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A presente Copa Mundial de Futebol que ora se realiza no Brasil, bem como outros grandes eventos futebolísticos, semelhante ao mercado, assumem características, próprias das religiões. Para milhões de pessoas o futebol, o esporte que possivelmente mais mobiliza no mundo, ocupou o lugar que comumente detinha a religião. Estudiosos da religião, somente para citar dois importantes como Emile Durkheim e Lucien Goldmann, sustentam que “a religião não é um sistema de idéias; é antes um sistema de forças que mobilizam as pessoas até levá-las à mais alta exaltação”(Durckheim).
A fé vem sempre acoplada à religião. Esse mesmo clássico afirma em seu famoso “As formas elementares da vida religiosa: ”A fé é antes de tudo calor, vida, entusiasmo, exaltação de toda a atividade mental, transporte do indivíduo para além de si mesmo”(p.607). E conclui Lucien Goldamnn, sociólogo da religião e marxista pascalino:”crer é apostar que a vida e a história tem sentido; o absurdo existe mas ele não prevalece”.
Ora, se bem reparmos o futebol para muita gente preenche as características religiosas: fé, entusiasmo, calor, exaltação, um campo de força e uma permanente aposta de que seu time vai triunfar.
A espetacularização da abertura dos jogos lembra uma grande celebração religiosa, carregada de reverência, respeito, silêncio, seguido de ruidoso aplauso e gritos de entusiasmo. Ritualizações sofisticadas, com músicas e encenações das várias culturas presentes no país, apresentação de símbolos do futebol (estandartes e bandeiras), especialmente a taça que funciona como um verdadeiro cálice sagrado, um santo Graal buscado por todos. E há, valha o respeito, a bola que funciona como uma espécie de hóstia que é comungada por todos.
No futebol como na religião, tomemos a católica como referência, existem os onze apóstolos (Judas não conta) que são os onze jogadores, enviados para representar o país; os santos referenciais como Pelé, Garrincha, Beckenbauer e outros; existe outrossim um Papa que é o presidente da Fifa, dotado de poderes quase infalíveis. Vem cercado de cardeais que constituem a comissão técnica responsável pelo evento. Seguem os arcebispos e bispos que são os coordenadores nacionais da Copa. Em seguida aparece a casta sacerdotal dos treinadores, estes portadores de especial poder sacramental de colocar, confirmar e tirar jogadores. Depois emergem os diáconos que formam o corpo dos juízes, mestres-teólogos da ortodoxia, vale dizer, das regras do jogo e que fazem o trabalho concreto da condução da partida. Por fim vem os coroinhas, os bandeirinhas que ajudam os diáconos.
O desenrolar de uma partida suscita fenômenos que ocorrem também na religião: gritam-se jaculatórias (bordões), chora-se de comoção, fazem-se rezas, promessas divinas (o Felipe Scolari, treinador brasileiro, cumpriu a promessa de andar a pé uns vinte km até o santuário de Nossa Senhora do Caravaggio em Farroupilha caso vencesse a Copa como de fato venceu), figas e outros símbolos da diversidade religiosa brasileira. Santos fortes, orixás e energias do axé são aí evocadas e invocadas.
Existe até uma Santa Inquisição, o corpo técnico, cuja missão é zelar pela ortodoxia, dirimir conflitos de interpretação e eventualmente processar e punir jodadores, como Luiz Suarez, o uruguaio que mordeu um jogador italiano e até times inteiros.
Como nas religiões e igrejas existem ordens e congregações religiosas, assim há as “torcidas organizadas”. Elas tem seus ritos, seus cânticos e sua ética.
Há famílias inteiras que escolhem morar perto do Clube do time que funciona como uma verdadeira igreja, onde os fiéis se encontram e comungam seus sonhos. Tatuam o corpo com os símbolos do time; a criança nem acaba de nascer que a porta da encubadora já vem ornada com os símbolos do time, quer dizer, recebe já ai o batismo que jamais deve ser traído.
Considero razoável entender a fé como a formulou o grande filósofo e matemático cristão Blaise Pascal, como uma aposta: se aposta que Deus existe tem tudo a ganhar; se de fato não existe, não tem nada a perder. Então é melhor apostar de que exista. O torcedor vive de apostas (cuja expressão maior é a loteria esportiva) de que a sorte beneficiará o time ou de que algo, no último minuto do jogo, tudo pode virar e, por fim, ganhar por mais forte que for o adversário. Como na religião há pessoas referenciais, da mesma forma vale para os craques.
Na religião existe a doença do fanatismo, da intolerância e da violência contra outra expressão religiosa; o mesmo ocorre no futebol: grupos de um time agridem outros do time concorrente. Ônibus são apedrejados. E pode ocorrer verdadeiros crimes, de todos conhecidos, que torcidas organizadas e de fanáticos que podem ferir e até matar adversários de outro time concorrente.
Para muitos, o futebol virou uma cosmovisão, uma forma de entender o mundo e de dar sentido à vida. Alguns são sofredores quando seu time perde e eufóricos quando ganha .
Eu pessoalmente aprecio o futebol por uma simples razão: portador de quatro próteses nos joelhos e nos fêmures, jamais teria condições de fazer aquelas corridas e de levar aqueles trancos e quedas. Fazem o que jamais poderia fazer, sem cair aos pedaços. Há jogadores que são geniais artistas de criatividade e habilidade. Não sem razão, o maior filósofo do século XX, Martin Heidegger, não perdia um jogo importante, pois via, no futebol a concretização de sua filosofia: a contenda entre o Ser e o ente, se enfrentando, se negando, se compondo e constituindo o imprevisível jogo da vida, que todos jogamos.

(Leonardo Boff )

