos juntos: aquele que a história de Prometeu nos apresentou. De certa forma, é o protótipo de todas as narrativas que, de maneira edificante, mostram os desastres causados por esse defeito supremo segundo os gregos — e que deixam também vislumbrar as tentações que ele provoca. Pois, é claro, se os mortais pecam por hybris, é por verem nele algo tentador. Prometeu é o primeiro a ser punido por arrogância e orgulho, arrastando os homens junto no castigo. Vimos de que maneira (com Pandora, a mulher “que quer sempre mais do que o suficiente”) e por quê; com as ferramentas dadas por Prometeu, roubadas de Hefesto e de Atena — o fogo, as artes e as técnicas —, os seres humanos muito provavelmente não manteriam seu devido lugar, se imaginando, um dia, iguais aos deuses. Aí está, para os gregos, a diferença entre o homem e o animal. Como você se lembra, quando Epimeteu pôs em ordem as espécies vivas, distribuindo as qualidades e os atributos que permitem sobreviver, vimos que os animais têm, cada um, seu lugar bem preciso no mundo. Entre os animais, não há hybris possível, pois são guiados pelo instinto comum da espécie, não havendo risco de não guardarem seu devido lugar. Não podemos imaginar um coelho ou uma ostra se revoltando contra o destino e resolvendo roubar dos deuses o fogo ou as artes! Os homens, pelo contrário, gozam de uma espécie de liberdade, de uma capacidade para excessos que, sem dúvida, os torna mais interessantes do que os animais — são capazes de tantas manhas e astúcia —, mas também capazes de tudo, inclusive da hybris mais desenfreada. Muitos séculos mais tarde, voltamos a encontrar, no humanismo moderno, essa mesma convicção de que o homem, diferentemente dos animais — cada um com seu modo de vida bem preciso, do qual é impossível se evadir —, nada tem de predeterminado, sendo potencialmente tudo, podendo se tornar e fazer qualquer coisa. É, por excelência, o ser das possibilidades — o que fica justamente simbolizado no mito de Epimeteu pelo fato de, ao contrário dos animais, ele estar, por assim dizer, “todo nu” no início: não tem pelos como o urso e o cão para se proteger do frio, nem carapaça como a tartaruga e o tatu para se abrigar dos raios de sol; não é rápido e ágil na corrida como o coelho, nem armado com garras e dentes como o leão. Resumindo, o fato de estar tão desprovido em seu ponto de partida vai levá-lo a tudo inventar por si mesmo, se quiser sobreviver nesse universo afinal de contas tão hostil, que é o mundo após a idade de ouro. O mito, mesmo sem explicitar, supõe uma inventividade, uma certa forma de liberdade, se compreendermos com isso que o homem não está preso, como o animal, ao papel prescrito para cada espécie por Epimeteu, de forma definitiva. No entanto, é exatamente essa liberdade que está na base da hybris: sem ela, o homem não poderia sair do seu lugar, da sua situação prevista. Não poderia errar, e é justamente a história desses erros e das suas “recolocações nos devidos lugares”, por parte dos deuses, que os grandes mitos da hybris descrevem. O ser humano, então, é por excelência aquele que pode ir longe demais. Ele pode ser louco e pode ser sábio. Tem essa escolha. Está aberto a uma infinita diversidade de meios de viver: nada, no ponto de partida, diz que ele vai ser médico, carpinteiro, pedreiro ou filósofo, herói ou escravo. Cabe a ele, pelo menos em boa parte, decidir — e é, a propósito, esse tipo de decisão que muitas vezes torna a juventude um momento crucial, mas difícil. Com toda evidência, essa mesma liberdade o expõe ao risco de desafiar os deuses e até ameaçar o cosmos inteiro. É, aliás, uma repreensão dos ecologistas, tanto tempo depois de os filósofos e poetas gregos terem estigmatizado as más ações da hybris: a humanidade é a única espécie que pode devastar a Terra, pois é a única que dispõe de capacidades de invenção e de revolta contra a natureza, suscetíveis de realmente sacudir o universo. De novo, nesse ponto é difícil imaginar coelhos ou ostras devastando o planeta e, menos ainda, inventando meios para revirá-lo de cabeça para baixo. Mas a humanidade, em contrapartida, pelo menos desde que Prometeu lhe deu as ciências e as artes, pode, pura e simplesmente, tomar essa medida, ou melhor, essa desmedida. Daí que surge a ameaça que ela constantemente faz pesar sobre a ordem cósmica garantida pelos deuses. Pecado por orgulho, no sentido cristão do termo? Sem dúvida, mas não é somente isso. A hybris, sob muitos aspectos, vai bem mais longe. Não se limita a um defeito subjetivo, uma esquisitice pessoal afetando determinada pessoa, tornando-a má. Possui, muito além do simples pecado de orgulho ou de concupiscência, com que o cristianismo nos assusta, essa dimensão cósmica que acabo de evocar; ela ameaça revirar a bela e justa ordem do mundo, tão penosamente construída por Zeus em sua guerra contra as forças do caos. E é do que se trata, antes de mais nada, quando os deuses punem a hybris. Muito simplesmente, eles procuram preservar a harmonia do universo contra a loucura dos homens. De alguns deles, em todo caso. Por essa razão, a mitologia grega é cheia de histórias que contam terríveis castigos de que foram vítimas os mortais que tiveram a audácia de desafiar os preceitos de sabedoria ensinados pelos deuses. Não se trata apenas de obediência, como no discurso clerical usual,(É claro que nas grandes religiões também há uma preocupação com o mundo, mas o pecado quase sempre aparece como um erro “pessoal”) mas de respeito e de preocupação com o mundo.
Uma última observação, antes de entrar no cerne do assunto. Sem dúvida porque, no tempo dos gregos antigos, todo mundo devia perceber logo de início seu verdadeiro sentido, essas histórias de hybris se encadeiam às vezes de maneira um tanto seca, sem floreios nem esforço particular de imaginação literária, como se fossem por si só compreensíveis e qualquer leitor ou qualquer ouvinte percebesse de imediato o significado, sem necessidade de se insistir. A trama é sempre a mesma: um mortal, ou eventualmente um monstro, ou até uma divindade secundária, se acha forte o bastante para sair de seu papel e se medir com o Olimpo, e é toda vez levado de volta a seu lugar com infalível brutalidade, totalmente dissuasiva para quem quer que caia na besteira de se arriscar a cometer o mesmo erro. Infalível porque é o cosmos que, com a punição divina, recupera seus direitos. As narrativas são então muitas vezes esqueléticas, pelo menos em suas versões escritas que chegaram até nós. Elas partem de uma trama bem básica: põe-se em cena a revolta da hybris contra o cosmos e depois vem a vitória esmagadora deste último em estado quimicamente puro, sem ornamentos, por assim dizer. É o caso dos mitos de Íxion,(Ao se casar com Dia, filha de Dioneu, Íxion promete ao sogro magníficos presentes. No entanto, durante um passeio, joga-o num fosso cheio de brasas ardentes, que ele tinha previamente cavado no jardim. Livra-se assim do sogro, e o crime é tão atroz que ninguém aceita purificá-lo — exceto Zeus, que fica com pena e decide lhe dar uma segunda chance. Convidado ao Olimpo, o mal-agradecido Íxion simplesmente resolve cortejar Hera, esposa de quem o havia salvo. Ela se queixa ao marido. Para ter certeza, Zeus fabrica uma nuvem, um holograma de Hera, e Íxion cai na armadilha, tentando levar para a cama quem ele acredita ser a sublime deusa. Zeus então o precipita nos infernos, onde Íxion foi amarrado para sempre, cheio de serpentes em volta, a uma roda de fogo que gira eternamente no Tártaro) Salmoneu,(Cito a narrativa de Apolodoro, bom exemplo de texto sucinto, tanto no fundo quanto na forma: “Salmoneu morou inicialmente na Tessália, depois se dirigiu à Élida, onde fundou uma cidade. Cheio de hybris, quis se igualar a Zeus e foi castigado por ações ímpias. Dizia ser ele o próprio Zeus. Suspendeu os sacrifícios ao deus, ordenando que lhe fossem diretamente oferecidos. Ele arrastava atrás do carro ressecados odres de couro e panelas de bronze, dizendo ser o trovão. Lançava ao céu tochas em chamas, imitando relâmpagos. Zeus fulminou-o e arrasou a cidade por ele fundada, com todos os seus habitantes.” Ponto final!) Faeton,(Ovídio é a principal fonte para a história de Faeton, em Metamorfoses, com muitos detalhes. Mas, apesar de todo o esforço do poeta, a trama mantém uma simplicidade desconcertante: Faeton é filho do sol, Hélio. Ele se gaba disso, mas seus amigos não acreditam. Consegue então, por intermédio da mãe, um encontro com o pai e pede, por pura vaidade, que mostre aos amigos que é seu pai. Hélio promete fazer tudo que ele desejar. Faeton pede para dirigir, durante um dia inteiro, o famoso carro paterno, aquele que todo dia vai de leste a oeste, do nascente ao poente. Hélio fica preocupado, pois sabe o quanto é difícil controlar o carro e o perigo em potencial que isso representa para a ordem cósmica inteira. O inevitável acontece: os cavalos divinos escapam do jovem orgulhoso e se aproximam demais da Terra: as plantações ficam queimadas, os rios secam e os animais são carbonizados toda vez que o carro chega perto demais do chão. Com essa ameaça de destruição do cosmos, Zeus, como sempre, intervém e fulmina o imprudente, que se torna a constelação Auriga) Otos e Elfate,(Eis a narrativa, dada por Homero na Odisseia, da curta vida desses dois homens gigantescos: “Jamais a terra rica em trigais havia nutrido homens tão grandes, e somente Órion teve mais nobre beleza. Aos 9 anos, eles tinham 9 côvados de largura e, de altura, chegavam a 9 braças. Ameaçaram os deuses de assaltar com seus gritos o Olimpo; para subir até o céu, quiseram colocar sobre o Olimpo o Ossa e, sobre o Ossa, o Pélion de bosques frementes. Talvez conseguissem, se alcançassem a idade adulta; mas antes que despontasse a barba sob as suas têmporas e que uma penugem em flor lhes sombreasse a face, caíram ambos sob as flechas do filho que Leto dos belos cabelos havia dado a Zeus”, ou seja, Apolo) Níobe,(Níobe é filha de Tântalo e irmã de Pélops. Como seu pai, é cheia de hybris. Ela não para de dizer que merece, bem mais do que Leto, a mãe dos gêmeos divinos Apolo e Ártemis, os sacrifícios oferecidos a essas divindades olímpicas. E ordena que a ela própria cultuem! Justificando-se, lembra que tem muito mais filhos do que a deusa, seis meninas e seis meninos (de acordo com as diferentes variantes, isso pode chegar a dez meninas e dez meninos, o que, é claro, nada muda nisso tudo). Leto pede aos dois arqueiros divinos que resolvam a questão. Apolo e Ártemis obedecem com todo prazer. As flechas varam impiedosas os 12 filhos de Níobe. Morrem sob os seus olhos e com atrozes sofrimentos. Zeus transforma Níobe em pedra, uma pedra da qual se diz que as lágrimas continuam a correr) Belerofonte,(Neto de Sísifo, Belerofonte de início é um jovem simpático e corajoso. Como o avô, porém, vai terminar influenciado pela hybris. E também há de pagar caro. Depois de matar o tirano de Corinto, Belerofonte encontra asilo com Proetos, um outro rei, da cidade de Tirinto, e se tornam amigos. Infelizmente, a rainha se apaixona por ele. Por lealdade ao amigo ele a rejeita, mas a rainha, magoada, diz ao marido que ele havia tentado seduzi-la. Proetos acredita tolamente na mulher, mas não querendo matar Belerofonte pessoalmente, envia-o a um rei amigo, da Lícia, pedindo que o mate. Mas o rei da Lícia, vendo a boa aparência de Belerofonte, também não quer cometer o crime. Prefere confiar ao jovem herói uma tarefa impossível, em que certamente perderia a vida. Pede que mate a Quimera. Para isso, Belerofonte precisa antes domar Pégaso, o cavalo alado que saiu do pescoço de Medusa quando Perseu a matou. Atena ajuda Belerofonte, e ele consegue matar a Quimera. No caminho, ele ainda combate e vence piratas; porém, imbuído de tantos sucessos, que na verdade ele deve sobretudo aos deuses, Belerofonte começa “a se achar”. É tomado pela hybris. E resolve subir ao Olimpo, sentar-se junto aos deuses e se tornar — por que não? — imortal. Zeus envia uma mosca-varejeira para picar Pégaso, e o arrogante Belerofonte, derrubado, morre ao cair) Cassiopeia(Que será punida por ter se vangloriado de ser, assim como as suas filhas, mais bonitas do que as filhas de Poseidon, as Nereidas) e tantos outros que seguem o mesmo modelo. A título de ilustração — porque algumas são célebres e é bom que você as conheça — indico em nota a trama dessas histórias e, se for o caso, as obras em que facilmente vai encontrá-las. Mas deve-se ter em mente que, assim como os nossos contos de fadas eram contados em casa à noite, contadores profissionais ou amadores acrescentavam sua pitada de sal, buscando maior fôlego e emoção, incorporando detalhes, dando sequência à ação — como fizeram os trágicos, de maneira evidentemente grandiosa, enobrecendo alguns desses mitos. Felizmente, outras narrativas forjadas sobre o tema d a hybris nos foram transmitidas em versões mais desenvolvidas e indo bem mais longe, tanto do ponto de vista literário quanto filosófico. Formam verdadeiros dramas, repletos de lições ricas e profundas, cômicas ou trágicas de sabedoria que, aliás, também se enriqueceram no decorrer do tempo. Já pudemos ter uma mostra disso com o mito de Midas. Vou contar alguns outros que valem bem a pena e que frequentemente são malcompreendidos hoje em dia, sem que os mitógrafos modernos se deem conta, na maior parte das vezes encobertos que estão sob os ouropéis da moral cristã ou simplesmente burguesa, senão pela psicologia contemporânea, que lhes roubam o sabor original e o verdadeiro significado. É bom recolocá-los no ambiente cosmológico e filosófico original a que pertencem e que você já começa a conhecer bem. Ainda mais porque os mais ricos desses mitos têm diretamente a ver com a questão da relação dos mortais com aquilo que, infalivelmente, os espera, ou seja, justamente, a morte.

