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Cleptocracia brasileira e outras

por Thynus, em 30.05.15
Uma das maiores nações da
região, e uma das mais abundantes em recursos, o Zaire (hoje
República Democrática do Congo), foi virtualmente comandada
desde a independência por Joseph Mobutu, cuja extraordinária
venalidade gerou um novo termo, cleptocracia. Até o início da
década de 1980, ele tinha acumulado uma fortuna avaliada em
US$4 bilhões – o equivalente a dez anos de exportações do país –
e mansões em todo o mundo. Até sua derrubada, em 1997, a população
de cerca de 50 milhões de pessoas de um país com dimensão
comparável à de nações da Europa ocidental, estava entre
as mais pobres do globo – possivelmente mais pobre do que 100 anos antes.

(Jeffry A. Frieden - Capitalismo global)

... O colonizado como vítima deu lugar ao descolonizado como vítima,
desde os 60 milhões de mortos do Grande Timoneiro aos massacres de Pol-Pot,
passando pelo delírio medieval dos aiatolas iranianos, pelo totalitarismo cubano, pelo
alastrar do nepotismo, da cleptocracia, da corrupção, da fome e da miséria. 

(José António Rodrigues do Carmo - Islão e Esquerda, companheiros de estrada?)


Outro exemplo de totalitarismo líquido é a Rússia de Putin, com
sua ideia de democracia gerenciada, equipada com o putinismo,
esse vago e estranho amálgama de nostalgia da grandeza do passado
soviético, capitalismo gângster e cúmplice, corrupção endêmica,
cleptocracia, autocensura e remotas ilhas deixadas à
opinião e às vozes discordantes na internet. Em contraste com a
versão chinesa do divórcio entre capitalismo e liberdade política, a
variedade putinesca implica uma fusão total de poder econômico e
político com impunidade e terrorismo de Estado, abertamente entregue
a gangues e grupos criminosos de variadas tonalidades.

(Zygmunt Bauman, Leonidas Donskis - CEGUEIRA MORAL)
 
Num país capitalista, a tarefa do governo é lutar contra
monopólios, e não ajudá-los. Mas no Brasil
não existe separação entre a riqueza e o governo.
O Brasil é uma cleptocracia, e, desde
que aqui se beneficia o rico e o poderoso, já
que o pobre tem menos para ser roubado, a
primeira vítima do ladrão é a classe média.
(J. Q. Jacobus - CLEPTOCRACIA)
 
Entre as “democracias”, apenas o Brasil
demonstra ter um alto nível de desconfiança
em relação a seus tribunais. Em teoria, as
verdadeiras democracias fazem leis para proteger
o cidadão contra prejuízos, e o sistema
judiciário é o guardião da justiça.
Um sistema de tribunais sério não é bom
para uma cleptocracia. Numa cleptocracia,
cometer crimes é somente um modo a mais
de negociar; e um sistema judiciário forte
realmente poderia interferir nesses negócios,
como sempre faz. Ou, como costumamos
dizer, aqui tudo “termina em pizza.”
(J. Q. Jacobus - CLEPTOCRACIA)
 
Mais corrupto do que a África do Sul e a
Bósnia, mas menos do que a Romênia, o
Brasil era, em 2012, somente o 69.º país
menos corrupto. Somos a 6.ª maior economia,
mas apenas o número 69 em honestidade
governamental reconhecida, e suspeito
que subestimamos a desonestidade do
nosso governo. Quantos de nós realmente
acreditam que o governo não é corrupto ou
defeituoso, ou, é claro, que, em vez disso,
funciona tal como foi planejado, isto é, como
uma cleptocracia?
(J. Q. Jacobus - CLEPTOCRACIA)

Algumas Nações são administradas por dirigentes incompetentes,
são culturalmente e etnicamente fragmentadas a ponto da disfunção,
e não produzem bens que o resto do mundo quer.
Em vez de investir na educação, eles investem em enormes exércitos
e armas para aterrorizar o seu povo e manter seus privilégios.
Em vez de investir em uma infraestrutura para acelerar a industrialização do País,
eles se envolvem em corrupção para se manterem no poder,
criando uma cleptocracia, não uma meritocracia.
(Michio Kaku - Física do Futuro)
 
 
De como e por que a corrupção nas altas esferas põe em xeque a democracia 
 
 
A palavra grega democracia nasce da junção de dêmos (povo) e krátos (poder), a significar um regime político comandado pelo povo por meio dos seus representantes. As democracias não têm, por evidente, finalidade lucrativa.
Muitas vezes, no entanto, os criminosos poderosos (aqueles detentores de poder público) e os delinquentes potentes (os possuidores de ingentes capitais), conseguem, pela corrupção, aniquilar um Estado democrático. Em concurso ou de forma escoteira, aproveitam-se para corromper e, parasitariamente, sugar os recursos e as receitas dos Estados Nacionais. Daí já se ter dito no Parlamento Europeu que a corrupção priva de legitimação as instituições, e contrastar o fenômeno da corrupção resulta em lutar pela democracia. Já se sabe que a corrupção empobrece o país em que se dá e, por outro lado, causa danos à economia mundial.
Com efeito, nos Estados Nacionais com sistema político a ensejar corrupção incontrolável surge a chamada “cleptocracia”, com a palavra grega a significar, no popular, as ações de “gatunagem” ou “roubalheira”.
No Brasil, vive-se a indignação de mais um escândalo, desta vez apelidado de Lava Jato. Em síntese, estamos diante, a se fiar nas investigações e delações premiadas, em mais uma das inúmeras metástases de um antigo câncer.
O inquérito-mãe tramita pela Justiça Federal de primeiro grau de Curitiba e suas novidades poderão ser a aceitação de mais seis candidatos às delações premiadas e a arrecadação das restituições de propinas, certamente incompletas, recebidas pelos corruptos confessos e ocultadas onshore e offshore.
Nessa fase pré-processual junto à 13ª Vara Criminal Federal de Curitiba são objeto de investigação representantes de potentes empreiteiras e fornecedoras da Petrobras. Trata-se de algo relacionado a contratos de cerca de 59 bilhões de reais. Um “filhote” apuratório, até agora blindado, tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) e por causa de nele serem mencionadas autoridades detentoras, constitucionalmente, de foro privilegiado. O ministro Teori Zavaski encontra-se na função de relator sorteado e o procurador-geral da República na de titular exclusivo, em nome da sociedade civil, da propositura de uma eventual ação judicial penal.
Pelo jeito, descobriu-se, e aqui usada uma imagem, a existência de duas colunas ligadas por um sistema de vasos comunicantes. Uma delas seria a corruptora formada por nove empresas cartelizadas, ou seja, organizadas de modo a afastar concorrentes em licitações, a obter sobrepreços e aditivos contratuais vultosos. A outra seria a Petrobras, vítima de desfrutamentos e desfalques criminosos. Na integração entre elas atuariam operadores político-financeiros, como Paulo Roberto Costa, ex-diretor de abastecimento da Petrobras, e o doleiro Alberto Youssef, com suas empresas de fachada e um plantel de “laranjas”. Ainda segundo consta do inquérito, os operadores solicitavam às empreiteiras a disponibilização de propinas para “engraxar” alguns políticos de três partidos. Por seu turno, as empresas, nos preços, já computavam os valores das propinas, a sair da própria Petrobras. Nesse esquema não cabe a tipificação de empreiteiras como vítimas de crimes de concussão ou de extorsão. A vítima única é a Petrobras.
Nesse passo, convém frisar que no direito criminal somente podem ser responsabilizadas as pessoas físicas encarregadas das companhias envolvidas em ilícitos. As empresas caem na chamada Lei Anticorrupção, que estabelece, em sede administrativa, a responsabilidade objetiva das pessoas jurídicas. As sanções são variadas, desde multa sobre o faturamento até a interdição. Pode-se pleitear um direito premial, chamado de Acordo de Leniência, já utilizado no escândalo do metrô paulista, cujas apurações pouco avançam.
Por outro lado, as preocupações internacionais relacionadas ao fenômeno da corrupção transnacional crescem em progressão geométrica. Desde a Convenção Anticorrupção das Nações Unidas, conhecida por Convenção de Mérida (México), de 9 a 11 de dezembro de 2003, reforçou-se a cooperação internacional, em especial em informações sobre movimentações financeiras com odor de corrupção e também bloqueios de dinheiro depositado em contas bancárias.
No preâmbulo dessa Convenção ressalta-se o fato de a corrupção afetar a segurança social, minar as instituições e comprometer os valores éticos e de Justiça. Além disso, a corrupção impede a competitividade, compromete a estabilidade política e a sustentabilidade.
Diante da gravidade desse fenômeno, o Conselho da Europa, desde 1999, criou o Grupo de Estados Contra a Corrupção (Greco), cuja sede fica na francesa Estrasburgo. O Greco é aberto a todos os países e dele também fazem parte Rússia e EUA. Desde 2007, o grupo monitora a corrupção nos países que o integram e possui 20 recomendações mínimas. O Brasil ainda não se interessou em ingressar no Greco, já integrado por 49 Estados.

(Wálter Maierovitch)

 O Ministro Gilmar Mendes explica o esquema do PT de se eternizar no poder durante o período em que o STF julgou o financiamento privado de campanhas.

publicado às 20:49

O reino dos céus é uma condição do coração e não algo que cai na terra ou
que surge depois da morte.
(Nietzsche)
 
O triste mito grego de Orfeu e Eurídice nos fala da dor agridoce do desgosto e da perda, e sobre a inevitabilidade do fim, por mais que tentemos nos agarrar ao que se vai de nossa vida. Esse mito não oferece nenhuma solução simplista para lidarmos com a perda, mas há sugestões delicadas, que talvez nos ajudem a compreender a maneira misteriosa como as coisas das quais conseguimos abrir mão continuam a viver, enquanto aquelas a que insistimos em nos agarrar poder morrer dentro de nós.
 
Orfeu, da Trácia, era célebre por tocar a música mais suave do mundo. Era filho da musa Calíope e do rei traciano Ôiagro, embora corressem boatos de que, na verdade, seria filho de Apolo, o deus sol. Era tão hábil na lira de ouro que Apolo lhe dera que até as correntezas dos rios paravam para escutar, e as pedras e árvores se soltavam do chão para seguir sua música melodiosa.
Esse cantor, capaz de instilar um sopro de vida numa pedra, não teve dificuldade para conquistar o amor da bela Eurídice e, a princípio, seu casamento foi abençoado. Porém, infelizmente, sua alegria durou pouco, pois Eurídice foi picada por uma cobra e não houve remédio capaz de mantê-la no mundo dos vivos. Arrasado, Orfeu acompanhou-a a sua sepultura tocando árias pungentes, que comoveram profundamente todos que assistiram ao cortejo fúnebre. Depois, como a vida sem Eurídice parecia não ter razão para ele, Orfeu se dirigiu aos próprios portões de Hades, indo buscar seu amor perdido onde nenhum ser humano tem permissão de entrar até o dia de sua morte.
A música tocada por Orfeu foi tão pungente que o severo barqueiro Caronte, que transporta as almas dos mortos na travessia do rio Estige, esqueceu-se de verificar se Orfeu trazia na língua a moeda necessária. Encantado com as notas mágicas, o velho barqueiro transportou o poeta pelo tenebroso rio que separa o mundo ensolarado das frias regiões do inferno, sem questionamento. Tão comoventes foram as notas da lira dourada de Orfeu que as barras de ferro dos portões da morte se abriram sozinhas, e Cérbero, o cão de três cabeças que guarda os sombrios portais da morte, encolheu-se sem sequer mostrar os dentes, amansado pela melodia tranquilizadora. E foi assim que Orfeu conseguiu penetrar no mundo das sombras sem ser detido. Por alguns abençoados momentos, os condenados do Tártaro foram aliviados de seus tormentos infindáveis, e até o coração frio de Hades, senhor do mundo subterrâneo, abrandou-se momentaneamente. Com humildade, Orfeu ajoelhou-se diante do trono do rei e da rainha dos mortos, rezando e implorando, com suas mais místicas melodias, que Eurídice pudesse retornar com ele para a terra dos vivos. Perséfone, a rainha do mundo subterrâneo, sussurrou algumas palavras no ouvido do marido, e a lira de Orfeu foi interrompida por uma voz surda e profunda. Todas as regiões daquele mundo silenciaram para ouvir o decreto de Hades.
 — Pois que seja, Orfeu! Retorna ao mundo superior, e Eurídice te acompanhará como tua sombra! Mas não pares, não fales e, acima de tudo, não olhes para trás, até chegares à camada superior do ar. Pois se o fizeres, nunca mais voltarás a ver seu rosto. Vai sem demora, e confia em que não estarás sozinho em tua trilha silenciosa.
Orfeu, assombrado e grato, voltou as costas para o trono da morte e caminhou pelos ermos sombrios e gélidos, em direção ao tênue lampejo de luz que marcava a trilha para o mundo da luz solar. Atravessou os salões silenciosos, onde seus passos produziam um eco assustador de seu caminhar apressado para a luz, que brilhava cada vez mais clara, à medida que ele se aproximava de seu destino. Então, no exato momento em que ia penetrar na luz, ele foi atormentado por uma dúvida angustiante. E se Hades o tivesse enganado? E se Eurídice não estivesse realmente atrás dele? Orfeu não conseguiu evitar: virou-se para trás e, ao fazê-lo, viu Eurídice desaparecendo na distância, com seus braços suplicantes estendidos, morrendo pela segunda vez. Dessa vez, os portões do mundo subterrâneo fecharam-se para ele, e Orfeu voltou só e inconsolável para o ensolarado mundo superior, onde, por muitos anos, nenhum sol brilharia.
Com o tempo, Orfeu foi ordenado sacerdote, ensinando os mistérios da vida e da morte e pregando aos homens da Trácia sobre os males do assassinato sacrificial. Levou alegria a muita gente, com sua música, e curou e consolou muitos mais, mas não pôde se curar de seu próprio desespero, pois perdera sua única oportunidade de enganar a morte. Sua morte foi violenta, pois o deus Dioniso ressentiu-se de que um mortal fosse cultuado e adorado como só cabia aos deuses. As adoradoras que seguiam Dioniso despedaçaram Orfeu, membro a membro, e as Musas sepultaram seu corpo destroçado aos pés do Monte Olimpo, onde dizem que o canto dos rouxinóis é mais melodioso do que em qualquer outro lugar do mundo.
 
COMENTÁRIO: O mito de Orfeu toca-nos profundamente. Ele estimula nossa esperança de talvez conseguirmos enganar a morte e contornar a perda inevitável e, em seguida, destrói essa esperança. Orfeu é muito talentoso e especial — ao menos ele, certamente, deveria ser uma exceção à regra de que todos os seres humanos têm que morrer um dia. É comum acreditarmos que, se conseguíssemos nos tornar suficientemente talentosos ou especiais — talvez aperfeiçoando uma obra de arte, ou vindo a ser muito ricos e poderosos, ou dotados de grande beleza, ou sendo bondosos e íntegros o suficiente —, de algum modo poderíamos ficar isentos da tristeza e da perda. A música de Orfeu repercute em nós porque, como ele, sentimos — secreta, se não conscientemente — que somos exceções. “Sei que todos temos que morrer”, dizemos, “mas, nesse caso, decerto eu e aqueles a quem amo poderíamos ser poupados. Não posso acreditar que isso vá acontecer comigo e com meus entes queridos.” Não queremos acreditar que esses terríveis sentimentos de pesar ou tristeza sejam inevitáveis e que as experiências de separação e perda não fazem diferença entre os homens por seu mérito.
No entanto, a história de Orfeu e sua Eurídice nos ensina que, por sermos humanos, estamos condenados a enfrentar a perda e a morte. É a condição humana de Orfeu e Eurídice que torna inevitável que eles sofram, percam e morram. A natureza da morte de Eurídice sublinha a injustiça e a imprevisibilidade da vida, da qual a morte é uma parte inevitável. A princípio, as possibilidades de Orfeu parecem muito animadoras, pois sua música consegue abrandar até o severo Hades. Mesmo assim, no último instante ele perde a confiança e olha para trás — e vai por água abaixo. “Ah, se ele não tivesse olhado para trás…”, pensamos. No fundo, porém, sabemos que isso era inevitável, porque Orfeu é humano, e nenhum homem é capaz dessa confiança absoluta no invisível. Até a história da crucificação de Jesus nos diz que a dúvida é inevitável, e que chegará um momento, nascido da extrema exacerbação da dor, em que a fé se dissolverá e as trevas cairão. Há nessa história um paradoxo perturbador. Não devemos olhar para trás, pois assim sofremos novamente nosso desgosto e nossa perda; contudo, se não olharmos para trás, poderemos realmente enganar a morte? E por acaso algum ser humano é realmente capaz de se abster de olhar para trás? Se compreendermos a prometida ressurreição de Eurídice em termos psicológicos, talvez possamos perceber a sabedoria que se esconde nesse mito. Ao voltarmos os olhos para trás e desejarmos a retificação do passado — o perene “se” que sempre nos aflige, num ou noutro momento —, condenamo-nos a uma repetição de nossa tristeza e a uma renovação do sentimento de impotência diante do inevitável. Se aceitarmos o que perdemos e mantivermos o rosto voltado para o futuro, as pessoas que perdemos ficarão conosco para sempre, pois nos lembraremos da alegria e do amor. Essas lembranças são indestrutíveis, e carregamos dentro de nós todos aqueles a quem amamos e cujo amor nos modificou de algum modo. Talvez esse seja o significado mais profundo do retorno de Eurídice ao mundo da luz — não como um ser que ressuscitou por completo, mas como uma parte viva do coração e da alma de Orfeu. Nesse sentido, remoer nossas perdas nos condena a viver com nosso sofrimento, sem ajuda ou libertação, e nossa perda é maior do que se pudéssemos suportá-la, confiando em que a vida continua a ter um propósito.
Talvez seja inevitável que, ao sofrermos uma perda, tenhamos que viver nas trevas por algum tempo e elaborar as etapas do luto, que têm seu tempo e ciclo próprios. O luto é um processo complexo e pode envolver raiva, desespero, idealização, negação, culpa, autoacusações, responsabilização de terceiros e um período de depressão e entorpecimento, até que a vida volte a pulsar em nós. Ele não é um processo coerente, pois nossa dor pode surgir e nos inundar em momentos inesperados, e temos de estar dispostos a permitir que isso aconteça. Essa talvez seja também uma forma de compreender a ordem de Hades, “não olhes para trás!” É que, na verdade, ao olharmos para trás, tentamos cristalizar o momento e abreviar o processo de luto, que só traz em si o potencial de cura quando deixamos que ele siga seu próprio curso. Ficamos incomodados quando outras pessoas prolongam o luto por mais tempo do que nos parece cabível. Temos alguma ideia do prazo que é razoável para o luto e do que devemos sentir a respeito dos que perdemos. Entretanto, cada pessoa é diferente das outras, e esse processo se dá de maneira diversa em cada um de nós. Parar de olhar para trás exige que renunciemos à crença cega em que a vida abrirá uma exceção para nós; e devemos confiar no processo natural do luto, seja qual for sua duração, e por mais inaceitáveis que sejam as emoções que ele desperta em nós. Dessa maneira, descobrimos de fato uma vida eterna, no amor compartilhado com aqueles que perdemos. E por fim chegamos ao outro lado do luto, descobrindo que a aceitação serena, e não a resignação amarga, permitiu que a vida tornasse a fluir dentro de nós.

(Liz Greene & Juliet Sharman-Burke - Uma Viagem através dos Mitos)

publicado às 21:54


Mulheres vocais

por Thynus, em 23.05.15
 
 
 
 
 
 
1 Reis 1
 
 3 Então procuraram em toda a terra de Israel uma moça bonita. Em Suném encontraram uma jovem chamada abisague e a levaram ao rei.
 4 abisague era muito bonita. Ela servia o rei e cuidava dele, mas Davi não teve relações com ela.
 15 Então Bate-Seba foi ao quarto de dormir do rei para falar com ele. Davi estava muito velho, e abisague, a moça de Suném, estava cuidando dele.
 
1 Reis 2
 17 E ele disse: - Peça ao rei Salomão que me dê abisague, a moça de Suném, para ser minha mulher. Eu sei que Salomão não deixará de atender um pedido seu.
 21 Bate-Seba disse: - Dê abisague em casamento ao seu irmão Adonias.
 22 - Por que é que a senhora está pedindo abisague para Adonias? - perguntou Salomão. - A senhora deveria pedir que eu dê a ele também o reino. Afinal, Adonias é o meu irmão mais velho, e o sacerdote Abiatar e Joabe estão do lado dele! 