publicado às 16:24

Em contraste com o amor fraterno e o amor erótico, que são amor entre iguais, a relação de mãe e filho é, por sua própria natureza, de desigualdade; nela, um necessita de toda a ajuda, o outro a dá. Por esse caráter altruísta, abnegado, é que o amor de mãe tem sido considerado a mais alta espécie de amor, o mais sagrado de todos os laços emocionais. Parece, porém, que a concretização real do amor materno não está no amor da mãe pela criancinha, mas em seu amor ao filho que cresce. De fato, a vasta maioria das mães compõe-se de mães amorosas enquanto o filho é pequenino e ainda completamente dependente delas. A maioria das mulheres quer filhos, sente-se feliz com o recém-nascido, ansiosa em seu cuidado por ele. Isto é assim, apesar do fato de que elas nada “recebem” do filho em retribuição, à exceção de um sorriso ou uma expressão de satisfação no rosto. Parece que essa atitude de amor enraiza-se em parte num equipamento instintivo que se encontra entre os animais, como no ente humano feminino. Seja qual for, entretanto, o peso desse fator instintivo, também há fatores psicológicos especificamente humanos responsáveis por esse tipo de amor materno. Um deles pode ser achado no elemento narcisista do amor de mãe. Visto como a criança é ainda considerada parte da própria mãe, o amor e a ufania desta podem ser uma satisfação de seu narcisismo. Outra motivação pode ser encontrada no desejo da mãe de poder, ou possessão. A criança, por ser desamparada e inteiramente submetida à sua vontade, é um objeto natural de satisfação para uma mulher dominadora e possessiva.
Embora freqüentes, tais motivações são provavelmente menos importantes e menos universais do que a que pode ser chamada necessidade de transcendência, Esta é uma das necessidades mais básicas do homem, com raiz no fato de sua consciência de si mesmo, no fato de não se satisfazer com o papel de criatura, de não poder aceitar-se como um dado lançado do copo. Ele necessita sentir-se como o criador, como alguém que transcende o papel passivo de ser criado. Há muitos meios de realizar essa satisfação de criação; o mais natural e mais fácil de efetuar é o cuidado e o amor da mãe por sua criatura. Ela se transcende na criança, seu amor por ela dá à sua vida sentido e significação. (Na própria incapacidade do ser masculino para satisfazer essa necessidade de transcendência por meio da criação de filhos está sua insistência em transcender-se pela criação de coisas e idéias de feitura humana.)
O filho, porém, deve crescer. Deve sair do ventre da mãe, do seio da mãe; deve acabar por tornar-se um ente humano completamente separado. A própria essência do amor materno é cuidar do crescimento do filho, e isso significa querer o filho separado dela mesma. Aqui está a diferença básica em relação ao amor erótico. No amor erótico, duas pessoas que eram separadas tomam-se uma. No amor materno, duas pessoas que eram uma tornam-se separadas. A mãe não só deve tolerar como deve desejar e ajudar a separação do filho. Só nessa etapa é que o amor materno representa uma tarefa tão difícil que requer abnegação, a capacidade de dar tudo e nada querer senão a felicidade do ente amado. É também nessa etapa que muitas mães falham em sua tarefa de amor materno. A mulher narcisista, dominadora, possessiva pode conseguir ser mãe “amorosa” enquanto o filho é pequenino. Só a mulher realmente amorosa, a que é mais feliz em dar do que em receber, firmemente alicerçada em sua própria existência, só esta consegue ser mãe amorosa quando o filho se acha no processo da separação.
O amor materno pelo filho que cresce, o amor que nada quer para si, talvez seja a mais difícil forma de amor a realizar, tanto mais enganadora em razão da facilidade com que a mãe pode amar o filho pequenino. Justamente, porém, em vista de tal dificuldade é que a mulher-somente pode ser mãe em verdade amorosa se puder amar; se for capaz de amar seu marido, outras crianças, estranhos, todos os seres humanos. A mulher que não for capaz de amar nesse sentido poderá ser mãe afetuosa enquanto o filho estiver pequeno, mas não poderá ser mãe amorosa, pois a prova disto é a boa vontade em suportar a separação — e, mesmo depois da separação, continuar amando.

(ERICH FROMM - A arte de amar)

publicado às 21:52


Jesus e as mulheres

por Thynus, em 21.06.14

 Desde sempre, em toda parte, tem-se medo do feminino, do mistério da
fecundidade e da maternidade, “santuário estranho”, fonte de tabus, ritos e
terrores. “Mal magnífico, prazer funesto, venenosa e enganadora, a mulher é
acusada pelo outro sexo de haver trazido sobre a terra o pecado, a
infelicidade e a morte”. O feminino aterroriza por sua fisiologia cíclica, lunar,
que causa asco com suas secreções sangrentas e o líquido amniótico. Úmida,
cheia de odores, ser impuro, para sempre manchada: Lilith, transgressora lua
negra, liberdade vermelha nos véus de Salambô, perdição e morte na dança
de Salomé, escura magia da Rainha da Noite vencida pelo poderio solar de
Sarrastro. Perigosa portadora de todos os males: Eva e Pandora.

(Marilena Chaui - Desejo, Paixão e ação na ética de Espinosa)
  «Todos aqueles que chegaram aos limites mais extremos da voluptuosidade com a criatura mais amada, tiveram a sensação mais ou menos contusa de que esbarravam em algo divino, de que se aproximavam do maior mistério do mundo...»

(Maurice Magre, L'Amour et la Haine)

 