 (Luc Ferry - A Sabedoria dos Mitos Gregos)
 
BACO ENCONTRA ARIADNE

publicado às 00:05

Pã começa a soprar seu instrumento (a flauta),
 e os sons que saem são roucos e rústicos, à imagem de quem os toca.
Têm muitos encantos, é claro, mas são brutos, para não dizer bestiais; o som que o
sopro tira dos tubos de cana é idêntico ao que o vento produz na natureza, entre as
taquaras. A lira de Apolo, em contrapartida, é um instrumento sofisticadíssimo; explora
com precisão matemática as relações entre o comprimento das cordas e sua respectiva
tensão, garantindo uma perfeita justeza em suas relações, mais ou menos simbolizando
a harmonia, igualmente sofisticada, que os deuses estabeleceram na escala do universo.
É um instrumento ao mesmo tempo delicado e civilizado, o oposto da rusticidade da
flauta, sendo a sedução suscitada pela lira inteiramente originada na suavidade
..
(Luc FerrY) 
Aimé Millet: Apolo entre as Musas da Poesia e da Música, c. 1860–1869. Ópera Garnier, Paris

Hermes é um dos filhos preferidos de Zeus, que inclusive faz dele seu principal embaixador, enviando-o quando uma mensagem realmente importante tem que ser transmitida. Sua mãe é uma ninfa muito bonita, Maia, uma das sete Plêiades, que, por sua vez, são filhas de uma certa Pleioneia (é o que o nome delas significa em grego) e do Titã Atlas, que Zeus puniu obrigando-o a carregar o mundo nas costas. O mínimo que se pode dizer é que o pequeno Hermes mostra-se incrivelmente precoce. “Tendo nascido pela manhã”, conta o autor do hino homérico, “ele já tocava cítara à tarde e, à noite, roubou vacas do arqueiro Apolo...”. Ou seja, um primeiro dia de existência bastante intenso; recém-nascido com poucas horas de vida, Hermes já era um músico de mão cheia e um ladrão fora de série! Assim que abre um olho, mal sai da barriga da mãe, imagine que o pequeno Hermes se põe imediatamente em busca das vacas do rebanho de Apolo. No caminho, vê uma tartaruga na montanha e estoura de rir; assim que olha a infeliz, percebe tudo que pode fazer com ela. Volta rapidamente para casa, esvazia o pobre animal, mata uma vaca, estica a pele em torno do casco, fabrica cordas com as tripas e chaves para esticá-las, com canas. Acabava de nascer a lira, e ele pôde produzir sons perfeitamente justos, bem mais harmoniosos do que os da flauta de Pã! Não satisfeito com essa primeira invenção, Hermes parte de novo à procura das vacas imortais do irmão mais velho.
 Avistando o rebanho, ele separa cinquenta animais e, para que o roubo passe despercebido, leva-os andando para trás, tendo tomado o cuidado antes de amarrar em seus cascos uma espécie de raquete feita com mato, que ele fabrica às pressas para camuflar seus passos. Conduz as reses até uma gruta. Mais alguns minutos se passam e ele reinventa por conta própria o fogo. Sacrifica duas vacas em homenagem aos deuses e passa o restante da noite a espalhar as cinzas do fogo. Em seguida volta para a casa em que Maia lhe dera à luz e onde está o seu berço; ele volta a dormir com ares de recém-nascido, inocente como um cordeirinho. Ouvindo as reclamações da mãe, responde simplesmente que não suporta a pobreza e quer ser rico. Compreende-se bem por que se torna o deus dos comerciantes, dos jornalistas e dos ladrões. De fato, um primeiro dia bem intenso de um bebê divino.
É claro, Apolo acaba descobrindo a tramoia. Vai atrás do filhinho de Zeus e ameaça lançá-lo no Tártaro se não lhe devolver as vacas. Hermes jura por todos os deuses (é o caso de se dizer) ser inocente. Apolo levanta-o acima da cabeça para jogá-lo longe, mas Hermes diz algo muito engraçado e o outro o põe de volta no chão. A discussão acaba sendo levada ao tribunal de Zeus — que cai na gargalhada diante de tanta precocidade. Na verdade, se sente todo orgulhoso do caçula. O conflito entre Apolo e Hermes continua, mas este último mostra sua arma definitiva, a lira, e começa a tocar com tanta arte que Apolo, assim como Zeus, se desmancha e literalmente sucumbe ao charme da criança. Fascinado, Apolo, deus da música, está siderado pela beleza dos sons que saem do instrumento que ele ainda não conhecia. Em troca da lira, promete a Hermes torná-lo rico e célebre. Mas o menino continua a negociar, a pechinchar, e ainda consegue a guarda dos rebanhos do irmão mais velho! Completando o negócio, Apolo inclusive oferece o chicote de pastor e a vareta mágica de riqueza e opulência, a mesma que vai servir como emblema de Hermes, o famoso caduceu do qual vou contar a história daqui a pouco.
É nesse contexto que a lira aparece como o protótipo do instrumento divino, o atributo por excelência de Apolo. Para entender o alcance do mito de Midas — que em geral é considerado secundário, mas de forma totalmente errada — deve-se sempre lembrar que Apolo está do lado de Zeus, ou seja, dos olímpicos que lutam sempre para o estabelecimento da ordem cósmica e sua sustentação. É uma ordem ao mesmo tempo justa — pois resultante da divisão original estabelecida por Zeus após a vitória sobre os Titãs — e bela, boa e harmoniosa. No entanto, as forças telúricas de Caos e de seus múltiplos e variados descendentes, desde Tífon, ameaçam incessantemente a frágil harmonia. Apolo aqui representa uma força olímpica, anticaótica, antititânica e ligada ao famoso “conhece-te a ti mesmo” que orna seu templo em Delfos, isto é, como já expliquei, “Saiba qual é o seu lugar, seu lugar natural, e nele permaneça!” Sem hybris, sem arrogância, sem descomedimento que venha a perturbar a bela ordenação cósmica! Se Apolo gosta de música, é por ser uma metáfora do cosmos. Dioniso, sob muitos aspectos, é o contrário de Apolo. Evidentemente, Dioniso é também um olímpico, um filho de Zeus, e veremos mais adiante como ele reúne em si o cosmos e o caos, a eternidade e o tempo, a razão e a loucura. Num primeiro relance, porém, o que chama a atenção nele é o seu lado “acósmico”: ele gosta de festa, de vinho e de sexo até a loucura mortal, que toma conta das mulheres participantes de sua trupe. Dioniso é também um deus da música, é claro, mas a música que ele ama não é a de Apolo; não é suave e harmoniosa, mas bestial e louca. Ou seja, ela de forma alguma acalma os sentidos, e sim, pelo contrário, exprime de maneira propositadamente indecente o canto das paixões mais arcaicas. É o que explica que o seu instrumento-fetiche seja a flauta de Pã e de Mársias.
Veja como o jovem Nietzsche explicou, com muita justeza e profundidade, a diferença entre Apolo e Dioniso:
Apolo, deus ético, pede comedimento aos seus e, para que o preservem, indica o conhecimento de si mesmo. Por isso “conhece-te a ti mesmo” e “nada em excesso” acompanham a exigência estética, enquanto o orgulho exagerado e o descomedimento que, dentre todos os demônios, são os principais inimigos da esfera apolínica, foram considerados atributos dos tempos pré-apolínicos, da Idade dos Titãs ou do mundo extra-apolínico, ou seja, bárbaro [...] O grego apolínico deve igualmente ter considerado titânica e bárbara a ação do dionisíaco, sem, no entanto, poder esconder que, no fundo do seu ser, mantinha-se um parentesco com aqueles Titãs [...] Mais do que isso, deve ter compreendido que sua existência inteira, com toda beleza e comedimento, repousava sobre um fundo oculto de sofrimento e de conhecimento que o dionisíaco o fazia redescobrir. Desse modo, Apolo não pode viver sem Dioniso! O elemento titânico e bárbaro mostrava-se definitivamente tão necessário quanto o apolínico. Que se imagine o efeito produzido pela festa dionisíaca, com suas enfeitiçantes músicas, sobre aquele mundo artificialmente protegido, construído sobre a aparência e o comedimento [...] Que se imagine o que podia significar, diante dos demoníacos cantos populares, o artista apolínico, cantando salmos e com suas fantasmagóricas sonoridades de harpa [...] O descomedimento se revelou verdade; a contradição e a alegria nascida da dor falaram uma linguagem que brotava do coração da natureza. De forma que, em todos os lugares conquistados pelo dionisíaco, o apolínico foi abolido e destruído.(O Nascimento da Tragédia, § 4)
Nietzsche, que era bom músico, compreendeu perfeitamente três coisas essenciais. A primeira delas é que o tema do concurso musical não é anedótico, e sim essencial na mitologia, por uma razão básica: a música, trazendo ao cerne da arte a ideia de harmonia, é uma metáfora, em analogia com o cosmos ou, como o próprio filósofo escreveu, “uma réplica e uma segunda versão do universo”.(Ibid., § 5) A segunda é que na oposição entre Apolo e Dioniso — com este último representado por Pã ou Mársias, mas que foram, todo mundo percebe, postos em cena como substitutos, tratando-se de personagens que apenas representam Dioniso — é de novo a questão do caos e do cosmos, do titânico caótico e do olímpico cósmico que surge constantemente desde as origens do mundo. E a terceira é que, evidentemente, apesar de os dois universos divinos, o harmonioso e calmo, simbolizado por Apolo, e o outro, contraditório e dilacerado, que Dioniso representa, se oporem radicalmente nas aparências, eles, na verdade, são inseparáveis. Sem a harmonia cósmica, o caos vence e tudo fica devastado, mas sem caos, a ordem cósmica se paralisa, desaparecendo toda vida e toda história.
Na época em que escreveu o livro sobre a tragédia grega, Nietzsche estava profundamente influenciado por um filósofo, Schopenhauer, que ele considerava seu mestre (depois se afastou). Schopenhauer acabava de publicar um livro importante, com um título à primeira vista pouco compreensível: O Mundo como Vontade e Representação. Sem querer dar um resumo — é um livro volumoso e bem difícil —, posso, mesmo assim, fazer com que você compreenda uma das suas principais insistências: a convicção de Schopenhauer, e que Nietzsche segue em sua leitura dos gregos, é a de que nosso universo se encontra dividido em duas metades. De um lado, há um imenso fluxo caótico, desordenado, dilacerado, absurdo e sem sentido, na maior parte inconsciente, que ele denomina “vontade”; do outro lado, há, pelo contrário, uma desesperada tentativa de esclarecimento das coisas, tentando pô-las em ordem, voltar à calma, à consciência, dando sentido e, justamente, harmonia: é o que se chama “representação”. Nietzsche aplica essa distinção ao mundo grego: ao universo da vontade, absurda e dilacerada, corresponde o caos inicial das forças titânicas, e a divindade que, pelo menos dentro do Olimpo, encarna isso é Dioniso. Ao mundo da representação corresponde a ordem cósmica estabelecida por Zeus, com sua harmonia, calma e beleza. É óbvio, a lira de Apolo pertence ao mundo da “representação”, no sentido de Schopenhauer, e a flauta, dionisíaca, titânica, caótica, não civilizada e anticósmica, se remete ao outro mundo, o da vontade, também no sentido de Schopenhauer. Inclusive há sempre duas músicas que se disputam: a harmônica, suave, cósmica e civilizada, de um lado, e aquela dissonante, caótica, rouca, que imita as paixões inconscientes da vontade em estado bruto, de outro. Na verdade, a boa música, à imagem do cosmos grego, deve conter os dois universos. Midas, um ser grosseiro e próximo da natureza, se inclina para o lado dionisíaco. Não por acaso Dioniso é seu amigo, assim como Sileno e Pã, e também não por acaso os membros do séquito dionisíaco muitas vezes são seres meio-animais, meio-homens, com apetite sexual exagerado e apreciando imoderadamente as festas delirantes.
Em outras palavras, o que está em jogo, ou melhor, volta a estar em jogo na pequena fábula de Midas, que pode — mas apenas muito superficialmente — parecer banal, é, de novo, a vitória de Zeus contra os Titãs. E se Apolo fica tão furioso, não é, como facilmente se pode achar, por ter ficado “contrariado” — por que ele, divindade sublime, se importaria com o que acha ou não acha esse bobalhão do Midas? —, mas por precisar, por sua própria natureza, lutar contra a hybris sob todas as suas formas. Sua missão divina, olímpica, é combatê-la assim que germina. Punição para Midas — punido por onde pecou, no caso, as orelhas; cuidadosamente mantida a proporção entre a culpa e o castigo. Suplício atroz para Mársias: Midas é um tolo, um grosseirão que nada entendeu da dimensão cósmica da competição musical. Merece então ser colocado em seu devido lugar, o do animal estúpido, o asno. Para ele, uma simples punição basta. Mas com relação a Mársias, é preciso dar exemplo. Mársias é uma ameaça. Diferente de Midas, ele desafia diretamente um deus, e a violência do seu castigo só se explica se considerarmos que tal desafio se torna intolerável pelo fato de a ordem cósmica ser uma conquista frágil, superficial, por assim dizer; sob a superfície aparentemente ordenada e apaziguada, o mar revolto do caos não para de ameaçar voltar. Como não se entendia bem tanto furor por parte de Apolo, alguns mitógrafos chegaram a inventar que ele teria se arrependido da morte de Mársias, mas trata-se de invencionice particular e não da veracidade do mito.
Como você pode ver, a história de Midas, que tinha começado de forma mais ou menos cômica, termina estranhamente trágica. Diga-se, aliás, que essa brutalidade com que o cosmos — que é o que se ofende quando se ofendem os deuses — recupera seus direitos contra a hybris humana vai se tornar um dos mais seguros e poderosos recursos da tragédia grega.
Mas não vamos nos antecipar. Como disse, ainda não chegamos aí e, apesar desse pequeno desvio que serve mais ou menos como aperitivo, no estágio em que nos encontramos, o lugar dos mortais, e sobretudo o dos homens (pois há também os animais), ainda não está fixado. Sabemos onde estão os Titãs, e com eles Tífon — no Tártaro, solidamente acorrentados e vigiados pelos Hecatonquiros —, e podemos medir a ameaça de caos que eles representavam, mas que já está bem-controlada. Também conhecemos o lugar ou a missão que compete a cada deus em particular: o mar a Poseidon, os infernos a Hades, a terra a Gaia, o céu a Urano, o amor e a beleza a Afrodite, a violência e a guerra a Ares, a comunicação a Hermes, a inteligência e a astúcia a Atena, o fundo das trevas a Tártaro etc. Mas qual é, nesse universo organizado sob a égide de Zeus, o lugar reservado aos mortais? Ninguém ainda poderia dizer, nesse estágio.
No entanto, a questão é evidentemente crucial, pois, uma vez mais insisto, foram seres humanos que inventaram todas essas histórias, todo esse dispositivo teológico e cosmológico prodigiosamente sofisticado. E se o inventaram, certamente não foi à toa, somente para se distrair, e sim para dar sentido ao universo que os circunda e à vida que nele se deve levar, para tentar compreender o que fazem nessa terra e discernir o sentido de sua existência. Com três mitos inseparáveis entre si, o mito de Prometeu, o de Pandora (a primeira mulher) e o famoso mito da idade de ouro, a cultura grega começa a responder a essa interrogação fundamental. Num poema intitulado Os Trabalhos e os Dias, Hesíodo teve o cuidado de juntar estreitamente esses três grandes relatos, destinados a uma formidável posteridade, até os dias de hoje, na literatura, na arte e na filosofia. É então a eles que proponho seguir agora. Podemos depois ir às grandes narrativas míticas abordando hybris e diké, aos loucos descomedimentos perpetrados por alguns seres, assim como aos atos heroicos e justos cometidos por alguns, aqueles que em geral chamamos heróis.