Pesquisa Bíblica Avançada


David e Abisag
Consideremos o começo do livro  "Cântico dos Cânticos.“
 O Cântico dos Cânticos, está dito, “que é de Salomão.”
É mesmo? E de que maneira? Foi escrito, como nos contaram gerações de sábios e eruditos, pelo rei Salomão? Ou, como alegam os acadêmicos modernos, é tradicionalmente atribuído ao rei Salomão?
Talvez seja de Salomão, mas de uma maneira diferente. Dedicado a Salomão. Escrito para Salomão.
Por quem?
Eis aqui uma ideia que faz sentido psicológico e gramatical para nós. Vamos dar uma olhada também no segundo versículo do livro.
“‘O mais belo cântico de Salomão. Que me beije com beijos de sua boca! Teus amores são melhores do que o vinho’.”
Muito lindo, não? E também bastante fortuito. Note que todas as três pessoas gramaticais, no singular, aparecem nessas duas compactas linhas. Há um “me”. Há um “teu”. Há Salomão e “ele”. Quem está falando?
Sábios e eruditos nos dizem que o Cântico dos Cânticos é uma alegoria, referindo-se ao amor de Deus por Israel, e ao amor dos judeus pelo seu Deus. Em primeiro lugar, esta leitura permitiu a entrada de um texto altamente erótico no cânone bíblico. É interessante, mas não o bastante para mitigar a nossa curiosidade. Quem são “ele”, “me” e “teu”?
Não aceitamos a explicação de Deus-como-amante. Se Salomão está convidando Deus a beijá-lo com beijos da sua boca, o que é — em poucas palavras — bem mais Tel Aviv que Jerusalém, os versos seguintes nos confundem ainda mais. Eles apontam para uma atração bem física, heterossexual. “O odor dos teus perfumes é suave [...] e as donzelas se enamoram de ti.”
Então quem é que está falando?
Deixe-nos lhe mostrar uma pequena mágica, em hebraico. “Que é de Salomão” em hebraico é asher li-Shlomo. .אשר לשלמה
Agora acrescentamos uma letra, a menor letra do alfabeto hebraico, o yod. O verso modificado é ashir li-Shlomo. .אשיר לשלמה
Assim, a abertura do nosso livro agora diz:
“O Cântico dos Cânticos cantarei para Salomão”, o que flui suavemente para: “Que ele me beije com os beijos da sua boca — pois teu amor é melhor que o vinho”.
Tudo entra no lugar se quem canta o Cântico dos Cânticos é uma mulher, iniciando sua canção de amor por Salomão numa primeira pessoa declaratória, apenas para passar de forma delicada e íntima para a segunda pessoa.
Teu amor. Teus unguentos. As donzelas te amam.
Não estamos falando aqui de verdade histórica. Ninguém sabe quem escreveu o Cântico dos Cânticos, nem se é ligado ao rei Salomão histórico. Mas sabemos sim que a linguagem oculta segredos. Introduzindo uma pequena letra hebraica no verso de abertura, podemos ter revelado um novo autor. Uma mulher.
Vamos chamá-la de Abisag. Houve uma Abisag de Sunam, uma jovem e bela mulher convidada a aquecer a cama do idoso Davi à noite. A amada anônima do Cântico dos Cânticos é a Sunamita (ou Sulamita), que pode referir-se à Abisag histórica ou a uma amante alegórica. Portanto, se a nossa Abisag emblemática realmente redigiu partes do tomo mais erótico da Bíblia, ela seguramente deve ser considerada como uma das grandes mulheres poetas da Bíblia, junto com Miriam e Débora, e da literatura mundial em geral, junto com Safo e Emily Dickinson.
Durante muito tempo, a historiadora entre nós pensou que o romancista entre nós tinha inventado o truque de mudança de texto, este minúsculo yod subversivo. E talvez tenha de fato, por conta própria. Mas, felizmente, um ou mais estudiosos modernos nos precederam em considerar “ashir le-Shlomo”, numa voz feminina, como alternativa viável para o texto bíblico oficial. Não obstante, na história das ideias, o ponto crucial é quando um conceito adquire um contexto novo. Hoje, nossa Sunamita vocal acaba de adquirir significado. Devemos revisitar aquelas fortes mulheres israelitas falando e cantando Bíblia acima e abaixo, pois elas fornecem uma significação lapidada para Israel do século XX e os judeus dos dias atuais.
Atualmente, algumas poderosas comunidades judaicas não desejam ouvir mulheres cantando. Nem no palco, nem em cerimônias civis ou militares, nem mesmo no chuveiro. Enquanto este livro está sendo escrito, um acalorado debate pega fogo em Israel acerca da exigência dos judeus ultraortodoxos de silenciar vozes femininas e apagar ou borrar imagens de mulheres na esfera pública. Alguns anunciantes e produtores de eventos já estão respeitando tal exigência. A face, o corpo e especialmente a voz de uma mulher, nos dizem numerosos rabinos, pertencem ao âmbito do lar. Virtude e recato, especialmente dos homens, estão em jogo. Mulheres judias são princesas, dizem os líderes espirituais, e sua dignidade e beleza são mais bem mantidas quando fora das ruas. Não é a Bíblia que nos diz: “Toda a honra da filha do rei está dentro de casa” (Salmos 45,14)?
Na verdade, não. O salmo relata, em colorido detalhe, como as noivas estrangeiras de Salomão, filhas de realezas vizinhas, eram levadas para dentro do palácio de Jerusalém em toda sua glória festiva. Na verdade, há tanta parafernália chique listada nesse capítulo específico que se pode desconfiar que o escriba da corte, apresentando-se nos versos iniciais como o “escriba ligeiro”, sofer mahir, do rei, estivesse ele próprio envolvido nessa campanha de moda importada. Difícil imaginar que ele queira que as mulheres permaneçam escondidas atrás de venezianas fechadas. Cortinas de palco parecem ser mais o seu feitio.
Mas gerações de sábios e rabinos usaram “toda a honra da filha do rei está dentro de casa” para manter as mulheres longe do olhar público. Maimônides certamente o fez. Uma mulher, escreveu ele no Mishneh Torah, não é de forma alguma prisioneira em seu próprio lar. Não obstante É grosseiro para uma mulher sempre sair de casa, desta vez para sair e outra vez para ir à rua. De fato, o marido deve impedir a esposa de fazer isto e não permitir que saia mais do que uma ou duas vezes por mês, conforme seja necessário. Pois não há nada mais atraente para uma mulher do que sentar-se no canto de seu lar, pois “toda a glória da filha do rei está no interior”. [Mais uma vez Salmos 45,14, aqui traduzido de acordo com a interpretação de Maimônides.]
Não nos opomos ao hábito rabínico, velho e novo, de ficar brincando com os significados de versículos antigos. Como poderíamos? Neste livro estamos fazendo exatamente o mesmo. Mas há algumas diferenças. Ao contrário dos ultraortodoxos, não estamos tentando denunciar, confinar ou silenciar ninguém. Mais especificamente, nossa abordagem ao ato em si da interpretação é diferente da dos rabinos tradicionais. Para nós, as regras são algo assim: Leia em círculos crescentes ao redor da sua citação em vez de arrancála do contexto. Preze mais a descoberta e a surpresa do que o seu próprio plano. Reconheça as imperfeições dos textos e autores de que você gosta. Olhe bem para ver a lógica interna de um parágrafo, de uma página, de um capítulo.
A Bíblia está repleta de mulheres “saindo às ruas”. Desculpe, Maimônides. E tem uma porção de mulheres cantando fora de casa, para públicos mistos. Miriam cantou, tocou tambor e possivelmente dançou na frente de um povo inteiro. Débora cantou seus próprios versos da própria cadeira do governo, executando um dueto com seu chefe de gabinete. Ana pode ter enviado sua poética prece de gratidão sozinha em casa, mas ela obviamente chegou à mídia, e ocupa uma boa parte de 1 Samuel 2. Essas senhoras, e talvez nossa poeta e cantora Abisag, e as três filhas da família cantora de Hemã são apenas a corcova do camelo. Há muitas outras.
“Todas as mulheres” da geração do Sinai, o Êxodo nos conta, seguiram Miriam regozijando-se e batendo tambores. O 1o Livro de Samuel relata que mulheres de “todas as cidades de Israel” cantaram, “tocaram” e bateram esses tambores depois que Davi matou Golias: “Saul matou seus milhares, Davi suas dezenas de milhares!”. Pergunte ao rei Saul o que ele achou desse coro feminino por toda a nação. Garantimos que o gênero foi o menor de seus problemas.
Todavia, a gramática hebraica é notoriamente chauvinista. As formas masculinas prevalecem e as femininas geralmente seguem atrás, suspirando sob um sufixo extra. Se houver um homem no grupo e mil mulheres, o pronome plural ou a forma verbal serão masculinos.(Em hebraico, ao contrário do português, as formas verbais são flexionadas no masculino e no feminino) Todo mundo sabe que a Bíblia e sua linguagem são profundamente patriarcais.
Mas por que o mesmo hebraico bíblico torna-se quase feminista quando lhe dá na veneta? Em muitos lugares, conta-se especificamente sobre “cantores e cantoras”. Em vez de soterrar as cantoras sob a forma genérica totalmente masculina, em vez de fazer com que todos cantem sob o manto do substantivo ou verbo masculino, vários livros diferentes, presumivelmente escritos em períodos diversos, repetidamente enfatizam o feminino junto com o masculino. O que explica esta súbita sensibilidade ao gênero?
Pensamos poder imaginar a resposta. Quando ambos os gêneros gramaticais são mencionados, algo está sendo enfatizado. Peguemos o caso individual de Velho Barzilai. Não se preocupe se você nunca ouviu falar dele. Era simplesmente um octogenário bem relacionado que conseguiu entrar na Bíblia queixando-se com seu amigo rei Davi, como às vezes fazem os velhos, de incapacidades ligadas à idade: que não conseguia mais distinguir o bem do mal, sentir o sabor do que comia e bebia, ou ouvir os cantos de homens e mulheres. Em sua recorrente maré de incapacidade, a surdez às vozes de mulheres cantoras é o golpe final. Se não acredita em nós, pergunte a Davi, que evidentemente compreendeu o relato feito por Barzilai sobre seu declínio cognitivo. Então o rei, como nos conta o 2o Livro de Samuel, afinal concordou de má vontade em não arrastar seu idoso amigo consigo para Jerusalém. O autor bíblico pode ter desejado louvar o bom senso de Davi, e este seria o ponto central da história, mas aos nossos ouvidos, quase três milênios depois, é o distinto cantar feminino que reverbera como a moral da história atualmente relevante.
Existe então outro tipo de ênfase, uma ênfase nacional, visível em diversas menções bíblicas de cantar intersexual. Chegando de volta a Sião do Cativeiro Babilônico, duzentos cantantes homens e mulheres marchavam entre os judeus repatriados. Mesmo comentaristas talmúdicos e pós-talmúdicos não pareceram se importar. “Homens e Mulheres para cantar na estrada, pois subiram em júbilo e passeio”, explicou o exegeta do início da era moderna, rabino David Altschuler, ou talvez tenha sido seu filho Hillel Yechiel Altschuler (seus comentários bíblicos bigeracionais são conhecidos como as Metzudot). Havia aqui um lampejo perspicaz: numa Israel antiga, dominada pelos homens, as celebrações eram realmente jubilosas quando homens e mulheres se regozijavam juntos. Quanto mais misturado, mais feliz.
De Miriam a Esdras, da travessia do Mar Vermelho ao regresso da Babilônia, a Bíblia empresta sua dualidade de gêneros precisamente aos momentos coletivos de exultação. Paredes gramaticais se abrem quando autores desejam descrever como todo um povo caminhou junto da escravidão para a liberdade. Para os hebreus, a liberdade atravessava barreiras sexuais e sociais. Assim como a alegria.
Esperamos poder justificar nossa posição. Vamos dividir rapidamente com você dois pensamentos ecléticos finais.
O primeiro é o seguinte: sociedades patriarcais nem sempre são o que parecem. As linguagens patriarcais têm truques nas mangas. As matriarcas bíblicas eram em número maior que os patriarcas, quatro para três; e suas personalidades são dificilmente menos memoráveis. Às vezes, se você lê com bastante cuidado, pode detectar uma gramática e uma linha narrativa alternativas brotando cautelosamente.
E o nosso segundo pensamento: você notou que Rabi David Altschuler, ou talvez seu filho, chamou o Regresso a Sião de “passeio” (tiyul)? Este era um substantivo bastante raro até o hebraico moderno apossar-se dele, embora tenha aparecido sim uma vez na exegese talmúdica de Rashi, no século XI. Achamos bastante estranho chamar o primeiro retorno nacional do exílio de passeio, mesmo que soe como uma caminhada no parque comparado com o segundo retorno nacional do exílio no século XX. Imaginemos então que o bom rabi, pai ou filho, pudesse ter em mente o spazieren do alemão/ídiche. Talvez tenha sido um dia de primavera em Praga—ou teria sido em Jaworów na Galícia? — e, ao imaginar a grande marcha da Babilônia para Jerusalém, simplesmente sentiu como que uma breve pausa da sua vela escorrendo sobre a escrivaninha embolorada.
O rei Davi era um mulherengo. E nem um pouco refinado. Quando jovem, vitorioso sobre Golias, foi louvado e cantado pelas mulheres “de todas as cidades de Israel”. Quando velho, pode ter tido uma grande mulher poeta na sua cama. Nesse meio-tempo, teve um bom número de esposas; por certo menos que seu filho Salomão, mas indiscutivelmente mulheres mais interessantes.
Em seu livro O mesmo mar, o romancista entre nós deu a Davi um tratamento lírico por meio dos olhos de uma jovem israelense moderna, num capítulo chamado “Davi segundo Dita”:
Como o dia declinou. Quando falávamos sobre o rei Davi, como foi que chegamos a falar sobre ele? Você se lembra? Uma noite de sexta-feira na casa do Uri ben Gal, na rua Melchett. Você me puxou para fora da festa, para a varanda, e na janela em frente um homem musculoso, vestido com uma camiseta e a sua solidão, limpava os óculos contra a luz. Colocou-os, viu que o estávamos olhando e baixou a veneziana. Então por causa dele você me contou o que te atrai em um homem: tipo Charles Aznavour, ou Yevgueni Yevtuchenko. Deles, você passou ao rei Davi. O que te atrai é um lado faminto, um lado sacana e um lado sonso. E ainda me mostrou da varanda, naquela noite, como Tel-Aviv é uma cidade banal, áspera, sexy. Não se vê pôr do sol nem estrela, só se vê como o reboco descasca por excesso de adrenalina, cheiro de suor e diesel, cidade cansada que não quer dormir no fim do dia — quer sair, quer ver o que acontece, quer que termine, e quer mais e mais. Mas Davi, você disse reinou trinta anos em Jerusalém, a austera cidade de Davi, que ele não suportava e que não o suportava, com seu frenesi, inquietação e exuberância permanente. Combinaria muito mais com ele se reinasse em Tel-Aviv, desse umas voltas pela cidade como general de reserva, e ao mesmo tempo pai enlutado e conhecido mulherengo, bon vivant infatigável e rei, compositor e poeta. Daria às vezes um belo recital de salmos num centro cultural e de lá esticaria num pub, para beber em companhia dos tietes, moças e rapazes.(Amós Oz, O mesmo mar. Trad. de Milton Lando. São Paulo: Companhia das Letras, 2001)
 A exegese talmúdica sobre o estilo de vida do rei Davi é bem mais brusca. Uma história suculenta conta que Davi se recusa a casar com Abisag porque já tinha dezoito esposas, mais que o suficiente para sua felicidade matrimonial. Aliás, dezoito também é um número típico correlacionado com as letras hebraicas que formam a palavra vivo. Em todo caso, segundo este conto talmúdico, a persistente Abisag zomba então de Davi, alegando que ele estava simplesmente velho demais para tal tarefa. Então Davi chamou sua esposa Batsheva e — a acreditar-se em Rav Yehuda — desempenhou suas funções com ela treze vezes. Este também é um bom número simbólico na tradição judaica. Contudo, tipicamente talmúdico, lamentamos dizer, é que a história é injusta com as mulheres bíblicas. Algumas das esposas e amantes de Davi eram evidentemente sofisticadas, de personalidade forte e voltadas apenas para si mesmas, inclusive a princesa de língua afiada Micol, a quase perfeita Abigail (uma beleza “de bom cérebro”) e a imperiosa Batsheva, a vitoriosa genética, mãe de Salomão.
 (...) Então acontece que a nossa Abisag, a platônica companheira de cama de Davi, talvez a emblemática amante de Salomão, e talvez até mesmo a autora secreta do Cântico dos Cânticos, também era uma sunamita. Como está isto relacionado com a Grande Mulher? Como a Mulher Sábia de Técua está relacionada com o profeta Amós, da mesma cidade? E quantas outras fascinantes mulheres israelitas foram deixadas na proverbial cesta de lixo da Bíblia? Como escreveu certa vez Bertolt Brecht, num contexto bastante comparável: “Tantas histórias./ Tantas questões”.
Três grandes ressalvas são necessárias. Primeira, de forma alguma sugerimos que outras sociedades e culturas antigas não criaram mulheres fortes, assertivas, bravas, sábias e vocais. Na Antiguidade, Egito e Mesopotâmia criaram literaturas com poderosas figuras femininas. Grécia e Roma Antigas tiveram autoras e filósofas, bem como heroínas históricas e ficcionais. A simples presença de várias mulheres não israelitas em papéis bíblicos cruciais, como enfatizamos, prova que midianitas e moabitas, canaanitas e quenitas, filisteias e filhas do Faraó podiam mover as rodas da história de maneira tão efetiva quanto suas colegas hebreias.
Mas se você fosse uma senhora do Oriente Próximo de força e ambição, esperando deixar sua marca no mundo, certamente ajudaria a fazer uma entrada numa história bíblica. O ponto no nosso livro não é que os judeus eram melhores que os outros, mas que os judeus tinham um jeito especial com palavras. Palavras se tornavam textos. Aqueles que eram publicados se tornavam perenes.
Jamais saberemos quantas mulheres sábias proferiram ditos sábios em toda e cada cultura. Mas se você por acaso cunhou a frase “Por esta criança eu orei”, ou “Eu habito em meio ao meu próprio povo”, ou “Teu deus será o meu deus”, tinha uma chance maior de fama duradoura se dissesse sua frase em ouvidos bíblicos. Além disso, se você mandou seu filho para a casa de Deus ou ensinou lei a suas donzelas, suas chances de permanecer no registro histórico são ligeiramente maiores. Ao promover as histórias nacionais, contá-las e cantá-las para a posteridade, as mulheres também se tornaram parte da história.
Nossa segunda ressalva refere-se à “historicidade” de todos os nossos protagonistas bíblicos, homens ou mulheres. Estamos bem cientes de que todo e cada personagem mencionado até aqui pode ser pura ficção, uma invenção da fantasia de algum autor, criada em algum momento entre 1000 e 500 AEC. Não estamos supondo que Sara, Miriam ou Hulda tenham realmente existido. Mas os autores existiram, e sua linguagem existiu. Quem inspirou essas histórias? De onde vieram os heróis e heroínas, os enredos e fábulas, os diálogos e expressões? Da vida real, foi daí que vieram. De linhas de textos.
Um arqueólogo poderá se preocupar com o fato de os relatos bíblicos serem mera “ficção”, mas nós viemos de um lugar diferente. “Ficção” não nos assusta. Como leitores, sabemos que ela transmite verdades. Como judeus seculares, não insistimos na historicidade de Moisés ou de Miriam. Que os Narradores tenham sido reais, para nós já é bom demais. Podemos saber que eles viveram numa sociedade bem acostumada a figuras maternais fortes e assertivas. Uma civilização capaz de redigir a Bíblia evidentemente tem Saras, Déboras e Huldas vivendo em seu meio. Essas damas específicas podem ter sido tão míticas quanto as deusas gregas — quem liga para isso? — mas suas palavras são a matéria de experiência humana palpável.
Nossa terceira ressalva é simples e brusca. A Bíblia não era um patrão que dava oportunidades iguais. Normalmente as mulheres não possuíam nem herdavam propriedades (com algumas notáveis exceções). A poligamia era corrente, a poliandria desconhecida (a menos que contemos Micol; dê uma olhada na história dela se ficar curioso). O adultério era punido com a morte, o divórcio dependia dos caprichos do marido, e pais podiam vender suas filhas jovens como escravas. “E eu acho a mulher mais amarga que a morte”, escreveu o requintado Eclesiastes. “Um homem em um milhar eu encontrei; mas uma mulher entre todos aqueles não encontrei.”
Não podemos entender como o sensual Cântico dos Cânticos, o profundo livro de Provérbios (com sua Mulher Talentosa) e o amargo e assombroso Eclesiastes podem ser todos atribuídos ao mesmo autor, Salomão.
Talvez ele tenha escrito cada livro sob o embalo de uma esposa diferente. Ou talvez outras pessoas os tenham escrito, talvez até mesmo uma esposa ou duas.

