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Tempo, espaço e (des)ordem

por Thynus, em 26.02.14

“Tempo e espaço estão encolhendo.” Esta parece uma declaração bastante curiosa à primeira vista. Ora, tempo e espaço seguramente não encolhem! Do ponto de vista social, pensamos os eventos em termos de sua ocorrência no e por meio do tempo, e, de modo similar, localizados no espaço. Podemos fazer comparações entre ideias, atitudes e ações, traçando um mapa de suas variações históricas nos espaços físicos (em paisagens urbanas ou regionais) e simbólicos (como eles são vistos e que significados se atrelam às relações e aos objetos que neles estejam, quando tomados como “lugares” de interação). As tecnologias da informação, entretanto, aceleraram nossas comunicações, por exemplo, com o e-mail e a mensagem instantânea, enquanto os meios de comunicação de massa se irradiam por todas as partes do globo, com efeitos sobre como as pessoas percebem a espacialidade e os locais. Nessa medida, espaço e tempo estão de fato encolhendo! Como disse Paul Virilio, a questão agora não é em que período de tempo (cronológico) nem em que espaço (geográfico) estamos, mas sim em “qual espaçotempo?” Isso está mudando em velocidade crescente.

 

A experiência do espaço e do tempo

 

Essas duas grandezas parecem ser características independentes do “mundo lá fora”, mas não são claramente independentes uma da outra no planejamento, no cálculo e na execução de nossas ações. Tendemos a medir distâncias na forma do tempo necessário para atravessá-las, uma vez que nossas estimativas de afastamento ou proximidade de nossos destinos dependem da quantidade necessária de horas, minutos e segundos para alcançá-los. O resultado dessa medição fica, portanto, na dependência da velocidade em que podemos nos mover – que, por sua vez, é compatível com as ferramentas de mobilidade ou os veículos a que temos acesso de forma rotineira. Se o uso desses equipamentos demanda uma paga, a velocidade com que nos deslocamos depende, então, da quantidade de dinheiro de que dispomos. Nos tempos (não tão antigos, para falar a verdade) em que eram os pés humanos ou as patas de cavalos os únicos equipamentos de viagem, a resposta provável à pergunta “O quão distante é daqui a vila seguinte?” seria “Se partir agora, estará lá por volta do meio-dia”; ou “Você não chegará antes do crepúsculo. É melhor pernoitar na pensão”. Mais tarde, uma vez que os “membros artificiais” – os motores construídos pelo homem – haviam substituído os pés humanos e os cavalos, as respostas deixaram de ser tão diretas. A distância transformou-se, então, em uma questão do meio de transporte a ser usado, que não era sempre o mesmo e dependia de ter recursos para viajar de trem, ônibus, automóvel ou avião. O que acabamos de citar são meios de transporte que carregam e deslocam pessoas e/ou coisas de um lugar para outro. Os meios de comunicação a que nos referimos no parágrafo de abertura, por outro lado, dizem respeito à transmissão e ao repasse de informação. Podemos falar que, durante a maior parte da história da humanidade, não havia muito a distinguir entre transporte e comunicação. A informação era transportada por diferentes carregadores, por exemplo, viajantes, mensageiros, negociantes e trabalhadores manuais alocados ao longo do percurso ou aqueles que se deslocavam de uma vila para outra à procura de esmolas ou de trabalho ocasional. Algumas exceções a essa regra geral incluem as mensagens visuais (sinais de fumaça) dos nativos das planícies americanas ou os tambores-telégrafo da África. Enquanto era uma raridade, a habilidade de transmitir informação independentemente de portadores humanos ofereceu enorme vantagem para aqueles que tinham acesso a tais meios. Diz-se, aliás, que o uso pioneiro dos pombos-correio permitiu a Rothschild, o banqueiro, ser informado antes de qualquer um da derrota de Napoleão em Waterloo. E o uso dessa informação privilegiada teria multiplicado sua riqueza na Bolsa de Londres. Certamente, apesar de ser ilegal, o mesmo tipo de vantagem ainda torna o chamado inside-trading, a negociação a partir de informações privilegiadas, uma forma sedutora para muitos que procuram ampliar suas riquezas nos mercados de ações. Durante algum tempo, os desenvolvimentos técnicos mais impressionantes respondiam às necessidades do transporte. Assim, foram inventados os motores a vapor, elétrico e de combustão interna, as redes de estradas de ferro, as embarcações para longas viagens marítimas e os carros a motor. Contudo, em paralelo a essas invenções, germinava uma nova era de “software”, com descobertas como o telégrafo e o rádio – neles encontramos os meios de transmitir informação pura a longas distâncias sem necessidade de uma pessoa ou qualquer outro corpo físico mover-se de um lugar para outro. Em comparação, o transporte nunca seria “instantâneo”, exceto em fantasias de ficção científica. Tomaria sempre o tempo de deslocamento de seres humanos e seus pertences do ponto de partida ao de chegada, operação tanto mais cara e cercada de maior incômodo quanto mais houvesse para transportar e quanto mais longa fosse a distância. Eis por que em termos de “hardware” o lugar faz a diferença, e isso confere valor ao espaço. Era mais barato e menos incômodo estar “no lugar”. Os proprietários das fábricas desejavam produzir cada parte do produto final sob o mesmo teto e manter toda a maquinaria e todos os trabalhadores necessários para produzi-lo no interior dos mesmos muros de fábrica. Isso limitou a necessidade de transporte, e essas economias de escala reduziram os custos. Em torno dessas práticas, emergiram formas de disciplina a respeito do controle do espaço e do tempo. Quanto mais próximos os controladores estavam do controlado, mais completo era seu domínio sobre as condutas diárias. No princípio do século XIX, Jeremy Bentham, um dos cientistas políticos e filósofos mais influentes da época, propôs uma solução para a questão do crescimento populacional, uma ideia distante daquela proposta pelos economistas e suas preocupações com pobreza, alimento e produtividade. Uma de suas sugestões era projetar um edifício enorme, no qual as pessoas estariam sob fiscalização 24 horas por dia, sem, contudo, jamais terem completa certeza de estar sendo ou não observadas. O “panóptico” serviria como padrão ideal para todos os poderes modernos, do nível superior ao inferior.1 Fosse o poder um tipo de panóptico, os objetos da fiscalização constante se tornariam obedientes e se absteriam da insubordinação, deixando de lado os atos de rebelião, pois todo desvio em relação à regra era demasiado custoso para que fosse considerado seriamente como possibilidade. Em consequência, deu-se, no curso da história, parafraseando Michel Foucault, um movimento do olhar do outro para a internalização do olhar, isto é, da disciplina imposta pelos outros às diferentes práticas de autodisciplina. Os tempos mudaram, porque a informação pode agora mover-se independentemente dos corpos físicos. Com isso, a velocidade das comunicações já não é mantida pelos limites a ela impostos por pessoas e objetos materiais. Para todos os fins práticos, a comunicação é agora instantânea, e, assim, as distâncias não importam, pois qualquer canto do globo pode ser alcançado ao mesmo tempo. No que diz respeito ao acesso e à propagação da informação, “estar perto” e “estar longe” já não tem a importância de outrora. Os grupos de internet não sentem a distância geográfica como impedimento à seleção dos integrantes de uma conversação. Para quem vive, por exemplo, em Manhattan, comunicar-se com alguém em Melbourne ou Calcutá não tomará mais tempo do que fazer o mesmo com alguém no Bronx. Se você nasceu na “era eletrônica”, tudo isso pode ser um mero dado da realidade que não se questiona e parece insignificante. Esse quadro tornou-se tão integrado à vida cotidiana quanto o nascer e o pôr do sol. Você dificilmente notaria quão profunda foi essa recente desvalorização do espaço. Então, nos permitamos fazer uma breve pausa e pensar como a condição humana muda uma vez que a comunicação toma o lugar do transporte como principal veículo da mobilidade, e quando a experiência e a crescente urgência do fluxo informacional já não dependem da distância. O que, por exemplo, acontece com a ideia de “comunidade”? Como já sugerimos, ela dependente enormemente da noção de conhecimento por contato entre as pessoas em proximidade física. A comunidade é, desse modo, uma criação territorial ou “local” porque é confinada a um espaço com limites estabelecidos pela capacidade humana de se mover. A diferença entre o “dentro” e o “fora” de uma comunidade é, por conseguinte, aquela entre o “aqui e agora” e o “depois lá longe”. A espinha dorsal de toda comunidade era a teia de comunicação entre seus membros em uma rede social conformada pelo território. Assim, a distância sobre a qual tais interações “comunicativas cotidianas” podiam se estender estabelecia os limites comunitários. A comunicação com localidades mais distantes era ruim e cara. Por esse motivo, comparativamente mais incomum. Nesse sentido, o local tinha vantagem sobre o “distante”, as ideias nasciam e eram discutidas no plano da localidade. Essa situação mudou de maneira significativa. A proximidade e a frequência físicas de uma comunicação já não precisam ocorrer dessa maneira, pois os participantes das interações podem ser mapeados como pontos dispersos no globo. Não se trata de comunidade territorial, porque talvez as pessoas só se encontrem raramente, ou até nunca o façam, permanecendo assim inconscientes da existência dos outros em termos do pertencimento a uma rede espacial definida de pessoas em um local comum. Uma comunidade desse tipo é conjurada por atividades comunicacionais, e é isso que a mantém unida. Não é necessariamente de seus membros, contudo, que derivamos nossas ideias sobre o mundo. O saber adquirido por descrição, em contraste com o que deriva do encontro com o outro, nas situações do que Erving Goffman chamou de “copresença”, pode não advir de quem aqueles pontos no mapa simbolizam. Afinal, lemos os jornais diários e as revistas semanais, dos quais retiramos muito do que conhecemos. Além disso, assistimos à televisão e escutamos rádio sem ter certeza de onde vêm os programas apresentados ou onde foram escritas as matérias divulgadas. Graças