Há um problema que raramente foi abordado pelos historiadores mais liberais em seus estudos sobre o Jesus, e é o de sua vida de homem. Seja por acanhamento, por medo a reações hostis, ou por cegueira dogmática prévia, o certo é que parece que só o fato de aludir a isso constituía um escândalo.
Mas a religião judia fazia do matrimônio e da procriação legítima um dever que muito poucos israelitas se atreviam a desobedecer. Sem dúvida se citará aos essênios, mas Jesus não foi jamais essênio; seu comportamento verbal, o fato de beber vinho, de admitir os sacrifícios animais, seu desprezo da limpeza corporal, [42] assim como, o fato de infringir os usos mais formais da tradição mosaica em certos campos, demonstram que nunca foi essênio. Estamos quase seguros de que foi membro daquele extremismo saído dessa seita, e que se converteria, como assinala Dupont-Sommer, na grande corrente política extremista constituída pelos zelotes. [42- Mateus 15, 1-3 e Lucas 11, 37-42]
Sobre o matrimônio necessário e obrigatório, citaremos a própria lei judia:
«Quem não se casa, vive sem gozo, sem bênção e sem bem...» (Talmud: Yebamoth, 62 B.)
«A casa de um homem, é sua esposa...» (Talmud: Yoma, 11.)
«Casem a seus filhos agora que ainda os têm sob sua mão.  Dos dezesseis aos vinte e dois anos, ou melhor ainda, dos dezoito aos vinte e quatro...» (Talmud: Kidduchim, 30 A.)
Por regra geral, o amor mútuo deve justificar o matrimônio, essa regra é muito explícita. O matrimônio por interesse, o efetuado entre maridos mal advindos, o matrimônio forçado, por causa dos pais, todos eles estão condenados pela lei judia.
O divórcio se tolerava por causas graves, mas era deplorável:
«Quem quer que repudie a sua mulher em sua juventude, o próprio Altar derrama lágrimas por ela. Porque Ele (Deus) odeia o repúdio...» (Talmud: Malachim, 2, 13s e 16.)
Em princípio, o único que se admitia para justificar o repúdio de uma esposa era a infidelidade.
De qualquer maneira, Jesus não se casou nunca. Ou ao menos não ficou nenhum rastro dessa união, se é que houve uma. Sem dúvida João, o «discípulo bem amado», foi o único de todos que ficou solteiro. Uma tradição eclesiástica conta que, a sua morte, pôde-se constatar que seus órgãos sexuais tinham permanecido como os de um menino de apenas seis anos. Isto tenderia a representá-lo como anormalmente constituído, dado que sexualmente era impotente. Possivelmente, era uma tara
congênita, ou possivelmente foi consequência das práticas mágico-psíquicas das que trataremos em seguida, mas, em todo caso, era uma tara religiosa, que impedia qualquer união legal segundo a lei judia.
Se morreu efetivamente em Éfeso no ano 96 de nossa era, devia ter uns trinta anos na época em que se situa a execução de Jesus. Mas em seu próprio evangelho há uma passagem que soa um pouco estranha, e esse é o único evangelho que cita o fato:
«Um de seus discípulos, o amado de Jesus, estava recostado no seio de Jesus. Simão-Pedro lhe fez sinal, dizendo-lhe: "Pergunte-lhe de quem fala". E este discípulo, reclinando-se sobre o peito de Jesus, disse-lhe: "Senhor, quem é esse?..."» (João, 13, 23-25.)
Nos banquetes antigos, os homens estavam reclinados em camas de armar, e a esposa, ou a «companheira» do banquete, dispunha de um assento a seu lado, no qual se sentava. Na Grécia, essas companhias ocasionais, análogas às gueixas do Japão, chamavam-nas «sombras». O tipo superior era a hetaira, a «leoa» daqueles tempos. Tão somente quando se aproximava o final da refeição estendiam-se as mulheres ao lado dos homens, e os servidores estendiam coberturas sobre as partes inferiores dos corpos.
Entre os judeus, a comida pascal se celebrava também assim: cada um dos convidados devia estender-se «como um rei», e toda a família se encontrava presente, mulheres e crianças incluídos. O elevado caráter moral desta refeição pascal excluía, em troca, qualquer equívoco, coisa que, evidentemente, não costumava acontecer sempre entre os gregos ou os romanos.
Mas, coisa estranha, a Ceia supostamente pascal de Jesus e seus discípulos não incluía a nenhum dos membros de suas famílias, nem as esposas nem os filhos. E por isso, precisamente, não era uma refeição pascal ritual. O que demonstra que não foram os judeus os autores dos Evangelhos canônicos, a não ser gregos anônimos do século IV, que ignoravam os costumes judaicos; e, possivelmente, inclusive aborreciam às mulheres. Todavia, quando isto já se torna mais que surpreendente, é quando vemos que um jovem, que, como vimos, carecia dos caracteres viris, recostava-se sobre o peito de Jesus, que segundo são Irineu contava já com cinquenta anos, em lugar da esposa ausente. O porquê dessa estranha atitude permanece inexplicado, a menos que tenhamos em conta a acusação de homossexualidade sustentada recentemente por vários historiadores, entre os quais se conta um pastor metodista. Mas nós não sustentaremos essa hipótese, e logo veremos por que. Desse labirinto mendaz construído pelos escribas anônimos do século IV parece desprender-se, entretanto, que João, também «filho de Zebedeu», não foi mais que um irmão muito menor de Jesus. E não esqueçamos as estranhas palavras pronunciadas por esse mesmo Jesus:
«Há eunucos que nasceram assim do ventre de sua mãe, há eunucos que foram feitos pelos homens, e há eunucos que se fizeram a si mesmos por amor do reino dos céus...» (Mateus, 19, 12.)
É provável que algumas práticas psíquicas (vidência, profetismo, etc.), o uso de certos produtos com os mesmos fins, utilizados já da adolescência, desvirilizavam pouco a pouco, sem intervenção cirúrgica, a quem fizesse uso deles.
Quase todos os produtos classificados sob o nome de «estupefacientes» são, com efeito, afrodisíacos para as mulheres, e desvirilizantes para os homens.
Como o professor Maier observa: «Na mulher, a embriaguez de cocaína, inclusive ligeira, desencadeia uma irritabilidade sexual irresistível».
No homem, pelo contrário, a excitação do simpático tem melhor efeito para provocar uma vasoconstrição local que entorpece a função. Jean Cocteau resumiu assim a oposição:
«No homem a droga não adormece ao coração, adormece ao sexo. Na mulher desperta ao sexo, e adormece ao coração».
Mas a fórmula é muito esquemática para ser exata, biologicamente falando. A longo prazo, as duas ações desembocam em uma mesma atonia sexual.
Pois bem, em todo o Oriente Médio se conhecia já, naquela época e desde fazia séculos, o haxixe; o antigo o Egito usava o ópio nos tempos de Ramsés II; gregos e romanos conheciam os efeitos da dormideira, chamada em grego mékon.