(Luc Ferry - A Sabedoria dos Mitos Gregos)

 (Luc Ferry - A Sabedoria dos Mitos Gregos)
Bernini: Apolo e Dafne, 1624. Galleria Borghese, Roma

publicado às 00:45


A Queda

por Thynus, em 24.11.15
.  Não há insatisfação profunda que não seja de
natureza religiosa: nossos fracassos provêm
de nossa incapacidade para conceber o
Paraíso e aspirar a ele, como nossos mal-estares
da fragilidade de nossas relações com o
absoluto. “Sou um animal religioso incompleto,
padeço duplamente de todos os males”
– adágio da Queda, que o homem se repete
para consolar-se. Ao não consegui-lo, recorre
à moral, decide seguir, expondo-se ao
ridículo, seu conselho edificante. “Resolve-te
a não estar mais triste”, lhe responde esta. E
ele se esforça por entrar no universo do Bem
e da Esperança... Mas seus esforços são ineficazes
e antinaturais: a tristeza remonta à
raiz de nossa perdição..., a tristeza é a poesia
do pecado original..
(Emil Cioran - Breviário de Decomposição)
 
"O primeiro ato de liberdade do homem é um ato de desobediência, e através dêle o homem transcende sua união original com a Natureza, adquire consciência de si e de seu próximo e de sua condição de estranhos. No processo histórico, o homem se cria. Cresce até à autoconsciência, ao amor, à justiça e quando atinge a finalidade da compreensão plena do mundo, pelo seu poder da razão e do amor, torna-se uno novamente, desfaz o “pecado” original, volta ao Paraíso, mas no nôvo nível da individualização e da independência humana. Embora o homem tenha “pecado” no ato de desobediência, seu pecado se justifica no processo histórico. Não sofre uma corrupção de sua substância, mas seu pecado mesmo é o comêço de um processo dialético que termina com sua autocriação e auto-salvação." 
(Erich Fromm – O Dogma de Cristo e outros dogmas). 
.
Os mitos da Árvore da Vida, da Árvore do Bem e do Mal e da Queda – a expulsão de Adão e Eva do paraíso após comerem o fruto da árvore proibida, em busca da imortalidade e do saber – também encontram paralelos na mitologia mesopotâmica. A mesma lenda também está na Torah e no Corão (2:29). Embora bastante conhecida, merece aqui ser recontada, em síntese. Conforme o relato do segundo capítulo do Gênesis, depois de haver criado Adão, Iahweh colocou-o no jardim do Éden, juntamente com várias plantas e árvores, formosas de ver e boas de comer, além das árvores da vida e a do conhecimento do bem e do mal, advertindo-o de que se comesse o fruto desta última, morreria. Eis que Eva, feita das costelas de Adão, seduzida pelas palavras da serpente que disse que se eles comessem do fruto proibido não morreriam, mas se tornariam como deuses, porque os seus olhos se abririam e teriam o discernimento do bem e do mal, vendo que o fruto da árvore era formoso à vista e apetitoso, saboreou-o e ofereceu-o ao seu marido, que também o comeu. “Então abriram-se os olhos dos dois e perceberam que estavam nus.” (Gn 3:7).
Iahweh Deus, que passeava no jardim à brisa do dia, notou que homem e mulher dele se escondiam. Embora já sabendo do ocorrido, Deus pergunta a Adão por que eles se escondiam. Covardemente, Adão diz que, induzido por Eva, comera do fruto proibido. Esta, por sua vez, afirma que foi “seduzida” pela serpente. Seguiu-se, então, a maldição lançada por Deus contra a serpente e Eva: “À mulher ele disse: ‘Multiplicarei as dores de tuas gravidezes, na dor darás à luz filhos. Teu desejo te impelirá ao teu marido e ele te dominará’.”[Gn 3:16] Neste ponto da história foram lançadas as raízes de todos os preconceitos e difamações que marcaram as mulheres durante séculos de civilização; os fundamentos da dominação masculina; a base para a caça às bruxas na Idade Média, tudo porque a mulher havia, supostamente, feito conluio com Satã (a serpente) e espalhado o pecado pelo mundo. Eis a mulher: a responsável pelos males que acometem a humanidade, tal como Pandora, do mito grego. O mal e a morte decorrem de Eva, Lilith, Pandora, as pecadoras e demônios que seduzem os homens e os colocam no rumo do pecado. “O judeo-cristianismo defende a ideia de que Eva [...] foi criada secundariamente (Surata III,1)! Um pedaço inferior removido do corpo princeps. Antes o macho, depois, como fragmento retirado, resto, migalha: a fêmea.”[Michel Onfray. Tratado de Ateologia: física da metafísica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007, p. 85]
O fruto da árvore do conhecimento é proibido ao homem na mitologia cristã e judaica, que marcam fortemente a civilização e a cultura ocidentais. O mito do pecado original sufoca o livre pensamento, o sexo sem culpa e a busca pelo prazer saudável. Passar por cima de Deus, buscar o conhecimento: eis o crime de Eva. Não questionar os misteriosos desígnios de Deus faz parte da proibição ao homem de comer o fruto da árvore do conhecimento. Manter o indivíduo na ignorância, proibir as pesquisas científicas, genéticas, a pílula, o casamento gay, as relações sexuais fora do casamento, o uso de preservativos são parte dessa crença de que não se pode optar pelo pensamento livre e pela lógica, devendo ficar com a religião e seus dogmas, a ignorância e a superstição. O fracasso de Adão denunciou sua desobediência e o seu orgulho em querer ser igual a Deus, o maior pecado que uma criatura poderia cometer, resultando, dessa forma, o conceito do pecado original, pilar das religiões judaica e cristã.
Proibidos de comer do fruto da árvore do conhecimento expulsos do paraíso, Michel Onfray pergunta:
Que destino Deus reserva então aos homens: a imbecilidade e a mortalidade?
É preciso imaginar um Deus perverso para oferecer esse presente a suas criaturas ... Celebremos, pois, Eva, que opta pela inteligência ao preço da morte, enquanto Adão não entende imediatamente as implicações do momento paradisíaco: a eterna ventura do imbecil feliz.[Tratado de Ateologia: física da metafísica, p.54]
O mito de Adão e Eva deve ser revisto e reinterpretado sob uma ótica moderna. Uma Eva criada da costela do homem servia como uma poderosa metáfora da submissão feminina ao poder masculino, em uma época na qual não existia a ideia de igualdade entre os seres humanos. Nos primórdios da história, esse símbolo continha uma mensagem explícita de que a mulher era inferior ao homem porque o próprio Criador assim o quis, ao fazê-la da costela do seu macho. Eva fez o homem consciente de sua inteligência, poder e capacidade. Não era suficiente apenas viver no Éden e encontrar ali o seu alimento e sossego eterno. Ela libertou a humanidade do cativeiro ao propiciarlhe a capacidade de pensar e de distinguir o que era bom do que era ruim, podendo, a partir desse raciocínio, escolher as melhores (em alguns casos, infelizmente, as piores) opções de vida e de fazer toda a sua história.
O relato bíblico da Criação, na segunda versão (J), levanta uma série de perguntas cujas respostas teológicas carecem de racionalidade, por fazerem as pessoas acreditarem na narrativa somente porque assim foi escrito. Na versão J é proibido ao homem comer do fruto da árvore do conhecimento porque ele passaria a ter o conhecimento do bem e do mal e morreria. Três questões e uma conclusão emergem desse fato. Primeiro, a conclusão: o mal já existia antes que Adão e Eva comessem da fruta. Agora as perguntas: Se eles não comessem do fruto seriam imortais? Se o mal existia, quem o criou? Afinal, Deus não fez tudo a partir do nada? Teólogos se debatem sobre a questão para tentar explicar a existência do mal, que não poderia ter sido feito por Deus. A resposta encontrada e mais aceita é que o mal decorre de Satanás, que leva a mais perguntas: Quem criou Satã? Se o criou, por que permite que ele ainda exista? São indagações que levam a respostas prontas feitas por teólogos e que mais confundem do que esclarecem, ao apelarem para os desígnios misteriosos de Deus.
Excluindo o devaneio teológico há uma resposta mais simples para essas perguntas: o homem é o responsável pelo bem e pelo mal; por Deus e pelo Diabo, porque é da mente humana e dos seus mitos que esses personagens surgem, para compor a realidade e o imaginário das pessoas; dar sentido à vida e à morte; explicar o que, para muitos, é inexplicável ou mesmo complicar o que seria facilmente entendido por qualquer um.
Na Bíblia, envergonhados, Adão e Eva são expulsos do Éden por Deus, que coloca na entrada do jardim “os querubins e a chama da espada fulgurante para guardar o caminho da árvore da vida.” (Gn 3:24). Aqui, mais uma semelhança com a mitologia sumério-babilônica. Os querubins eram de fato representações de animais (touro ou leão) com um par de asas estendidas. O nome corresponde ao dos karibus babilônios[Extraída da nota explicativa referente ao Livro do Êxodo (25:18f), da Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002], que eram representações iconográficas metade homens, metade animais, que vigiavam as entradas dos templos mesopotâmicos. Esses seres alados estavam esculpidos no Templo de Jerusalém e na Arca da Aliança.[Cf. Ex 25:18; I Reis 6: 32 e 35)]
A iconografia dos querubins que guardavam a Arca e o Templo era bastante semelhante às usados pelos povos da Mesopotâmia, conforme a figura, um baixo-relevo de um boi alado com a cabeça humana, retirado do palácio do rei Sargão II, da Assíria, datado entre 716-713 a.C..
baixo-relevo de um boi alado com acabeça humana
 
O leitor poderá pesquisar e descobrir outras lendas e iconografias semelhantes, tais como as dos anjos, cuja descrição no Antigo e Novo Testamento tem total semelhança com vários personagens da mitologia grega, entre eles as divindades antropomórficas com asas, como Eros, as Nikés (deusas da vitória), os ventos e as Lasas da arte etrusca, seres divinos que acompanham a alma dos mortos.

