Primeiramente, convém afirmar que, neste caso, e pensando na frase de Danto, o outro é aquilo que as personagens não são e que jamais serão, e, neste sentido, todos são radicalmente livres para julgar-se: “Garcin, o covarde, Garcin aquele que escolheu não combater” (JEANSON, 2000, p.54). Mortos, no inferno, as personagens nada mais podem fazer em relação aos julgamentos dos quais são objetos – estão, portanto, sem defesa contra os outros malditos –, e ainda têm que sofrer os julgamentos posteriores dos vivos, contra os quais estão ainda mais indefesos.
Há uma ilustração para esta situação em O ser e o nada, na qual o autor, “por ciúme, curiosidade ou vício”, descreve-se a observar determinada cena pelo buraco de uma fechadura. Mas isto é realizado sem uma consciência plena de que seja ciúme, vício ou curiosidade: “Mas eu não conheço este ciúme, eu o sou” (SARTRE, 1997, p.334, grifo do autor). Ou seja, há o buraco da fechadura assim como há a cena a ser observada, mas para o filósofo francês isto ainda não constitui uma consciência de qualquer sentimento que seja. É neste sentido que, completando o seu pensamento, Sartre relata uma súbita e drástica alteração: “Eis que ouço passos no corredor: alguém me olha. Que significa isso? Fui de súbito atingido em meu ser e surgem modificações essenciais em minhas estruturas – modificações que posso captar e determinar conceitualmente por meio deste cogito reflexivo” (SARTRE, 1997, p.335, grifo do autor). Neste processo, o ciúme irrefletido que ele era tornou-se, diante do outro, vergonha de ser visto: “Pois bem: a vergonha, como sublinhamos no início deste capítulo, é vergonha de si, é o reconhecimento de que efetivamente sou este objeto que o outro olha e julga” (SARTRE,1997, p.336, grifo do autor). Dito de outra maneira, não sou o que o outro é, mas sou pelo olhar do outro, que pode me interpretar como quiser: ciúme, curiosidade ou vício. Além disto, parece que voltamos à questão do julgamento do outro: Garcin sob o olhar de Inès e sob o seu julgamento bem pouco condescendente.
Não deixa de ser curioso que o olhar desempenhe um papel tão importante na filosofia de um autor que, justamente, tenha tido problemas com a sua aparência física. Em uma longa sucessão de entrevistas concedidas a Simone de Beauvoir na cidade de Roma, no ano de 1974, Sartre descreve esta situação, ao ser perguntado por que, de uma maneira geral, era hostil em relação às pessoas:
J.-P. Sartre – Porque isto se ligou a uma representação de mim mesmo; eu achava que, fisicamente, não era agradável às pessoas. Foi talvez aí que se refugiou o sentimento de ser feio, com o qual não me preocupei muito, embora existisse.
S. de B. – Você não era de uma feiúra que afugentasse uma mulher grávida se lhe perguntasse onde era a Rua Rome...
J.-P. Sartre – Não, nunca pensei isto. Mas pode-se pensar que perguntar onde é a Rua Rome, quando se é feio, é infligir uma presença desagradável à pessoa a quem nos dirigimos.
S. de B. – Isso deve ser uma história de infância; porque é preciso não exagerar; você não é mais feio que a maioria dos homens.
J.-P. Sartre – Sim, porque sou vesgo (BEAUVOIR, 1984, p.396).
Segundo esta mesma entrevista, Sartre relata que se deixa abordar pelas pessoas, mas que, em contrapartida, evita tomar a iniciativa, e isto está relacionado ao sentimento de sentir-se com uma aparência física desagradável. Pode-se dizer, então, que, de alguma maneira, ele temia tanto o olhar como o julgamento do outro. Mas se trata tão somente de um pequeno detalhe biográfico, e, como sabemos, desde muito que não faz sentido tentar compreender a obra de um autor pelas vicissitudes da sua biografia. Assim, a partir desta última asserção é mister afirmar, à guisa de justificativa, que este pequeno detalhe biográfico foi inserido em nosso texto porque alude, justamente, a um dos mais importantes topoi viáticos: o encontro com a alteridade que as viagens permitem e que é, posteriormente, narrado. Tanto a questão do “inferno” em Entre quatro paredes quanto a erupção da vergonha a partir do olhar do outro demonstram o espanto e o mal estar que o outro, muitas vezes, representa nesta filosofia.