Essa atonia sexual pôde ser inicialmente a causadora das formulações doutrinais que desembocaram na proliferação de todas as seitas cristãs chamadas encratistas: tatianistas, encratistas, moderados, severianos, apotácticos, sacóforos, etc., seitas caracterizadas pelo horror ao matrimônio e à procriação. Encontramos um eco delas na exaltação da castidade e da continência comum a todo o conjunto da corrente patrística.
À essas seitas cristãs se oporiam outras seitas do mesmo modo cristãs, e às quais se classificaria sob o nome geral de gnósticos licenciosos: carpocratianos, nicolaítas, barbelitas, etc.
Estes últimos seriam os que justificariam a acusação de imoralidade e de práticas orgiásticas que escandalizaram tanto aos padres da Igreja oficial como aos autores latinos, como Cornelius Pronto.
Pois bem, essas práticas licenciosas estiveram muito estendidas. Vejamos algumas citações que darão luz ao leitor:
«Depois de uma longa refeição, quando os vinhos com os que se embriagam começam a excitar neles os fogos do desenfreio... as tochas caídas se apagam. Então, livres da importuna luz, unem-se ao acaso, em meio das trevas, em escandalosos enlaces...» (Minutius Félix, Octavius, VIII-IX.)
São Paulo evoca com embaraço esses «ágapes» especiais em sua Primeira Epístola aos Coríntios (11, 17).
«Entre vós, o ágape proporciona a seus jovens a ocasião de deitar-se com cristãs...» (Tertuliano, De Jejuniis, 17.)
«Muitas delas deverão passar depois pela abonadora...»
(Tertuliano, De virginibus velandis, XIV.)
A sodomia entre homem e mulher não era desconhecida nesses meios. São Cipriano a estigmatiza:
«Não há, entre essas irmãs, nenhuma que possa ser defendida nem que possa provar que é virgem, pois embora a reconhecesse como tal nas partes comuns às mulheres, pôde ter pecado em outras partes do corpo...» (Cipriano, Epístolas.)
Orígenes, o Impuro (a quem não terá que confundir com o Orígenes Adamanteus, o «grande Orígenes») e seus discípulos ensinavam a legalidade «religiosa» da sodomia entre esposos, a fim de evitar o risco de procriação, por causa da qual uma alma se afundava na Matéria. Era a aplicação desses princípios, levada a limite mais extremo! E Paulo, horrorizado, estigmatizará semelhantes costumes:
«É já público que entre vós reina a impudicícia, e uma impudicícia tal, que não se encontra nem entre os pagãos! Até o ponto de possuir um de vós a mulher de seu pai...» (Paulo, Primeira Epístola aos Coríntios, 5, 1.)
Como as cerimônias de vigílias tinham lugar em locais muito mal iluminados, de noite, são Jerônimo conjura às jovens a que não se afastem de sua mãe nem à distância de uma unha: «...transver-sum unguen...» (Jerônimo, Ad Loetam, De institutionefiliae.)
«A maior ocupação de certos clérigos consiste em procurar-se direções de mulheres ricas...» (Jerônimo, Cartas, XXII.)
Desde onde seu amargo julgamento:
«Esposa sem bodas, concubinas sem sombra de religião, cortesãs e irmãs voluptuosas, que procuram irmãos de prazer, e que, passando por castas e virgens, depois de uma comida deliciosa, sonham com apóstolos!...» (Jerônimo, Cartas à Eustáquio, XXII.)
Alguns clérigos e algumas «virgens consagradas ao Senhor» viviam como agapetas, quer dizer, em casal, e são Jerônimo dirá deles:
«Não têm a não ser uma só casa, frequentemente um só dormitório e uma só cama...» (Jerônimo, Cartas à Eustáquio, XVIII.) Acontecia frequentemente que essas virgens, chamadas sub-introducta (sub-introduzidas), ficavam indevidamente grávidas. E são Jerônimo as estigmatizava:
«Olhe-as como medem seus passos! Admira seu penteado, singelo e modesto! Mas a gravidez trai sua vida íntima!; algumas pedem aos venenos a esterilidade, e outras matam seu fruto antes de seu nascimento...» (Jerônimo, Cartas à Eustáquio, XXII.)
João Crisóstomo (347-407) censurará ainda mais esse desenfreio, comum na grande massa cristã, em dois de seus tratados:
Contra as virgens de Deus que coabitam com homens e Contra aqueles que introduzem a virgens.
Tudo isso durará ainda longo tempo. E no ano 741, são Bonifácio, arcebispo da Maguncia, denunciará o papa Zacarias:
«...aos diáconos que, de noite, deitam-se com quatro ou cinco concubinas, e inclusive mais. E uma vez convertidos em sacerdotes ou bispos, continuam com esse tipo de vida, dizendo-se autorizados por Roma». (Cardeal Boronius, Anais eclesiásticos, ano 741.)
Era preciso que essa massa cristã, sincera, fiel em sua fé, mas refratária à continência, se não à castidade, achasse, em alguma parte, motivo de justificação. É óbvio.
E é neste ponto onde voltamos para Jesus:
O próprio Paulo tinha consigo uma concubina, e o diz claramente: «Não temos direito de levar conosco uma irmã em qualidade de mulher, como os outros apóstolos e os irmãos do Senhor e Cefas? Ou somente Barnabé e eu não teremos direito a fazer uso disso?...» (Paulo, Primeira Epístola aos Coríntios, 9, 5-6.)
Em seu Vulgata latina, são Jerônimo emprega o termo mulier, que designa, efetivamente, a mulher carnal, a esposa.
Agora bem, pouco antes do descobrimento dos célebres manuscritos de Qumram, à beira do mar Morto, exumaram-se fortuitamente uns manuscritos igualmente valiosos. Isto acontecia em Khenoboskion, no Alto Egito. Encontrava-se entre eles um Evangelho de Tomás que não se conhecia, a não ser por citações que dele tinham feito Clemente de Alexandria e Orígenes no início do século III. De todo modo, não possuíamos os originais destes autores, mas, tão somente, conhecíamos através de traduções ulteriores, em manuscritos do século V.
O manuscrito achado em Khenoboskion estava redigido em copto, e era do século IV. Mas existiam fragmentos de um papiro que figurava entre os descobertos em 1897 em Oxyrhynchus, no Médio Egito, e que não se pôde atribuir a nenhum autor por estar muito incompleto. Esse texto, redigido em grego, era do século III, e continha uns versículos típicos, que não voltaram a encontrar até o Evangelho de Tomás, descoberto em Khenoboskion em 1947. Pôde então estabelecer-se que, já no século III, o Evangelho de Tomás existia em sua redação completa.
Todavia, dado que Clemente de Alexandria e Orígenes, que morreram no ano 220 o primeiro, e em 254 o segundo, citam a esse Evangelho de Tomás como um texto muito antigo já em sua época, podemos admitir que sua redação inicial deve situar-se, pelo menos, na segunda metade do século II, com uma data média que podia fixar-se nos arredores dos anos 175-180.
Portanto, achamo-nos na presença de um texto que se pode classificar pouco depois daqueles outros citados também por Clemente de Alexandria e Orígenes, o Evangelho dos Hebreus e o Evangelho dos Egípcios, que esses autores consideravam como os mais antigos apócrifos conhecidos.