às vozes e às imagens transmitidas eletronicamente, é o mundo que viaja até nós, enquanto permanecemos em nosso lugar. Esse processo de “instalação” e “desinstalação” do conhecimento tem como significado o fato de que não há reciprocidade em nossa comunicação. Vemos pessoas na tela que falam conosco e se apresentam diante de nossos olhos, mas elas não “nos” reconhecem em meio à massa de indivíduos que as veem. Dessa maneira, o modelo do panóptico pode ser invertido: muitos podem agora prestar atenção a poucos. As celebridades caem no olhar público com sua importância medida pelo número de livros escritos a seu respeito, as avaliações de audiência de seus shows ou filmes ou o número de discos que porventura vendam. As celebridades não são “líderes”, mas exemplos de sucesso mantido pelo consumo público. Ao se pensar, todavia, sobre essas imagens e sua transmissão e recepção, ao mesmo tempo que as pessoas permanecem em uma localidade, a informação orientadora de suas experiências pode ser extraterritorial. Assim, ouvimos falar que a informação se tornou global, no sentido de se ter libertado de seus vínculos locais. Ela viaja livremente entre as localidades, os países e os continentes. Os limites anteriores são desafiados e transgredidos. Sua velocidade é tal que o controle constitui problema; e quem pode ganhar a corrida quando se trata de competir com sinais eletrônicos? Tudo isso tem implicações sobre as maneiras como conduzimos nossa vida, bem como sobre a natureza e a distribuição do poder. Ignorar essas questões não é opção disponível, ainda que responder às perguntas levantadas não seja fácil. Isso, entretanto, não justifica a inércia se pretendemos compreender e atuar sobre as consequências da Era da Informação, em vez de permanecer passivamente em inatividade.

 

Sociedade de risco

Dadas as questões advindas das transformações nas sociedades, Ulrich Beck propôs a ideia de que hoje vivemos em uma “sociedade de risco”. Quando pensamos em risco, vêm à mente perigo ou ameaça relacionados ao que fazemos ou eventualmente nos abstemos de fazer. Diz-se com frequência “Este é um passo arriscado a ser dado”, indicando a exposição a uma situação indesejável. Entretanto, em uma sociedade de risco, essas questões derivam não tanto do que cada pessoa faz isoladamente, mas do próprio fato de, por estar isolada, suas ações serem dispersas e não coordenadas. Isso considerado, os resultados e efeitos colaterais – de difícil cálculo e definição – têm potencial para nos pegar de surpresa. Como lidar com esse estado de coisas? Se tentássemos nos prevenir de todas as consequências indesejáveis, muito certamente avaliaríamos nossas ações num patamar altíssimo e nos condenaríamos à inatividade. Ao mesmo tempo, o risco não é o resultado de ignorância ou falta de habilidade. Na verdade, trata-se do oposto, pois nasce de esforços crescentes visando ao ser racional, no sentido da definição e da concentração nos detalhes relevantes, julgados significativos por uma ou outra razão. Como ensina o provérbio popular, “cruzaremos a ponte quando a ela chegarmos”. Naturalmente essa afirmação pressupõe a existência da ponte, tendo pouco a dizer sobre o que fazer se descobrirmos que ela não está lá! Tomemos o exemplo dos alimentos geneticamente modificados, isto é, produtos agropecuários cujo padrão genético foi alterado para que cresçam mais resistentes a pragas e doenças, ou apresentem maior rendimento ou vida mais longa nas prateleiras dos mercados. Há quem sugira que o potencial dessas safras está na mitigação da pobreza. Isso, contudo, não é uma questão de avanço científico, mas do que fazer com a distribuição proporcional da riqueza entre o Ocidente e a maioria dos países do mundo denominada “em desenvolvimento” ou “emergente”. Outros suspeitam que, a julgar por experiências anteriores, haverá um preço a pagar por alcançar essas metas, na forma de consequências não pensadas. Eles apontam para efeitos secundários da manipulação de genes em termos de devastação da composição do solo e de danos de longo prazo à saúde e às expectativas de vida dos consumidores. Por conseguinte, o problema pode ser não tanto o aumento da produção, mas, antes, a distribuição de recursos existentes; e, mais que isso, a maneira como as safras são cultivadas e com que efeitos sobre o ambiente. O debate gira em torno da incerteza, no sentido de não se saber o preço a ser pago no futuro por decisões atuais, com opiniões divergentes a respeito dos resultados dessas decisões em curto, médio e longo prazos. Em situações como essas, as companhias com investimentos nessas tecnologias podem mudar-se para outro lugar ou diversificar-se para outras áreas com potencial de lucro. Como disse Barbara Adam, socióloga que se dedica ao estudo do tempo, quando este se torna mercadoria, a velocidade se transforma em valor econômico. Portanto, “quanto mais rapidamente os bens se moverem pela economia, melhor. A velocidade aumenta os lucros e se apresenta positivamente no PIB (Produto Interno Bruto) de um país”. A nova volatilidade da informação também libera o movimento do dinheiro, com mercados monetários globais especulando (como já assinalamos) em