(AMÓS OZ FANIA OZ-SALZBERGER - Os judeus e as palavras)
 
Histórias de sexo na Bílblia

publicado às 18:17

Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? – também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos! Como nos consolar, a nós assassinos entre os assassinos? O mais forte e mais sagrado que o mundo até então possuíra sangrou inteiro sob os nossos punhais – quem nos limpará este sangue? Com que água poderíamos nos lavar? Que ritos expiatórios, que jogos sagrados teremos de inventar? A grandeza desse ato não é demasiado grande para nós? Não deveríamos nós mesmo nos tornar deuses, para ao menos parecer dignos dele? Nunca houve um ato maior – e quem vier depois de nós pertencerá, por causa desse ato, a uma história mais elevada que toda a história até então.
(Nietzsche, Gaia Ciência, §125)
 
.Parece-me que em nenhuma outra parte
da literatura moderna encontra-se uma compreensão
tão clara de que aquilo que Nietzsche
chamou de “a morte de Deus” não leva
necessariamente ao desespero mas, pelo contrário,
ao eliminar o medo do Inferno, pode
desembocar em puro júbilo, num novo “sim” à vida.
(Hannah Arendt - Homens em Tempos Sombrios)
 
Quem mais senão Nietzsche e os escritores franceses impregnados
de seu pensamento como Klossowski e Blanchot poderiam ter sugerido a Foucault que
a morte de Deus perpetrada pelo niilismo da modernidade só se completará quando
significar não o aparecimento, mas o desaparecimento do homem?
(Roberto Machado - FOUCAULT, a filosofia e a literatura)
 

Atualmente, quando o indivíduo está com vontade de assassinar o pai, coloca-o numa casa de repouso, para que ele tenha horas de diversão, converse com as pessoas da sua idade, jogue cartas, enfim, para que se ocupe, porque uma das características do crescimento da miséria humana, na nossa época, é a incapacidade de não ficar ocupado. Você tem de se ocupar, caso contrário você não suporta a si mesmo. É a noção de temporalidade que temos: uma temporalidade medida a partir da carga produtiva do ser humano. Quando não se é uma pessoa produtiva, necessariamente se é um indivíduo patológico. E, o que é pior, o indivíduo será de fato extinto. A pragmática existencial nos autoriza a destruir o passado, mesmo que ele tenha nome próprio.

(L. Felipe Pondé

 

“O que fizemos quando desatamos esta Terra de seu sol?”, pergunta Nietzsche em A gaia ciência (1882). “Para onde ela se move agora? Para onde nós nos movemos? Para longe de todos os sóis? Não caímos continuamente? Para trás, para os lados, para a frente, em todas as direções? Existe ainda ‘em cima’ e ‘embaixo’? Não vagamos como que através de um nada infinito? Não sentimos sobre nós a respiração do espaço vazio? Não ficou mais frio?”

 
Há uma passagem de Gogol et Dostoïevski em que Evdokimov (Cf. Paul Evdokimov, Gogol et Dostoïevski. Trata-se de um subcapítulo dentro da discussão de Os irmãos Karamázov) indaga qual seria a religiosidade de Dostoiévski, isto é, que tipo de religioso Dostoiévski era ou tinha em mente quando pensava nesse assunto. Penso que Evdokimov é muito feliz quando sugere tratar-se de uma “religiosidade do amanhã”, ou “religiosidade apocalíptica”. Quer dizer, Dostoiévski fala de e para um indivíduo religioso que contempla o espetáculo do humanismo ridículo que nascia diante de seus olhos e que hoje está à nossa volta, porque somos nós os ridículos: por exemplo, quando sai uma manchete (Refere-se à manchete que circulou nos jornais em 26/ 11/2001: “Sob protestos do Congresso dos EUA e surpresa da opinião pública, a empresa americana ACT (Advanced Cell Technology) anunciou ter concluído a primeira clonagem de um embrião humano da história”, Folha de S. Paulo, e “Anunciado nos EUA o primeiro clone humano”, O Estado de S. Paulo.) do tipo “finalmente clonamos um ser humano” e o representante oficial do país reafirma que é contra, todos ficam horrorizados e tem início uma enorme discussão ruidosa. A importância de Dostoiévski como “teólogo” (entre aspas, porque Dostoiévski nunca se chamou de teólogo), como alguém que projeta essa espiritualidade pré-apocalíptica, é ele não fazer concessões às idealizações que o humanismo faz a si mesmo. A manchete de hoje é fruto dessa ridícula mentira que caracteriza a antropofagia humanista, não é obra de algum bandido que caiu do céu querendo destruir a espécie humana. É produto do desejo de emancipação do ser humano, emancipação do sofrimento e da violência que a natureza representa para ele.
A preocupação de Dostoiévski, como vimos ao discutir Crime e castigo, é aprofundar a reflexão sobre a doença, já que uma das características do humanismo é ocultá-la o tempo todo, esconder o seu verdadeiro desejo para realizar seu sonho em silêncio: cinismo ético. O autor então parece colocar o dedo na ferida ao dizer: “é você quem quer isto” ou “é você mesmo quem está produzindo isto”. Ivan é um representante daquele estágio que podemos denominar de “estágio intelectual” por excelência, o estágio da agonia intelectual, o embate com Deus o tempo todo, o questionamento a partir do qual ele acaba aceitando Deus, mas não aceita a realidade tal como é — “como Deus pode ter criado uma realidade como essa?”, pergunta ele. O que é a realidade senão uns comendo os outros para se manterem vivos, como afirma o gnosticismo? Mas os que são comidos sentem dor. Que criação é essa então?
Nesse sentido, podemos observar que Dostoiévski prevê uma espécie de fracasso do projeto humanista-naturalista, um fracasso da história como figura da imanência. Por outro lado, o que salva a história, o que salva a natureza, não é a própria dimensão natural do ser humano, e sim aquilo que é sobrenatural. Então, temos em sua obra uma certa “ultrapassagem” da história. Sua crítica é direta ao humanismo naturalista, ao projeto que se desdobra a partir do Iluminismo. Quando o ser humano escolhe a liberdade como princípio da vida, ele acaba destruindo a própria possibilidade de liberdade, porque cai no caos, no total arbitrário. Isso nos remete àquela discussão de Nietzsche sobre a linguagem, a verdade e a mentira: a mentira nada mais é do que o uso arbitrário de uma palavra. Arbitrário porque a palavra é usada fora da convenção que define o seu sentido. Embora as pessoas até possam dizer que estão preocupadas com o uso arbitrário da palavra, não estão; sua maior preocupação é com as consequências que esse uso lhes traz, ou seja, estão preocupadas com os efeitos pragmáticos desse uso. É a mecânica fina do critério no niilismo racional pragmático. Então, se a mentira nada mais é do que o uso arbitrário, porque fere a convenção, na realidade a linguagem não descreve coisa alguma. A linguagem é como uma espécie de caixa de ferramentas que se usa para lidar com o mundo, para se relacionar com o mundo, para fazer o mundo funcionar.
Cristo Hipercubo, de Salvador Dali
Esse olhar de Nietzsche sobre a linguagem, essa ideia de que somos insetos que produzem conhecimento — mas um dia o planeta explode e o conhecimento acaba junto com ele —, é outra forma de falar do niilismo (É importante ressaltar aqui que utilizo o termo “niilismo” no sentido de Dostoiévski. O que Nietzsche chama de niilismo é diferente (grosso modo, depressão moral de uma época por não querer assumir a morte de Deus e da metafísica); ele, Nietzsche, não adere ao niilismo (na sua definição), ainda que um certo nietzschianismo faça dele um niilista (no sentido de cinismo narcísico), inclusive um niilista do tipo “o meu desejo é ficar no centro do mundo”, quando, na realidade, Nietzsche ultrapassa a própria noção de “eu” — ele transvalora o eu. Se mal lido, pode levar muita gente, como levou, a achar que ele é um filósofo do niilismo (seja no sentido de narcisismo cínico, seja no sentido dostoievskiano). Na realidade, ele faz uma filosofia que denomina de “espíritos livres”. Está em diálogo com toda a tradição trágica e também se aproxima de Dostoiévski, reconhecendo neste um “autor que escreve com sangue”. Contudo, não resta dúvida que o relativismo violento de Nietzsche pode produzir niilismo. Uma autora como Scarlett Marton (Nietzsche: Das forças cósmicas aos valores humanos, UFMG, 2000), por exemplo, não lê Nietzsche como produtor de niilismo. Por outro lado, a escola francesa que vem de Deleuze, aquele pós-nietzschianismo que “considera” o ser humano sagrado, faz uma leitura de Nietzsche que alguns consideram niilista. Já para uma estudiosa como Scarlett, a transvaloração de que Nietzsche fala é cosmologia, é fisiologia, por isso ele ultrapassa o ser humano. Para ele, a vida é um acidente da matéria. Se assim é e se a consciência é o acidente querendo provar que não é acidente, a consciência nada mais é do que um acidente da matéria querendo a todo custo legitimar a si mesma como não acidental.) que Dostoiévski aponta, no qual as palavras já não significam mais nada e no qual não se tem mais nenhum objeto, só restando o desejo humano em funcionamento para realizar coisas. Por isso a percepção de Evdokimov de que a religiosidade de Dostoiévski é pré-apocalíptica, “é uma religiosidade para uma época na qual a existência, o ser existente, não é mais capaz de reconhecer a si mesmo”; significa que o ser já está totalmente esvaziado, não há mais qualquer conteúdo.
Em Os irmãos Karamázov, a figura por excelência que praticamente não tem mais alma é Smierdiákov, o filho bastardo. É ele quem, na realidade, mata o pai, porém do ponto de vista mecânico, pois de alguma forma todos estão envolvidos no parricídio. Dostoiévski mata os filhos em Os demônios, depois mata o pai em Karamázov; destrói a geração seguinte com a educação liberal, como já comentamos anteriormente. Todavia, quando se mata o pai, mata-se a lei. Apesar de Freud ter cometido erros em suas interpretações psicobiográficas da obra de Dostoiévski, por lidar com dados biográficos errôneos, ele acertou ao falar da questão da intuição profunda do autor russo sobre o parricídio. Embora em carta de quatro dias antes de sua morte Dostoiévski tenha manifestado que havia nele uma grande energia vital, e que estava enlouquecendo com tantos projetos, em Os irmãos Karamázov, o último de seus livros, ele constrói uma figura — Smierdiákov — que representa a total dissolução do eu, parecido com Stavróguin, de Os demônios, embora não seja um galã milionário como este, mas um sujeito feio e bastardo.
No livro, Mítia — Dimítri Fiódorovitch — quer matar o pai por causa de uma mulher. Ele chega a ir até à casa do pai para alcançar seu objetivo, mas desiste no meio do caminho. É uma figura da existência sensual, representante do estágio estético de Kierkegaard (Kierkegaard (1813-1855) define as etapas estética, ética e religiosa, que considera não como concepções teóricas do mundo, mas como maneiras de viver. O homem no estágio estético não conhece outro objetivo na vida senão gozar cada instante; coincide, pois, com suas sucessivas sensações. O homem da ética preocupa-se com a realização plenamente consentida do dever moral; submete sua vida a regras gerais. No estágio religioso, o homem é um indivíduo diante de Deus, e sua experiência na relação com Deus é singular e intraduzível em conceitos gerais, só tendo sentido para ele. A experiência da fé, para Kierkegaard, é inteiramente estranha ao universo da razão.), no qual o ser humano vive pelos sentidos. Mítia é alguém que parece não ser capaz de sustentar nada, ele é a espontaneidade sensorial a toda. Ele quer o dinheiro de sua mãe, que estava com seu pai, e então resolve não mais matá-lo, porém avisa a todos que irá fazêlo, o que o torna o primeiro suspeito quando o pai aparece morto. Entretanto, o leitor percebe uma absoluta e total incoerência no discurso de Mítia — ele passa por um processo de conversão, mas nunca foi ateu; sua função primordial não é a noética, mas a estética. Assim, de alguma forma, ele participa do parricídio, do “ritual da horda primitiva”, como dizia Freud, pelo menos na medida em que manifestara o desejo de matar o pai. Em algum momento ele sente dor na consciência, que aparece no fato de ele querer assumir o crime, reconhecer a culpa: “eu quis matar, então sou culpado”.
Ivan (de quem já falamos muito ao longo do trabalho), outro filho, é o mentor intelectual, é quem empurra Smierdiákov, “provando” para o meio-irmão infeliz que na realidade a alma é mortal, que Deus não existe e, logo, que tudo é permitido. Se Raskólnikov mata a velha usurária, Smierdiákov mata o pai. Ivan também reconhece a culpa no final, e Smierdiákov morre antes de confessar, depois de um ataque epiléptico. Dostoiévski sacraliza a epilepsia em Míchkin e a mergulha no inferno absoluto em Smierdiákov. Ou seja, o autor, mais uma vez, não faz concessão. É nesse sentido que a preocupação do leitor, que está buscando a redenção na obra, é uma preocupação desgraçada, porque num momento parece que vai haver redenção e, de repente, não há mais. Digo isso porque em Míchkin a epilepsia é quase sagrada, é uma espécie de porta para o êxtase, apesar de no final do livro também ele entrar num torpor não diferente de Smierdiákov. Mas Dostoiévski toma a mesma epilepsia e a coloca em uma pessoa que é, na realidade, um “zumbi”. E com isso quer dizer algo como: “só porque eu disse um dia que a desordem está associada ao sagrado, não pense que basta alguém enlouquecer, ou dizer alguma coisa que não faça sentido, para ser santo”. A epilepsia também é polifônica: uma hora fala em Deus, outra, no inferno. Assim, alguém pode perder o eu tanto porque se transformou em um “zumbi” como porque teve um êxtase.
Esta é a questão do “critério de verdade”, que é tão duro na obra de Dostoiévski — ele não faz concessão ao desejo humano de encontrar um porto seguro. Isso nos remete a Heschel, ao apontar que uma das características da filosofia da religião é lidar com os fatos religiosos sem trabalhar necessariamente com a fórmula queda/redenção. Na medida em que a filosofia da religião não utiliza nenhum sistema fechado a supor que, porque existe a queda, existe Deus, existe a experiência religiosa e, portanto, existe uma forma de redenção que possa ser escrita numa cartilha, então podemos fazer uma reflexão pré-apocalíptica na qual se está o tempo todo em tensão escatológica. É nesse sentido que Evdokimov fala que vivemos numa época pré-apocalíptica. E o que observamos hoje? Todo esse avanço da biotecnologia, o homem brincando de Deus, e os humanistas ridículos “exaltados”. Como se a nossa história não fosse brincar de Deus — até no Gênesis está escrito isso. Estamos aqui para brincar de Deus mesmo, estamos no lugar Dele; é essa a nossa aposta. Quando se sacraliza o corpo, o ser humano, o que se pode esperar? Que o humano jogue fora o direito à sua pequena eternidade podre?
Essa visão de Dostoiévski como uma espécie de filósofo da escatologia provoca um certo desconforto. Míchkin, por exemplo, na medida em que, de certa forma, não possui um eu, ou não está preocupado com o eu, pois não se preocupa em se definir, em se conhecer, representa a ideia mais radical da sacralização da psicologia em Dostoiévski, mais até do que Aliócha ou Zósima. Entendendo “psicologia” não como a ciência, mas como o processo humano, a alma humana ou a psique, a sacralização da psicologia surge no momento em que qualquer estrutura psicológica que se tenha é percebida como estranha, não como um objeto natural, mas radicalmente descontínua com relação às categorias da subjetividade psicológica e social — uma “psicologia” que transcende a psicologia.
Cabe aqui um esclarecimento: a psicologia como ciência, ou melhor, a psicoterapia, é um locus fundamental em nossa cultura na medida em que nela a pessoa não precisa mentir — porque mentimos o tempo todo para sobreviver. Todavia, a crítica feita ao longo deste trabalho, seguindo o afastamento proposto por Dostoiévski, que não gostava de ser identificado como psicólogo e, por isso, afirmava ser pneumatólogo, refere-se ao reducionismo psicológico — o que é muito perigoso, pois a psicologia, de todas as ciências humanas, parece-me a que está mais perto de ser capaz de falar da experiência religiosa. Enquanto o reducionismo sociológico ou o econômico são claramente grosseiros, o psicológico pode não ser tão óbvio. Penso que há reducionismo psicológico quando a estrutura psicológica com a qual se trabalha para interpretar o ser humano não é passível de susto. Quando não emerge o estranho na estrutura psicológica que se utiliza para analisar a experiência religiosa, quando se vai por uma estrada tranquila, na qual não há susto, não há incapacidade de interpretação, onde não existe o radicalmente outro, aí está o reducionismo psicológico. É quando só há continuidades hermenêuticas. Nesse caso, fazse da religião um problema da vida psicológica, da estrutura psicológica do ser humano, como observa Evdokimov.
Isso me faz lembrar de um comentador de Meister Eckhart, Tauler (Johannes Tauler (1300-1361), dominicano alemão, é considerado um dos maiores místicos e pregadores da Idade Média. Ainda jovem ingressou na Ordem Dominicana de Strasburg. Autor de cerca de 84 sermões, editados pela primeira vez em Leipzig, em 1498.), que diz: “quem quiser ter uma experiência religiosa e não perder, em boa parte, a sua saúde espiritual (mental, como falamos hoje) está iludido com relação à experiência religiosa”. O que Tauler está querendo dizer com saúde da alma? Para um medieval, alguém da mística renana — responsável por um ruído no modelo de alma aristotélico, digamos assim —, ele quer dizer que a experiência, a unio mystica, não se dá dentro do intelecto, e sim, no fundo da alma, quando o intelecto se desfez. Não há dúvida de que Tauler está pensando em algum processo de “desimaginação” (Entbildung), no sentido de desconstrução da imagem no ser humano.
Na obra de Dostoiévski observamos que os personagens vivem em constante tensão escatológica interna, daí a febre: eles estão se despedaçando internamente o tempo todo; é como se houvesse algo dentro deles produzindo um processo enlouquecedor. A apaixonante Nastácia Filíppovna é fantástica para mostrar isso: uma mulher que sabe que poderia viver em paz em sua vidinha, com seus amantes, seu dinheiro, seu lugar na sociedade, acaba por escolher uma desgraça, insiste em uma situação que a leva à destruição. Como comentamos no capítulo precedente, Nastácia não pode ser tratada como um ícone da discussão da liberação feminina, porque, na condição de personagem, ela não participa da mentira, que é o projeto emancipatório moderno. Da mesma forma que Ivan Karamázov, ela leva a emancipação humana em geral para o abismo.
Como um homem do século XIX, Dostoiévski, de alguma forma, coloca a dúvida ao lado da sacralização, ao lado da experiência religiosa. Na discussão anterior sobre as duas epilepsias, o lado de Míchkin representa a sacralização porque simboliza esse absoluto mistério da personalidade. É quase como se o autor tentasse criar um ser humano que escapa a qualquer psicologia, já que escapa a qualquer forma humana. E, nesse sentido, pode-se até encontrar uma redenção nas falas do personagem, na forma como ele se relaciona com o mundo. Entretanto, não se pode encontrar aí uma redenção do tipo confortável, porque a história do personagem já não o permite. A sacralização da psicologia em Dostoiévski está, antes de tudo, nessa opacidade que Míchkin representa; é aquela relação que podemos fazer entre Deus absconditus e homem absconditus.
Zósima, por outro lado, dá uma aula sobre redenção, mas, quando morre, seu corpo apodrece e começa a feder. Aliócha, mesmo sabendo a data e hora do crime, também não impede o assassinato do pai. Ele fica correndo de um lado para outro e não consegue responder, por exemplo, à crítica que Ivan faz a Deus. É como se Dostoiévski dissesse que em algum nível não dá para responder a essa crítica. Assim, ele está fora do eixo teológico, o qual propõe que, no final, há evidentemente uma reconciliação.
O que podemos perceber é que Dostoiévski não deixa de ser polifônico ao falar da redenção. Não resta dúvida de que há momentos em sua obra em que a fé está posta; não há dúvida, também, de que Míchkin representa alguém que tem a experiência do sagrado. Da mesma maneira, não há dúvida de que Zósima, Aliócha e as crianças também representam isso. Mas a dúvida aparece porque ele não apresenta um final que permita dizer algo como “finalmente a fé venceu” ou “deu tudo certo”, mesmo porque se trata de uma fé na qual a agonia e o tormento estão presentes o tempo todo. Contudo, não podemos dizer que Dostoiévski não vê a mão da Providência, pois ele a vê até no niilismo.
Aliócha não responde à crítica que Ivan faz a Deus no plano intelectual, ele responde com um beijo, assim como Cristo responde ao inquisidor com um beijo. E em que âmbito do nosso sistema racional de sociedade, hoje, há lugar para alguém desse tipo: alguém que não se defende, que não produz sua autoestima, que não se preocupa com seu direito à felicidade? Aí aparece o maximalismo da ortodoxia do deserto na obra de Dostoiévski. Quer dizer, Jesus Cristo ouve aquele horror de crítica, e ainda ouve que é incompetente porque achou que o ser humano queria a liberdade. O ser humano não quer ser livre, e a maior prova disso é ele perseguir o tempo todo uma ideia que justifique a si mesmo: “eu estou indo bem”, “vai dar certo o que estou fazendo”, ou coisa que o valha. O ser humano está sempre abrindo mão da liberdade porque quer garantias, e o inquisidor é a garantia. Em outras palavras, o acalento da razão com ideias que a tranquilizem pode fazer com que ela se transforme num inquisidor.
Dostoiévski é um autor que não subestimou a força niilista da razão ocidental; ele viu claramente o que estava acontecendo. Por outro lado, Deus, para ele, é um Deus do detalhe, é um Deus que não faz milagres, que não subverte as leis da física, isto é, não faz a água do rio subir quando deveria descer, por exemplo. No final do livro, Aliócha está com as crianças. Existe um ser mais efêmero e frágil do que a criança? Ainda que Dostoiévski tenha falado de infanticídio em Os demônios, em sua última obra coloca um anjo; essa metáfora de Aliócha como criança percorre o livro todo: ele é o caçula, o mais jovem, um anjo, como o chamam os outros personagens. Apesar de a criança ser uma criatura extremamente frágil, ela é uma espécie de termômetro do amor: murcha quando ele falta e cresce quando ele existe. A criança tem cheiro de Deus.
É preciso tomar um certo cuidado porque a ideia de fé, principalmente em uma reflexão filosófica acerca da religião a 591/621 partir da obra de Dostoiévski, pode funcionar como um dogma que acalente a razão. Há saídas para o ser humano em sua obra? Ele mostra pessoas que de alguma forma se relacionam com Deus, experimentam Deus. Aliócha não perde a fé. Por outro lado, Jesus e o inquisidor são personagens de Ivan, que é o autor da lenda do inquisidor, e não Aliócha. Ou seja, são personagens do homem racional por excelência na obra de Dostoiévski. E qual é o objetivo do inquisidor? É acalentar a razão, é dar-lhe fôlego; ele quer acalmar a razão, fazer com que ela respire. E quem tira o fôlego da razão é aquele inferno que o autor cria dentro da obra. Em um momento o sobrenatural aparece como aquela coisa gostosa, como queremos imaginar, em outro é um terror absoluto. Ou seja, a emergência do sobrenatural pode aparecer com o terror e com esse caráter de risco que lhe é próprio, como na cena em que Aliócha sente-se ofendido e irritado ao constatar que o corpo de Zósima cheira mal: “E aquele que deveria ter sido, segundo sua esperança, elevado acima de todos, achavase rebaixado e coberto de vergonha!... Onde estava, pois, a Providência? Com que fim se havia ela retirado ‘no momento decisivo’, parecendo submeter-se às leis cegas e impiedosas da natureza? pensava Aliócha”.
Essa cena descrita por Dostoiévski nos remete à questão do merecimento — Zósima não merecia aquela humilhação —, que é a ideia infernal de Agostinho de que o merecimento não entra na economia da graça. O que também nos lembra a crítica de Eliade, que observa que o cristianismo está acabando, entre outros motivos, por ter submetido a religião e o sagrado à Declaração dos Direitos do Homem de Robespierre. O que não acontece ao Deus dos judeus, que, de alguma forma, fica fora da declaração iluminista, pois é paradoxal, é injusto (na medida em que elege “um” povo).
Podemos observar, então, que Dostoiévski está o tempo todo em polêmica com a modernidade, com o Iluminismo, está brigando com o que ele chama de “ocidentalização”, está numa relação de amor e ódio com o Romantismo alemão — pois quem mexe com religião depois do Iluminismo tem sempre uma relação de amor e ódio com o Romantismo alemão. Todavia, ele não está querendo provar alguma coisa, ele não escreve com o objetivo de provocar; mas escreve como quem respira, escreve como quem anda. Mesmo assim, não resta dúvida de que sua literatura serve, a partir de um dado momento, para criticar a sociedade, o status quo, e com o tempo vai ficando cada vez mais claro que serve para que ele faça essa crítica à razão ocidental, ao processo modernizador iluminista dessacralizante.
Uma característica do pensamento ocidental é negar Deus por não conseguir chegar a uma ideia racional sobre Ele. Se não estiver dentro dos limites da compreensão racional, nos limites da linguagem, então não é Deus, não é religião; pode ser qualquer outra coisa, por exemplo fundamentalismo, mas não é religião. Para a ortodoxia — e não nos esqueçamos de que Dostoiévski é ortodoxo —, ao contrário, é fundamental a tradição apofática, que implica em antinomia, isto é, num movimento oposto ao de dar nome às coisas. Assim, quando eu falava acima que Aliócha encontra repouso junto às crianças, é no sentido ortodoxo, ou seja, é o repouso da alma em Deus, e não na razão. São duas coisas distintas. E isso é muito forte em O idiota: ao lado do caráter apaixonante da obra, aparece aquilo que Joseph Frank chama de impending doom, uma maldição que permanece pairando sobre ela. Frank, num ensaio sobre a mesma obra, aponta que o início é divinizado e, ao longo da história, é como se nuvens fossem se formando no céu, isto é, uma maldição iminente que pode cair, a qualquer momento, sobre a cabeça de todos. Também observamos isso em Os demônios, embora seja uma maldição satirizada. É que, para Dostoiévski, um dos grandes enganos da nossa época é ter chegado à conclusão de que o mal não existe. Sem dúvida o mal existe e não é o resultado de uma aritmética de fatores sociais.
Todavia, há momentos sutis na obra de Dostoiévski nos quais encontramos o repouso místico. Por exemplo, no amor de Sônia por Raskólnikov; na visita de Lisa ao indivíduo do subsolo; na cena de Míchkin olhando para Nastácia e dizendo a ela: “você não é isso que finge que é”, e ela lhe falando: “você me fez sentir algo que nunca havia sentido”; na visita de Aliócha à criança que está morrendo, no seu encontro com as crianças no final do livro; no beijo que Jesus dá no inquisidor. Só que, quando há repouso, não existe atividade nômica, isto é, não há uma atividade que organize a evolução justa. É o repouso apofático, teóforo, pneumatofórico, como falam os gregos; é o repouso em Deus. E, quando se repousa em Deus, não se está repousando em um discurso racional teológico acerca da bem-aventurança da história.
É importante que fique claro que a resposta de Dostoiévski para o niilismo, para o ceticismo, é sempre o amor. É como se a resposta à aporia (“Aporia”, em grego, significa estrada sem saída. Em português, seria algo como “impasse”.) essencial, à aporia do conhecimento, que é o ceticismo, a dúvida constante, na sua obra, só fosse encontrada no amor. Dizer que só há saída para o ceticismo no amor é dar uma resposta que, obviamente, no plano do intelecto, não tem sustentação. Mas para Dostoiévski é fundamental, porque representa que a solução para o problema humano não está no eixo da razão. Mística ortodoxa: theósis.
Evdokimov diz que qualquer pessoa que tenha uma experiência religiosa radical deve esperar, em algum momento, o conselho do tipo “procure um médico”. Acredito que aqui se situe o problema real da nossa época: religião compreendida ou como refém daqueles que nós consideramos ignorantes e coitados, ou como refém daqueles que defendem Jesus, falando em um universo cristão, contanto que ele reze na cartilha do humanismo ocidental, senão não serve. E não há muita saída além disso, a não ser considerar a religião como ópio ou neurose obsessiva. Nesse sentido, a importância, entre tantas outras, de um autor “canônico” do ponto de vista da literatura, como Dostoiévski, no século XIX, ou seja, já no outono da religião no Ocidente, é esse seu alerta para a incapacidade do ser humano de compreender sua sobrenaturalidade. E essa incapacidade não é só dos ateus (existem uns que são até bem atormentados, apesar de ateus), mas inclusive dos indivíduos religiosos que, na realidade, operam o ateísmo descrito por Evdokimov (Cf. Paul Evdokimov, Dostoïevski et le problème du mal.): ética sem religião é sempre uma ética condenada a acabar, pois é circular.
É o que Dostoiévski está indicando com o parricídio: a morte da lei, do absoluto, da tradição. Ele tem uma consciência muito clara de que, com a perda da tradição, algo gigantesco se perdeu, e, quando se perde a tradição, o que resta é uma produção contínua do novo. Só que é interessante perceber que a tradição está morta, por exemplo, na mão de Stepan Trofímovitch Verkhoviénski: um indivíduo que deveria portar a tradição, um homem de cinquenta e poucos anos, alguém que foi pai, que foi professor, mas a enterra e, com isso, enterra a geração que depende dele. Já em Os irmãos Karamázov, Dostoiévski mostra um pai que, embora seja insuportável, confessa a Zósima que não é tão mau e que, se não tivesse tanto medo de como as pessoas o receberiam, ele não seria aquele bufão que é. Nesse momento aparece o homem divino: consciência de sua desgraça.
A intuição do autor é que os seres humanos mentem o tempo todo para se sustentar, para se manter.(Há uma passagem em que Zósima diz a Karamázov: “Sobretudo não minta ao senhor mesmo. Aquele que mente a si mesmo e escuta sua própria mentira vai ao ponto de não mais distinguir a verdade, nem em si, nem em torno de si; perde pois o respeito de si e dos outros. Não respeitando ninguém, deixa de amar; e para se ocupar, e para se distrair, na ausência de amor, entrega-se às paixões e aos gozos grosseiros; chega até a bestialidade em seus vícios, e tudo isso provém da mentira contínua a si mesmo e aos outros”.) Alguns acabam acreditando nessa mentira, mas aqueles que são redimidos pela agonia, que funciona como uma espécie de trava para o processo de mentira, já não conseguem continuar mentindo. E, quando não se consegue mais mentir para si mesmo ou se confessa a mentira para alguém, é esse o instante do repouso. Entretanto, a mentira está a serviço da construção da autoimagem. É aí que Dostoiévski aparece como um “profeta”, ao falar da nossa era pré- apocalíptica, tomando apocalipse como a ideia de fracasso absoluto de uma era. Para Evdokimov, Dostoiévski está falando da “religião do amanhã”, ao descrever perfeitamente o que sobrou a uma alma religiosa em nossa época. Míchkin, por exemplo, uma pessoa sacralizada, uma alma ou uma psicologia sacralizada, é um ser incompreensível, é alguém que desorganiza a natureza. É como se Jesus não combinasse com a natureza, pois não é razoável, não participa da razoabilidade da natureza ou da história. Aparece aqui, mais uma vez, o caráter de antinomia da ortodoxia, ou seja, para se repousar em Deus ou saber o que significa isso, não se pode esperar fazê-lo pelo caminho da natureza.
É importante observarmos que o pai é assassinado, mas ele “mereceu” ser morto, ainda que Dostoiévski mostre que ali há uma alma, há um ser sobrenatural presente. Como em Crime e castigo, a velha usurária também merecia ser morta. Mas, enquanto Raskólnikov entra naquele processo febril, enlouquecedor, Smierdiákov, o assassino do pai Karamázov, não é uma figura muito capaz de culpa, é um Stavróguin feio e pobre. Karl Barth (Cf. Karl Barth, The Epistle to the Romans.) diz que a religião é alguma coisa que fala de sofrimento, culpa, mal, medo, desespero, mas não resolve nada disso. Essa dimensão de uma certa morbidez sagrada da religião que Dostoiévski traz em sua obra é importante para a nossa época, porque é uma época que denega isso, denega inclusive a serviço da religião que se faz oportunista. A falha está exatamente na tentativa de tirar do universo do ser humano a loucura de Tânatos, ou os medos, as sombras, para usar uma linguagem da psicologia profunda de Freud ou de Jung, que não só faz com que não entendamos o ser humano, do ponto de vista básico da psicologia, rasteiro da natureza, como inviabiliza a vivência religiosa, que também passou pelo processo de civilização.
Dostoiévski nos mostra o que é um ser humano antinômico, sejam aqueles infernais ou os que são sagrados. E esse funcionamento antinômico gera sempre uma agonia noética em quem tenta desfazer a antinomia. Bakhtin, numa tentativa de se salvar dessa dificuldade, afirma que a polifonia é que faz com que o personagem seja antinômico, como recurso literário. E, como de fato ele é infinitamente antinômico, não é abarcado por nenhuma lógica com a qual se tente abordá-lo. Bakhtin oferece, então, uma discussão fora da raiz teológica, mostrando que a polifonia pode ser um nome literário da ordem da lógica discursiva, para falar de uma imagem da antinomia concreta do ser humano. Contudo, a antinomia, bem como a polifonia, na obra de Dostoiévski, é redentora. Isso nada mais é do que dizer que o despedaçamento pode ser taborizado.
Afinal de contas, o que fazer com um pai como Karamázov? Os filhos tinham ou não o direito de matá-lo? Um bufão, como ele mesmo se definia, um indivíduo insuportável, cuja preocupação era só o dinheiro, o seu próprio bem-estar, que abandona os filhos, que maltrata os empregados, enfim, um boêmio, bêbado, debochado e desonesto, merecia ou não a morte?
O parricídio, mais uma vez, significa a morte da lei. Não se trata aqui de leis que decoramos para pôr em prática; trata-se antes da ideia de tradição, de ancestralidade. No judaísmo, por exemplo, essa ideia é muito importante, porque, na medida em que não existe o verbo “ser”, os judeus falam da origem e, ao falar de onde se veio, ancestralmente se está dizendo quem é. Assim, o pai diz muito do que o filho é. Mas há coisa mais insuportável do que existir um “ser”, se a salvação é não existir “ser”? Considerar que há um ser é platonismo! Não temos ser, somos fruto de um contexto. O indivíduo moderno, e o pós-moderno, percorre esse caminho e conclui que os dogmas e as crenças não passam de coisas infantis. O parricídio é um estágio necessário na revolução do niilismo racional.
Atualmente, quando o indivíduo está com vontade de assassinar o pai, coloca-o numa casa de repouso, para que ele tenha horas de diversão, converse com as pessoas da sua idade, jogue cartas, enfim, para que se ocupe, porque uma das características do crescimento da miséria humana, na nossa época, é a incapacidade de não ficar ocupado. Você tem de se ocupar, caso contrário você não suporta a si mesmo. É a noção de temporalidade que temos: uma temporalidade medida a partir da carga produtiva do ser humano. Quando não se é uma pessoa produtiva, necessariamente se é um indivíduo patológico. E, o que é pior, o indivíduo será de fato extinto. A pragmática existencial nos autoriza a destruir o passado, mesmo que ele tenha nome próprio.
É um raciocínio dostoievskiano, e, na cronologia dessa reflexão, quem produziu o filho parricida foi um pai liberal, foi este quem produziu o niilista. É claro que Dostoiévski está dizendo que foi o indivíduo, enquanto geração que cria uma teoria, que ensinou o filho a ser um parricida. O que é a vida senão uma tradição do átomo? E, se o átomo está acostumado a funcionar de determinada forma e tudo é hábito, então é possível mudar a tradição. Daí o “direito de decidir”, que é fundamental nessa reflexão. Partindo do pressuposto de que Deus não existe, de que a alma é mortal, então tudo é permitido, como disse Ivan: o homem é uma sombra feita de átomos.
O ser humano não passa de mais um recurso mineral.