Vejamos agora o muito canônico Evangelho de Marcos.
Jesus acaba de expirar na cruz:
«Havia também umas mulheres que olhavam de longe. Entre elas estavam Maria Madalena, Maria, mãe de Santiago Menor, e de José, e Salomé, as quais, quando ele estava na Galiléia, o seguiam, lhe serviam com o necessário, e outras muitas que tinham subido com ele a Jerusalém...» (Marcos, 15, 40-41.)
Lucas (8, 3) diz-nos que essas mulheres «lhe assistiam com seus bens», quer dizer, com seu dinheiro, posto que tinham abandonado suas casas. Não se tratava já de hospitalidade.
Mas eis aqui que, no Evangelho de Tomás, encontramos de novo a essa Salomé, e no papel que Paulo dava a sua companheira na Epístola aos Coríntios:
«Salomé disse: "E você quem é, homem? De quem saiu para se haver metido em minha cama e ter comido em minha mesa'?..." E Jesus lhe disse: "Eu sou aquele que se produziu daquele que é seu igual. Deram-me o que é de meu Pai". E Salomé respondeu: "Sou sua discípula!..."» (Evangelho de Tomás, 65.)
Dessas palavras, do tom adotado pela tal Salomé, desprende-se que gozava de uma situação social materialmente superior a de Jesus.
O termo grego que em Marcos (15, 40-41) traduziram por servir, significa também assistir, como em Lucas.
Não estranhemos. Na História foram muito numerosas as mulheres que ajudaram economicamente ao homem, ao que amavam, em suas empresas políticas, e o exemplo de Corisanda de Gramont, que ajudou ao Enrique de Navarra em sua conquista da coroa da França, está na mente de todos.
Essa Salomé a encontraremos também no Evangelho dos Egípcios, e os versículos sublinharão o que se trata no texto antes citado, e na alusão ao Jesus entrando na cama de Salomé, é, efetivamente, de sexualidade:
«E Maria-Salomé perguntou ao Senhor: "Mestre, quando acabará o reino da Morte?" E Jesus respondeu: "Quando vocês, mulheres, não concebam mais filhos... Quando tiverem deposto o vestido de vergonha e de ignomínia, quando os dois se converterem em um, quando o varão e a fêmea estiverem unidos, quando já não houver nem homem nem mulher, então terminará o reino da Morte..." E Salomé prosseguiu: "Então faço bem, Mestre, de não conceber?..." E Jesus respondeu: "Coma de todos os frutos, mas do da amargura (a maternidade) não coma..."» (Evangelho dos Egípcios, citado por Clemente de Alexandria em Stromates, III, IX, 66, e por Clemente de Roma [morto no ano 97] em sua segunda Epístola à Igreja de Corinto.)
Mais adiante, no mesmo texto, Jesus responderá à Salomé:
«Vim destruir a obra da mulher...»
Tendo em conta esses dois textos surpreendentes, possivelmente não seja inútil dar algumas precisões sobre a posição da lei judia no terreno da procriação. Observaremos que, no caso de um casal casado:
1. A obrigação da procriação cessava assim que o casal engendrasse dois filhos: menino e menina.
2. Os procedimentos de anticoncepção, bem conhecidos no mundo antigo, tão somente os podia utilizar a mulher, que não estava submetida às mesmas exigências legais que o homem. Este não podia empregá-los.
3. Sua utilização, justificada por motivos de ordem médica — psíquica ou genética —, inscrevia-se então na ordem da própria lei, e se convertia em um dever legal.
4. A necessidade ou a decisão de evitar a procriação não anulava absolutamente o dever moral e religioso (porque isso era) da satisfação sexual legítima. O Talmud a denomina «o gozo por excelência» (em hebreu: ein simha elah simha chel huppa).
5. As práticas abortivas eram toleradas até o terceiro mês de gestação. Os doutores da lei consideravam que, antes do primeiro trimestre da gravidez, o germe não era, a não ser, nephesh (corpo); que a ruah (o espírito) e o neshamah (a alma) ainda não lhe tinham unido.
Fora do matrimônio legal, e no caso de um simples concubinato não reconhecido pela lei, essas regras eram ainda mais elásticas, não cabe dúvida.
Tal como dissemos, o mundo antigo conhecia perfeitamente os anticoncepcionais mecânicos, geralmente utilizados pelas mulheres de costumes livres: bailarinas, músicas, cortesãs, etc..
O mesmo acontecia com os procedimentos de aborto, e o uso das plantas abortivas, como a arruda, a artemísia, o absinto, e sobretudo a temível sabina, não tinha nenhum segredo para as parteiras daquela época.
Quer dizer, que a decisão de Salomé de não ter filhos não tinha em si nada de extraordinário.
Quem era essa Salomé? Uma mulher rica, evidentemente, mas messianista e zelote convencida, ou simplesmente admiradora de Jesus? Mistério... Mas do fato de que se quis dissimular ulteriormente que tinha sido a concubina de Jesus, e que este tivesse tirado dela o máximo do que um homem pode tirar de uma mulher, temos como prova suficiente o silêncio absoluto de Eusébio da Cesaréia a respeito dela. Procuraríamos em vão qualquer tipo de evocação dela em sua História eclesiástica. Cita simplesmente, sob o reinado de Herodes, o Grande, (ou seja, no ano 6 antes de nossa era): «Salomé, irmã de Herodes, mulher de Alexas» (Eusébio da Cesaréia, Op. cit. I, VIII, 13). E possivelmente seja, pelo mesmo motivo, que os padres da igreja citam sempre à Herodias, e jamais à Salomé, como a bailarina que exigiu a morte do Batista. Há silêncios muito reveladores.
Para concluir, é evidente que Salomé, mulher rica conforme parece, não foi somente a discípula de Jesus, não lhe serve e lhe segue tão somente, como reconhece Marcos.
Também lhe abriu sua cama e sua mesa, e esse fato tão humano nos revela o Evangelho de Tomás. Compreendemos agora os motivos de seu desaparecimento...
É de supor que no século II isto não constituía escândalo algum, já que estavam melhor documentados sobre o Jesus da História que agora; era esse o episódio que os cristãos da grande igreja consideravam como justificativo da existência de uma concubina junto a seus clérigos, dos séculos I ao V. Por isso Salomé, coração fiel, acompanharia Jesus até a cruz, [43] justificando assim a palavra de Salomão: [43- Recordemos que seu pequeno «ossário» figura entre os descobertos a cerca de «Dominus Flevit», nas Oliveiras, na mesma tumba que continha os de outros comensais de Jesus.]
«O amor cobre todas as faltas...» (Provérbios, 10, 12), seja qual for o mistério que cobre sua personalidade.
Permanece de pé um enigma, o da identidade da mulher que verte sobre os pés de Jesus, um perfume de elevado preço, que continha um jarro de alabastro, e que seca a seguir com seus cabelos, depois de havê-los «cobertos de beijos» (Lucas, 7,38).