Niké Éphèse

 É de reconhecer que embora diversas representações modernas dos querubins da Arca e do Templo tenham a forma de homens alados, conforme a figura a seguir, a sua origem é assíria ou mesopotâmica.
querubins da Arca e doTemplo
 
A narrativa da busca da árvore do conhecimento e da vida eterna pelo homem é um tema presente na mitologia dos povos da Mesopotâmia. A narrativa épica Gilgamesh retrata esse objetivo. Na mitologia dos babilônios e sumérios, o fruto não é proibido e a vida é concedida ao homem e basta que ele estenda a mão para pegá-la com a devida vontade e ânimo de recebê-la. Não há pecado na busca da vida e do conhecimento, pois este liberta!
O primeiro pecado provocou não só a expulsão do paraíso e a modificação da condição humana, mas tornou-se a fonte de todas as desventuras que recaíram sobre a humanidade, na teologia judaico-cristã.

O paraíso como o inverso do real
O que é o paraíso, na visão dos judeus, cristãos e muçulmanos? Ele pode ser definido como o inverso do mundo real. Nas três religiões monoteístas, a visão do paraíso mudou com o tempo, mas a essência permaneceu.
Para os cristãos, o paraíso é o lugar para onde a alma migra depois da morte. Nos primeiros anos do cristianismo, a noção desse lugar idílico decorreu, inicialmente, da promessa feita por Jesus ao bom ladrão, de que ambos estariam juntos no paraíso, mas para os judeus da época, significava o lugar no qual os justos aguardariam pela Ressurreição e pelo Messias (lembre-se de que Jesus Cristo não era considerado o enviado aguardado para libertar o povo de Israel da opressão). Somente mais tarde é que a noção de uma terra luxuriante ganhou forma. Esse local seria o ponto de espera e passagem para uma eternidade bem-aventurada.
Quer seja uma terra cheia de prazeres ou um sítio de passagem para uma eternidade bemaventurada ou este próprio universo etéreo e espiritual, a visão mais tradicional do paraíso é a da terra cheia de verde, uma versão perfeita da natureza, um jardim abençoado.
No século XII, a teologia cristã criou um lugar intermediário para aqueles que não cumpriram os seus deveres na Terra e não tinham, de imediato, o seu lugar no céu garantido. O purgatório - prisão e lugar de passagem - permeou o imaginário religioso de todo o Ocidente como o lugar em que os cristãos pecadores podiam garantir a sua passagem de ida para o céu, salvando-se do inferno. Foi fonte de inspiração para obras literárias, como a Divina Comédia, de Dante Alighieri e inúmeros quadros e afrescos do Renascimento. Era uma alternativa aos que não podiam pagar as indulgências cobradas pela Igreja para ser absorvido dos pecados e garantir acesso ao paraíso. Como uma criação da teologia, o purgatório não existia para os Luteranos e já neste século, foi declarado como inexistente pela mesma Igreja que o criou.
Para os muçulmanos o paraíso tinha o frescor e a amenidade de um jardim, com rios de água fresca e fontes das quais jorram leite e mel, além de huris (mulheres jovens) para os mártires. Durante suas pregações, o profeta Maomé seduziu os seus seguidores e aqueles a quem dirigia a palavra com descrições do paraíso para quem abraçasse sua fé. A visão árabe de um paraíso cheio de prazeres era perfeita, exatamente por ser o oposto do mundo no qual viviam: um deserto quente e árido.
A ideia do paraíso para os seguidores do Islã vem de dois lugares distintos.[Wadih Atallah. Maomé no País das Delícias. In: História Viva, Especial Céu e Inferno n.º 25, p.36] A primeira é da cidade de Damasco, que possuía jardins magníficos e onde nenhum dos encantos do paraíso deixaria de ser ali encontrado, conforme descrição do geógrafo sírio do século XIII, Yakut, que a classificou como a primeira cidade mais paradisíaca da Terra. A segunda fonte de inspiração do paraíso muçulmano vem das histórias e da cultura greco-romana, com a representação dos banquetes, orgias e festas nas quais circulavam belos jovens e lindas mulheres.
O paraíso era oferecido pelo profeta aos seus seguidores e àqueles que morressem pela causa do islã. No ano 624, na batalha de Badr, o primeiro grande embate entre Maomé e os politeístas da cidade de Meca para estimular os seus homens, Maomé disse: “Todo homem dentro de vós, eu juro, que lutar hoje contra os coraixitas e morrer com coragem, entrará no paraíso.” As huris são um dos prazeres mais apreciados no paraíso, afinal, para uma cultura que oprime a mulher, coloca-a quase como uma serva e a impede de mostrar qualquer parte do corpo que não o rosto –isso quando permite -, a promessa de mulheres sensuais aguardando os combatentes no paraíso é irresistível. É o paraíso como o oposto do mundo real, uma visão sedutora para os homens - bomba de hoje.
Sempre na lógica do paraíso como antimundo desejável para fazer aceitar o mundo real, frequentemente indesejável: o islã é originalmente uma religião do deserto de clima rude, quente e violento; no paraíso reina uma eterna primavera, nem sol, nem lua, eterna claridade, nunca de dia, nunca de noite. [Michel Onfray. Ob. cit., p.83]
Essa visão idílica do paraíso muçulmano é combatida por muitos intérpretes e estudiosos do islã moderno – assim como foi contestada por filósofos islâmicos da Idade Média – que veem nessas descrições apenas uma metáfora na qual o verdadeiro muçulmano que busca o paraíso está à procura da felicidade “proporcionada pela vida eterna ao lado de Deus.”[Wadih Atallah. Maomé no País das Delícias, p. 39] Mas esta parece não ser a percepção do paraíso existente na mente dos mais fanáticos.

(Élvio Gusmão Santos - As Histórias da Bíblia e os Mitos da Antiguidade)

publicado às 02:14

Neto de Sísifo, Belerofonte de início é um jovem simpático e corajoso.
Como o avô, porém, vai terminar influenciado pela hybris. 
E também há de pagar caro. Depois de matar o tirano de Corinto,
Belerofonte encontra asilo com Proetos, um outro rei, da cidade de Tirinto, 
e se tornam amigos. Infelizmente, a rainha se apaixona por ele. Por
lealdade ao amigo ele a rejeita, mas a rainha, magoada, diz ao marido
que ele havia tentado seduzi-la. Proetos acredita tolamente na mulher,
mas não querendo matar Belerofonte pessoalmente, 
envia-o a um rei amigo, da Lícia, pedindo que o mate. Mas o rei da Lícia, 
vendo a boa aparência de Belerofonte, também não quer cometer o crime. Prefere
confiar ao jovem herói uma tarefa impossível, em que certamente perderia a vida. 
Pede que mate a Quimera. Para isso, Belerofonte precisa antes domar Pégaso, 
o cavalo alado que saiu do pescoço de Medusa quando Perseu a
matou. Atena ajuda Belerofonte, e ele consegue matar a Quimera. 
No caminho, ele ainda combate e vence piratas; porém, imbuído de tantos sucessos, 
que na verdade ele deve sobretudo aos deuses, Belerofonte começa “a se achar”.
É tomado pela hybris. E resolve subir ao Olimpo, sentar-se junto aos deuses 
e se tornar — por que não? — imortal. Zeus envia uma mosca-varejeira 
para picar Pégaso, e o arrogante Belerofonte, derrubado, morre ao cair. 
(Luc Ferry - A Sabedoria dos Mitos Gregos)
 
O QUE É A HYBRIS?
Como você se lembra, quando Epimeteu pôs em ordem as espécies
vivas, distribuindo as qualidades e os atributos que permitem sobreviver, vimos que os
animais têm, cada um, seu lugar bem preciso no mundo. Entre os animais, não há hybris
possível, pois são guiados pelo instinto comum da espécie, não havendo risco de não
guardarem seu devido lugar. Não podemos imaginar um coelho ou uma ostra se
revoltando contra o destino e resolvendo roubar dos deuses o fogo ou as artes! Os
homens, pelo contrário, gozam de uma espécie de liberdade, de uma capacidade para
excessos que, sem dúvida, os torna mais interessantes do que os animais — são
capazes de tantas manhas e astúcia —, mas também capazes de tudo, inclusive da
hybris mais desenfreada. Muitos séculos mais tarde, voltamos a encontrar, no
humanismo moderno, essa mesma convicção de que o homem, diferentemente dos
animais — cada um com seu modo de vida bem preciso, do qual é impossível se
evadir —, nada tem de predeterminado, sendo potencialmente tudo, podendo se tornar
e fazer qualquer coisa. É, por excelência, o ser das possibilidades — o que fica
justamente simbolizado no mito de Epimeteu pelo fato de, ao contrário dos animais, ele
estar, por assim dizer, “todo nu” no início: não tem pelos como o urso e o cão para se
proteger do frio, nem carapaça como a tartaruga e o tatu para se abrigar dos raios de
sol; não é rápido e ágil na corrida como o coelho, nem armado com garras e dentes
como o leão. Resumindo, o fato de estar tão desprovido em seu ponto de partida vai
levá-lo a tudo inventar por si mesmo, se quiser sobreviver nesse universo afinal de
contas tão hostil, que é o mundo após a idade de ouro. O mito, mesmo sem explicitar,
supõe uma inventividade, uma certa forma de liberdade, se compreendermos com isso
que o homem não está preso, como o animal, ao papel prescrito para cada espécie por
Epimeteu, de forma definitiva. No entanto, é exatamente essa liberdade que está na
base da hybris: sem ela, o homem não poderia sair do seu lugar, da sua situação
prevista. Não poderia errar, e é justamente a história desses erros e das suas
“recolocações nos devidos lugares”, por parte dos deuses, que os grandes mitos da
hybris descrevem. O ser humano, então, é por excelência aquele que pode ir longe
demais. Ele pode ser louco e pode ser sábio. Tem essa escolha. Está aberto a uma
infinita diversidade de meios de viver: nada, no ponto de partida, diz que ele vai ser
médico, carpinteiro, pedreiro ou filósofo, herói ou escravo. Cabe a ele, pelo menos em
boa parte, decidir — e é, a propósito, esse tipo de decisão que muitas vezes torna a
juventude um momento crucial, mas difícil. Com toda evidência, essa mesma liberdade
o expõe ao risco de desafiar os deuses e até ameaçar o cosmos inteiro. É, aliás, uma
repreensão dos ecologistas, tanto tempo depois de os filósofos e poetas gregos terem
estigmatizado as más ações da hybris: a humanidade é a única espécie que pode
devastar a Terra, pois é a única que dispõe de capacidades de invenção e de revolta
contra a natureza, suscetíveis de realmente sacudir o universo. De novo, nesse ponto é
difícil imaginar coelhos ou ostras devastando o planeta e, menos ainda, inventando
meios para revirá-lo de cabeça para baixo. Mas a humanidade, em contrapartida, pelo
menos desde que Prometeu lhe deu as ciências e as artes, pode, pura e simplesmente,
tomar essa medida, ou melhor, essa desmedida. Daí que surge a ameaça que ela
constantemente faz pesar sobre a ordem cósmica garantida pelos deuses. Pecado por
orgulho, no sentido cristão do termo? Sem dúvida, mas não é somente isso. A hybris,
sob muitos aspectos, vai bem mais longe. Não se limita a um defeito subjetivo, uma
esquisitice pessoal afetando determinada pessoa, tornando-a má. Possui, muito além do
simples pecado de orgulho ou de concupiscência, com que o cristianismo nos assusta,
essa dimensão cósmica que acabo de evocar; ela ameaça revirar a bela e justa ordem
do mundo, tão penosamente construída por Zeus em sua guerra contra as forças do
caos. E é do que se trata, antes de mais nada, quando os deuses punem a hybris. Muito
simplesmente, eles procuram preservar a harmonia do universo contra a loucura dos
homens. De alguns deles, em todo caso. Por essa razão, a mitologia grega é cheia de
histórias que contam terríveis castigos de que foram vítimas os mortais que tiveram a
audácia de desafiar os preceitos de sabedoria ensinados pelos deuses. Não se trata
apenas de obediência, como no discurso clerical usual,(É claro que
nas grandes religiões também há uma preocupação com o mundo,
mas o pecado quase sempre aparece como um erro “pessoal”)
mas de respeito e de preocupação com o mundo.
(Luc Ferry - A Sabedoria dos Mitos Gregos)
 
ORIGEM DA PALAVRA QUIMERA
A palavra vem do grego khímaira, cabra de pouca idade, habitualmente imolada antes de algum combate. Na Mitologia, um monstro com cabeça de leão, corpo de cabra, e cauda de dragão, que lançava fogo pelas narinas, mencionado no canto V I, versos 181 e 182 da Ilíada de Homero. Era também nome de montanha da Lícia, na Grécia, onde supostamente se localizava a horrenda criatura. Segundo Lucrécio, "a quimera na frente era um leão; no meio, uma cabra e atrás uma cobra, porque o homem, na juventude, é selvagem como o leão; no meio da vida tem a agudeza de vista como a cabra; e, no fim, enrosca-se como uma cobra". Por extensão, quimeraé produto da imaginação, sem fundamento real. É fantasia, sonho, esperança ou projeto absurdo, geralmente irrealizável, utopia. Em nossos dias, o sentido continua o mesmo: a busca de um ideal, motivação que impulsiona o ser humano em sua trajetória existencial. Só que, às vezes, em vez da realização do sonho vem a frustração: que, afinal, faz parte da vida. Ao frustrado só resta sair para outra enquanto se lamenta, para seus botões: "Vã quimera, douda ilusão"...
 