 (Crítica e Profecia: a filosofia da religião em Dostoiévski - Luiz Felipe Pondé)

publicado às 14:09


Promiscuidade

por Thynus, em 20.05.15

 


VOCÊ RESPEITA SEU PARCEIRO na vida sexual e amorosa? Na cama e na sala de jantar? Na cozinha e no banheiro? Espero que não. Nada há de mais mentiroso do que a ideia de afetos corretos. Ter afetos corretos é um modelo barato no mercado das baratas. Não há direitos humanos nas camas e nos quartos, mas apenas seres dominados por atavismos animais e psíquicos. O desejo corrói a alma. Quem diz que amar é querer “o bem de quem ama” é porque nunca amou. Amar é querer o outro para si ou querer que o outro deixe de existir. Isso é “querer comer” o outro. Respeitar a mulher, nesse caso, é entregá-la na mão de outro homem. Porque ela quer é ser desrespeitada, esse é o sentido de dizer, como dizia o Nelson Rodrigues, que “toda mulher (as normais) gosta de apanhar”. A intimidade só existe quando há invasão do outro. Acho muito engraçado quando os arautos da chamada “ética da alteridade” (o respeito ao “outro” como pilar das relações humanas) querem contaminar a promiscuidade da vida sexual e amorosa com esse papo de respeito ao outro. Quando você respeita o outro, é porque já ficou indiferente a ele. Quando amamos e desejamos, violamos. E ela pede mais. O mundo melhor com o qual os idiotas sonham é um mundo sem amor e sem desejo. Só desejo uma mulher que seja dependente de mim. E quero que ela seja viciada e dependente de mim até a morte. Sonho com uma espécie de ética da promiscuidade dos afetos. Uma mulher pálida de desejo é mais sensual do que uma mulher nua. Sim, sei que pareço medieval, graças a Deus.

(Contra um mundo melhor: ensaios do afeto / Luiz Felipe Pondé) .

 

publicado às 08:50


Homo Festivus

por Thynus, em 18.05.15
“Vous croyez à la vie éternelle dans l’autre monde? – Non, mais à la vie éternelle dans celui-ci. Il y a des moments où le temps s’árrête tout à coup pour faire place à l’éternité.”
Você acredita na vida eterna no outro mundo? − Não, mas na vida eterna neste. Há momentos em que o tempo para de repente para dar lugar à eternidade. 
Dostoievski, Les Frères Karamazov 
 
O “DEMÔNICO”
Os impulsos da vida são irreprimíveis, e há momentos em que eles favorecem tudo o que eleva o indivíduo acima dele mesmo. Mas é sempre a longo prazo, e sob nomes diversos, que tais impulsos se realizam. Pode-se, no entanto, ver uma gradação, por assim dizer, idêntica em todas as idades do mundo, nas mutações que esses impulsos propulsam.
É, inicialmente, uma espécie de fermentação. Agitação cultural que se deve compreender lato sensu. Os costumes evoluem, os modos de vida se transformam; e tudo isso empiricamente, com baixo ruído. A desafetação em relação à moral instituída não se faz nem sob forma contestatária, mas, sim, por contaminações sucessivas. De fato, o que era considerado como perversão sexual adquire força de lei. A desenvoltura no modo de vestir-se, sinal visível de outra concepção do corpo, é admitida na vida profissional. A música, a cenografia, a coreografia, a pintura alternativas ocupam subrepticiamente museus, salas de concerto e teatros diversos. A força do contágio fez sua obra!
Uma fermentação assim faz tomar consciência, segunda etapa, da necessidade de uma compensação. Assim, para o que concerne à análise da pós-modernidade, pode-se observar um evidente declínio da confiança em uma razão soberana. Não foi ela celebrada como “Deusa Razão”, ela que era apenas um parâmetro de nossa humana natureza? E eis que sua dominação se satura. As instituições que ela tinha legitimado se fissuram. O “Contrato social”, de que ela era a fonte, não é mais que uma palavra vazia que se celebra de uma maneira lancinante à maneira de uma encantação desencantada. É então que, em compensação, se vê o retorno dos afetos que, até então negligenciados ou marginalizados, invadem um espaço público que lhes era negado. O emocional é a compensação, natural, para um racionalismo abstrato.
E tudo isso culmina nesse terceiro momento da mutação em curso: o retorno a formas e forças arcaicas. Ao que é primeiro e fundamental. Um retorno às fontes de alguma maneira. Um passo para o elemento fundador da cultura. Retorno perceptível por um pivotamento do tempo. Com efeito, o Progresso não faz mais sucesso. O futuro não é mais garantia do bemestar; este tem que ser procurado, antes de tudo, num presente que eu vivo e divido com outros. Eterno retorno do carpe diem, apegar-se a um gozo aqui e agora.
Tais são as condições de possibilidade do que se chama o “festivo”. É útil lembrar que esse termo, algo erudito, está prestes a se tornar um lugar comum, fenômeno que é do mais alto interesse para a compreensão do “Real” social que nos preocupa. Sabe-se: as palavras e as coisas estão em constante relação dialógica; e quando aquelas aparecem é que estas já estão presentes. Parece claro, com efeito, que, a despeito de alguns espíritos melancólicos, inúmeras ocorrências desse Homo festivus ocupam a posição de destaque.
Variations sur Marie
 