Não podia se tratar, contrariamente à lenda que voluntariamente se alimentou, da Maria Madalena, porque agora já sabemos quem era (veja-se capítulo 10). Tampouco podia ser Salomé, porque o tom desta é o de uma mulher altiva, rica, acostumada a mandar; isso é o que se desprende da frase que nos conta o Evangelho de Tomás, no versículo 65.
Sobre essa outra mulher, os Evangelhos canônicos nos proporcionam algumas precisões:
Mateus diz dela: «uma mulher» (26, 6-7).
Marcos diz o mesmo: «uma mulher» (14, 3).
João declara que se chama «Maria» (11, 2 e 12, 3).
Lucas diz dela: «uma mulher de má vida» (7, 37), e a expressão grega inicial diz «uma pecadora da cidade».
Evidentemente, o Evangelho dos Egípcios e a Pistis Sophia chamam-na Salomé: Maria-Salomé. Mas não é ela a mulher do jarro de alabastro.
A Maria que, segundo João (12, 3), verte o precioso perfume, é irmã de Marta e de Lázaro, o «ressuscitado» a quem Jesus professa um profundo afeto. Vivem na Betânia, modesto povoado, situado nos subúrbios de Jerusalém.
Nada disso evoca à rica Salomé [44]
[44- Observemos, de passagem, que a lei judia deixava dispor à mulher livremente de sua fortuna se fosse a única herdeira de seu pai; da renda que lhe deviam seus irmãos se, existindo esta, tinham herdado do pai; de sua fortuna, se fosse viúva sem filhos. E este era o caso de Salomé, viúva de seu primo Filipo Antipas.]
Todavia, conservaremo-nos todo o direito a nos assombrar de que Jesus, que situa às prostitutas em cabeça do «reino de Deus», experimente deste modo satisfação em alojar-se em casa de uma delas, contrariamente à lei religiosa judia.
E o que pensar de sua irmã Marta? Do que vive? Não nos diz.
E o que tem esse Lázaro, tão querido ao Jesus, que tolera, contrariamente à lei judia, que ao menos uma de suas irmãs seja «uma mulher de má vida»? E ele, do que vive?
Decididamente, se a isto somamos os dois «Ishkarioth», pai e filho; Simão e Judas, é óbvio que Jesus, «filho de Deus«, frequenta pessoas fartamente surpreendentes.
O que pensará seu «Pai celestial», ele, que tinha ordenado ao Moisés: «Que entre as filhas de Israel não haja nenhuma prostituta...»? (Deuteronômio, 23,18.)
Voltemos agora, para terminar, à misteriosa Salomé.
Constatamos que o tom desta no Evangelho de Tomás deixava adivinhar uma mulher rica, acostumada a mandar e que, finalmente, em vista de tudo isso, pergunta-se como pôde abrir sua cama e sua mesa a um homem como Jesus. É, pois, indiscutivelmente, de uma classe social elevada. Mas quem pode ser?
Temos os nomes de algumas das mulheres que seguiam Jesus e aos doze e «os assistiam com seus bens» (Lucas, 8, 3).
Em primeiro lugar há uma que se chama Susana, depois uma tal Juana (Iochannah, em hebreu), «esposa de Chuza, intendente de Herodes» (trata-se de Herodes Antipas). E imediatamente nos ocorre uma pergunta: como pôde abandonar esta mulher a seu marido, para seguir a esse autêntico «maquis» ambulante, que Jesus arrasta atrás de si, sem que Chuza, alto funcionário do tetrarca da Galiléia, fizesse-a voltar para casa de bom grado, ou por força? E tão mais quanto, que está assim mesclada com outras mulheres.
Segunda pergunta: quando Herodes Antipas, despojado de sua etnarquia, é exilado e condenado a viver em Vienne, nas Galias, no ano 39, quer dizer, quatro ou cinco anos, quando muito, depois da execução de Jesus, Herodias acompanha a seu exílio. Sabemos isso por Flavio Josefo e Eusébio da Cesaréia. Mas, nem um nem outro nos diz nada sobre o que se fez de Salomé, a filha de Herodias.
Terceira pergunta: os Atos dos Apóstolos (1, 14) não nos falam de nenhuma dessas mulheres nominalmente. O texto diz «as mulheres», mas sabemos que, além de Salomé, Susana e Juana havia outras. Agora bem, fosse qual fosse sua importância passada, não se diz nada delas. Por que?
Quarta pergunta: por que Atanásio de Alexandria (295-373), João Crisóstomo (340-407) e Eusébio da Cesaréia (265-340), não nos falam a não ser de Herodias como «a bailarina» que pediu a morte do Batista, e silenciam à Salomé, contradizendo assim, formalmente, aos Evangelhos canônicos que, não obstante, não desconhecem?
Vem a nossa mente uma série de hipótese que podem servir de resposta a essas quatro perguntas:
1. Chuza, intendente de Herodes Antipas, permite a sua esposa Juana (lochannah) seguir Jesus e suas tropas, porque é a donzela de Salomé.
2. Herodias vai sozinha com Herodes Antipas, ao exílio às Galias, porque Salomé é maior de idade há tempo [45] e, portanto, é livre.
[45- Quando teve lugar este exílio, no ano 39, ela contava já com no mínimo 44 anos de idade. Desde o ano 33 era viúva de seu primo Filipo, filho de Herodes Antipas, que não lhe tinha dado filhos. Salomé morreu por volta do ano 73 de nossa era, depois de ter contraído novas núpcias com seu primo Aristóbulo III e de ter sido mãe de três filhos. Não obstante, ignoramos qual é a origem da data em que se situa sua morte, ano 73, data que avançam certos dicionários enciclopédicos. Assim, teria vivido pelo menos 78 anos, o que era muito para aquela época.]
3. Os Atos não nos falam já da Juana e da Susana, porque abandonaram o movimento zelote à morte de Jesus, depois do descumprimento das promessas deste, ou porque foram detidas pelos romanos no lugar da crucificação como seguidoras do dito Jesus, e estavam apodrecendo-se no fundo das masmorras da Antonia, ou porque estavam mortas. Mas nada disso aconteceu à Salomé, a quem sua classe e seu nascimento preservavam.
4. Atanásio de Alexandria, João Crisóstomo e Eusébio da Cesaréia não falam de Salomé e transferem todo o relato à Herodias, precisamente para fazer desaparecer Salomé da história, levando-se em conta seu papel, um tanto particular, ao lado de Jesus. A isso lhe chama «fazer a troca».
E não será esta confissão implícita o que minimizará nossa hipótese: a misteriosa Salomé era, muito provavelmente, a filha de Herodes Filipo e de Herodias, que logo, com o novo matrimônio de sua mãe, converter-se-ia na enteada de Herodes Antipas. Também aqui, neste problema histórico, podemos dizer que a realidade supera à ficção: a neta de Herodes, o Grande, que tinha feito crucificar ao Ezequías, convertida na tenra amiguinha do neto deste último: Jesus, pretendente ao trono de Israel. Isto só pôde agravar as más intenções de Herodes Antipas para com o tal Jesus, já que o ciúmes é coisa bastante humana.