 
Esta lenda grega trata de um dos grandes mistérios da família: de onde vêm nossos dons e talentos? A história fala-nos de um dom que é transmitido de um deus para seus descendentes humanos. Isso implica que nossos talentos não são “nossos”, mas uma propriedade dos deuses, manifestada através de seres humanos que são guardiães e veículos do poder criativo divino. Sugere também que a má utilização dos dons herdados pode resultar em desgraça, e que cabe a nós usar nossos talentos para servir à vida, e não para controlá-la.
CAMUS – O MITO DE SÍSIFO
 
O senhor dos ventos chamava-se Éolo. Era inteligente e engenhoso e foi o inventor das velas dos navios. Era também respeitador e justo, e honrava os deuses; por isso, seu pai divino, Poseidon, deus do mar, tornou-o guardião de todos os ventos. Sísifo, filho de Éolo, herdou deste a inteligência, a adaptabilidade e a habilidade, mas não, infelizmente, sua piedade. Sísifo era um vigarista astucioso, ladrão de gado, que conseguiu um reino através de traição e que, ao chegar ao poder, revelou-se um tirano cruel. Executava os inimigos — para não falar dos viajantes ricos que se atreviam a aceitar sua hospitalidade — prendendo-os ao chão com estacas e esmagando-os com pedras.
No fim, Sísifo foi longe demais e traiu Zeus, o rei do Olimpo. Quando Zeus roubou uma jovem do pai e a escondeu, Sísifo era a única pessoa no mundo que sabia onde ela estava, e prometeu a Zeus guardar segredo. Mas, em troca de uma propina, contou ao pai da moça onde encontrar os amantes. A punição que Zeus lhe deu foi a morte. Mas o astucioso Sísifo enganou Hades, o deus da morte, acorrentou-o e o trancafiou num calabouço. Com o senhor do mundo subterrâneo transformado em prisioneiro, nenhum mortal da terra podia morrer. Isso era particularmente irritante para Ares, o deus da guerra, pois no mundo inteiro os homens eram mortos em batalhas, voltavam à vida e recomeçavam a lutar. Ares acabou libertando Hades e os dois arrastaram Sísifo para o Tártaro.
Recusando-se a aceitar a derrota, Sísifo fez mais uma trapaça habilidosa para escapar de seu destino. Ao chegar ao mundo subterrâneo, dirigiu-se diretamente à rainha Perséfone e se queixou de ter sido arrastado vivo e insepulto para lá, dizendo necessitar de três dias na terra para providenciar seu funeral. Sem suspeitar de nada, Perséfone concordou, e Sísifo retornou ao mundo dos mortais e continuou a viver exatamente como antes.
Desesperado, Zeus mandou Hermes, que era mais astuto até do que Sísifo, levá-lo à condenação que lhe fora reservada. Os juízes dos mortos deram a Sísifo um castigo adequado a sua vigarice e a seu método cruel de matar as pessoas: puseram acima dele uma pedra imensa, sobre uma escarpa íngreme. A única maneira de Sísifo impedir que a pedra rolasse e o esmagasse era empurrá-la morro acima. Hades prometeu-lhe que, se um dia ele conseguisse empurrar a pedra até o topo e fazê-la cair do outro lado, seu castigo terminaria. Com imenso esforço, Sísifo empurrava o pedregulho até a beira da escarpa, mas a enorme pedra sempre o tapeava, escapulindo-lhe das mãos e perseguindo-o até o ponto de partida, no sopé do morro. Essa foi sua pena até o fim dos tempos.
Sísifo deixara filhos e netos na terra, e todos haviam herdado a inteligência brilhante de Éolo, rei dos ventos. Mas não usaram esse dom com sabedoria. O filho de Sísifo chamava-se Glauco. Era um hábil cavaleiro, mas, desdenhando o poder da deusa Afrodite, recusava-se a permitir que suas éguas cruzassem. Com isso, esperava torná-las mais impetuosas que as concorrentes nas corridas, o assunto que mais lhe interessava. Mas Afrodite irritou-se com essa violação da natureza pela maquinação humana e, à noite, levou as éguas a pastar uma erva especial. No dia seguinte, assim que Glauco as atrelou a seu carro, as éguas empinaram, derrubaram o carro, arrastaram Glauco pelo chão, emaranhado nas rédeas, e depois o comeram vivo.
Pégaso, por Jan Boeckhorst (1675-1680), Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro.
 
O filho de Glauco chamava-se Belerofonte. Esse belo rapaz herdara a inventividade e a rapidez de raciocínio de seu bisavô, Éolo, o temperamento feroz do avô, Sísifo, e a arrogância de Glauco, seu pai. Um dia, Belerofonte teve uma violenta discussão com o irmão e o matou. Horrorizado com seu crime, jurou nunca mais demonstrar emoção e fugiu de sua terra natal. Vagou por muitos países e acabou chegando à fortaleza de Trezena, onde a rainha encantou-se com ele e lhe sugeriu que se tornasse seu amante. Sabiamente temeroso das consequências emocionais, Belerofonte recusou. Mas até então ninguém havia rejeitado a rainha de Trezena. Humilhada e enfurecida, ela procurou secretamente o marido e acusou Belerofonte de ter tentado violentá-la. O rei hesitou em punir Belerofonte e se arriscar à vingança das Fúrias por assassinar diretamente um suplicante de sua hospitalidade. Assim, enviou o rapaz à corte de seu sogro, o rei da Lícia, levando uma carta lacrada que dizia: “Peço-te que elimines deste mundo o portador; ele tentou violentar minha mulher, tua filha.”
O rei da Lícia deu então ao jovem herói uma série de missões mortais. Como primeira tarefa, Belerofonte teria que matar a Quimera, um monstro que soltava fogo pela boca e vivia numa montanha próxima, aterrorizando a população e secando a terra. O herói era sagaz o bastante para saber que precisava de ajuda rápida. Consultou um vidente, que lhe deu um arco, uma aljava cheia de flechas e uma lança em cuja extremidade havia um grande bloco de chumbo, em vez de uma ponta. Em seguida, Belerofonte foi instruído a ir a uma fonte mágica onde encontraria Pégaso, o cavalo alado, bebendo água. Deveria domá-lo, pôr-lhe arreios e voar em seu lombo para combater a Quimera.
Belerofonte tudo isso fez, destruindo o monstro cuspidor de fogo ao atirar a lança de ponta de chumbo em sua garganta, de modo que o chumbo derreteu, escorreu-lhe para os pulmões e o sufocou. Voltando à Lícia, o herói derrotou os inimigos que o rei enviara contra ele, apedrejando-os do céu. No fim, o rei o reconheceu como herói e lhe entregou sua filha em casamento, além de metade de seu reino.
Até esse momento, Belerofonte havia usado a inteligência que herdara, refreando sua arrogância e impulsividade. Mas, ao descobrir que fora a rainha de Trezena a responsável por todos os seus problemas, a ira apoderou-se dele. Belerofonte voou no cavalo alado até Trezena, pegou a rainha e, a milhares de metros de altura, lançou-a para a morte. Em seguida, impetuoso e empolgado por voar como o vento — afinal, Éolo, seu bisavô, era senhor dos ventos —, resolveu subir ainda mais alto e visitar os próprios deuses. Mas os mortais só podem entrar no Olimpo se convidados por um deus. Zeus mandou uma vespa picar Pégaso; o cavalo alado empinou e Belerofonte mergulhou para a morte.
 
Belerofonte montado Pégaso e matando a Quimera. Medalhão central restaurado de um mosaico romano de mais de 100m² descoberto em 1830 em Autun, França
COMENTÁRIO: Sempre se discutiu se a inteligência é algo que herdamos. Todo tipo de causas, desde o ambiente até a educação e as ênfases culturais, é fornecido para explicar por que ela parece ser um traço familiar. Entretanto, seja a inteligência hereditária ou não, a maturidade e a moral que nos permitem usá-la com sensatez não são genéticas e estão nas mãos de cada indivíduo — e dos pais que ensinam seus filhos a valorizar o que é favorável à vida.
Os gregos acreditavam na hereditariedade dos dons; presumiam que, quando um deus ou um semideus, como Éolo, estava na raiz de uma linhagem humana, seus descendentes herdavam alguns de seus atributos, talvez diluídos nas sucessivas gerações, mas presentes em cada membro da família. A inteligência, na mitologia grega, é um talento como a música, a bravura na guerra ou o dom da profecia. E, quando os mortais que herdam esses talentos são tolos a ponto de esquecer seus limites mortais e ofender os deuses, eles, e somente eles — e não os deuses —, são responsáveis por seu triste fim.
Éolo, parte deus e parte espírito dos ventos, é respeitador e é honrado por essa característica. Mas seu filho Sísifo não tem consciência nem humildade, e é submetido a um terrível castigo eterno. Como dar a nossos filhos uma estrutura de valores com que eles possam desenvolver seus talentos, sem sucumbir à arrogância e a delírios de grandeza? Uma estrutura rígida demais sufoca o talento; a falta de estrutura leva ao não desenvolvimento dos potenciais ou ao abuso dos dons inatos. Um aspecto significativo da história dos descendentes de Éolo é que o pai não fica por perto para ajudar a proporcionar essa estrutura a seus filhos. O dom é herdado, mas não há um continente amoroso e incentivador no qual ele possa crescer, paralelamente ao reconhecimento dos limites humanos. Éolo está ocupado demais dirigindo os ventos para se incomodar com Sísifo; Sísifo está ocupado demais tapeando os viajantes para se incomodar com Glauco; Glauco está preocupado demais com as corridas de carros para se incomodar com Belerofonte; e Belerofonte, o mais interessante dessa linhagem e o que mais se parece com seu ancestral Éolo, acaba não conseguindo conter-se, porque ninguém lhe ensinou a fazê-lo. Num momento de ira, assassina o irmão, e só então reconhece sua grande fraqueza. Mas, a essa altura, já é adulto, e o comedimento é difícil. Ele sabe o que tem de fazer. No entanto, quando chega a hora H, consegue resistir às artimanhas de uma mulher, mas não à luxúria de seu engrandecimento pessoal.
Esta história de uma família inteligente mas arrogante diz-nos muitas coisas sobre escolha e responsabilidade. Os heróis mitológicos, sejam homens ou mulheres, são símbolos das qualidades especiais de cada um de nós que nos conferem um sentimento de propósito e destino pessoais. Visto que toda pessoa tem algum dom que a torna única, todos somos “descendentes dos deuses”, no sentido grego. E todos temos a capacidade de usar nossos dons para o bem ou para o mal. Pode ser que nossos talentos sejam produto de um ambiente estimulante, ou pode ser que sejam herdados juntamente com a cor dos olhos ou dos cabelos. Ou talvez as duas coisas sejam verdadeiras. Esta história nos ensina que a inteligência, sem o respeito pelo valor e a dignidade alheios, pode ser uma dádiva duvidosa, que acaba tendo repercussões negativas para aquele que a possui. Como saber o que os gregos entendiam por respeito aos deuses? Isso não requer nenhum contexto religioso específico, embora todas as grandes religiões ofereçam um código de comportamento de acordo com a “vontade de Deus”. Mas o respeito, no sentido grego, exige o reconhecimento da unicidade da vida e do valor de todos os seres viventes. Os deuses, afinal, são símbolos das muitas facetas da própria vida. Podemos aprender com Belerofonte que, por mais capazes que sejamos, não temos como aspirar ao Olimpo. Só podemos ser humanos, e devemos usar nossos dons com humildade.

(Liz Greene & Juliet Sharman-Burke - Uma Viagem através dos Mitos)

publicado às 04:14

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Só tem medo da morte aquele que não sabe viver intensamente.
Só tem medo da vida aquele que não conhece a si mesmo.
Conhecer, viver, temer morrer.
Quem conseguir ...
Estará cara a cara com o AMOR.