É preciso, entretanto, reconhecer que se trata aí de um “Real” que o “princípio de realidade” (econômico, político, moral) tem dificuldade em aceitar. O espírito de seriedade que domina, tudo o que tenta escapar do “valor trabalho”, teorizado em seu tempo por Karl Marx, vai passar por frívolo e, portanto, de pouco interesse. Assim, por um processo de negação de que se conhecem bem as causas, a ideologia dominante vai se consagrar, por todos os meios, em tornar a lançar nas trevas exteriores o que aí deveria ter ficado.
Mesmo só indicando de uma maneira alusiva, é preciso lembrar que, desde Kant, a estética é submetida, relativizada, até mesmo mascarada pela lógica intelectual. “Há dois troncos do conhecimento humano que partem talvez de uma raiz comum... a saber a sensibilidade e o entendimento; pelo primeiro, os objetos nos são dados, mas pelo segundo, eles são pensados.”1 É por essa frase que Kant termina a introdução da Crítica, e vê, facilmente, a hierarquia que é a sua e que vai, progressivamente, contaminar a intelligentsia moderna, fazendo do entendimento a ultima ratio de toda compreensão digna desse nome.
Seria necessário ver (o que é a evolução normal de todas as representações sociais) em que essa ideologia dominante se tornou um pensamento superficial e insípido, provocando, além disso, uma incompreensão das tendências de fundo da vida societal. Não deixa de ser certo que tal ideologia pode tentar rejeitar o que está aí, mas ela não chega a isso porque, como se disse, os impulsos vitalistas são irreprimíveis e, cedo ou tarde, chegam a impor o “Real” existencial ao “princípio de realidade” abstrato.
No caso, essa necessidade de comunhão, estrutura antropológica de base que, em certas épocas, (re)encontra um vigor insuspeito. Sociólogos como Durkheim mostraram de uma bela maneira a necessidade do anômico na elaboração do sentimento comunitário. Assim, nas Formes élémentaires de la vie religieuse, ele lembra a importância e o papel da efervescência para as tribos australianas, cujas festas descreve (Corrobori).
Ele fala, a esse respeito, de um “estado de congregação” que é, regularmente, necessário para fortalecer o elo que une essas comunidades.2 Pode-se extrapolar seu propósito e lembrar que tal “estado de congregação” é um verdadeiro arquétipo que traduz um inconsciente impulso, o da integralidade ou da completude do ser social. O Nomos de um povo, essa lei interna que garante sua coesão, seu “consensus”, passa primeiramente por algo que é “antinômico”. E das bacanais dionisíacas às festas de inversão medievais, sem esquecer o papel dos múltiplos carnavais que se conhece, o papel da efervescência é suficientemente evidente para que se pare de negligenciá-la ou de tê-la por um elemento marginal.
E isso enquanto esse arquétipo tende a tornar-se um estereótipo. O Homo festivus não é mais uma simpática figura a colocar sob a rubrica de um bom velho tempo passado, mas torna-se (ou volta a ser) um elemento importante, até primordial, da vida quotidiana que, sem isso, é completamente incompreensível. Elemento que lembra um leitmotiv de todo pensamento “realista”, bem formulado por Santo Tomás de Aquino: nihil est in intellectu quod non sit prius in sensu (nada chega à inteligência sem passar primeiramente pelos sentidos).3 Banalidade de base que lembra judiciosamente a união estreita do corpo e do espírito, da natureza e da cultura que termina nesses oximoros fundadores que são o materialismo místico ou o corporeísmo espiritual.
Para traduzir isso, uma imagem me vem à mente, a do templo de Baal e de Baco em Baalbeck, no Líbano. Ruínas majestosas que, segundo os habitantes da terra, lembram a importância da orgia na estruturação social. As sólidas colunas dos templos, que simbolicamente sustentam o mundo, estão aí como testemunho intemporal da “obrigação” antropológica do lúdico. Não como capricho acessório ou como fenômeno facultativo, mas, sim, como peça mestre da arquitetônica social. Múltiplos são os templos de Dionísio, na Grécia ou na Grande Grécia, que lembram a permanência dessa característica essencial de nossa espécie animal.
Há um termo médico retomado, em seguida, na literatura, e que traduz o excesso de atividade de órgãos, em particular do coração: eretismo. Ele chama a atenção aos processos de exaltação, depois à tensão de espírito, a tudo o que tem a ver com os estados de excitabilidade do corpo individual. Mas, evidentemente, pode-se extrapolar para o corpo social em sua totalidade. Numerosas são, historicamente, as manifestações das exaltações violentas, das tensões, das paixões, na verdade, das febres coletivas.
Mas não se pode dizer que, contemporaneamente, numerosas sejam as aglomerações de todos os tipos onde se exprime um tal pânico coletivo? A importância do lúdico, o retorno do festivo que só traduz, dessa forma, uma espécie de eretismo societal. Por meio dos excessos e das tensões, são as paixões, as emoções, as indignações comuns que reencontram o lugar que o racionalismo moderno lhes tinha negado. O desenvolvimento tecnológico, em particular as redes sociais, que servem de acelerador ao retorno desse pequeno deus barulhento que é Dionísio! Para retomar uma expressão de Restif de la Bretonne, assiste-se, de fato, à revivescência de uma “religião da volúpia”.4 Religião que, o tempo todo, é correlativa de um panteísmo em que o material e o imaterial, a razão e o sensível, o entendimento e a fantasia entram em um misto fecundo. Era a intuição do romantismo; é, em nossos dias, a fonte do elã vital inconsciente de todas as tribos pós-modernas.
É pouco se, para pensar tudo isso, nos contentarmos com nossos hábitos e tranquilizantes conceitos. Convém, portanto, com audácia, saber colocar em ação categorias que a antiga sabedoria não tinha medo de utilizar. Assim, Sócrates, pedindo a inspiração ao seu daimon. E isso, é claro, a fim de poder apreender o “Real” em sua integralidade. A sensibilidade e o entendimento enfim unidos, em uma harmonia conflituosa, chegando a formar, graças à misteriosa alquimia suscitada por esse daimon, uma verdadeira razão sensível; chave universal capaz de abrir todas as portas da complexa existência.
Penso, também, em Martin Heidegger, de quem se conhece o pensamento fulgurante, indicando em suas cartas a Hannah Arendt, ou em outras, à sua mulher, o que cada avanço em sua obra devia a uma inspiração dessa ordem: “o demônico me atingiu em cheio”.5 O “demônico” é uma força complexa originária da coincidência dos opostos e, assim, capaz de integrar, em um mesmo movimento, os elementos criadores e aqueles, destrutivos, que se manifestam nas épocas de renovação societal.
 Momentos em que, à História que se pensa poder dominar, sucede um Destino com o qual é preciso compor. E numerosos são os fenômenos sociais em que a liberdade se inclina diante da necessidade. O “demônico” lembra que há poderes, inconscientes, contaminadores, que conduzem o homem, enquanto ele se crê mestre de si, mestre em sua casa.
Assim, para nosso prazer comum, amigo leitor, permita-me citar esse extrato das “conversações” de Goethe com Eckermann: “o demônico que faz do homem o que ele quer, e ao qual o homem, sem o saber, se abandona, acreditando seguir suas próprias inclinações”.6 Aqui Goethe, membro eminente da franco-maçonaria alemã, faz eco ao que essa sociedade de pensamento chama “egrégora”, poder imaterial, mas não menos eficaz que une entre si os membros de uma mesma comunidade.
Daimon para os gregos, genius para os latinos, “demônico” ou “egrégora”, eis algumas metáforas que destacam a importância do processo de dessubstancialização constitutivo de inúmeros fenômenos sociais dos quais a festa é o paradigma acabado. Essas noções dão muito bem conta da perda de si no outro; isto é, de um ato destrutivo que termina em um outro construtivo. E isso num movimento sem fim que é o mesmo da vida. É o que vive homo festivus em todos os fenômenos de êxtase cuja atualidade dá muitos exemplos quotidianos.
Nesses momentos em que predomina um desvio coletivo, o que é primordial é um forte sentimento de pertença que atinge sua plenitude em um instante vivido para ele mesmo. Cerimônias ancestrais tendo por função apaziguar os espíritos que atormentam uma pessoa com rituais extáticos, grandes reuniões musicais contemporâneas, o processo é idêntico: favorecer uma comunhão dos espíritos em que, mesmo por um só instante, a intensidade do viver em comum servia para expulsar tudo o que impedia um bem-estar ou um melhor-estar ao mesmo tempo individual e coletivo. O que é próprio do fenômeno catártico: vive-se o excesso para se purgar dele.
É nesse sentido que o “demônico” é uma expressão da inteireza do ser. Cada coisa aí tem seu lugar, em particular a alteridade. A saber, o outro de si mesmo (a multiplicidade de máscaras que é uma pessoa plural), o outro da tribo, no qual se perde sem falso pudor, esse outro, também, que é o desejo do estranho, da estranheza, que em um instante fulgurante são aceitos como tais. O todo, muito evidentemente, terminando nesse “Outro” que é o divino social: a comunidade elevada à posição do pequeno deus ao qual a festa presta um culto.
Para bem apreender essa estranha estranheza demônica, vejamos o que diz disso Michel Foucault: “as leis suspensas, os interditos retirados, o frenesi do tempo que passa, os corpos se misturando sem respeito, os indivíduos que se desmascaram, que abandonam sua identidade estatutária e a figura sob a qual eram reconhecidos, deixando aparecer uma identidade completamente diferente”.7 Isso diz respeito aos carnavais da Idade Média ou às histerias coletivas quando das epidemias que devastavam o país. Mas é um frenesi de que se vão encontrar as características o tempo todo e em todos os domínios.
Trata-se aí de uma estrutura antropológica constante e recorrente que pode tomar formas diversas, mas idêntica em sua essência. Estrutura que destaca que a energia é, certamente, a especificidade de tudo o que é vivo em geral, da vida humana em particular. Mas é, também, importante apreender que tal “energia” pode investir-se de maneiras diferentes. Às vezes, ela se estende para o que está “por vir”: “Cidade de Deus”, sociedade perfeita futura. Às vezes, ao contrário, ela se focaliza no presente. Na intensidade do momento vivido com outros. O deslizamento do político ao festivo é, em muitos sentidos, o que caracteriza a mutação da energia contemporânea.
A prevalência que assume o “demônico”, em nossos dias, traduz, certamente, tal mudança na energia social. Homo festivus substituindo homo laborans! O que não é, contrariamente ao que se diz frequentemente, a expressão de uma passividade sem horizonte ou de uma preguiça existencial, mas, sim, a manifestação de um querer-viver que integra todas as potencialidades vitais. A beleza, o prazer de ser, o hedonismo, o corporeísmo, que encontram seu lugar no mosaico rico e complexo da existência humana. Temática bem conhecida: considerar a vida como uma arte a realizar. E, portanto, realizar-se na prática dessa arte soberana. A propósito da concepção da energia em Heidegger, pôde-se dizer que ela era a expressão de um “fazer kairológico que, sem alcançar um progresso cumulativo, se realiza em cada passo do encaminhamento, ficando o tempo todo submetido ao ritmo imprevisível do tempo”.8 Trata-se aí de uma criação que, sem buscar uma finalidade exterior, se esgota no ato. O instante sendo autossuficiente. Sua intensidade que estrutura, solidamente, um viver-junto em que cada um desabrocha. Não é isso a própria essência da festividade e de sua ligação com a “mundanidade”?

DESLOCAMENTO, DILATAÇÃO, DO EU
Para além das múltiplas frivolidades moralistas que são em quantidade, mas que apenas traduzem, como é frequente em fim de ciclo, o pressentimento de que os valores próprios a esse ciclo estão em curso de saturação, importa medir as fortes consequências que emergem da estreita ligação que existe entre a “festividade” e a “mundanidade”. Porque é o fato de ter tomado consciência de que se é deste “mundo” que provoca, inelutavelmente, o desejo de aproveitá-lo.
E se se quiser atribuir às palavras o sentido que lhes cabe, é preciso reconhecer que, ao lado da moral, sempre atormentada pelo “dever-ser”, a ética, quanto a ela, se dedica a ajustar-se ao “que é” e às oportunidades que essa existência não deixa de oferecer. É assim que Aristóteles apresentava o Kairos: “é preciso que tenham, cada vez, aqueles que agem que encarar o que corresponde à ocasião”.9 Sendo, bem entendido, que essa “correspondência” ao que se apresenta é nada menos que individual. A relação com as oportunidades, com as ocasiões que se apresentam, é sempre correlativa com a relação de pertença que une a tal comunidade ou tribo. Assim, tanto o moralismo é causa e efeito do individualismo quanto a ética (ethos) é a própria expressão de uma energia “tribal” ou coletiva.10
O ponto nodal de estar nesse mundo (mundanidade) e, portanto, de aproveitar (festividade), é, a partir de então, o deslocamento do eu. Com efeito, contra o egocentrismo, alfa e ômega do pensamento e da ação modernos, é um “altercentrismo” que, progressivamente, se coloca no lugar. A alteridade serve de pivô à constituição e às representações do mundo social.
Isso foi muito bem analisado por todos os historiadores da festa, isso é facilmente observável para os fenômenos da mesma ordem em nossos dias: o festivo como momento do vaivém constante existente entre o fato de romper e de recompor. Romper o encerramento individual para recompor a abertura pessoal. Quebrar a armadura de uma identidade muito estreita: identidade sexual, ideológica, profissional, para aceder às identificações múltiplas que por meio de “máscaras” diversas a pessoa vai utilizar conforme as “ocasiões” que se apresentem. Não é assim que é preciso interpretar o “eu curto” da linguagem familiar?
 