trilhões. Esses são os fatores que contribuem para nossas possibilidades de ter vidas aceitáveis, emprego, instrução e assistência médica, bem como para o potencial de viver em ambientes sem poluição. Enquanto outrora o olhar e a proximidade faziam a diferença no panóptico, a atual tecnologia do poder é capaz de ameaçar a distância aqueles cujo comportamento deve ser regulado. Se, por exemplo, a equipe de uma fábrica ou o grupo de funcionários de um escritório está insatisfeito, sem comando ou exige melhores condições, seria de esperar que a unidade fosse fechada, “fatiada” ou “vendida”, mais do que um aumento do nível de fiscalização e a aplicação de regras mais estritas. A extraterritorialidade dos poderes globais não os vincula a qualquer lugar específico, e eles estão sempre prontos a viajar imediatamente para longe. Como Richard Sennett se referiu a Bill Gates, o presidente da Microsoft, ele “parece livre da obsessão de aferrar-se às coisas”. Não obstante, liberdade em um plano não significa liberdade em outro, pois se os “locais” buscassem seguir os “globais”, logo perceberiam, como Sennett adverte, que os mesmos “traços de caráter geradores de espontaneidade tornam-se mais autodestrutivos para aqueles que trabalham mais abaixo no regime flexível”. A globalização é considerada um processo que ninguém controla, o que, contudo, é muitas vezes invocado como motivo para a inércia diante daquilo que é visto como um conjunto de forças opressivas e abstratas. As políticas de governo podem (e de fato o fazem) mediar, atenuar e aprimorar esses efeitos em sua resistência ou reproduzi-los em sua passividade e indiferença. A globalização nos afeta no plano individual em variados graus, pois podemos todos experimentar ansiedade e preocupação quando é difícil compreender o que está acontecendo, e nos cabe, de acordo com nosso critério individual, influenciar a direção em que as coisas parecem se mover a nosso redor. Um agente com o potencial de assumir o controle de seus piores efeitos, por outro lado, é algo que se posiciona para além do indivíduo, do grupo e do Estado-nação. A disposição para agir nesse estado de coisas exige que seus beneficiários reconheçam estar assim posicionados só porque outros estão excluídos. Há outro tema a ser considerado em relação ao risco. Podemos ter alguma ideia sobre como satisfazer nossas necessidades, mesmo que os meios para tal satisfação não sejam distribuídos de maneira igual. Entretanto, a necessidade de neutralizar ou reduzir os riscos difere das demais. Isso porque os riscos são perigos do tipo que não vemos nem ouvimos se aproximar e de que não podemos estar inteiramente cientes. Não experimentamos diretamente – não vemos ou ouvimos, nem sentimos odor ou tato – a crescente concentração de dióxido de carbono no ar que respiramos; nem o lento, mas inexorável, aquecimento global; ou a ação daquelas substâncias químicas usadas para engordar o gado cuja carne comemos, mas que podem minar a capacidade de nosso sistema imunológico para lidar com infecções bacterianas. Sem “especialistas”, podemos até nada saber a respeito desses riscos. Essas pessoas aparecem na mídia e interpretam o mundo e as situações em que nos encontramos de tal maneira que superam nossos limitados conhecimentos e experiência. Precisamos confiar em suas informações sobre nosso ambiente, nossos hábitos alimentares e sobre aquilo que devemos evitar. Posto que não há maneira de testar esses conselhos com relação a nossa própria experiência – pelo menos não até ser talvez tarde demais para nos darmos conta de nossos erros –, permanece a possibilidade de suas interpretações estarem erradas. Assim, como Ulrich Beck propôs, os riscos podem ser “eliminados por interpretação” e tornados “inexistentes”, de modo que não haja necessidade alguma de sermos estimulados a entrar em ação. Uma reação desse tipo não é incomum. Pode ser potencializada pela crença de que haja uma conspiração na qual aqueles que nos protegem são na verdade porta-vozes daqueles que podem nos prejudicar. Hans Jonas, filósofo alemão radicado nos Estados Unidos, refletiu sobre as consequências do desenvolvimento tecnológico em escala global. Embora nossas ações possam afetar aqueles que vivem em outras partes do globo, a respeito de quem pouco sabemos, nosso panorama moral não se adequou a essas transformações. Com que frequência falamos dos eventos considerados além do controle? Isso demanda perguntas sobre como podemos assumir uma ética global que também respeite e reconheça as diferenças entre as pessoas. Sem isso, tais forças não são domadas de acordo com nossas necessidades, mas desencadeadas, e com diferentes resultados. Isso serve para aliviar a raça humana de sua responsabilidade moral diante do outro. Segundo o filósofo alemão Karl-Otto Apel, temos responsabilidade quanto ao modo como as instituições são formadas e remodeladas e, assim, com relação “àquelas instituições que facilitam a implementação social da moralidade”. Ainda que tivéssemos uma declaração de deveres morais similar à declaração de direitos humanos das Nações Unidas, ela exigiria uma grande mudança para ser efetiva. A maioria das pessoas não vê além dos limites