Claudia Castro .
 
 
Gaia, a terra mãe, e seu Urano (Οὐρανός), o céu infinito, vão constituir a primeira geração de deuses do Olimpo (Όλυμπος)
Urano, o céu, não se encontra ainda “no alto”, no firmamento, semelhante a um gigantesco teto. Está, pelo contrário, agarrado a Gaia como uma segunda pele. Ele a toca, acaricia em todos os pontos e sem parar. Ele é, se assim podemos dizer, dos mais colantes ou, para ser ainda mais explícito: Urano não para de fazer amor com Gaia, de se deitar com ela. É a sua única atividade. Ele é “monomaníaco”, obcecado por uma única e exclusiva paixão, a paixão erótica: ele não para de cobrir Gaia, de beijá-la, de se fundir nela e, consequência inevitável, de lhe fazer um monte de filhos! E é com estes que as coisas realmente sérias vão começar.
Pois os filhos de Urano e Gaia vão de fato ser os primeiros “deuses de verdade”, os primeiros deuses que deixam de ser personagens mais ou menos abstratos, entidades, e se tornam verdadeiras “personalidades”. Como acabo de dizer, vamos assistir a uma humanização do divino, à aparição de novos deuses que, finalmente, têm a aparência de autênticas pessoas, bem individualizadas e com características psicológicas. As paixões são menos brutais, mais elaboradas, apesar de, como veremos, se manterem às vezes contraditórias ou até mesmo devastadoras: uma vez mais, os deuses gregos, diferentes, por exemplo, do deus dos cristãos, dos muçulmanos e dos judeus, estão longe, muito longe, de serem sempre perfeitamente sábios e ajuizados. Pois é com essas crianças que poderemos colocar em toda sua amplidão a questão diretriz da narrativa das origens: a questão da formação da ordem a partir da desordem, do nascimento do cosmos a partir do caos inicial. E vai ser preciso ter personalidade, em todas as acepções do termo, coragem e múltiplas qualidades para harmonizar esse primeiro universo que não para de se tornar mais complexo; isso não vai poder ser feito cegamente, pelo simples jogo das forças naturais, como a gravidade de Newton: essa ordem é tão bela e complexa que forçosamente depende de gente inteligente. Daí surge a progressão que irá nascendo do sucessivo nascimento dos deuses, como vou contar.
Gaia e Eros, de  Anselm Feuerbach
Quem são exatamente os primeiros descendentes de Urano e de Gaia, do Céu e da Terra? E quais serão as suas aventuras até a plena e inteira emergência da ordem cósmica finalmente equilibrada?
São, de início, aqueles que o próprio pai, Urano, denomina “Titãs”: seis meninos e seis meninas — também chamadas “Titanas” ou “Titânidas”, para distingui-las dos irmãos. Esses Titãs têm três características em comum. Primeiro são, como todos os deuses, perfeitamente imortais; impossível, então, esperar matá-los se porventura entrarmos em guerra contra eles! Em seguida, contam com uma força colossal, inesgotável, totalmente sobre-humana, e da qual sequer podemos ter uma ideia. Por isso, aliás, fala-se ainda hoje, em nosso linguajar corrente, de força “titânica”. Pela mesma razão deu-se o nome “titânio” a um metal particularmente sólido e resistente. Melhor não provocar deuses assim. Por último, todos têm uma beleza perfeita.
Consequentemente são seres ao mesmo tempo assustadores e fascinantes, facilmente violentos, pois conservam traços da sua origem: nasceram das profundezas da terra e vieram dos confins do Tártaro, aquele lugar infernal, ainda bem próximo do caos original, do qual Gaia talvez também tenha vindo — Hesíodo nos diz que ela veio “pós-Caos”, sem confirmar que tenha saído dele, mas é uma hipótese plausível. Em todo caso, fica claro que os Titãs são forças do caos, mais do que do cosmos, seres mais da desordem e da destruição do que da ordem e da harmonia.(Cito os seus nomes — mas saiba desde já que é principalmente o do caçula, Cronos, que se deve guardar, pois vai ter um dos principais papéis na história que vem a seguir. Temos então por ordem de nascimento: Oceano, o riooceano que a mitologia descreve dando a volta completa na Terra, depois Ceo, Crio, Hipériom, Jápeto e, volto a insistir, Cronos “de curvo pensar”, como sempre diz Hesíodo, logo veremos por quê. Do lado das moças, houve Teia — o que em grego quer dizer “a divina” —, Reia, Têmis (a justiça), Mnemósine (a memória), Febe (a luminosa) e Tétis, que inspira amor) Além desses seis formidáveis Titãs e seis sublimes Titânidas, Urano engendrou com Gaia três seres monstruosos “em tudo semelhantes a deuses”, disse Hesíodo, com a única diferença de terem apenas um olho, plantado no meio da testa! São “Ciclopes”, que também terão um papel decisivo na história da construção do cosmos, do mundo ordenado e harmonioso. Como os irmãos Titãs, eles têm uma força extraordinária e são violentos ao extremo. Seus nomes, em grego, o indicam bastante bem, pois todos evocam o temporal e a tempestade: há primeiramente Brontes, que significa “aquele que trovoa”, como o trovão. Em seguida, Estéropes, o relâmpago, e Arges, o raio. São eles que vão dar ao futuro rei de todos os deuses, Zeus, suas armas mais temíveis: o trovão, o relâmpago e o raio, justamente, que Zeus vai poder usar contra os adversários para cegá-los e abatê-los.
Dos amores do céu e da terra nasceram ainda três outros seres absolutamente aterrorizantes, mais assustadores, se isso for possível, do que os 12 Titãs e os três primeiros Ciclopes: têm, cada um deles, cinquenta cabeças, e dos ombros monstruosos saem cem braços, possuindo um vigor inimaginável. São chamados, por esse motivo, “Hecatonquiros”, o que, em grego, quer dizer simplesmente “cem-braços”. Eram tão impressionantes que Hesíodo observava ser melhor não lhes pronunciar os nomes — mas mesmo assim os fornece — para não se correr o risco de chamar a atenção. O primeiro se chama Coto, o segundo Briareu e o terceiro Giges. Também terão, junto com os Ciclopes, um importante papel na edificação da futura ordem cósmica.