E nos textos aludidos no capítulo introdutório, o outro é, justamente, a “América”: o país das vastas distâncias, da hostilidade da natureza que invade até mesmo o coração da sua mais importante cidade, dos pequenos agrupamentos urbanos, leves, frágeis e provisórios como as cidades dos filmes de Far West – ou como acampamentos e como terrenos de camping. E, por outro, os grandes mitos: a civilização do progresso e da máquina, a sociedade sem barreiras sociais, o seu conformismo na liberdade e o ennui que pesaria enormemente no cotidiano desta mesma sociedade. Ora, Sartre dialogava com estes mitos, seja reproduzindo-os – os tais “acampamentos no deserto” –, seja negando-os – os arranha-céus que, em um primeiro momento, não o espantaram – seja tentando criar novos mitos, como o já citado ennui.
Nada resume melhor a alteridade da “América” em Sartre que o texto U.S.A. Présentation, escrito, como já foi escrito neste artigo, para a edição do Les Temps Modernes de agosto de 1946, que tinha como tema exclusivo os Estados Unidos da América. Neste breve ensaio toda a estranheza do filósofo francês acerca do país norte-americano estava descrita: de um lado, a “legenda”, o “americanismo”, que Sartre descreve como “um monstruoso complexo de mitos, de valores, de receitas, de slogans, de números e de ritos” (SARTRE, 2003, p.96, tradução nossa). E, por outro lado, as suas numerosas impressões pessoais de viajante, como esta:
Há estas casas coquettes e limpinhas, estes apartamentos totalmente brancos, a poltrona reclinável, o cachimbo no estojo, paraísos; e, então, há os habitantes destes apartamentos que, após o jantar, deixam lá poltronas, rádio, mulher, cachimbo, filhos e vão se embriagar solitariamente no bar em frente (SARTRE, 2003, p.98, tradução nossa)Estas frases são interessantes porque nelas há uma combinação de observações empíricas – isto é, o que Sartre pôde observar nas suas viagens ao país norte-americano – e de impressões de origem artística, como as inúmeras narrativas de viagem sobre o país norte-americano que ele teria lido. Ora, veremos que, para além destas narrativas que os escritores europeus escreveram sobre a sociedade norte-americana, muitas das quais o nosso autor certamente conhecia – como o romance Viagem ao fim da noite, do escritor francês Ferdinand Celine –, e para além das ilustrações em magazines de difusão de massa e dos filmes, os quais contribuíram tanto para formar quanto para reproduzir os mitos sobre a sociedade norte-americana, há que citar uma manifestação artística precisa, as pinturas.
Assim, em relação a pinturas que possivelmente tenham contribuído para formar uma imagem em relação aos norte-americanos, devemos citar, quase necessariamente, as pinturas de Hopper, e, principalmente neste caso, uma pintura em especial: Nighthawks, que, como veremos, conheceu uma inaudita fortuna crítica. Citemos, a este respeito, Daniel Ravet, que, em um artigo, compara o romance de Céline com a supracitada pintura de Hopper, com o intuito de demonstrar que, em ambos os casos, se trata de desmistificar ou de subverter o chamado American Dream:
Hopper e Céline apresentam a alienação social que sofrem os habitantes da cidade moderna e a sua incapacidade em se comunicarem. A tela que exprime melhor e mais cruamente este esvaziamento interior das personagens de New York é Nighthawks de 1942. A sua comparação com a cena do self-service do Voyage [Viagem ao fim da noite] parece pertinente pela utilização, nos dois artistas, do motivo da vitrina, e o seu laço estreito com o tema da solidão e da reificação do indivíduo na sociedade de consumo (RAVET, 2008).Nesta pintura é representado, em um primeiro plano, um bar no qual, através da sua grande vitrina, se vê um homem de costas debruçado sobre um longo balcão, e que bebe solitariamente uma bebida alcoólica qualquer. A construção da pintura enfatiza a solidão e o processo de reificação dos habitantes das grandes cidades: nesta se vê, além da figura solitária, mais dois clientes e um atendente; ora, a grande dimensão desta tela (76,2 x 144 cm) e a relação espacial entre o grande espaço do bar e da rua e a pequena dimensão das personagens estáticas parece ampliar os seus desamparo e alienação em uma sociedade na qual, segundo o mito corrente, não haveria “barreiras sociais” e todos, de uma maneira ou de outra, deveriam ser felizes.9