Eu me perco no outro. Ou seja, eu só existo pelo e no Socius. O festivo não sendo, em tal perspectiva, senão uma intensa copulação (mística) com esse Socius. Deve-se entender por isso que o ser pessoal só existe em relação, em correspondência com o outro. Os fenômenos festivos lembram que é a ocultação no grupo que favorece a emergência de si. Eles apenas destacam o diálogo que existe entre a vertigem (no grupo) e o reequilíbrio da integralidade da pessoa.
Vertigem-reequilíbrio [évanouissement/épanouissement], isso pode parecer paradoxal. E, no entanto, é o que, a longo prazo, garante a permanência do ser social. É sobre um vaivém assim que Simmel faz repousar a própria essência de toda socialidade: a experiência interior sendo colocada em relação com a experiência exterior.11 E isso num movimento sem fim que, a partir de então, dá aos afetos um lugar de destaque na elaboração do elo social. Pode-se, em relação a isso, lembrar, brincando com a eufonia dos termos [em francês, évanouissement/épanouissement], que o eu desaparece na agitação [em francês, moi/émoi]. E que, fazendo isso, ele dá origem a um “nós” composto desses “eu” e, no entanto, qualitativamente, diferente de sua soma.
É o poeta René Char que diz: “não se interroga um homem agitado”. Não se pedem suas razões da agitação/emoção, ela não deixa de estar presente em todos os momentos da existência individual e coletiva. E nos damos cada vez mais conta de que raros são os domínios que escapam à sua influência. A vida política, social, até econômica, é contaminada pelo emocional. É, portanto, judicioso identificar esses momentos paroxísticos, o que são os fenômenos festivos, em que as emoções desempenham profundamente o papel que lhes cabe: eles deslocam e ao mesmo tempo dilatam o “eu” individual, fazendo-o aceder assim a um “Real” mais completo em que se diz e se vive, sempre e de novo, a juventude do mundo.
Porque há na “mundanidade-festividade” a expressão de uma energia juvenil. A dilatação impulsionada pela festa não deixa de remeter ao mito do Puer aeternus, essa criança eterna que é a figura emblemática de Dionísio. Ao mesmo tempo, nas alegrias e na brincadeira induzidas por essa energia juvenil, encontra-se sempre uma espécie de serenidade. A mesma que se encontra na mística de Mestre Eckhart, por exemplo, repousando sobre o “gosto das posições extremas”, o que permite “deixar estar”. Serenidade que atribui seu preço às coisas sem preço, isto é, que destaca a importância do “Nada”, “Não ser” que é a condição de possibilidade do ser.12
Serenidade, enfim, que “deixando-ir” a vida como convém que ela vá, destaca a importância da integridade do ser individual e coletivo. O emocional, o passional e o racional se entrecruzam em uma dinâmica sem fim, assim como a complexidade das múltiplas linhas da existência quotidiana garantem a constituição e a manutenção do que se decidiu chamar, metaforicamente, de tecido social. Deixar-ir e deixar-estar, estão aí as características essenciais de uma “festividade” que exprime ao máximo o que, cada vez mais, constitui a linha vermelha da existência quotidiana. É nesse sentido que a efervescência festiva é, stricto sensu, uma espécie de corte histológico do corpo social em seu todo.
Tendo enfatizado muito o sujeito racional, o que terminou em uma concepção muito funcional do mundo, empobreceu-se este último. Na verdade, ele foi devastado. É, talvez, banal, mas é preciso lembrá-lo, é respondendo à injunção cartesiana: ser “mestre e possuidor da natureza”, que o sujeito moderno realizou essas pilhagens ecológicas das quais a atualidade nos dá exemplos em abundância. Esquecendo sua animalidade (o papel dos instintos e dos afetos), a humanidade é assim submersa pela bestialidade.
Daí o interesse em ver ressurgir, empiricamente, o que Heidegger chama de “justa relação com o inútil” porque “a maneira como se mostra o inútil é isso que entendo pelo ser”.13 Se há um momento em que esse inútil assume toda sua amplitude, é no momento festivo! Com efeito, qualquer que seja o nome que se lhe dê, a festa exerce um papel cardeal na estruturação do elo social. É nesse sentido que ela é paradigmática, ela faz tomar consciência de uma mudança de paradigma. Para evitar as numerosas e lancinantes desinterpretações de origem moralista, o que eu chamo de “festividade” (quintessência da festa, do festivo, do prazer de ser) permite compreender que se está mudando de uma direção a outra. Estando do lado da vida, celebrando a vitalidade, reforçando o vitalismo, ela é uma criação crucial: unindo os quatro pontos cardeais e, dessa forma, simbolizando a inteireza do ser. Pode-se aqui trazer à memória que, além da multiplicidade das festas rituais, privadas, semiprivadas, públicas, todas as atividades humanas (Música, Ciência, Empresa), todas as especificidades individuais (Mãe, Pai, Avós, Secretária) têm dias dedicados a eles. Sem esquecer, é claro, as festas nacionais, regionais, cantonais e outras subdivisões administrativas. Mas o que é ainda mais significativo é como a “festividade” vai, também, contaminar os domínios até então preservados do que era considerado como frívolo. Esses domínios reservados ao político, à reivindicação sindical e até ao religioso.
Não há campanha eleitoral sem desfiles, “comícios”, onde a música e outras manifestações não sejam admitidas. É o mesmo no que concerne à ação dos sindicatos a respeito da idade da aposentadoria, a diminuição dos funcionários e outras restrições orçamentárias, que viu colocar na rua fanfarras, orquestras, sem esquecer os sons de trompas, lembrando assim o papel das emoções ruidosas na ação social. E o que dizer dessas grandes reuniões juvenis em Madri, Atenas ou Paris, onde é com grande reforço de concertos de “rock” que se é conclamado a “indignar-se”.
O religioso, em especial o mundo católico, não fica em dívida para organizar, regularmente, “Jornadas Mundiais da Juventude” (JMJ), em que é menos o discurso doutrinal emitido pelo papado que é esperado do que as múltiplas “vibrações” coletivas suscitadas pelos cantos, a música e os rituais diversos. Tudo o que, no caso, está em concordância com a dinâmica sacramental para tornar visível uma força invisível. Muito evidentemente a do estar-junto. Lembremos: estar junto por estar junto; sem finalidade nem utilidade particular!
Tudo isso culminando nessas “Grandes missas” espetaculares que são as inúmeras “Marchas dos Orgulhos”, “Gay pride”, “Tecnoparadas”, e outras “Eleição de Miss Gay”, que de Paris a Berlim, passando por Juiz de Fora, refazem, de uma maneira paroxística, a efervescência das dionísias antigas. Trata-se, stricto sensu, de caricaturas: o traço é forçado, e isso a fim de ressaltar, ao máximo, essa preocupação do excesso que é vivido, no mínimo, na vida corrente.
Pode-se definir uma das características essenciais do espírito do tempo por uma expressão tomada de empréstimo de Durkheim:14 a (re)novação dos “ritos piaculares”. Ou seja, o fato de reforçar o elo social por meio da expressão pública de “choros” coletivos. Choros de alegria, ou de tristeza, isso não muda nada no caso, basta observar que os humores, isto é, as secreções do corpo social, não podem mais ser negligenciados, mas participam de um necessário caos que, regularmente, renova o estar- junto. Trata-se de uma agitação que desperta o que se tinha um pouco adormecido e que restaura, assim, o “con-senso”, a divisão dos sentimentos sem a qual nenhuma sociedade pode perdurar.
A “festividade” é, portanto, somente a reminiscência do primitivo, do que serve de fundamento (“arcaico”) a todo viver-junto. Mas para pensar esse inicial não é possível contentar-se com o amontoado de palavras mais ou menos pertinentes. O verdadeiro pensamento deve-se deter em apreender as raízes das coisas. E a radicalidade, no caso, é aceitar reconhecer que é a própria noção de identidade que não está mais de acordo com o que se manifesta na efervescência festiva.
Identidade! Eis a coluna vertebral da tradição ocidental (judaico-cristã, semítica, moderna). Uma equação a define: “A é A”, símbolo de copertença de si a si mesmo. E é tal equação que é deslocada nas diversas festas de que se acaba de tratar. Nessas, o que se exprime é, antes de mais nada, uma copertença de si ao outro. A noção de gasto da qual Bataille mostrou, a longo prazo, a surpreendente permanência, e de que se pode ver a singular atualidade.15 Contra a prevalência da luz, o solar apolíneo, da filosofia da Aufklärung e outras expressões da atitude racionalista, a “festividade”, em uma teofania do lunar, é uma espécie de apoteose da noite, isto é, do luxo noturno da fantasia.
É tal mudança de paradigma que nos obriga a levar a sério o Homo festivus em suas diversas manifestações. Em especial, no que ele enfatiza sobre essa “necessidade de se perder” como sendo a verdade mais íntima, e a mais distante (Bataille) de todo ser no mundo. Porque, por mais chocante que isso possa parecer, é o deslocamento do eu que é a “mania” essencial do momento festivo. Loucura contagiosa porque, como para as epidemias antigas, e graças à horizontalidade induzida pelas redes sociais e pelos sites comunitários, são todos os momentos da existência que são atingidos pelo “momento festivo”.
É isso que a seu tempo eu tinha chamado de “A Sombra de Dionísio” (1982), que se espalha pelas megalópoles pós-modernas. Essa volta da orgia como “paixão” comum que atinge todos os setores da vida social e que suscita, assim, as efervescências “ex-táticas”, essas saídas de si não sendo mais o apanágio de alguns, mas, sim, o menor denominador comum no qual cada um e a vida coletiva em seu conjunto podiam reconhecer-se.
O “regime noturno” do imaginário sendo a causa e o efeito de um misticismo popular. Por intermédio das danças, da música, dos excessos diversos, a noite é o que permite todos os possíveis. Precisemos, não se trata mais aí da temática da transgressão que se situa contra os valores oficialmente admitidos. É, simplesmente, ao lado que o festivo oficioso impõe seus encantos: luxuosos, luxuriosos, isto é, não funcionais, inúteis, e, no entanto, tão necessários!
Trata-se aí de um misticismo popular que repousa sobre a ultrapassagem do elemento cardeal moderno: o sujeito pensante. Como dizia com uma ponta de humor esse homem do Sul que era Paul Valéry: “às vezes eu penso e às vezes eu sou”. É, com efeito, fora do pensamento que se situa o deslocamento do eu próprio da “festividade”. Para retomar uma expressão de Mestre Eckhart: Entbildung, uma “des-representação” correlativa de uma despossessão.16 O despojamento de nossas habituais concepções do mundo que provoca uma outra maneira de se situar nesse mundo e de organizá-lo.
Trata-se aí de uma temática recorrente da mística, por exemplo, a que prevaleceu no espaço renano ou na cabala judaica. Em todos os casos, o que é correlativo da despossessão é uma unio mystica. É esta que se pode observar nas efervescências contemporâneas: turísticas, musicais, festivas, esportivas, o que não deixa de apresentar o problema da transmutação dos valores.
Transmutação, com efeito, é o desafio que nos é lançado: é pelo fogo da festa que o “eu” se perde e se transforma em um “nós” coletivo. A passagem do “eu” ao “nós” é, com certeza, o que se pode qualificar, metaforicamente, de processo alquímico através do qual se constitui a pósmodernidade.
Transmutação que é, placidamente, aceita pelo pensamento de todos os dias, o da opinião pública, para o qual o “nós” é uma evidência irrefutável. Evidência que constitui para o saber estabelecido moderno um verdadeiro impasse. Tanto é verdade que, para a opinião publicada, o indivíduo “mestre de si como do universo” constitui a espinha dorsal do sistema social. Para este, e isso desde o século das Luzes, a Revolução Francesa até o socialismo de Estado, o sujeito é um antecedens que precede e gera todo o resto (vida natural e social) que é somente consequens. A própria etimologia do termo, subjectum, faz ressaltar em que, e como, ele é a “base” essencial, o alicerce fundamental a partir do que se pode erigir a construção do mundo.17
Alicerce que a efervescência festiva torna o mais destrutível possível. E é assim que se ouve uma intelligentsia extenuada clamar, com uma voz dolente, “ao lobo” para denunciar esse retorno do “nós”, mascarada com o estigma infamante de comunitarismo. Mas o que é, de fato, esse retorno ao ideal comunitário senão um sintoma inegável? Aquele do aniquilamento de um mundo, o mundo da economia e de seu “princípio de realidade”. Mas é esse aniquilamento que permite que cada um se eleve no “sobremundo” em que o virtual e o real se conjugam em uma combinatória diferentemente mais complexa.
É isso mesmo nas intensidades próprias à “festividade” em que, num tempo lânguido, passado e futuro se contraem em um presente eterno. Certamente, com a ajuda de diversos produtos: álcool, drogas diversas, tudo isso não deixa de suscitar uma impressão de alucinação, mas é pensar pouco permanecer num julgamento assim, porque, da mesma forma, como foi o caso em inúmeras sociedades tradicionais, afastando-se da normalidade individual, se pode chegar a esse “senso comum”, a Koiné aisthesis de antiga memória, em que todos os sentidos entram em conjunção com os sentidos de todos. A comunhão dos santos da doutrina católica tinha estabelecido a constatação, a egrégora da sabedoria iniciática lhe devolveu um vigor novo, a noosfera de Teilhard de Chardin e as diversas modalidades do sistema “Wiki” mostram sua pertinência contemporânea: pensar e agir, características do fenômeno humano, são, por essência, coletivos.
Reconhecendo esse deslocamento do eu de Homo festivus, só estamos chegando a um outro estágio, talvez provisório, da evolução de nossa espécie. Evolução, por mais paradoxal que isso possa parecer, que integra o que o mito progressista do século XIX acreditava ter ultrapassado: a saber, os aspectos não racionais, instintuais, animais, que nos constituem. Nesse sentido, o momento festivo é um bom revelador desses arcaísmos renascentes. Talvez se devesse ver aí o que Michel Foucault chama de espaços de uma “exterioridade selvagem”.18 Lugares em que o tempo suspenso lembra a importância, na verdade, a necessidade, do enraizamento. Dessas raízes que permitem à planta humana crescer e se desenvolver.
Mas a aceitação dessas raízes que a “festividade” lembra para a nossa boa lembrança nos inclina à radicalidade na atitude de pensamento. Não se trata mais aí da habitual atitude crítica que, a partir do sujeito pensante, promulgava a necessidade de uma utopia. Ou seja, stricto sensu, de um “não lugar” em que a sociedade perfeita poderia, enfim, desenvolver-se. O pensamento radical se dedica, ao contrário, a identificar, para retomar ainda um termo de Michel Foucault: as manifestações da “heterotopia”.19
O que eu interpretaria, por minha vez, como sendo “lugares” que, rompendo com a quietude das certezas estabelecidas e um pouco murmurantes, lembram a necessidade de destruir a fim de favorecer a (re)novação cultural. As festas podendo ser esses espaços mágicos dos excessos em que, justamente, se enraíza um viver-junto que sempre e de novo se realimenta nessa sede do infinito, vinda do fundo das idades, que lembra que a “lei” é apenas o eco de múltiplas e antigas experiências, as das gerações passadas de que a memória coletiva é a garantia mais segura.
O deslocamento do eu que se observa no momento festivo é, portanto, outra maneira de se enraizar no substrato ancestral. Anamnese dos que foram e que não deixam de ser. O que Auguste Comte chamava de “Grande Ser”, sempre em devir. Estamos no próprio cerne desse “sacral” pós-moderno, complexo de horrores e de ardor. Momento em que o estereótipo quotidiano alcança o arquétipo intemporal e refaz, assim, a inteireza do ser social. Holismo que reúne, em um mesmo movimento, a busca espiritual e a busca sensual. Momento festivo em que a salvação da alma e a do corpo são uma só e mesma coisa.
Em uma fórmula que pode ter sido considerada como algo heterodoxa, mas que estava em perfeita congruência com a essência da religião, Fénelon observava que esta “consiste apenas em sair de si e de seu amor próprio”.20 Essa elegante observação poderia aplicar-se à religiosidade própria das festas de todos os tempos, em que a atmosfera está na disponibilidade, na vacância, na escuta que a música não deixa de proporcionar.
Na efervescência da “festividade”, o que predomina é o fato de ser visitado pelo outro. Talvez fosse melhor dizer: ser visitado pela alteridade em geral. Em todas as grandes reuniões contemporâneas em que predominam as vibrações emocionais, vê-se que é a espera que prevalece. Espera do estranho, da estranheza, do completamente diferente, trata-se aí de um desejo difuso mas não menos insistente, recriando, frrequentemente de uma maneira paroxística, a “pequena morte” suscitada pelo orgasmo e permitindo chegar a um mais-ser, o do amor.
Nas copulações coletivas próprias dos diversos encontros sociais, não é do culto dos mistérios que se trata? É possível. Porque nas fricções de todos os tipos, na efervescência musical ou na exuberância dos clamores, é a espera do Outro que prevalece. Estando deslocado, o eu apela inconscientemente a um mais-ser existencial. E nessa “visitação”, é um inegável prazer que se manifesta: o do irreprimível e selvagem quererviver animal.
 
O “DOMINGO DA VIDA”
A mecânica, para falar da ciência das fricções, fala de “tribologia” cuja origem se encontra no tribein (esfregar) grego. Em francês antigo existe “triboler”: agitar-se, ou “tribolement”, “tribous”, remetendo às perturbações, às querelas; nossa tribulação atual é uma remanência.21 Por que essa rápida e alusiva olhadela, senão para lembrar que a agitação é um fato constante na mecânica natural como naquela que rege a vida social. E para esta, em especial, para a qual se tem, talvez, algumas competências mais precisas, pode-se dizer que o esquema da “fricção” se encontra na tecnologia do fogo (isqueiro) e na rítmica sexual. G. Durand vê aí até um dos três “gestos” antropológicos específicos de nossa espécie animal.22 Constatações empíricas: a transmutação pelo fogo, para nós, o da efervescência festiva, a procura do outro com quem se “esfregar”, tudo isso nos incita a uma atitude realista, para além e para aquém de nossos habituais idealismos modernos. O ser de cada “ente” que somos está menos no pensamento do que na relação de pertença, natural ou social, que nos constitui como tal.
É isso que constitui a constância antropológica de Homo festivus: fazer ouvir o cântico da carne. E que lembra assim que somos “encarnados” em um dado lugar. “Mundano”, isto é, cidadão deste mundo. Acontece que o retorno dos fenômenos e das ocasiões festivas é o sintoma de uma conversão: convertere, torna e retorna à pertença ao mundo natural. Não há, a partir de então, por que se surpreender que, num mesmo movimento, o “realismo” pós-moderno enfatize uma “ecosfera”, sabedoria da casa comum, e sobre a “festividade” que é uma espécie de celebração dela.
O cogito do “eu penso” se legitimava pela ideia do Deus Único, causa sui, causa dele mesmo e, em consequência, de todas as coisas. É a razão pela qual a festa foi sempre suspeita, ou bem enquadrada, pelas religiões instituídas, em especial as de obediências cristãs, porque ela fragilizava o eu e, portanto, seu fundamento: Deus. Há, com efeito, sempre algo de pagão nas iluminações festivas. O protestantismo em particular, em sua ética racional, levou até seus limites extremos a regulação das efervescências idolátricas que subsistiam no catolicismo, em particular sob suas formas mediterrâneas.23
Mostrou-se pelo processo de deslocamento do eu, pode-se acrescentar a isso o prurido de se esfregar com o outro, outras maneiras de dizer a transmutação pelo fogo da festa: tudo isso traduz o deslizamento do antropocentrismo, próprio da modernidade judaico-cristã, para uma “cosmetização” inscrevendo o humano, talvez fosse melhor dizer o vivo, nesse estojo que é o cosmos.
Não é, aliás, anódino destacar que tal cosmetização pagã anda ao lado de uma real “cosmética” quotidiana. Ornamentar-se, maquilar-se, tatuar-se, cuidar da roupa, eis quantas intimações às quais é difícil escapar para os que querem, legitimamente, participar de uma festa. Isso foi dito de diversas maneiras, eu mesmo me fiz eco disso (Au creux des apparences, pour une éthique de l’esthétique, 1990), em alguns momentos a profundidade se oculta na superfície das coisas. Em resumo, é a exacerbação do corpo próprio que estrutura o corpo social. A celebração da “pele”, do que é superficial, permitindo, assim, que todo conjunto ganhe corpo, isto é, que todas as coisas fiquem juntas, se constituam como uma relação de pertença.
Mesmo se depois isso ficou um pouco esquecido, encontra-se tal “preocupação” pagã da interpenetração, da “fricção” nos filósofos libertinos do século XVIII. Assim, essa obra erótico-filosófica: “Thérèse Philosophe” (1748), ao que tudo leva a crer escrita pelo Marquês de Argens, onde, retomando um naturalismo à Spinoza, se vê misturar em um desenvolvimento contínuo a atitude espiritual e a preocupação sensual. Constituindo assim uma ética relativista em que o bem e o mal são menos estritamente separados que mutuamente fecundados.24
Não é tal relativismo que está em jogo no momento festivo? Relativismo que, stricto sensu, relativiza uns pelos outros todos os aspectos da natureza humana: corpo-espírito, cultura-natureza, bem-mal, pretobranco..., e ao mesmo tempo, ou por meio disso, “coloca em relação”, cria elo. Tem-se aí, aliás, tudo o que diferencia a moral abstrata um pouco desencarnada, da ética concreta e perfeitamente enraizada no que é a inteireza do humano. Porque, assim como observava Groddeck, o “id é luxurioso”. 25 O que se pode interpretar de diversas maneiras, mas para o que concerne nosso propósito: como sendo, justamente, “luxuoso”, isto é, não funcional. Inútil no âmbito do moralismo produtivista, em que tudo deve servir para alguma coisa, mas das mais necessárias, desde o momento em que se toma conhecimento da importância do supérfluo.
É a lição das coisas proposta pelo momento festivo. Ela lembra o enraizamento no “id” que é este mundo. Ou ainda no “estar-aí”, “ser o aí” do Dasein heideggeriano. É, com certeza, um pivotamento do tempo que, assim, se inicia: o gozo não é mais esperado no futuro, mas no presente. E, para além do julgamento pejorativo habitualmente atribuído ao termo “cosmético”, 26 o uso cada vez mais frequente dessa palavra traduz bem, inconscientemente, o fato de que cada um e o conjunto social se inscrevem no horizonte do cosmos. Além disso, cada momento dessa inscrição apresenta um valor em si, tem um valor infinito.
A “festividade” destaca, assim, a prevalência do presente, ela traduz bem o pivotamento do tempo, que é a marca específica da pós-modernidade. Em um instante eterno se operam os encontros de que os surrealistas mostraram o “acaso objetivo”. O presente é correlativo de presença. É a antiga filosofia do Kairos que, segundo Goethe, traduzia essa “saúde do momento própria aos gregos antigos”.
O presenteísmo é uma maneira de valorizar a coexistência, a copresença, portanto, o relationismo de que não se pode mais negar a atualidade e a pertinência. Para dizê-lo de uma maneira familiar, a da sabedoria popular, Catão, retomando um lugar comum desta lembrava que fronte capillata post occasio calva (cabeluda de frente, a ocasião é calva por trás). Em resumo, convém pois captá-la no momento. Eis bem descrita a “boa ocasião” que as festas propõem.
Sejam os “rallyes” da boa burguesia tendo por objetivo favorecer os encontros de seus descendentes, as reuniões de música “tecno” ou as JMJ católicas, sem esquecer o papel que exerce a “saída para a boate” e em diversos “night clubs”, eis quantas ocasiões de encontrar o outro: a alma irmã para a vida ou o “bom encontro” para a noitada! Há nessa suspensão do tempo em um momento oportuno uma maneira de lutar contra a angústia do tempo que passa. O ritual festivo, por intermédio do repatriamento do gozo aqui e agora, lembra que o desejo da intensidade, focalizar sua energia sobre o momento (in-tendere), é, também, uma estrutura arcaica que encontra às vezes uma revivescência inesperada.
Para retomar algumas modalidades do tempo que a filosofia grega utilizou, conhece-se o chronos, esse tempo que passa e se desenrola de uma maneira inelutável. A tradição semítica, depois a modernidade fizeram dele a base da História da salvação, depois da História finalizada simplesmente. Há, também, aion, o tempo dos ciclos e das eras sucessivas. Temporalidade frequentemente suspeita pelas ideologias progressistas, mas que a progressividade da sabedoria popular e de algumas sociedades iniciáticas tinha integrado em sua abordagem humanista. Enfim, esse Kairos de que se acaba de falar, e que é a consequência lógica da “progressividade” cíclica. É a sabedoria do momento favorável que encontra nos fenômenos festivos uma expressão paroxística.
É tal experiência do presente, levada até suas mais últimas consequências, que, segundo Nietzsche, traduz a vontade, mais ou menos inconsciente, de um querer-viver instintual. Ela favorece a adaptação à realidade tal como se apresenta, o ajuntamento ao que é e aos outros, vivendo conosco a riqueza de tal presente e apreciando a beleza do mundo. Concentrando-se na ação presente e nas oportunidades que se manifestam, adquire-se assim uma espécie de serenidade originária da vida como obra de arte.27 Sabedoria do instante, sabedoria do prazer, tais são as características essenciais do hedonismo popular que encontra no momento festivo uma expressão de destaque.
Dilatação, iluminação, alucinação e todas as outras características desse gênero tornadas manifestas para os que, sem preconceito judicativo, sabem ver o que é; que se está acima do profano, e já no mundo divino. Mesmo se este for considerado como o do “devil of the flesh”, assim como celebra a música do “Black metal”. O que é certo é que se entra em cheio no reino do desejo em que se desenvolve (o que é o coração pulsante da transmutação societal em curso) a (re)novação de uma raça terrena e realista, não se deixando mais contar para o que concerne os “amanhãs que cantam”, mas que prefere degustar, com gulodice, das sedutoras oportunidades vividas no dia a dia.
Certamente, essa volúpia pode ser completamente ideal; entendo por isso “virtual”. Ou seja, pode-se, à vontade, fantasmar sobre as possibilidades oferecidas pela “teia”. Mas não deixa de acontecer que, frequentemente, esses fantasmas e outras fantasias “se atualizam”. O sucesso das festas organizadas pelas redes sociais, em especial os sites de encontro, testemunha isso; as arcaicas fantasmagorias do desejo multiforme encontram um adjuvante importante no desenvolvimento tecnológico. Tanto é verdade, e isso esquecemos muito frequentemente, que, a exemplo da eficácia própria ao imaginário, o “virtual” é causa e efeito de uma intensidade existencial não negligenciável.
Falou-se da “saúde do momento” entre os gregos. Por que não a ver, também, na efervescência festiva própria das tribos pós-modernas? O qualitativo, a criação existencial participam de uma forma de liberdade no próprio seio da dependência comunitária. Liberdade intersticial, eu disse. Isto é, a dos “momentos” de intensidade, a originária dessa “bricolagem” permanente que é toda vida humana. A efervescência de si no gozo fora do si se desenvolvendo no Si mais vasto do dado mundano. Eis qual é a forma contemporânea de “colher hoje as rosas da vida”. Injunção que Ronsard completa observando: “como uma flor caminhando por cima das flores”. É uma desenvoltura assim, a mais serena possível, que se pode observar no dionisíaco contemporâneo.
A sabedoria antiga chamava virtude (virtu), que não se conseguiria reduzir à significação atual desse termo, a energia própria do querer-viver, seu dinamismo interno. Está na lógica de tal virtude elevar-se em alegria de viver, de celebrar a beleza do mundo e seu correlato que é o prazer de ser. Talvez seja isso que se entende no que Hegel chamava de “domingo da vida que iguala tudo e que distancia de toda ideia de mal. Homens de tão bom humor, que se entregam com todo coração à alegria, não podem ser realmente maus ou desprezíveis”.28
Não se conseguiria dizer melhor o Zeitgeist contemporâneo: os humores e a alegria ambiente secretados por todas as ocasiões festivas. O que não deixa, notemos, de ter acentos trágicos. É quando há um sentimento de finitude que a festa chega no auge. O “domingo da vida” apenas exprime o cuidado existencial de viver no presente, um poder societal que entende esgotar-se no próprio ato do que é vivido.
Georges Bataille observava a “sutileza do sentido do nonsense”.29 O que se vai encontrar nos estados místicos, o que está em ação no satori do zen. É, igualmente, o que se vai encontrar em uma energia festiva que se basta a si própria. Que não tem objetivo distante, mas que se epifaniza no instante eterno. É isso, para apenas citar alguns exemplos, entre muitas outras manifestações da mesma ordem, que se vai experimentar nas ferias de Nîmes, de Béziers, nas festas de Bayonne, onde todo mundo e a comunidade em seu conjunto se perdem em um sentimento oceânico que não deixa de lembrar a nostalgia do bem-estar matricial.
Há, com efeito, na efervescência festiva, um refluxo do político para o místico. Um elã vital que lembra a importância da “carne” e do pathos que é sua expressão. O fato de que nas mídias, na ação pública, em todos os domínios da vida privada, voltam, de uma maneira lancinante, termos como lúdico, estético, até mesmo imaginário, traduz bem a crise de uma concepção puramente racionalista do elo social.30 A socialidade em jogo não é mais simples sociabilidade. Ela se refere a toda uma série de parâmetros que o “Contrato social” moderno tinha desprezado ou mantido em quantidade negligenciável.
A crise, lembremos, é, em seu sentido etimológico, crisis, um julgamento feito pelo que é sobre o que foi; é, também, uma passagem no “crivo” rejeitando o que é caduco, e conservando o que merece sê-lo. Nesse sentido, a crise é, sempre, aposta de esperança, indício de uma (re)novação existencial e societal. É tudo isso que destaca Homo festivus: retorno do “demônico”, deslocamento do eu, revivescência do “domingo da vida”.
Algumas vozes proféticas tinham anunciado tal mudança de paradigma: o romantismo, alguns sonhadores do século XIX (como Charles Fourier), os surrealistas ou, ainda, os situacionistas, todos celebrando o aspecto-prospectivo de um barroco que exprime “a agitação vitalista, a turbulência dinâmica” e assim anunciam “um novo mundo no seio do qual o mítico, o lúdico, o passional, modulam sua eficacidade e sua presença sobre as ruínas da razão utópica”.31
Diagnóstico completamente pertinente e prospectivo no fato de mostrar como, contemporaneamente, a razão certa enriquecida pelo sentido comum enfatiza uma utopia vivida aqui e agora. Utopia em que o emocional ocupa um lugar de primeiro plano. O que anuncia um viverjunto em que o corpo em particular, o sensível em geral, vão ser elementos dos mais determinantes possíveis. É isso que destaca o momento festivo: uma ordem em que o amor será essencial.