A guerra dos deuses: o conflito entre os primeiros deuses, os Titãs, e seus filhos, os olímpicos 
A ordem futura, pois, como disse, ainda estamos longe do cosmos acabado e harmonioso que Gaia certamente desejava, se podemos assim deduzir — a julgar por sua solidez, em contraste com o abismo escancarado de Caos. Na verdade, como já dei a entender, é a guerra, e inclusive uma guerra terrível, que se esboça no horizonte. As forças primitivas, próximas do caos inicial, da desordem, vão de fato se desencadear, e para se construir um mundo viável e ordenado vai ser preciso dominá-las, amordaçálas e civilizá-las tanto quanto possível. Como vai nascer esse gigantesco conflito? Como terminou? É este o tema dessa narrativa fundadora da mitologia grega que é a cosmogonia/teogonia de Hesíodo, pois no decorrer da história vamos finalmente passar da desordem e da violência primitivas para a ordem cósmica bem-regulada em que os homens vão poder viver e buscar, de um jeito ou de outro, sua salvação.
Veja a seguir como tudo começa.
Urano detesta os seus filhos: os 12 Titãs, assim como os Ciclopes e os Cem-Braços. É um verdadeiro ódio. Por quê? Sem dúvida por temer que um deles lhe tome o lugar e roube não somente o poder supremo, mas também aquela que é, ao mesmo tempo, sua mãe e amante, ou seja, Gaia. Por esse motivo Urano cobre de tal forma Gaia, impedindo que os filhos possam sair e virem à luz. Não lhes deixa o menor espaço, o menor interstício pelo qual poderiam sair do ventre materno. Relega-os às profundezas da terra, justamente à região caótica do Tártaro, e é o que os filhos não lhe perdoam. Nem Gaia, que, grávida de toda essa descendência, não aguenta mais ter em si tantos filhos e filhas comprimidos! Ela então os encoraja a se revoltarem contra o terrível pai que impede a emancipação, pois dessa forma podem ganhar a liberdade e crescer. E inclusive, tanto no sentido próprio como no figurado, viriam à luz. Cronos, o caçula, ouve o pedido da mãe, que propõe um terrível estratagema contra Urano, seu próprio pai. Com o metal em fusão que se encontra em suas entranhas, no mais profundo subsolo, Gaia fabrica um podão (outras narrativas dizem que é em sílex, mas me mantenho fiel a Hesíodo, que cita um metal cinza, quer dizer, provavelmente o ferro). O instrumento é bem-afiado e, insiste Hesíodo, “com serra”. Gaia o entrega a Cronos, a quem ela simplesmente incita a cortar fora o sexo do pai!
Cronos assume o poder e torna-se um tirano igual ao pai
A narrativa da castração de Urano é precisa. Chega aos detalhes, pois estes últimos têm consequências “cósmicas”, isto é, efeitos decisivos para a construção do mundo. Empunhando a foice de ferro, Cronos espera o pai, se posso assim dizer, na esquina. Este, como de hábito, envolve Gaia e a penetra. Cronos aproveita para pegar, com a mão esquerda (uma lenda mais tardia afirma que foi a partir desse momento que ela se tornou “sinistra” e ficou marcada pelo selo da infâmia!), o sexo do pai e o decepa com um golpe seco. Ainda com a mão esquerda, ele lança por cima do ombro o infeliz órgão ainda todo ensanguentado. O detalhe não é supérfluo, nem o estou repetindo apenas para tornar mais picante a história com essa precisão sádica, porque, a partir desse sangue de Urano que se espalha pela terra e pelos mares, vão nascer ainda algumas terríveis e sublimes divindades.
Aliás, falo logo disso pois é algo que em seguida virá em vários relatos mitológicos. As três primeiras criaturas a nascerem do sexo cortado de Urano são divindades do ódio, da vingança e da discórdia (eris, em grego) — pois trazem em si a marca da violência da sua origem. A última, em contrapartida, não pertence ao domínio de Eris, mas ao de Eros, o amor: trata-se da deusa da beleza e da paixão amorosa, Afrodite. Vejamos tudo isso mais de perto.
Do sexo amputado do infeliz Urano e do sangue que se espalhou pela superfície da terra, Gaia, nasceram inicialmente deusas aterradoras, que os gregos denominaram “Erínias”.(Hesíodo não nos diz quantas são nem cita nomes. Será preciso esperar seis séculos para saber um pouco mais, graças ao grande poeta latino Virgílio, que viveu no século I a.C. — dou tal precisão para que você tenha uma ideia do tempo que foi necessário para a constituição dessas famosas narrativas mitológicas. Não nasceram de uma só vez, nem vieram de um único autor, mas foram incessantemente completadas por poetas e filósofos, no decorrer dos séculos!) Segundo o poeta Virgílio, elas eram três e se chamavam Aleto, Tisífone e... Megera! Isso mesmo, é daí que vem a famigerada megera de quem às vezes falamos em nossa linguagem corrente, nos referindo a alguma mulher particularmente desagradável. Pois, verdade seja dita, as Erínias podiam ser tudo, exceto amáveis; eram, como disse, divindades da vingança e do ódio que perseguiam os culpados de crimes cometidos no coração das famílias e lhes aplicavam tormentos e torturas abomináveis. Foram, por assim dizer, configuradas com essa finalidade desde o nascimento, pois seu principal destino era o de vingar o pai, Urano, no crime cometido pelo filho mais moço, o Titã Cronos. Mas indo além desse caso pessoal, elas acabaram tendo um papel bem importante em inúmeras narrativas míticas, em que detinham a função de terríveis vingadoras de todos os crimes familiares e até mesmo, mais amplamente, de crimes cometidos contra a hospitalidade, quer dizer, contra pessoas que deviam ser tratadas, mesmo sendo de fora, como membros da família. Foram elas, por exemplo, que fizeram ser devorado pela terra o pobre Édipo, que, sem saber nem querer, havia matado o próprio pai e desposado a própria mãe. Saiba que elas às vezes também são chamadas “Eumênidas”, isto é, “Benevolentes” — não no poema de Hesíodo, mas, por exemplo, nas tragédias de outro grande poeta grego nascido um pouco depois, no século VI a.C., Ésquilo. De fato, esse nome bem afável era para, mais ou menos, tentar agradá-las. Empregava-se para evitar a sua ira. Em latim, elas passaram a ser chamadas “Fúrias”. Hesíodo não nos deu detalhes, mas outros poetas que vieram em seguida as descreveram como mulheres de aspecto atroz: arrastavam-se no chão mostrando garras apavorantes, tinham asas que lhes permitiam agarrar as vítimas a toda velocidade, cabelos cheios de serpentes, chicotes na mão e a boca da qual escorria sangue. Sendo uma encarnação do destino, ou seja, das leis da ordem cósmica às quais todos os seres estão submetidos, os próprios deuses ficavam mais ou menos obrigados a aceitar suas decisões, de forma que todo mundo sempre as detestou e temeu.
Depois disso, ainda do sangue de Urano misturado à terra, Gaia, nasceu toda uma plêiade de ninfas chamadas Melianas ou Melíades, o que em grego quer dizer jovens nascidas em freixos. São também divindades guerreiras e temíveis, pois é justamente com a madeira dessas árvores, nas quais elas mantêm o seu reino, que se fabricam as armas mais eficazes, principalmente os arcos e as lanças usados na guerra.
Além das Erínias e das Melíades, o sangue de Urano caído sobre Gaia deu origem a outros seres assustadores, os Gigantes, que já saíram da terra armados e encouraçados. Dedicam-se inteiramente à violência e à carnificina. Nada os amedronta e nada lhes convém melhor do que as guerras e os massacres. É onde se sentem à vontade, no que sabem fazer. Hesíodo não nos falou mais do que isso sobre eles, mas, outra vez, variantes tardias da mesma narrativa falam de uma revolta dos Gigantes contra os deuses, revolta que inclusive deu vez a uma terrível guerra — chamada “gigantomaquia”, o que, em grego, quer dizer “combate de gigantes”. É claro, os deuses saíram vencedores do combate, mas precisaram da ajuda de Héracles.(A história foi contada sobretudo por um certo Apolodoro, um escritor — um mitógrafo — do século II d.C.) Logo voltaremos a falar disso.
Como você pode ver, todos os personagens até agora nascidos do sangue de Urano misturado à terra são seres assustadores, ligados à vingança, ao ódio ou à guerra. É nesse sentido que as Erínias, as ninfas Melíades e os Gigantes vão pura e simplesmente se remeter à zona de influência dessa divindade chamada Eris, personificação da discórdia, de tudo que tem a ver com o conflito funesto. Eris, aliás, é uma entidade tenebrosa, obscura, uma das filhas que a Noite, Nyx, engendrou sozinha, do mesmo jeito que Gaia, sem precisar de marido nem de amante.
Nascimento de Afrodite e nascimento dos sentidos
Mas dos órgãos sexuais do Céu surgiu também uma outra deusa, que não pertence mais a Eris, mas sim, pelo contrário, a Eros, não mais à discórdia e ao conflito, mas ao amor (a proximidade das duas palavras, em grego, parece indicar também uma proximidade nos fatos: muito facilmente se passa do amor ao ódio, de Eros a Eris): trata-se de Afrodite, a deusa da beleza e, justamente, do amor. Você se lembra que o sangue do sexo de Urano caiu na terra, mas o sexo, propriamente, Cronos jogou longe, por cima do ombro, e ele foi se perder no mar. E boiou! Flutuou na água, no meio da espuma branca — espuma que, em grego, se diz afros, a qual, misturando-se à outra espuma que saía do sexo de Urano, gerou uma sublimíssima jovem: Afrodite, a mais bela de todas as divindades. É a deusa da doçura, do carinho, dos sorrisos trocados pelos apaixonados, mas também a da sexualidade brutal e da duplicidade do que se diz quando se quer seduzir o outro, querendo agradar, palavras que no mínimo não são sempre fiéis à verdade, pois, para agradar, muitas vezes nos dispomos a usar mentiras e ardis, tanto para dar uma melhor impressão de nós mesmos como para adular a pessoa que queremos impressionar. Afrodite é tudo isso: a sedução e a mentira, o charme e a vaidade, o amor e o ciúme que dele nasce, a ternura, mas também as crises de raiva e de ódio geradas pelas paixões contrariadas. No que, mais uma vez, Eros nunca está muito longe de Eris, o amor sempre na vizinhança da disputa. Se dermos ouvido a Hesíodo, quando ela sai das águas, em Chipre, está sempre acompanhada por duas outras divindades menores que lhe servem, de certa maneira, de “acompanhantes”, companheiros e confidentes: Eros, justamente, mas dessa vez se trata de Eros número 2, o pequeno personagem de que falei ainda há pouco e que frequentemente será representado, mas bem posteriormente a Hesíodo, como um menino bochechudo, armado com um arco e flechas. E, ao lado de Eros, há Imeros, o desejo, que sempre abre caminho para o amor propriamente dito...
No plano cosmológico, isto é, com respeito à construção do nosso cosmos, do mundo em que vamos viver, a castração de Urano tem uma consequência absolutamente crucial, sobre a qual devo dizer uma palavrinha antes de entrarmos, enfim, no famoso episódio da guerra entre os deuses. Trata-se, simplesmente, do nascimento do espaço e do tempo.
Do espaço, antes de tudo, porque o pobre Urano, sob o efeito da dor atroz causada pela mutilação, vai se esconder “lá em cima”, de forma que, no final desse recolhimento, ele se encontra meio que colado no teto e liberando, com isso, o espaço que separa o céu da terra. E do tempo, por uma razão infinitamente mais profunda, que vem a ser uma das chaves de toda a mitologia: são as crianças — os Titãs, no caso — que graças ao espaço aberto vão poder, enfim, sair de dentro da terra. Isso quer dizer que é o futuro, até então obstruído pela pressão de Urano sobre Gaia, que se abre. As novas gerações começam, a partir daí, a habitar o presente, e as crianças a simbolizar, ao mesmo tempo, a vida e a história. Mas tanto a vida quanto a história, que, pela primeira vez, se encarnam nesses Titãs que conseguem enfim deixar a sombra e a terra, igualmente geram o movimento, o desequilíbrio e, por isso mesmo, a incessante possibilidade que se abre da desordem. Com as novas gerações, o que entra em cena é mais a dinâmica do que a estabilidade, o caótico do que o cósmico. Uma coisa, pelo menos, passa de qualquer forma a estar bastante clara: os pais precisam colocar as barbas de molho com relação aos filhos! E Cronos mais do que qualquer outro: foi quem mutilou o pai, Urano, e, consequentemente, o primeiro a entender o quanto os filhos podem ameaçar a ordem, o poder estabelecido e que se acha estar sob controle. Ou, dito de outra forma, é preciso desconfiar do tempo, fator de vida, é claro, mas também a dimensão por excelência de todas as desordens, de todas as complicações e desequilíbrios que virão. Cronos toma consciência desse fato indiscutível: a história é cheia de perigos, e para quem quiser manter o que adquiriu, garantir seu poder, mais vale aboli-la, para que nada mude.
Não sei se você se dá conta da profundidade do problema existencial que começa a se esboçar, embutido nessa primeira narrativa mitológica. Significa que toda a existência, inclusive a dos deuses imortais, vai se ver num dilema quase insolúvel. De fato, pode-se bloquear tudo, como Urano bloqueia os filhos na barriga de sua mulher/mãe, para evitar que as coisas mudem, correndo o risco de se degradarem. Nesse caso, porém, é a total imobilidade e o tédio que acabam levando a melhor, em vez da vida. Ou, para evitar isso, aceita-se o movimento, a história e o tempo, mas os perigos mais temíveis passam a ameaçar. Como, então, encontrar o perfeito equilíbrio? No fundo, é essa a grande questão da mitologia e, com isso, a grande questão da existência em geral! Como você pode ver, as respostas que nossas histórias vão dar ainda interessam, para dizer o mínimo, às pessoas de hoje.

(Luc Ferry - A Sabedoria dos Mitos Grergos)

publicado às 01:01

Deméter/Ceres, deusa das estações e das colheitas, faz crescerem as flores, as
plantas e, evidentemente, os “cereais”. Ela vai ter uma filha, Perséfone, literalmente
adorada e que será raptada por Hades para depois se tornar sua esposa. Na verdade,
Hades e Deméter vão repartir entre si Perséfone: eles a terão cada um por seis meses
no ano. Por esse motivo, no inverno e no outono nada brota: Perséfone está com Hades;
sua mãe, cheia de tristeza, deixa de lado seu trabalho. Quando a filha retorna, na
primavera, volta também o sol e tudo revive!
(Luc Ferry)
 
Hades/Plutão reina nos infernos com a mulher, Perséfone, filha de Deméter.
Todo mundo, mesmo no Olimpo, mais ou menos o teme. Dizem que é o mais rico
(plutos) de todos os deuses, pois reina sobre a população mais numerosa: a dos
mortos
(Luc Ferry)
 
No seu quarto casamento, Zeus desposa, como no segundo, uma Deusa de natureza terrestre: a multinutriz Deméter, sua própria irmã. Se Thémis explicita a Terra sob o aspecto do inabalável e da firmeza incontestável, Deméter a explicita enquanto forças ctônicas fecundas e produtoras de alimento. Assim, a filha de Deméter, Perséfone, se associa a Hades, já que os mortos e a fecundidade subsolar pertencem ao mesmo reino. Os dons de Deméter, nutrientes da vida, provêm da escura Terra aonde descem os mortos e onde eles conservam e fazem circular e aflorar suas forças úberes. Por isso o Sapiente Zeus dá ao Hades a filha que tem com Deméter
(Hesíodo - Teogonia, a origem dos deuses) 
 
O mito da ausência de Perséfone e seu
retorno aos braços da mãe representa o grão
que fica escondido no solo por um tempo e
depois germina. Plutos é o resultado das colheitas,
a fartura. Zeus cegou a Plutos desde
seu nascimento para que não fizesse distinção
se estava dando riquezas a bons ou maus.
(Sadat Oliveira - Introdução à Mitologia Grega, Vol.II os deuses olímpicos)
 
Perséfone é uma imagem das dimensões misteriosas
e ocultas da vida e simboliza, entre outras coisas, os ciclos da natureza e do
tempo que são vedados à consciência racional. Ela não representa o julgamento
da sociedade; reflete uma lei mais profunda da natureza, que lida
com consequências psicológicas. Podemos entender que ela simboliza as
leis pelas quais o próprio psiquismo inconsciente funciona.
(Liz Greene & Juliet Sharman-Burke - Uma Viagem através dos Mitos,
O significado dos mitos como um guia para a vida)
 
 
Apesar de nos levar de volta aos infernos, a história de Deméter e de sua filha, Perséfone, é bem diferente da de Orfeu.(Ela é essencialmente contada nos Hinos Homéricos, uma antologia de poemas por muito tempo atribuídos ao próprio Homero, mas hoje em dia ignoramos, como eu já disse, quem são seus verdadeiros autores. Em todo caso, é basicamente o texto que sigo, pois não apenas é sem dúvida um dos mais antigos, como também o mais rico e interessante.) De fato, seus protagonistas são deuses imortais e não simples mortais tentando desesperadamente escapar da morte. Isso significa que suas relações com os infernos não são as mesmas. Mesmo assim, o mito também não deixa de estabelecer, mesmo que de modo diferente, um laço entre o reino de Hades e a ordem do mundo. É com ele, principalmente, que os gregos vão explicar um elemento fundamental da organização do cosmos, o nascimento das estações do ano: o final do outono e o inverno, quando tudo morre, e depois a chegada da primavera e o verão, quando tudo volta a viver e refloresce. E essa alternância, como você logo verá, está diretamente ligada à descida aos infernos da filha de Deméter, de quem passo a contar a história.
Deméter, deusa da agricultura e da colheita
 