de suas vizinhanças mais próximas. Assim, compreensivelmente, tendemos a destacar determinados detalhes, eventos e pessoas mais próximas. Vagos sentimentos de ameaça podem então ser direcionados para alvos visíveis, reais, que estejam ao alcance. Separada ou mesmo solidariamente, muitas vezes parece que pouco podemos fazer para atingir alvos distantes, difusos e talvez ilusórios. Localmente, as pessoas podem formar uma patrulha de cidadãos interessados e ativos visando àqueles que representam ameaça a seus estilos de vida. Câmeras de televisão de circuito fechado, alarmes, fechaduras em janelas e luzes de segurança podem ser instalados para proteger o espaço local – explicações em busca de compreender essas tendências além daqueles limites podem ser excluídas, consideradas irrelevantes e mesmo irresponsáveis. Não se excluem, entretanto, os efeitos da globalização. Assim, uma insegurança globalmente induzida pode encontrar sua saída na preocupação com segurança produzida no plano local. Teríamos caído na armadilha sinalizada por Ulrich Beck? Ou seja, procuramos a fonte de risco no lugar errado. Uma preocupação criada em plano local voltada para a segurança agrava as divisões que separam as pessoas – justamente as divisões que conduzem ao engano e à habilidade de ignorar as consequências da ação sobre as outras pessoas, distantes de nossos mundos. Os que têm recursos para proteger suas propriedades são em geral aqueles que têm algo que outros (a quem faltam meios) desejam ter. Moralmente falando, as distâncias entre as pessoas podem permitir-lhes suportar os efeitos que suas ações têm sobre os outros. Há um conjunto de consequências, mas a globalização não é apenas uma ameaça, constituindo também uma grande oportunidade. Karl-Otto Apel sugeriu que poderíamos usar nossa razão e nossa vontade para pôr em prática uma sociedade verdadeiramente global, que buscasse ser inclusiva e respeitadora das diferenças e tentasse seriamente erradicar a guerra. Falsas interpretações e atribuições de culpa por riscos podem impedir nossa atuação e levar a divisões mais profundas, assim agravando os problemas sem os enfrentar. Eis por que é tão importante “pensar sociologicamente”. A sociologia, embora não possa corrigir os defeitos do mundo, é capaz de nos ajudar a compreendê-los de modo mais completo e, ao fazê-lo, permite-nos atuar sobre eles em busca do aperfeiçoamento humano. Nesses tempos de globalização, precisamos mais que nunca do conhecimento que a sociologia fornece. Afinal, compreender-nos no presente permite o domínio sobre as condições e as relações atuais, sem o que não há esperança alguma de dar forma ao futuro.

 

Autonomia, ordem e caos

A fonte de tal esperança pode residir no reconhecimento do caos e de suas razões! Essa declaração é bastante curiosa. Vimos, porém, que fronteiras ativam a ordem e são questionadas pela globalização, determinando diferentes resultados. Pode então se seguir o reconhecimento mais amplo de nossa interdependência, acompanhado, entretanto, de forte desejo de separação. A escolha da rota a tomar (como sugerimos) depende de um esforço combinado passível de começar nas vizinhanças, mas cujos pontos finais se localizariam muito além delas. Assim, em determinado nível, uma tentativa de traçar, marcar e guardar fronteiras artificiais torna-se objeto de crescente preocupação. Em outro plano, aquilo que outrora foi considerado divisões – bem entrincheiradas e resistentes a mudanças – e distâncias “naturais” issolve-se, e percebe-se o movimento crescente de reagrupamento daqueles que já estiverem separados. Poderíamos dizer que o esforço para manter e defender uma divisão aumenta em igual proporção sua fragilidade e a extensão do dano que faz à complexa realidade humana. Considera-se que essa situação tenha aflorado com o tipo de sociedade que se estabeleceu no mundo ocidental há aproximadamente três séculos e em que ainda hoje vivemos. Antes desse tempo – com frequência identificado como “pré-moderno” –, a manutenção das distinções e das divisões entre categorias tendia a atrair menos atenção e a potencializar menos atividade do que faz hoje. As diferenças pareciam autoevidentes e atemporais porque eram consideradas imunes à intervenção humana. Foram lançadas ao chão por forças além do controle humano. Assim, um nobre, por exemplo, era um “nobre” desde o nascimento, regra também aplicável aos servos camponeses. Com muito poucas exceções, a condição humana parecia solidamente construída e estabelecida de um só modo no mundo todo. Em outras palavras, não havia distinção alguma entre natureza e cultura. Foi aproximadamente no final do século XVI que, em partes da Europa ocidental, esse retrato do mundo começou a desmoronar. Com o aumento do número e da visibilidade das pessoas que não se encaixavam nitidamente em qualquer “cadeia divina dos seres”,2 acelerou-se então o ritmo da atividade legislativa, a fim de regular as áreas da vida que originalmente haviam sido deixadas a seu curso natural. As distinções e as discriminações sociais tornaram-se objeto de questionamentos, projetos, planejamento e, o mais importante, de esforços conscientes, organizados e especializados. As