(Michel Maffesoli - Homo eroticus – Comunhões emocionais)
 
 Notas
1 E. Kant, Critique de la Raison pure. In: OEuvres philosophiques. Paris: Gallimard, Pléiade, 1980. p. 780.
2 E. Durkheim, Les formes élémentaires da la vie religieuse (1912). Paris: Reed. CNRS Éditions, 2008.
3 Santo Tomás de Aquino, De Veritate. Questio 2, art. 3, argumentum 19.
4 Cf. A. Viatte, Les sources occultes du Romantisme, p. 252-253.
5 H. Arendt e M. Heidegger, Lettres, p. 18 (carta de 27.02.1925), e M. Heidegger, Ma chère petite âme.
6 Goethe, Conversations avec Eckermann. Trad. fr. Gallimard, Paris, 1988; e também Poésie et Vérité. Paris: Aubier, 1941. p. 490-501.
7 M. Foucault, Vigiar e punir.
8 M. Roemer, Le laboureur de l’être. Georg Olms, 2004. p. 159.
9 Aristóteles, Éthique à Nicomaque, II, 11, 1.104.
10 Remeto aqui ao meu pequeno ensaio: M. Maffesoli, Morale, éthique et déontologie. Paris: Fondapol (Fondation pour l’Innovation Politique), 2011.
11 Cf. G. Simmel. Sociologie, p. 736.
12 Cf. Voici Maître Eckhart. dir. E. Zum Brunn, Jérôme Million, Grenoble, 1994. p. 209, 301 e 347. 13 M. Heidegger, La dévastation et l’attente. Paris: Gallimard, 1995. p. 9.
14 Cf. E. Durkheim, Les formes élémentaires de la vie religieuse.
15 Cf. G. Bataille, La part maudite, e La notion de dépense. Paris: Minuit; cf. também Ph. Joron, La vie improductive. Georges Bataille et l’hétérologie sociologique. Presses Universitaires de la Méditerranée, 2009, sem esquecer a análise de G. Durand concernente aos regimes “noturno” e “diurno” do imaginário. Cf. G. Durand. La sortie du XXe siècle.
16 Cf. W. Wackernagel, L’être des images. In: Voici Maître Eckhart. Dir. E. Zum Brunn, p. 457; cf. também Moshe Idel, Maïmonide et la mystique juive. Paris: Cerf, 1991. p. 8.
17 Cf. M. Heidegger, Schelling, p. 139.
18 M. Foucault, Ordre du discours. Paris: Gallimard, 1971. p. 37. Remeto aqui à minha crítica do mito do Progresso em M. Maffesoli, La violence totalitaire (1979), Cap. “Sociogenèse du progrès et du service public”, p. 445-538.
19 M. Foucault, Les mots et les choses. Paris: Gallimard, 1966. p. 9-10.
20 Fénelon, Sur la prière. In: OEuvres. Paris: Pléiade, Gallimard, t. I, p. 611.
21 Cf. R. Gransaignes d’Houterier, Dictionnaire d’Ancien Français. Paris: Larousse, 1947. p. 572-573.
22 G. Durand, Structures anthropologiques de l’imaginaire, p. 46 e 180.
23 Cf. M. Weber, L’éthique protestante et l’esprit du capitalisme.
24 Cf. J. I. Israël, Les lumières radicales, p. 127-128.
25 Cf. G. Groddeck, Le livre du ça, p. 36.
26 Por exemplo, é frequente dizer “é maquiagem” para designar uma reforma, uma mudança puramente superficial, portanto, de pouca importância!
27 Cf. a análise dessa criação presente segundo Nietzsche proposta por P. Hadot, N’oublie pas de vivre. Paris: Albin Michel, 2008. p. 49 e segs.
28 Hegel, Esthétique. Paris: Le Livre de Poche, 1997. v. 2, p. 317.
29 G. Bataille, Sur Nietzsche. Paris: Gallimard. t. VI, p. 160. Cf. também PH. Joron, La vie improductive. Georges Bataille et l’hétérologie sociologique. Presses Universitaires de la Méditerranée, 2009, e Les Fêtes de Bayonne. CNRS Éditions, 2012. E D. Jeffrey, Jouissance du sacré. Armand Colin, 1998.
30 Cf., por exemplo, G. Simmel. Sociologie et épistémologie, p. 124-125. Cf., também, J. Dubois, La mise en scène du corps social. Éd. Harmattan, 2007, e V. Susca, C. Bardoinne, Récréation. CNRS Éditions, 2009.
31 P. Tacussel, Charles Fourier, le jeu des passions. Paris: D. D. B., 2000. p. 250.

publicado às 03:50


MAQUIAGEM

por Thynus, em 17.05.15
 

Existe na natureza uma coisa chamada seleção sexual. Ela foi tema do primeiro livro de Darwin que falava da espécie humana. Na espécie dos pavões, quem escolhe é a fêmea. Um pavão tem que aparecer espetacular, e eles o são, a despeito de suas caudas serem uma enorme atrapalhação na hora de fugir dos predadores. As fêmeas são sem graça, mas não precisam de graça, são elas que escolhem.
Os cientistas descobriram que podiam maquiar um pavão, aumentando sua cauda com mais penas e penas mais compridas. Foi esse o pavão escolhido!
Na nossa espécie, homens e mulheres se maquiam, mas com finalidades diferentes.
A nossa diferença dos pavões é que neles só as fêmeas escolhem. Entre os Homo sapiens, ambos escolhem. E escolhem de maneira diferente, pois o desejo nos homens é despertado de um jeito, e nas mulheres, de outro.
O homem tem tesão visual. Seus olhos se atraem como por um ímã para seu objeto de desejo, que, uma vez achado, produz neles um início de preparação corporal para o sexo. Aliás, o método mais fácil de se saber a orientação sexual de um homem é verificando qual é seu ímã do olhar: uma mulher ou outro homem.
A mulher não tem tesão visual (apesar de cerca de 10% delas o terem, porque suas taxas de testosterona são mais altas e seus cérebros funcionam mais de maneira masculina). Seus olhos se atraem para o homem interessante. Interessante por vários critérios ligados à cultura. Se o homem interessante olhar para ela com desejo, aí sim, o desejo sexual da mulher é despertado, e seu corpo começa a se preparar para o sexo.
Certa vez dei uma palestra na Light sobre esse tema, e ao afirmar o que disse antes, um grupo de mulheres protestou que elas tinham, sim, tesão visual. Propus então um teste. Na plateia havia umas duzentas pessoas, apenas vinte homens. Disse: “Mulheres, imaginem duas fotografias. Uma é de um rapaz em seus vinte e poucos anos, muito bonito de rosto e corpo, completamente nu em frente a um fundo infinito. A outra é de um homem nos seus quarenta, têmporas grisalhas, de terno Armani, saindo do banco de trás de uma Mercedes com motorista. Agora levante a mão quem prefere o de terno Armani (150 mulheres ergueram o braço animadamente). Agora as do rapaz nu (dezoito se apresentaram, numa certeira comprovação estatística: eram do grupo da testosterona).
Critérios de seleção sexual em nossa espécie:
Os machos escolhem uma fêmea pelo visual que lhes desperta desejo, excitação sexual, pelas características que indicam fertilidade e bons genes para suas crias.
São elas: beleza (cujo principal critério é a simetria corporal, principalmente a facial); saúde (postura ereta; carnes abundantes e firmes, mas não tanto que pareçam masculinas, pois carnes firmes demais numa mulher sugerem excesso de testosterona, portanto, esterilidade; seios fartos para uma boa amamentação; quadris largos, para um parto fácil; mucosas rosadas, como o lábio e o leito das unhas; escleróticas límpidas – a parte branca dos olhos); juventude (essencial para a fertilidade, e isto, a partir do momento em que a jovem apresenta caracteres sexuais secundários, como peitos e quadris, por isso é tolice dizer que um homem é pedófilo por desejar uma menina assim de doze anos – ela já é capaz de ser mãe –, e antigamente muitas se casavam com essa idade). Não lhes importa tanto a origem social, a educação ou o requinte para que o desejo sexual lhes seja despertado. Para outros compromissos, a coisa é diferente.
Mas só ouvimos mulheres dizendo que o ideal é serem “durinhas”, secas como um varapau, e que usar esmalte verde e batom roxo é o máximo. Como se explica?
Elas estão seguindo uma moda ditada por homens que não se interessam por mulheres e competindo com outras mulheres. Para homens que gostam de mulheres, elas só se parecem doentes e estéreis, ou seja, não desejáveis.
Maquiagens mandam mensagens.
Mulheres: lábios inchados; batons rubros; unhas enormes; próteses mamárias gigantescas; roupas mínimas que mal seguram seus conteúdos; e seus congêneres dizem que ela está pronta para a guerra, nem que seja por uma noite. O contrário disso, ou seja, o low profile, da discrição, diz “eu sou confiável para a vida toda”. Qualquer maquiagem, afora o negro que circunda os olhos, se sair dos subtons do vermelho, dará a impressão de doença.
As fêmeas escolhem pelo visual que lhes desperta interesse (“Fulano é interessante”). Isso varia de tribo para tribo. Ao contrário dos homens, para elas, nunca será um homem nu. Ele pode estar vestido de Armani e comendo no Oister Bar ou tocando guitarra de jeans esfarrapado, cheio de tatuagens; ele precisa enviar seu contexto, ou não será considerado “interessante”.
Maquiagens mandam mensagens.
Homens: saiba a tribo que lhe interessa. Mauricinho? Porsche, cashmere no ombro e Rolex. Metrossexual? Ih, desculpe a ignorância, só sei que eles se depilam. E assim por diante...

(Francisco Daudt - A Natureza Humana existe. E como manda na gente)

publicado às 16:41

 
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O que é o tempo?
 
Do ser do tempo, pode-se falar? Para tentar falar sobre o tempo, pretendemos tocar levemente nas seguintes questões: o tempo é objetivo e está na natureza ou é subjetivo e está na consciência? Ele é qualitativo ou quantitativo? Como se define o presente? E o passado e o futuro, como podem ser definidos? Quais as relações entre tempo e espaço? Quais as relações entre tempo, finitude e eternidade? O tempo é irreversível ou reversível, isto é, como se relacionam suas três dimensões, o passado, o presente e o futuro? Ele é singular ou plural, universal ou múltiplo? Quais as relações entre tempo, história e cultura? Haveria alguma relação entre tempo e paternidade? O que pensam os historiadores sobre a “dimensão histórica” do tempo?
O tempo aparece sob o signo do paradoxo: ser e não ser, nascer e morrer, aparecer e desaparecer, criação e destruição, fixidez e mobilidade, estabilidade e mudança, devir e eternidade. Sob o signo da contradição, do ser e do nada, o tempo parece inapreensível. Ele é descrito de modo contraditório: a pior e a melhor das coisas, fonte da criação, da verdade e da vida e portador da destruição, do esquecimento e da morte. Ele engendra e inova e faz perecer e arruína. Ele é pai e destruidor de todas as coisas, origem e fim, a sua passagem é aflitiva (“isto não vai acabar nunca?”) e consoladora (“vai passar!”). Ele não é apreensível, pois invisível, intocável, impalpável, mas pode ser “percebido”. Pode-se percebê-lo na natureza, nos movimentos da esfera celeste, das estrelas, planetas e satélites em torno deles mesmos e em torno uns dos outros, no retorno das estações, na diferença entre dia e noite. Para Pomian, pode-se percebê-lo fortemente no corpo humano, que é um “relógio vivo”, os estados somáticos, temperatura, hormônios, sangue, variam com uma periodicidade circadiana de origem endógena. Uma cronobiologia mostra que o homem não precisa da cultura para perceber o tempo, pois suas funções vitais são temporais, com suas desregulagens próprias, que são doenças temporais: ansiedade, depressão, esquizofrenia, angústia, distúrbios do sono, da sexualidade, distúrbios ligados ao esforço repetido, ao estresse (Pomian, 1993).
Nestes tempos naturais e vivos, predominam a regularidade, o retorno, a repetição, uma ordem estável, que inspirou a criação do relógio mecânico, que se tornou uma medida do tempo artificial, abstrata, alheia àquilo que mede. O relógio mecânico surgiu entre 1300 e 1650 e trouxe mudanças importantes na percepção social e cultural do tempo na Europa ocidental. O tempo do relógio ao mesmo tempo se inspirava na regularidade da natureza e a substituiu na organização da sociedade. O canto do galo não despertava mais para a aurora da jornada de trabalho e o movimento do sol não disciplinava mais as atividades do dia. Antes, o relógio diário era o da rotina das tarefas do pastoreio e da agricultura: reunir as vacas e ovelhas, ordenhá-las, soltá-las no pasto, capinar, plantar, colher, caçar, pescar. Cada tarefa tinha seu momento e sua duração previstos e orientava a vida cotidiana. Havia também um tempo religioso de rezas, terços, missas, festas, procissões, sermões. Para Le Goff, este tempo religioso ritmado pelo repicar dos sinos organizava toda a vida social: nascimentos, batizados, crismas, casamentos, mortes. O surgimento das cidades reguladas pelo tempo mecânico do relógio pôs fim à exclusividade dessa vida camponesa e religiosa. O usurário pôs o tempo à venda e emprestava dinheiro contando os meses, dias e horas, os comerciantes estabeleciam seus preços considerando o tempo necessário à produção das mercadorias ou as durações dos trajetos de longa distância. O tempo do trabalho passou a ser disciplinado, racionalizado, com vistas a se evitar o “desperdício de tempo” e a se ganhar dinheiro com o tempo. A ociosidade foi proibida e as relações sociais se automatizaram (Thompson, 1998; Le Goff, 1960).
O tempo pode ser percebido também na vida psicológica individual, onde predominam durações irregulares e heterogêneas, um tempo qualitativo, desigual, afetivo, plural, irreversível, instável, avesso à regularidade natural e à abstração do relógio. Ele pode ser percebido ainda nas mudanças históricas: no homem rico e poderoso que se tornou pequeno e pobre, na mulher bela que não é mais, que era amada e tornou-se ex-mulher, no homem jovem, vigoroso, que envelheceu e decaiu, no burguês que virou proletário e foi submetido ao relógio de ponto, no grupo derrotado que conseguiu vencer, no escravo que se tornou livre, na nação que era soberana e foi conquistada. Ele é visível nas oscilações de sorte e azar, sucesso e fracasso, altos e baixos, ascensão e crise, derrota e conquista, escravidão e liberdade. Como puro devir, o tempo é percebido como uma sequência de momentos que se excluem, uma sucessão de termos que aparecem e desaparecem, que introduz uma existência nova e nega uma existência dada. O tempo seria a constante redução do ser ao nada, pela descontinuação e sucessão do ser. Para representá-lo, geralmente, se recorre a metáforas: é como a música, uma sucessão de sons que duram, oscilam em ritmos múltiplos e harmoniosos e desaparecem, deixando apenas a lembrança, ou como o rio, que desce ora mais rápido, ora mais lento, que nunca retorna, mas que o pensamento pode percorrer a jusante e a montante (Lavelle, 1945; Alquié, 1990; Reis, 2009).
 Para Lavelle, a melhor definição do tempo seria “alteridade”, isto é, a negação constante do atual. Como devir, o tempo é vivido como o “terrorismo do tornar-se”: ele promete, dá, ilude e, depois, toma, não cumpre, desilude, porque não dura. O que leva o homem a sonhar com a evasão do tempo: a eternidade. O problema da eternidade aparece porque a finitude é a pior opressão e o homem sente o desejo de salvação. Posto na finitude e entre coisas finitas, no devir, o homem possui a ideia do infinito que, por definição, não pode ser atualizado como presença real, pois não seria mais infinito, mas um ser determinado. Para Gadamer, a natureza do tempo é um dos mistérios mais insondáveis: “a dificuldade que põe o tempo é que nosso espírito é capaz de conceber o infinito e se vê rodeado pela finitude. É aí que reside o mistério do tempo — tudo o que encontramos na realidade é limitado, mas nosso espírito não conhece limites”. A filosofia tende a se render diante desse seu objeto de reflexão, a considerá-lo misterioso, inapreensível, o que significa, de alguma forma, uma derrota para o pensamento. A reflexão sobre o tempo é essencialmente aporética, complexa, múltipla e pouco concludente. Para Kojève, a reflexão filosófica sobre o tempo é “pobre”, porque nos fala pouca coisa sobre o que seria o tempo enquanto tal e a maior parte dos filósofos pôs em dúvida o fato de que o tempo seja. Mas, para Kojève, uma noção só pode ter sentido se ela se relaciona a “alguma coisa” e se a noção de tempo existe, logo, ela deve ser relativa a “alguma coisa” que não ela mesma e que não o nada. O tempo deve ser “alguma coisa”, pois a noção de tempo existe e só se pode falar de algo que é e do qual se fala. Se se fala que é impossível falar do que se fala é contradizer-se (Lavelle, 1945; Alquié, 1990; Gadamer, 1978; Kojève, 1990).
Portanto, é possível falar do tempo e fala-se. A busca ontológica do tempo “enquanto tal” exclui a relação do tempo com o discurso que fala dele. O tempo existiria, então, “enquanto tal”, ou seja, independente do fato de que se fala dele. Mas, não é possível uma ontologia do tempo, uma apreensão do tempo em si, mas somente “representações”, discursos sobre ele. Mas, mesmo como objeto de discurso, Aristóteles já se perguntara: pode-se falar de um ser que é e não é? Deve-se pôr o tempo entre os seres ou entre os não seres? Qual seria a sua natureza? Por um lado, ele parece não existir de forma alguma; por outro, ele teria só uma existência imperfeita e obscura. Por um lado, ele foi e não é mais; por outro, vai ser e não é ainda. Seu ser é constituído por não seres: não é mais, não é ainda! Mas, prossegue Aristóteles: se o tempo é composto, é divisível e, se é divisível, então, alguma de suas partes ou todas existem e ele existe. Portanto, o tempo se dá à fala, é representável, e pode-se, então, relativizar aquela afirmação de Kojève sobre certa “pobreza” da reflexão filosófica sobre o tempo, pois há uma riqueza de discursos sobre ele desde Parmênides, Aristóteles, Santo Agostinho, Plotino, Newton, Kant, Hegel, Marx, até Husserl, Heidegger, Bergson, Bachelard, Ricoeur, Elias, para citarmos somente os discursos mais clássicos (Kojève, 1990; Aristóteles, 1926; Reis, 2009).
Enfim, é a linguagem que “faz aparecer” o tempo. O que mais nos permite percebê-lo são as palavras que usamos para falar dele: “transcurso, devir, mudança, transição, sucessão, irreversibilidade, ausência, presença, continuidade, ruptura”, entre outras. Estas palavras o descrevem como trânsito do ser ao não ser e do não ser ao ser. Vamos procurar apreender e definir as partes que o constituem, o passado, o presente e o futuro. As relações entre essas partes são complexas: qual delas é predominante? São separáveis? São lineares? São irreversíveis? Quando termina o passado e quando começa o presente? Vamos tentar definir o que seriam estas partes constitutivas do tempo e as suas possíveis relações, sem nenhuma pretensão conclusiva, porque tudo depende do modo como se fala. O tempo é o que se fala dele e a melhor forma de abordá-lo é fazendo a “história do tempo”, isto é, dos discursos e “representações” que as sociedades e culturas fizeram dele (Ricoeur, 1978).