Se recordarmos que Daniel Massé afirmou em uma de suas obras que de suas investigações pessoais (e era juiz de instrução) podia tirar a conclusão de que existia um parentesco por aliança entre a família da Maria, mãe de Jesus, e a de Herodes, as relações entre sua enteada Salomé e Jesus, «filho de David», aparecem já imensamente menos surpreendentes que a primeira vista. O que parece corroborar que, com efeito, existiram alguns laços, tão familiares como de interesses, entre os membros da dinastia herodiana e os da descendência davídica, cujos representantes autênticos, em princípio de nossa era, foram Judas da Gamala e depois seu filho primogênito Jesus; é que Flavio Josefo nos diz que, quando teve lugar a estadia de Arquelau em Roma, pouco depois da morte de Herodes, o Grande, os judeus tinham entrado em insurreição e, entre os rebeldes, «havia parentes de Arquelau, aos que César (Augusto) fez castigar por ter combatido contra seu parente e seu rei...» (Flavio Josefo, Antiguidades judaicas, XVIII, X, 297 e Guerras da Judeia, II, 1, manuscrito eslavo.) Entre estes se contava, em especial, Achiab, primo de Herodes, o Grande,tio de Arquelau, e tio avô de Salomé (op. cit.).
Pois bem, Daniel-Rops, em Jesus em seu tempo, precisanos que a insurreição política montada contra Arquelau (além das de puro banditismo, montadas por bandos diversos), estava dirigida pelo Judas da Gamala. E se membros da família herodiana, parentes de Arquelau, incorporaram-se a uma insurreição, não podia tratar-se, evidentemente, a não ser da política de Judas da Galiléia, e não de qualquer das outras, de simples direito comum, encabeçadas por malfeitores anônimos.
Sem dúvida é aí, nessa filiação ao partido dos «filhos de David» de elementos da família de Arquelau, onde se acha a gênese das ulteriores relações entre o Jesus, «filho de David», e Salomé.
Porque não devemos esquecer que ela também é da grande família iduméia. Salomé é a neta de Herodes, o Grande, a sobrinha de Arquelau, filha do mesmo Herodes, e sobrinha neta daquele Achiab que no ano 5 antes de nossa era se incorporou, com outros membros da família, às filas dos insurretos conduzidos pelo Judas, o Gaulanita.
Outro argumento advoga em favor desta hipótese: Sabemos que em Israel antigo, jamais ficou um nome duplo, nem masculino nem feminino. Unicamente no mundo cristão se viu aparecer vários nomes seguidos e associados: Maria Teresa, Maria Juana, João Francisco, etc.
Pois bem, no Evangelho dos Egípcios e no Pistis Sophia, ambos saídos de um original hebreu, Salomé chamam-na Maria-Salomé, quer dizer, nessa língua: Myrhiam-Shaloma. Mas, tal como dissemos antes, não podemos considerar Myrhiam como o equivalente da Maria, já que isso daria um nome composto, coisa totalmente desconhecida naquela época. Portanto, devemos considerar e traduzir Maria, aliás Myrhiam, como nome comum, e não como nome próprio. E como essa palavra
significa «princesa» em hebreu, trata-se, efetivamente, da «princesa Salomé» e não de uma «Maria-Salomé». É um título, e nada mais.
Não esqueçamos que, nos manuscritos antigos, não há nem pontuação, nem travessão, nem maiúsculas, e que jamais ficam pontos e à parte. Tudo está transcrito seguido, sem nenhuma sequência.
Por outra parte, essas relações entre o entorno de Jesus e a dinastia iduméia estão sublinhadas por outros textos canônicos:
«Havia na igreja da Antioquia profetas e doutores: Barnabé e Simão, chamado Niger, Lucio de Cirene, Menahem, irmão de leite do tetrarca Herodes, e Saulo.» (Atos, 13,1.)
Estamos no ano 45. Esse Menahem é neto de Judas de Gamala, sobrinho de Jesus. Saulo tem um irmão, que se chama Costo-baro, e não são de origem judia, a não ser idumeu, e príncipes da família de Herodes. E Menahem, cujo nome significa, em hebreu, «Consolador», e em grego se diz igualmente (parakíetos), foi anunciado pelo Jesus, seu tio (João, 15, 26). Ele seria quem elevaria de novo o estandarte da revolução nos anos 63-64, sob o procurador Gessius Floros. Voltemos para Salomé. Era viúva de Herodes Filipo desde o ano 33, não tinha tido filhos. [46] Voltou a se casar, desta vez com Aristóbulo III, e este recebeu de Nero, no ano 54, o reino da Pequena Armênia; depois, no ano 60, uma parte da Grande Armênia; e por último, no 70, converteu-se em rei de Chaléis. Ao ser protegido e amigo de Nero, possuía uma suntuosa mansão em Roma. [46-A Maria-Salomé no Evangelho dos Egípcios e Pistis Sophia tampouco.]
Pois bem, no ano 58 Paulo, ex-Saulo, encontrava-se em Corinto, onde redigiu sua Epístola aos romanos. Ao final seguem as saudações à numerosas pessoas, e especialmente estes, muito significativos: «...Saudai aos da casa de Aristóbulo; saudai Herodião, meu parente; saudai aos da casa de Narciso, que estão no Senhor». (Op. cit., 16,10-11.)
Assim, Saulo-Paulo fez partidários onde sabia que os havia: na mansão romana de Aristóbulo e de Salomé; diz ser parente de Herodião (o «pequeno Herodes»), que é seu filho primogênito [47] Também os há no palácio de Nero, já que em sua Epístola aos filipenses terminará assim: «Todos os Santos lhes saúdam, e principalmente os da casa de Cesar». (Op. Cit.,4, 22). E escreve isto de Roma mesmo, no ano 62. [47- Salomé teve depois outros dois filhos: Agripa e Aristóbulo.]
Salomé, portanto, permanece fiel à lembrança de Jesus, pois ela também foi vítima da lenda messiânica, e se converteu, depois de seu segundo matrimônio, em protetora daqueles aos quais depois se denominam «cristãos», tanto em sua casa como naquelas da alta sociedade romana onde pode ter acesso.
Alguns não deixarão de sorrir ante nossa tese, ou pode ser inclusive que dela se burlem, porque, no fundo, incomodar-lhes-á terrivelmente. Não obstante, é menos inverossímil do que se poderia supor a primeira vista. Além de tudo o que acabamos de descobrir; que a partir de agora, já não se pode continuar passando por alto no debate; terá que recordar daquela imperatriz da Europa central, que um belo dia fugiu com um violinista; daquela rainha que se fez comunista; ou daquelas princesas às quais uns amores tumultuosos e ingratos converteram-se em estrelas? O coração tem razões que a razão ignora, diremos. Limitaremos a sublinhar, uma vez mais, que toda a história de Jesus, «filho de David», não é mais que a continuação de uma guerra sem piedade, suscitada, ao mesmo tempo, por interesses políticos e dinásticos; conduzida pelos herdeiros legítimos do trono de Israel; tanto contra os usurpadores idumeus, como contra os ocupantes romanos, e possivelmente não seja necessário mesclar nisso amores românticos.
Tanto o Jesus «da História» está muito longe do «Jesus carpinteiro», assim como, a Salomé histórica, também está muito longe da do teatro e do cinema...
(ROBERT AMBELAIN - Jesus Ou O Segredo Mortal dos Templários)