Deméter, por sua vez, é filha de Cronos e de Reia: consequentemente, é irmã de Zeus e também de Hades. Sendo a deusa das estações e das colheitas, ela, entre outras coisas, faz crescer o trigo, razão pela qual os romanos a chamam de Ceres, de onde vem a palavra cereal — com que os homens fabricam o pão e muitos outros alimentos. Além disso, foi também quem lhes ensinou a arte de cultivar a terra, a agricultura. É uma deusa muito poderosa, pois ela dá vida — pelo menos às plantas, aos legumes, às frutas, às flores e às árvores —, e pode ainda, se assim quiser, tomá-la de volta: fazer com que nada brote nos campos e nas hortas. Na medida em que a existência dos humanos mortais, ao contrário da dos deuses, depende da alimentação, Deméter tem uma imediata e particularmente forte ligação com a morte.
Muito bem, Deméter teve com seu irmão, Zeus, uma filha, a quem deu o nome Perséfone. Às vezes também é chamada Coré, que em grego significa “moça”, e os romanos lhe deram ainda um outro nome, Prosérpina. Na época, era comum que irmãos e irmãs, pelo menos entre os deuses, tivessem filhos juntos — aliás, no início, não havia outra possibilidade; como os Titãs, os olímpicos eram obrigados a se unir entre si, pois não havia ainda ninguém mais com quem formar casal. Deméter, então, tem uma filha divina, a quem ama de uma forma que nem se pode imaginar. Ela é simplesmente louca pela menina. Deve-se dizer que a pequena Perséfone, ao que dizem, é adorável. Tem, é claro, como todas as deusas, uma beleza perfeita, mas encarna a imagem por excelência da jovem, com viço, inocência, suavidade, ou seja, ela é uma graça.
Enquanto a mãe percorre o mundo controlando as colheitas e os grãos, Perséfone ingenuamente brinca nos prados, com graciosas ninfas. Colhe flores para fazer um bonito buquê. Mas Zeus tem na cabeça um projeto que ele a todo custo evitou que a irmã Deméter percebesse: pretende que a filha, Perséfone, se case com o mais rico de todos os imortais, Hades, o senhor do inferno. Ele também é chamado “Plutão”, que significa “rico” e é como os romanos vão chamá-lo: ele reina sobre os mortos — de longe a população mais numerosa, uma vez que a humanidade se compõe muito mais de mortos do que de vivos. Se medirmos a riqueza de um rei pelo número dos seus súditos, de fato, com certeza o senhor dos infernos é o soberano mais opulento do universo.
Para chegar ao que pretende, Zeus pediu a Gaia, sua avó, que fizesse brotar uma flor mágica, singular, particularmente admirável: de seu talo único, saem cem corolas deslumbrantes, e o perfume que soltam é tão delicioso que o céu inteiro sorri. Quem a vê, seja mortal ou Imortal, cai sob o seu encanto. Perséfone, é claro, se precipita para a flor miraculosa que, sozinha, já formaria o mais lindo buquê. No momento porém em que se prepara para apanhá-la, a terra se abre (o que confirma, de fato, a cumplicidade de Gaia) e o senhor dos mortos surge em seu carro de ouro — não esqueça que ele é realmente riquíssimo! — puxado por quatro cavalos imortais. Ele agarra Perséfone com braços poderosos e rapta a jovem. Ouve-se um grito dilacerante, um som estridente que ressoa por todo o cosmos, um lamento comovedor, animado pelo desespero de Perséfone diante da ideia de não mais ver a mãe. Pois ela, por sua vez, também a adora literalmente. Três pessoas no mundo não podiam deixar de ouvir o terrível estertor: Hécate, uma divindade cujos atributos são bastante misteriosos, mas que muitas vezes se revela caridosa com quem sofre, Hélio, o sol, que tudo vê e a quem nada escapa, e, é claro, a própria Deméter, tomada de horror ao ouvir a voz assustada da filha.
Por nove dias e nove noites, Deméter percorre a Terra inteira, de leste a oeste, do nascente ao poente, em busca da filha bem-amada. À noite, carrega braçadas de imensas tochas para iluminar. Durante nove dias e nove noites fica sem beber água e sem se alimentar, não se lava, não se troca: está paralisada pela aflição. Ninguém, seja mortal ou deus, quer lhe dizer a verdade e nem mesmo vem ajudar. Exceto, justamente, a caridosa Hécate, que a aconselha a procurar Hélio, o sol que tudo vê. Comovido, ele se dispõe a dizer a verdade: Perséfone foi pura e simplesmente raptada pelo tio, Hades, o príncipe das trevas. E claro, Deméter compreende imediatamente que a operação não pode ter sido executada sem o consentimento, ou até a cumplicidade do irmão, Zeus. Ela se recusa a permanecer na assembleia dos deuses e desce à terra dos homens. Perde voluntariamente sua beleza de deusa e assume, como nos contos de fada, a aparência de uma velha feia e pobre. Dirige-se assim à cidade de Elêusis, onde encontra, à beira de uma fonte em que tinham vindo buscar água, as quatro filhas do rei da cidade, um certo Celeu. Conversam e Deméter, que continua a esconder sua identidade, diz que procura trabalho, por exemplo, como ama. Isso vem a calhar pois, justamente, as quatro jovens têm um irmão pequeno: elas correm para perguntar à mãe, Metanira, se não quer empregar aquela velha senhora como babá. Acordo feito, e Deméter se encontra no palácio do rei Celeu. É apresentada a Metanira, a rainha, e a uma dama de companhia, Iambé, que, vendo a tristeza estampada no rosto de Deméter, tenta distraí-la. Faz algumas brincadeiras e conta histórias engraçadas. Consegue com isso desanuviar um pouco a deusa, que sorri e até mesmo ri! — o que não acontecia havia muito tempo. Ela recupera algum prazer pela vida, o bastante para cuidar da criança, como se espera.
Temos aqui um episódio bem interessante, pois também está ligado ao tema da morte que percorre todo esse mito. Novamente no papel de mãe, Deméter resolve tornar imortal o filhote de homem que acabam de lhe confiar, dando o mais belo presente com que um deus possa homenagear um ser humano. Ela o esfrega com o alimento divino, a ambrosia, que permite que se escape da finitude, de forma que o menino cresce e embeleza com incrível rapidez, para imensa surpresa dos pais, pois ele nada come. De fato, os Imortais se contentam com ambrosia e néctar, sem jamais precisar de pão nem carne, com que se alimentam os homens, e o garoto já é quase um deus. Toda noite, Deméter o mergulha no fogo divino que ela teve o cuidado de acender na lareira. Tais chamas também contribuem para que os mortais se assemelhem aos deuses. Ocorre que a mãe, Metanira, preocupando-se e querendo descobrir o que Deméter faz com seu filho durante a noite, se esconde atrás da porta para espionar. Ao ver a deusa mergulhar o menino no fogo, ela começa a gritar.
Para sua infelicidade! Deméter deixa a criança cair no chão, o que imediatamente a torna mortal. De modo simbólico, isso significa que a deusa mais uma vez perde o seu papel de mãe. Sua segunda maternidade, por assim dizer, fracassa, e ela volta à aparência divina. Recupera todo o esplendor e a beleza divina. Revela a Metanira e às suas filhas sua verdadeira identidade. Faz com que compreendam a dimensão do erro cometido pela mãe; sem sua intervenção intempestiva, o menino se incluiria entre os deuses imortais. Agora é tarde demais, azar o dele e o delas. Em seguida, ordena a construção, pelo povo de Elêusis, de um templo digno de sua divindade, para que lhe prestem culto e onde ela possa, quando bem entender, revelar os mistérios que possui (sobre a vida e a morte). É como nasce o famoso culto que envolve os chamados “mistérios de Elêusis”. Os adeptos dessa nova religião, ligada à lembrança de Deméter, esperam, ao desvendar os mistérios da vida e da morte, ganhar a salvação e, por que não?, ter acesso à imortalidade. E nisso, como se pode ver, o mito de Deméter se junta ao de Orfeu, que igualmente desemboca num culto (o orfismo), também ligado à esperança de elucidação dos segredos da vida eterna, graças ao ensinamento de quem atravessou os infernos.
Mas voltemos a Deméter. Perdendo uma criança pela segunda vez, ela fica mais dura, e isso para não dizer que se torna uma pessoa má. Passa a achar que essa brincadeira já está durando demais e quer sua filha de volta. Resolve, então, fazer o que for preciso. E como também tem em seu poder os segredos da vida e da morte, pelo menos aqueles que regem o mundo vegetal — pois eles se remetem direta e exclusivamente a seus poderes —, decide que nada mais voltará a crescer nem a florir na terra enquanto Zeus não lhe fizer justiça. Dito e feito. Tudo na terra entra em declínio e muito rapidamente é o cosmos inteiro, inclusive em suas esferas mais divinas, que se vê ameaçado.
Cito a seguir como, já no século VI a.C., o Hino Homérico transmitiu esses fatos:
Foi um período dos mais horríveis aquele em que Deméter deu aos homens que vivem sobre o chão nutriz um ano realmente cruel. A terra não fazia mais crescer o grão, pois a deusa coroada o mantinha escondido. Os bois muitas vezes arrastaram em vão pelas lavouras a relha curva do arado; com frequência a pálida cevada caiu inútil na terra. Ela teria sem dúvida aniquilado em triste penúria a raça inteira dos homens que têm linguagem e frustrado os habitantes do Olimpo da gloriosa homenagem dos sacrifícios, se Zeus não pensasse e refletisse em seu espírito.
De fato, e como sempre quando a ordem cósmica se encontra em perigo, é a Zeus que cabe intervir e propor, à imagem do julgamento original, quando ele repartiu e organizou o mundo, uma solução equitativa, isto é, justa e estável. No trecho, observe como se justifica a existência do gênero humano no poema: o eventual desaparecimento da humanidade não se apresenta como uma catástrofe propriamente, mas como uma frustração para os deuses. Ou seja, é para eles, antes de tudo, que a humanidade existe, para distraí-los e cultuá-los. Sem a vida e a história que ela introduz na ordem cósmica, esta se manteria paralisada, para sempre imutável e, em consequência, mortalmente tediosa. De qualquer forma, Zeus sucessivamente envia os olímpicos a Deméter, para tentar fazê-la dar fim àquele desastre. Mas nada funciona. Deméter permanece como o mármore, inflexível: enquanto não lhe devolverem a filha, nada crescerá na terra até que toda vida desapareça, se necessário. E isso, é claro, causa incômodo aos demais deuses. Uma vez mais, sem os homens para distraí-los, homenageá-los e fazer belos sacrifícios, os Imortais se entediam, mortalmente. Sem a vida, isto é, a história e o tempo simbolizados pelo nascimento e pela morte dos homens, sem a sucessão das gerações humanas, o cosmos se torna completamente desinteressante. Zeus, então, envia sua última arma, Hermes, como fez com Calipso para que libertasse Ulisses. A Hermes, todo mundo é obrigado a obedecer, pois todos sabem que é o mensageiro pessoal de Zeus e que fala em seu nome. Hermes transmite a Hades a ordem de deixar que Perséfone volte à luz e à sua mãe. Diga-se de passagem que, exceto no episódio do rapto, em que precisou fazer uso da força, Hades se mostra muito cuidadoso com Perséfone o restante do tempo. Faz tudo que está em seu poder para ser amável e meigo com ela.
Hades é obrigado a aceitar a ordem de Zeus. É inútil tentar qualquer coisa para evitar isso e, menos ainda, apelar para a força. Mas uma pequena malícia não faz mal nenhum: furtivamente, como quem não quer nada, ele arranja para que Perséfone coma, antes de ir embora com Hermes, um grão de romã, uma fruta deliciosa que ela aceita quase sem se dar conta. Não sabe que aquele miserável grãozinho de nada vai ligá-la definitivamente a Hades: tendo absorvido algo vindo da terra de baixo, dos infernos, por mais modesto, como esse que aceitara, ela passa a estar ligada para sempre ao território de onde ele provém.
Zeus, a partir disso, precisa encontrar a solução justa, uma solução que preserve sua decisão de dar a própria filha a Hermes e o direito da mãe de também tê-la consigo. Ele tem, se posso assim me exprimir, que dividir em partes iguais o pomo, para restabelecer a ordem justa. Veja como ele faz isso, ainda segundo o Hino Homérico:
Zeus, cuja potente voz surdamente estrondeia, enviou como mensageira Reia de belos cabelos, para trazer de volta Deméter coberta de negro à raça dos deuses; e prometeu-lhe também privilégios à sua escolha, dentre os que têm os Imortais. Resolveu que, do ciclo do ano, a filha passaria um terço dele na obscuridade brumosa e os dois outros junto de sua mãe e dos Imortais. Ele assim falou e a deusa não haveria de desobedecer à mensagem de Zeus.
De fato, não se pode desobedecer ao rei dos deuses. Mas o principal é que a solução dada tem um significado muito profundo em termos de justiça. Como você vê, ela une dois temas “cósmicos” literalmente cruciais: o da vida e da morte, de um lado, e a divisão do mundo em estações, de outro. O período em que Perséfone está com Hades no reino dos mortos, um terço do ano, nada mais cresce na terra: nem flores, nem folhas, nem frutas nem legumes. É o inverno, o frio gelado que faz os homens se recolherem como plantas. É a morte que então reina no mundo vegetal, à imagem daquilo que se passa embaixo, com Perséfone presa no mundo das sombras. Quando ela volta à luz para encontrar a mãe, é a primavera e depois o verão, até a bela estação do outono. Tudo, então refloresce, tudo cresce e a vida recomeça.
A divisão do mundo, da ordem cósmica inteira, está assim garantida — a morte e a vida se alternam em ritmo que corresponde ao que se passa em cima e embaixo, no solo e no subsolo. Não há vida sem morte nem morte sem vida. Ou seja, assim como o cosmos estável não pode deixar de contar com as gerações que os homens mortais encarnam — sem as quais essa estabilidade parada, sem vida e sem movimento, se assemelharia muito simplesmente à morte —, não há cosmos perfeito sem a alternância das estações, sem a alternância do inverno e da primavera, da morte e do renascimento. O mesmo se passa com relação a Apolo e Dioniso: não há um sem o outro. É preciso, para um universo rico e vivo, haver estabilidade e vida, calma e festa, razão e loucura. É preciso haver homens para que o mundo das pessoas, mortais e Imortais juntos, possa entrar no movimento da história; as estações são necessárias para que o mundo da natureza também tenha vida e diversidade. É esse o sentido profundo de tal mito. Como você pode ver, ele não pertence propriamente às histórias de hybris, como os que contei até aqui. Mesmo assim, coloco-o junto dos mitos precedentes, pois também estabelece um laço forte com a ameaça de desordem cósmica, quando a injustiça entre os deuses ganha terreno (e Hades havia sido injusto). E coube novamente a Zeus intervir para dar fim à desordem, com um julgamento cósmico que estabelece uma nova ordem no mundo: durante a estação da ausência, nada cresce; durante a da presença, tudo renasce. E assim segue a vida nessa terra dos mortais, pois, com a ausência deles, até os próprios deuses acabariam desaparecendo.

(Luc Ferry - A Sabedoria dos Mitos Gregos)
Deméter e Perséfone

 

publicado às 12:11

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