ordens sociais emergiram como produções e projetos humanos, passíveis, assim, de manipulação. Desse modo, a ordem humana tornou-se objeto de ciência e tecnologia. Não podemos dizer que a ordem nasceu nos tempos modernos, mas sim que então se tornaram aparentes a preocupação com ela e o medo de que, sem intervenção, a vida decaísse rumo ao caos. Nessas condições, o caos emerge como o resultado perceptível da falha em ordenar as coisas. O que faz algo ficar tão desordenado é a inabilidade dos observadores de controlar o fluxo de eventos para obter a resposta desejada do ambiente e prevenir ou eliminar os acontecimentos não planejados. O caos, nesses termos, transforma-se em incerteza, e só os vigilantes técnicos em assuntos humanos parecem ser o obstáculo entre ela e uma condição ordenada de conduta e afazeres. Os limites, entretanto, são controversos e pouco rígidos. A administração da ordem é sempre incerta e estará sempre incompleta. É como erguer um edifício sobre areia movediça. Só conseguimos ilhas de ordem em um fluxo de eventos, o que pode produzir relativa autonomia provisória. Com isso, estamos diante de uma situação com a qual nos deparamos em inúmeras ocasiões. O simples empenho em impor a ordem leva à incerteza e à ambivalência que mantêm vivo o medo do caos. Os esforços para construir uma ordem artificial sucumbem necessariamente a pouca distância de seu objetivo. Eles invocam ilhas de autonomia relativa, mas ao mesmo tempo podem transformar territórios adjacentes em áreas de ambivalência. As perguntas tornam-se então questão de método, mais do que de propósito, isto é, dizem respeito a como efetivar os limites e, assim, impedir que a maré de ambivalência arraste essas ilhas. Construir ordem é, dessa maneira, fazer guerra à ambiguidade – a que custo, porém? É possível traçar linhas demarcando fisicamente limites que só podem ser cruzados por aqueles considerados aceitáveis. Por exemplo, os postos de controle de passaporte nas fronteiras. Há também alguns casos mais sutis, como um convite que classifique o destinatário como admitido em uma festa. Quem não puder apresentar passaporte ou convite, provavelmente será obrigado a fazer o caminho de volta. E ainda que consiga entrar sem esses meios oficiais, o medo constante de ser notado e obrigado a se retirar estará sempre presente. A relativa autonomia do enclave foi comprometida e corroída por sua presença, abalando um estado de regularidade e ordem. O sujeito se encontra então fora de uma fronteira física. Mas, como meio de manutenção da ordem, essa é matéria mais simples do que a garantia de conformidade e obediência uma vez dentro dela. A personalidade de uma pessoa não pode ser simplesmente retalhada em porções, algumas liberadas para entrar, outras devendo permanecer lá fora (embora, como demonstra com grande pungência o filme Um estranho no ninho e como Erving Goffman chamou a atenção em Manicômios, prisões e conventos, as instituições totais se possam esmerar visando a assegurar a conformidade). Lealdade total a uma organização, por exemplo, é algo notoriamente difícil de se conseguir e em geral inspira a aplicação dos expedientes mais engenhosos e imaginativos. Empregados de uma companhia ou de um escritório, por exemplo, podem ser proibidos de pertencer a sindicatos ou movimentos políticos. Ou ser submetidos a testes psicológicos para detectar qualquer potencial de resistência a receber ordens, ou ainda ser impedidos de discutir questões organizacionais com pessoas não pertencentes à organização. Bom exemplo disso é a Lei do Sigilo Oficial britânica, que proíbe alguns funcionários públicos de divulgar informações, mesmo que, ao fazê-lo, estejam servindo aos interesses daqueles cidadãos que o próprio Estado deveria proteger. De maneira similar, o desejo das organizações de projetar determinada imagem para o público pode levar a algumas práticas internas que os empregados talvez considerem antiéticas. No caso do Serviço Nacional de Saúde britânico, determinados empregados de hospitais adotaram a prática conhecida como “dedurar”, a fim de expor à atenção do público o que tenham considerado práticas duvidosas. Para que o sistema parecesse eficaz no tratamento e na liberação de pacientes como medida aparente de desempenho da organização, alguns deles eram mandados de volta à comunidade sem ter tido recuperação completa, só para serem readmitidos dias depois. A qualidade do atendimento individual era então considerada fraca pela medição da quantidade de pacientes tratados e liberados. O desejo de traçar fronteiras desse modo tem efeito sobre dependências e vínculos interpessoais quase sempre de modo involuntário. O que parece ser solução apropriada e racional para um problema constatado numa unidade relativamente autônoma torna-se problema para outra unidade. Como essas unidades, ao contrário de suas simulações, são estreitamente interdependentes, a resolução de problemas repercute afinal sobre a própria agência que originalmente as empreendeu. Isso leva a um deslocamento não planejado e imprevisto no balanço geral da situação, que torna a definição contínua do problema original mais custosa do que se esperava – ou até a inviabiliza. E