publicado às 20:29


Depressão à noite

por Thynus, em 20.06.14

A depressão é uma doença noturna. Leva o indivíduo ao contato com a escuridão do inconsciente e a voltar-se para o invisível e o obscuro à consciência.
Em geral, a depressão se acentua no período noturno e aos domingos. A noite é o período em que normalmente as pessoas estão em casa, onde não se está vivendo o mundo externo ou da persona.(1) Em casa se vive a vida como ela é e não é possível esconder-se por detrás da máscara social. No grupo familiar todos se conhecem e não conseguem camuflar seu estado de espírito. A rotina e a falta de motivação para ficar em casa contribuem para que surja um sentimento de vazio e de tédio.
Quando a pessoa vive sozinha, a noite é sua terrível companheira, se aliada à depressão, pois o nada e o vazio que ela sugere se parecem com o obscuro terreno do inconsciente. Procurará preencher o período noturno com rituais domésticos, dentre eles, assistir filmes televisivos. Terá seus canais preferidos e seus horários muito bem definidos. Será intima de personagens com os quais se identifica perfeitamente, reduzindo seu senso crítico, em função deles. Não permite que sua rotina seja alterada, a fim de que o vazio não volte a aparecer. Assim procede por se sentir segura, sem atentar ao fato de que sua atitude poderá lhe custar um preço: a prisão inflexível em seu próprio mundo. A vida solitária, na grande maioria dos casos, é uma expiação, cuja causa poderá estar, tanto na vida atual, por opção, ou em vidas passadas. Neste último caso, por hábito ou conseqüência de escolhas inadequadas.

Os domingos parecerão intermináveis. A liberdade de escolher o que fazer, antes um bem precioso, torna-se um problema, pela falta de prazer em estar vivendo a rotina ou mesmo em realizar coisas novas. Nada lhe traz alegria, nem prazer. Seu trabalho, quando o tem, por ser uma obrigação, nem sempre lhe traz prazer, mas, pelo menos, diminui a quantidade de horas vazias.
A noite convidará o depressivo para a reflexão, porém faltar-lhe-á a saída que deseja. Não encontrando a fórmula mágica que o desligue daquele estado tedioso, a noite será sempre negativa e parecerá maior do que é de fato.
Programas noturnos serão criados, saídas para noitadas serão experimentadas, porém tudo em vão. A noite continuará sendo sua companheira de depressão, a avisar que o inconsciente convida à reflexão. Não adianta fugir do inconsciente, pois aonde se for, ele estará junto.
Uma depressiva, cujo processo acompanhei por longo período, adquiriu o hábito de ocupar parte de sua noite, entre as vinte e as vinte e três horas, com uma atividade remunerada. Ela se ocupava em fazer pequenas embalagens (caixas) de papelão para presentes. Aprendeu a confeccioná-las e a pintá-las por fora. Essa atividade, que lhe rendeu algum dinheiro, mascarou a depressão por poucos meses, pois não lhe curou a doença, nem lhe mostrou o seu núcleo. Com o tempo, suas horas de sono ficaram reduzidas, aumentando ainda mais sua insônia e cansaço diurno.
A noite foi feita para dormir, isto é, não só para o descanso corporal, como também para o contato com o mundo espiritual, do qual se vem e para o qual se retorna. Sem esse contato, que corresponde à conexão direta com o inconsciente, a consciência não suporta o excesso de atividade. A tensão gerada pela vida consciente necessita ser aliviada no inconsciente, e vice-versa.
O receio da companhia da noite, e de passá-la em claro, leva o depressivo a acostumar-se com medicação para dormir. Seu sono não será normal, mas induzido. Seu corpo sentirá os reflexos dessa indução, apresentando um cansaço maior ao acordar e seu envelhecimento enviará sinais mais cedo.
A saída será sempre a busca de contato com o núcleo causador de sua depressão. Enquanto não o consiga, deverá preencher suas noites com as atividades que normalmente desempenhava antes de adoecer e com o sono natural.
 
(Adenáuer Novaes - Alquimia do Amor)

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(1) Persona ou máscara
O termo persona deriva das máscaras que os atores gregos
usavam para os diversos papéis ou personalidades que
interpretavam. É o aspecto ideal do eu que se apresenta ao
mundo e que se forma pela necessidade de adaptação e
convivência pessoal. É o que se pensa que é. Muitas vezes a
persona é influenciada pela psiquê coletiva confundindo nossas
ações como se fossem individuais. Ela representa um pacto entre
o indivíduo e a sociedade, sendo um conjunto de personalidades
ou uma multiplicidade de pessoas numa só. A identificação do
ego com a persona provoca o afastamento de nossa identidade
pessoal, isto é, corremos o risco de não sabermos quem
realmente somos. Somos, ao mesmo tempo, seres individuais e
coletivos, pois temos uma natureza singular como também temos
atitudes que nos confundem com a coletividade.

 

 
 

publicado às 19:58


O GOL (Ferreira Gullar)

por Thynus, em 16.06.14

 

O GOL

A esfera desce
do espaço
veloz
ele a apara
no peito
e a pára
no ar
depois
com o joelho
a dispõe a meia altura
onde
iluminada
a esfera
espera
o chute que
num relâmpago
a dispara
na direção
do nosso
coração.

Ferreira Gullar

 

José Ribamar Ferreira, ou Ferreira Gullar, natural de São Luis, Maranhão,onde nasceu a  10 de setembro de 1930. É escritor.  Uma das mais expressivas vozes do Brasil.
 Publicou em poesia: Um pouco acima do chão, 1949, A luta corporal, 1954 Poemas, 1958 João Boa-Morte, cabra marcado para morrer (cordel), 1962 Quem matou Aparecida? (cordel), 1962 A luta corporal e novos poemas, 1966 História de um valente, (cordel; na clandestinidade, como João Salgueiro), 1966 Por você por mim, 1968 Dentro da noite veloz, 1975 Poema sujo, 1976 Na vertigem do dia, 1980 Crime na flora ou Ordem e progresso, 1986 Barulhos, 1987 O formigueiro, 1991 Muitas vozes, 1999.

 por: Lélia Pereira Nunes e Irene Maria Blayer 

publicado às 13:27


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