Trata-se de uma imagem que se tornou clássica na cultura norte-americana, tendo cedo entrado na cultura de massa deste país, sendo reproduzida em posters e sendo objeto de inúmeras paródias (RAVET, 2008). Ora, a associação da frase escrita por Sartre sobre a embriaguês solitária e anônima dos norte-americanos em algum bar anódino com a descrição desta pintura é quase irresistível, mas não estamos afirmando, contudo, que Sartre, na época leitor e admirador da obra de Céline, conhecesse, igualmente, Nighthawks. Trata-se de demonstrar que há sempre um conjunto de fatores de disseminação cultural que contribuem para criar uma espécie de “contra-mito”, não se esquecendo, porém, que o contra-mito pode ser, perfeitamente, apenas mais outro mito a entrar no repertório do estereótipo e do exótico.
É importante acrescentar que esta observação de Sartre foi escrita em 1946, e não se trata mais de um estereótipo viático, ele não se refere, como o fez em 1945, a um vago ennui de extração francesa, mas a uma infelicidade na solidão, apesar de toda a satisfação material de um lar aparentemente confortável. Assim, como em Céline e Hopper, desmistifica-se e se subverte um mito: “Há o mito da felicidade”, materializada em uma língua “carregada de expressões otimistas e abandonadas – ‘have a good time’, ‘enjoy’, ‘life is fun’” (SARTRE, 2003, p.96, tradução nossa)10, e, por outro lado, há estes homens trágicos por medo de sê-lo, (SARTRE, 2003) e que vão procurar a felicidade, solitariamente, em algum bar.
Mas, retornemos ao que foi inicialmente tratado: olhar o outro, isto é, o estrangeiro, o diferente, o “exótico”, o cidadão que abandona o seu ambiente doméstico aparentemente confortável e feliz – o lar, ou como preferem os norte-americanos, the home – para se embriagar solitariamente, não seria, de alguma maneira, criar mitos e erigi-los em estereótipos a partir, justamente, da escritura?
Em um livro editado postumamente A rainha Albermale ou o último turista Sartre coloca uma personagem, um anônimo turista francês, que descreve a seguinte cena: os romanos, na Praça do Panteão, observam turistas – marinheiros norte-americanos – que parecem nada entender daquelas ruínas; finalmente, o turista francês afirma que alguém o olha. Trata-se do procedimento artístico da mise en abyme: a Praça do Panteão para os marinheiros norte-americanos, estes para os romanos, os romanos para o turista de Sartre, e, novamente, em um quase círculo, a personagem criada pelo filósofo francês para os romanos (ou para um outro turista, ou para um leitor...). Ora, com o círculo acima – ou círculos, como no inferno de Dante –, de olhar em olhar, parece que instituímos uma aporia: o inferno são os outros porque não somos e jamais seremos eles, e, assim, jamais poderemos nos olhar como eles nos olham. Cito, a este respeito, e mais uma vez, Sartre: “Além disto, viajantes ou não, diante do conflito que ameaçava o nosso país [a Segunda Guerra Mundial] compreendemos que não éramos cidadãos do mundo, pois não havia jeito de nos transformamos em suíços, suecos ou portugueses” (SARTRE, 2004, p.159). O filósofo francês alude ao fato de que, neste caso, diante da possibilidade de destruição – de cidades e de homens, de nações e de culturas – as férias das viagens de lazer e dos estereótipos e do exotismo fáceis acabaram: os alemães são irremediavelmente o outro, mas o são, igualmente, todos os outros, sejam suecos, portugueses ou suíços. Ora, estas frases expressam toda a angústia do olhar, assim como a angústia do outro e a angústia das viagens e das suas narrativas.
(Adson Cristiano Bozzi Ramatis LIMA)