pode ser ajustado pelos cálculos de eficiência que simplesmente avaliam uma unidade em termos de investimentos e rendimentos – embora em aparência o método seja “racional”, nada tem a dizer a respeito dos efeitos das decisões de uma unidade sobre as ações de outras. O caso mais notório desses efeitos é a destruição do equilíbrio ecológico e climático do planeta. Os recursos naturais da Terra estão sendo esgotados pela busca de lucro, e nada há de inerente em tal busca que opere como restrição sobre esse comportamento. Os grandes petroleiros podem tomar atalhos a fim de entregar suas cargas nos prazos, apesar dos riscos envolvidos, mas não são projetados com “pele”3 que impeça o vazamento da carga no caso de colisão. Até porque projetos como este são onerosos para as empresas. Qual é, porém, o custo potencial dessa decisão para o ambiente? Assim, as organizações industriais poluem o ar, a água e, desse modo, criam muitos novos e terríveis problemas para as autoridades de saúde e de desenvolvimento urbano e regional. Em seus esforços para melhorar a organização de sua própria atividade, as companhias racionalizam o uso do trabalho e, ato contínuo, declaram dispensáveis muitos de seus trabalhadores, aumentando os problemas gerados pelo desemprego crônico, como a pobreza e as precárias condições de saúde. A multiplicação vertiginosa de automóveis particulares, estradas, aeroportos e aviões, antes destinada a resolver o problema da mobilidade e do transporte, cria engarrafamentos, poluição atmosférica e sonora, destrói áreas inteiras de assentamento humano e leva a tal centralização da vida cultural e de fornecimento de serviços que torna muitas instalações inabitáveis. Por sua vez – e como resultado disso –, viajar tornou-se mais necessário que nunca, embora ao mesmo tempo mais difícil e exaustivo. O que outrora prometia liberdade, como os automóveis, contribui agora para o constrangimento da livre circulação coletiva e para a poluição da atmosfera, tanto na geração atual quanto nas futuras. Apesar de tudo isso, a solução indicada para o problema costuma ser justamente a construção de mais estradas. As raízes disso repousam na aparente autonomia relativa que é prometida ao se destacar do todo uma parte de nossa vida. Como todos habitamos a totalidade, tal autonomia é, no melhor dos casos, parcial; e, no pior, puramente imaginária. Isso é conquistado por não enxergarmos as consequências ou por fecharmos os olhos para as conexões múltiplas e de longo alcance entre todos os atores e entre tudo que cada ator estiver fazendo. O número de fatores considerados no planejamento e na execução das soluções dos problemas é sempre menor que a soma total de fatores que influenciam a situação (ou dela dependem) causadora do problema. Podemos mesmo dizer que o poder – a capacidade de projetar, reforçar, influenciar e preservar a ordem – consiste na habilidade de desprezar, negligenciar e empurrar para o lado aqueles fatores que, se fossem objeto de questionamento e ação, inviabilizariam a ordem. Ter poder significa, entre outras coisas, ser capaz de decidir o que não é importante e o que não deve ser objeto de interesse. O que repercute, entretanto, é a inabilidade de excluir da existência o que foi chamado de “fatores irrelevantes”. Os temas relevantes e os irrelevantes são contingentes, isto é, não há razão para a linha de relevância ser traçada de alguma maneira em particular, pois várias lhe servem. Isso considerado, a própria decisão está aberta à disputa, e os exemplos são muitos ao longo da história; um deles localiza-se no início da Era Moderna, quando uma das lutas mais seminais pelo poder se desenvolveu em torno da passagem do mecenato ao nexo monetário. Confrontados com a insensível indiferença dos proprietários das indústrias com o destino das “mãos da fábrica” (a expressão indicava que esses empregadores só estavam interessado nessa parte da anatomia dos trabalhadores), os críticos do sistema fabril emergente recordaram as práticas das oficinas de artesãos ou mesmo de feudos rurais que se comportaram como “uma grande família”, incluindo todas as pessoas. Os mestres das oficinas e os suseranos e senhores podiam ser patrões cruéis, autocráticos e explorar inescrupulosamente a penosa labuta de seus trabalhadores. Em paralelo, porém, esses empregados também esperavam que o patrão cuidasse de suas necessidades e, caso necessário, os protegesse do desastre iminente. Em aguda oposição a esses hábitos mais antigos, nenhuma dessas expectativas foi aceita como legítima pelos proprietários das fábricas, que pagavam seus empregados pelo trabalho executado em horas no estabelecimento, sendo os demais aspectos de suas vidas de responsabilidade dos próprios trabalhadores. Os críticos e os portavozes dos operários se ressentiram desse “lavar as mãos”. E declararam que o esforço diário prolongado, exaustivo e sem sentido exigido pela disciplina da fábrica deixava os trabalhadores “mentalmente esgotados e fisicamente desvalidos”, segundo palavras de Karl Marx. Os trabalhadores transformaram-se em mercadorias descartáveis porque, como os demais componentes do produto da fábrica, foram considerados inúteis do