O passado é o local da experiência: sido, acontecido, vivido
Pode-se vê-lo de três modos, pelo menos.
a) ele é o que não é mais, o que deixou de ser e, nesta perspectiva, não é localizável, não está em lugar algum, não é observável e, portanto, não existe. Se a compreensão do passado se reduzisse a este modo de defini-lo, o conhecimento histórico seria impossível, pois não teria objeto;
b) ele existe e pode ser percebido como uma “espiritualização do ser”, como lembrança e conhecimento retrospectivo, no presente. O passado é o conhecimento de si do presente, de sua trajetória, que tem a forma da recapitulação, da retrospecção, da anamnese. Contudo, a memória-presente pode recuperar fielmente o passado? Como “conhecimento”, o passado pode ser considerado também um não ser: ilusão, ficção, impossibilidade de reconstituição da experiência vivida. Mas, a memória-presente produz uma “ilusão intelectual”, pois o real acontecido disciplina a fantasia. A representação do passado liga-se a uma situação presente e é nessa situação que ela ilumina a ação. Portanto, nesta perspectiva, o passado não existe em si e se confunde com a reconstituição que se faz dele. Ele é a possibilidade mesma do pensamento, já que toda reflexão é retrospectiva. O ser do passado é sua representação, que está situada no presente, que gera alguns sentimentos específicos: pesar, lembrança, reconhecimento, remorso, saudade, lamento. Como conhecimento, ele se dá como retrospecção, um conhecimento a posteriori, que não permite nenhuma intervenção. Sobre o passado não se age mais, o retorno apaixonado ao passado é ineficaz. A vivência do passado como paixão é uma recusa do tempo, pois ao passado não se retorna e, tomado como conhecimento, o passado não obriga e determina, mas informa a iniciativa presente tendente ao futuro.
c) o passado é o que há de mais sólido na estrutura do tempo. Deste, o passado é a única dimensão que pode ser objeto de conhecimento. Ele não é mais a negação da existência, mas afirmação do ser. Ele penetra o presente e o futuro, é a parte mais dura do ser do tempo, a que vence o devir. Só como tendo-sido a experiência se dá ao conhecimento. Ele é duração realizada, consolidação do tempo, o que já é e ainda é. O presente é de certa forma o “corpo do passado”, a sua presença concreta em vestígios, documentos, comportamentos, linguagens, valores, rituais. O passado é visível no presente como se fosse seu solo e pode oprimi-lo ou ser a base de seu lançamento para a liberdade.
A descrição do passado é aporética: o que não é mais e o que é de fato, conhecimento verdadeiro e ilusão, prisão e liberdade, inquietude e repouso. Por um lado, o pensamento do passado é tranquilizante: dado, estável, conhecível, descritível, ausência de risco, certeza e repouso; por outro, é inquietante, pois representa antecipadamente a morte, a finitude, o irrecuperável e inacessível ser.

O presente é o local da sens/ação
É a terceira parte do tempo, porque é mediador, faz a transição do passado ao futuro, momento em que o futuro emerge e o passado afunda ou em que o passado se torna mais longo e o futuro mais curto, qualquer que seja a lonjura presumida de um e de outro. Ele é o ponto de partida de toda representação do tempo, o que divide o tempo em passado e futuro. É sempre de um ponto de vista presente que se representa o passado e o futuro. Ele é a ponte que assegura a continuidade do passado no futuro e o limite que os separa. É a experiência mais fácil do tempo, pois percepção, e a mais difícil, pois transcurso. Como percepção, o presente é um estado real de duração, a parte mais sólida, mais estável, mais substancial do tempo. Ele é triplo: momento original, lembrança do passado e tendência ao futuro. O presente é presença, ação, iniciativa. Ele é o lugar do enunciador do tempo, do sujeito, do agir de um enunciador. O presente é o que está diante de mim, iminente, urgente, sem atraso — é como “o corpo do atleta pendido para a frente no momento da largada”. O presente e o passado recente se pertencem, pois o presente o retém e alarga-se; o presente e o futuro imediato também se pertencem e, assim, o presente assegura a continuidade do tempo. Mas, a diferença entre presente, passado e futuro é clara: o passado não é mais e o futuro não é ainda e estão excluídos do presente, que é o que está acontecendo.
A descrição do presente também é contraditória: é a parte mais impegável do tempo, pois transitório, e a mais sólida, porque percepção e local da iniciativa do enunciador do tempo. Como tempo do enunciador, o presente é o tempo vivido, que organiza todas as perspectivas sobre o tempo. O presente-instante pode ser visto de três modos: como ponto abstrato, que divide o tempo em antes e depois, fim do antes e início do depois, corte abstrato, não vivido, que permite descer e subir para o passado e o futuro; como lugar determinado, vivido, singular, uma experiência vivida concreta, localizada no tempo-calendário, que ocorre aqui-agora; como instante eterno, viver no instante é viver na eternidade, que seria a presença da consciência a si mesma, quando ela consegue se ampliar e vencer seu transcurso. O instante é a união da consciência consigo mesma, que perderia seus aspectos futuro e passado, para ser plenamente presente a si. Zenão de Eleia explica a imutabilidade do tempo com o exemplo da flecha lançada: por um lado, ela está em movimento acelerado; por outro, ela sempre está em um instante e, portanto, parada. Um homem circula em diversos lugares-tempos, idades, mas é sempre ele mesmo e está sempre em si mesmo. Logo, o seu movimento é ilusório, porque está sempre no instante (Lloyd, 1978; Honderich, 1984).
 
O futuro é o local da expectativa, que exige esforço e atenção
É a segunda parte do tempo, pois posterior ao passado, que é primeiro e anterior. Ele é portador tanto da inquietude, da instabilidade, do medo da finitude, quanto da esperança de ser. A aceitação do futuro é a aceitação do risco-morte, porque é limite ao meu poder, uma ameaça contínua ao ser. Mas, se é incerteza e risco, é também promessa de ser. O futuro completa, termina, aperfeiçoa o ser. O que é no tempo é incompleto e precisa do futuro para se completar. Realizar ações é dirigir-se ao futuro, engajar-se no tempo. É no futuro que se constrói um mundo. Aceitar o futuro é vencer o medo que o tempo inspira: a finitude. Um ser sem necessidade do futuro é o “ser eterno”, o Uno, que sempre é. A descrição do futuro também é aporética: o futuro é tendência ao ser e ao não ser, é certeza e incerteza, é alegria da conquista e angústia do fracasso, vitória do desejo de viver e medo da morte, expectativa de ser e medo de desaparecer antes.
Portanto, toda a ambiguidade do tempo como ser/não ser aparece na descrição de suas partes. No entanto, ao fazerem descrições tão imprecisas e contraditórias do tempo, os autores que estamos seguindo, Lavelle (1945), Guitton (1941), Alquié (1943), Pucelle (1962), Kojève (1990), nos dão uma ideia mais clara dele. Ele é uma relação dialética entre ser e nada, entre alegria de viver e medo de morrer, entre sofrimento da finitude e desejo de eternidade. A descrição das partes vale pela descrição do todo.
Esta complexidade torna-se maior quando se pensa nas relações que as partes mantêm entre elas. Dependendo da parte que predomina, tem-se um tipo de representação da orientação/direção/ sentido do tempo: a) linear: o passado precede o presente, que precede o futuro. O presente é ponte entre passado e futuro e há uma relação necessária, causal, que gera uma continuidade inexorável, determinista, do passado ao futuro; b) teleológica: o futuro é primeiro e organiza o passado e o presente, pois é nele que estes têm seu fim. Passado e presente são ordenados por uma causa final; c) presentista: o presente predomina na atitude do carpe diem ou no desejo espiritual de ascensão à eternidade no instante. O monge vive no instante místico, quieto, retendo o passado e antecipando o futuro. É no presente que há a lembrança e a espera e Santo Agostinho propôs um triplo presente: presente-do-passado (lembrança), presente-dopresente (visão), presente-do-futuro (esperança); d) ramificada: cada presente abre o futuro como possibilidades diversas, oferecendo ao sujeito a liberdade de escolha da ruptura ou redirecionamento do passado; e) concêntrica: para Heidegger, não há assimetria entre passado e futuro, mas unidade articulada do futuro/passado no presente: “um futuro que torna presente o processo de ter sido”. Heidegger põe o futuro como predominante, como local da finitude. O ser-aí (dasein) deve partir dessa determinação para o interior da consciência viva, que é o passado e o presente. Ele põe primeiro o futuro-nada, para adentrar no ser, que é a articulação de passado/presente/futuro, antes do nada. A orientação do tempo do dasein não é bem o futuro, posterior ao passado e ao presente, mas o centro de si, reunindo a dispersão desses tempos em uma relação autêntica consigo mesmo, isto é, do dasein posto diante da sua finitude. Pode-se pensar ainda em outros modos de articular as partes do tempo: espiral, arqueológica, fractal, estrutural etc. (Ricoeur, 1978, 1983-1985; Santo Agostinho, 1982; Barreau, 1985).

(José Carlos Reis - TEORIA & HISTÓRIA

VOCÊ É FELIZ? SAIBA ENCARAR: PASSADO, PRESENTE E FUTURO!

publicado às 00:02


Folias clericais

por Thynus, em 05.05.15

O jornalista italiano Carmelo Abbate é especializado em produzir matérias investigativas sobre temas de relevância social, tais como trabalho clandestino, as agruras da imigração, os descalabros no sistema de saúde, o comércio do sexo e outras ciladas e sinucas que afetam os pobres, desvalidos e incautos em seu país. Muitas vezes Abbate se disfarça de objeto de seu estudo, virando imigrante marroquino, paciente da rede pública, trabalhador clandestino, ator pornô, e por aí vai, para melhor escarafunchar os dramas que pretende revelar ao público. Seu último trabalho, o livro-reportagem Sex and the Vatican — viaggio segreto nel regno dei casti (O sexo e o Vaticano — viagem secreta ao reino dos castos), que tem provocado não pouco buchicho nos meios católicos, traz revelações desconfortáveis sobre o comportamento sexual dos servos da Igreja num país ainda muito carola e conservador, pelo menos de fachada, como a Itália.

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Abbate se infiltrou no mundo íntimo do Vaticano através de um amigo homossexual que tinha lhe contado uma história curiosa iniciada numa sauna gay, em Roma. Ali, o amigo trepou com um francês radicado na Itália que, logo a seguir, se revelaria padre, e não qualquer padreco, e sim um dos sacerdotes que rezavam missa de manhã na Basílica de São Pedro, templo magno do catolicismo no Ocidente. E quando esse amigo gay do Abbate contou-lhe que planejava ir a uma festinha de embalo no apê do tal padre francês, o jornalista não teve dúvida: pediu pra ir junto, posando de namorado liberal do amigo. Foi e levou a fatídica câmera oculta com a qual, sabe-se lá como, gravou uma bela suruba clerical. Ele só não conta o seu grau de participação na suruba, se ajoelhou e rezou, etc. e tal. O que interessa é que “lá estavam muitos prelados”, em suas palavras. Prelados e de mão no bolso, eu diria, no meu irrefreável trocadilhismo. Ali tinha início uma investigação sobre a vida sexual dos supostos castos da Igreja católica, que iria durar um ano inteiro.

E o que apurou, no geral, a bisbilhotice jornalística do Abbate, que deixou mais de um prelado em palpos de aranha pelado dentro da batina? Nada de muito novo ou original, ao meu ver. Basicamente que tem um monte de padre que faz sexo à vontade, gays e héteros, dentro e fora dos muros do Vaticano, sendo que muitos levam vida dupla, mantendo mulher e filhos em alguma quebrada mais ou menos discreta. Há relatos de surubas rotineiras também, como aquela da qual o autor participou. E não é raro, diz Abbate, que os servos de Cristo, ao gerarem rebentos indesejados em seus relacionamentos com mulheres, acabem batendo às portas dos aborteiros pra se livrar do estorvo, não raro por insistência do bispo ao qual devem obediência. E, claro, não faltam sacerdotes que se atolam no crime hediondo da pedofilia, como lemos a toda hora nos jornais. Ou seja, a turma da batina tende a agir segundo seus desejos carnais, da mesma forma que nós outros, integrantes do rebanho laico e por vezes ateu do Senhor.

Uma das fontes secundárias de Abbate é um estudo do psiquiatra Richard Sipe, ex-monge beneditino, apontando que 25% dos padres americanos tiveram relações com mulheres e outros 20% praticaram o amor que não ousa dizer seu nome. Quer dizer, tirando uns 5% de bissexuais, que estão cá e lá nas estatísticas, concluímos que pelo menos uns 40% do clero americano já botou a genitália e a anália pra rockar e rollar fora da batina.

Na Alemanha, outro pesquisador do assunto, ex-padre excomungado, aponta que, dos dezoito mil servidores da Igreja atuantes no país, um terço vive com uma mulher. Difícil resistir ao impulso de deduzir que pelo menos outro terço ande às voltas com homens na cama. Já no Brasil, como informa a matéria que eu li no UOL, o Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais (Ceris) apontou que 41% dos clérigos confessaram já ter tido relações não canônicas com membros e membranas dos incautos fiéis que se aproximaram demais da conta deles.

A espada moralista do Abbate pende, enfim, sobre uma instituição que prega a castidade como virtude cristã para todos e valor absoluto para os servos de Deus, e que sempre condenou o homossexualismo, o sexo fora do casamento e o aborto. As revelações sobre a vida privada dos castos, já se vê, não combinam muito com tal ideário. Castos um cazzo! E se necessário fosse dar mais uma voltinha no parafuso, o autor poderia acrescentar, numa próxima edição do seu livro, um dado curioso que em tudo combina com as revelações bombásticas que estão lá. É que o Instituto do Vinho da Califórnia acaba de publicar uma pesquisa apontando o país com maior consumo per capita de vinho do mundo.

Qual você acha que é? A França? Não, essa vem em quinto lugar. Também não é a Itália nem Portugal, e sim o Vaticano, cidade-estado situada dentro de Roma. Os oitocentos castos que ali vivem consomem nada menos que setenta e quatro litros de vinho por pessoa ao ano, o que dá uma média de cento e cinco garrafas de 750 ml. A Itália vem apenas em nono lugar, com 37,6 litros per capita, a metade do vinho consumido no Vaticano. De fato, nada como um vinhozinho pra acompanhar uma boa sacanagem. O velho Baco já sabia disso alguns séculos antes de Cristo.

A questão, em todo caso, é antiga. Gilberto Freyre, em seu Casa-Grande & Senzala, cravou: “O ambiente em que começou a vida brasileira foi de quase intoxicação sexual. O europeu saltava em terra escorregando em índia nua; os próprios padres da Companhia precisavam descer com cuidado, senão atolavam o pé em carne.”

Na mesma época, o século XVI, Pietro Aretino (1492-1556), poeta (Sonetos luxuriosos), puxa-saco de papas e reis, chantagista da nobreza e libertino em tempo integral, escreveu os Raggionamenti (Tertúlias), traduzido no Brasil como Pornólogos, por J.M. Bortolote (Editora De Gustar), livrinho difícil de achar, mas uma iguaria para os amantes da boa sacanagem erudita. Nele, a narradora, a Nanna, conta sua vida como freira, esposa e puta, nessa ordem. Embora obra de ficção, é difícil supor que um homem esperto e observador como Aretino não tivesse se inspirado nas práticas correntes nas famílias abastadas e nos monastérios da Renascença italiana para compor suas historietas safadas.

Nanna conta como, ainda bela e fresca donzela, foi encaminhada pela família a um convento para se entregar aos braços de Deus. Depois de acolhida num lauto banquete de boas-vindas, com padres e freiras mandando ver nas finas viandas e no generoso vinho, Nanna ganha seu kit de noviça, do qual consta um consolo de vidro oco, feito em Murano, dentro do qual se injetam líquidos quentes, como a própria urina da usuária. É com esse cazzo artificial morninho que ela mesma se desvirgina enquanto espia um animado frade “cravar a vara pelos fundos da padaria” da abadessa do convento. Logo em seguida, já livre do incômodo da virgindade, Nanna é abordada por um piedoso vigário “que me fez três vezes, modéstia à parte, duas à antiga e uma à moderna”, sendo que essa modalidade moderna do fazer sexual é a mesma que Nanna viu a abadessa experimentar pelos fundos de sua “padaria”. Aliás, o tempo todo na história de Nanna os ardorosos membros do clero e demais serviçais do convento, uma vez “satisfeitos com o primeiro bocado da cabra, queriam ainda o cabrito”. Tá certo. Um cabritinho, de vez em quando, sempre cai bem.

A Renascença italiana era mesmo pródiga em putarias clericais e os exemplos históricos abundam (e abucetam e acaralham). Há não muito tempo, uma editora brasileira lançou uma (porno)graphic novel desenhada pelo italiano Milo Manara, com texto do chileno Alejandro Fodorowsky — ops, Jodorowsky —, relatando as façanhas políticas e sexuais de Rodrigo Bórgia (1431-1503), que virou Alexandre VI, tido como o papa mais devasso da história. O papa-papão papava de coroinhas a cardeais, de princesas a criadinhas, com fé inabalável em seu santo taco. Teve pelo menos sete filhos conhecidos. Um deles era a bela e igualmente devassa Lucrécia Bórgia, que deixaria qualquer Paris Hilton no chinelo. Dizem que dava umas comparecidas até debaixo do baldaquim do leito papal. Ou seja, mandava bala com o próprio papi papa, com quem teve um baby — ao mesmo tempo filho e neto do sumo pontífice. Não havia ainda paparazzi em Roma naqueles tempos, mas os satiristas de plantão, um certo Filofila à frente, não lhe davam trégua. Filofila chegou a escrever que “a filha do papa adora copular. Pode ser com irmão, pai, poeta, cachorro, bode e até macaco”. E, ao que consta nos anais (e também nos vaginais) da história, nada disso era nenhum grande exagero ou novidade.

Não foi à toa, pois, que Petrarca (1304-1374), o criador da forma soneto, chamava o Vaticano de “Babilônia infernal, cárcere indecente onde nada é sagrado. Habitação de gente de peitos de feno, ânimo de pedra e vísceras de fogo”. Que as coisas não se passem de forma muito diferente por lá, hoje em dia, não deveria espantar muita gente, a julgar pelo livro do Abbate. Os “castos” do Vaticano, já se vê, além das aspas, pedem igualmente uma profilática camisinha benta. Quanto ao Carmelo Abbate, que se declara católico e gostaria de ver a Igreja modernizada e moralizada, deve ter sido uma experiência catártica tripudiar sobre a proverbial hipocrisia dos servos de Deus, que praticam o nobre e laico esporte na vida privada e vomitam virtudes e ameaças aos pecadores do púlpito. Me senti eu mesmo o meu tanto vingado com o trabalho do Abbate. De família católica, com uma ala feminina carola composta por mãe, avó e tias que não perdiam missa aos domingos e dias santos, vivi na infância e primeira adolescência sob o manto de uma vigilante repressão sexual defumada em incenso de igreja. Entre o “catecismo” do Carlos Zéfiro e o sem aspas da Santa Madre Igreja meu pau balançava. Saltei fora dessa masmorra mental aos dezesseis anos, quando mandei a turma da batina às favas e passei a acreditar piamente em sexo — e ele em mim, nos melhores dias. Como Aretino, dei uma grossa banana “a todos os hipócritas, pois não tenho mais paciência para as suas mesquinhas censuras, para o seu sujo costume de dizer aos olhos que eles não podem ver o que mais os deleita”.

Ecco! Deleitemo-nos, pois, seguindo o pio exemplo dos catsos, ops, castos do Vaticano.

 

Reinaldo Moraes - O cheirinho do amor, Crônicas safadas)

publicado às 02:05


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