ponto de vista do esquema produtivo. Os críticos sinalizavam que o relacionamento entre os proprietários e as mãos da fábrica não era de fato limitado à simples troca de trabalho por salários. Por quê? Porque o trabalho não poderia ser destacado e isolado da pessoa do trabalhador tal como o montante de dinheiro poderia ser separado da pessoa do empregador. “Dar emprego” significa sujeitar a pessoa inteira, corpo e alma, à tarefa determinada pelo empregador, para quem o trabalhador se torna simples meio para a realização de seus objetivos. Dessa maneira, apesar dos protestos em contrário, os trabalhadores eram solicitados a dar em troca dos salários toda a sua personalidade e a sua liberdade. Assim, o poder dos proprietários das fábricas sobre os trabalhadores estabeleceu-se segundo essas assimetrias de poder. Decorre daí a observação de Marx quanto ao fato de que, em contraste com o capitalismo, em condições de escravidão, os proprietários tinham algum interesse no bem-estar de seus escravos. Esse relacionamento foi substituído por uma forma abstrata de troca na qual os empregadores não tinham interesse algum no bem-estar físico e mental dos trabalhadores. Os empregadores definiram o significado do emprego e se reservaram o direito de decidir o que era e o que não era tema de seu interesse – direito que negavam a seus empregados. No mesmo tom, a luta dos trabalhadores por melhores condições de trabalho e maior participação no processo produtivo teve de se transformar em luta contra o direito de o empregador definir os limites e os conteúdos da ordem do local de trabalho. O conflito entre trabalhadores e proprietários de fábricas quanto à definição das fronteiras do sistema fabril é mero exemplo do tipo de contenda que as definições da ordem devem necessariamente provocar. Uma vez que toda definição é contingente, e que, feitas as contas, cabe apenas ao poder de alguém forçá-la, então ela permanece a princípio aberta ao questionamento. De fato, ela tende a ser contestada por quem se torna vítima de seus efeitos prejudiciais. Esses debates podem então entrar na arena pública como convocações para a ação no sentido de melhorar os efeitos de tais limites. Exemplo clássico é aquele do Estado de bem-estar britânico. Surgido apenas há pouco tempo na história, no final dos anos 1940, sua finalidade era fornecer uma rede de segurança contra os caprichos e flutuações de um sistema desinteressado do bem-estar daqueles que promoveram sua causa. Como um de seus principais fundadores, William Beveridge, expressou: “Se a condição de pleno emprego não é conquistada e mantida, nenhuma liberdade é segura, pois a muitos ela não parecerá valer a pena.” Para alguns, aparentemente, esses debates já não são relevantes. Outros, aqueles que esquecem as lições da história, estão condenados a repetir seus erros, negando sua relevância atual. Hoje ouvimos, de modo recorrente, debates acalorados sobre quem deve assumir o pagamento, por exemplo, dos prejuízos provocados pela poluição das fontes de água doce, pelos despejos de lixo tóxico ou pelos danos causados à paisagem por novas minas a céu aberto ou estradas. O lixo de um pode tornar-se relevante elemento da condição de vida de outro. Os objetos de disputa parecem diferentes, dependendo do ponto de vista pelo qual são contemplados e de seus significados derivados do lugar que ocupam naquelas ordens parciais. Golpeados por pressões muitas vezes contraditórias, eles podem assumir forma que ninguém tenha planejado nem considere aceitável. Afetado por muitas ordens parciais, ninguém parece assumir a responsabilidade por sua existência e suas consequências. Nos tempos modernos, o problema tendeu a tornar-se sempre mais agudo, uma vez que o poder de instrumentos tecnológicos da ação humana cresceu – e, com ele, as consequências de sua aplicação. Enquanto cada núcleo de ordem se torna mais organizado, racionalizado, mais bem-supervisionado e efetivo em sua performance, a multiplicidade de ordens parciais aperfeiçoadas pode configurar o caos total. Resultados distantes de ações planejadas, propositais, racionalmente projetadas e monitoradas com firmeza podem produzir respostas sob a forma de catástrofes imprevisíveis, incontroláveis. Pense no panorama do efeito estufa. Trata-se do resultado não antecipado de numerosos esforços para mobilizar cada vez mais energia em nome da eficiência e da produção crescentes. Cada esforço isoladamente pode ser aclamado como uma descoberta e um avanço tecnológico, justificados de acordo com objetivos de curto prazo. De modo similar, as descargas de substâncias tóxicas na atmosfera ou nos rios podem ser justificadas como eventos raros em processos conscientes e seguros, celebrados como benéficos para o bem público. Cada um desses aspectos pode ser indicativo da firme busca da melhor e mais “racional” solução para uma tarefa específica enfrentada por esta ou aquela organização relativamente autônoma. Cada novo vírus e bactéria projetados têm finalidades definidas e trabalho útil concreto a executar – até que à sua aplicação sejam atribuídos efeitos colaterais indesejáveis. Muito da argumentação em torno dessas consequências cai no domínio da “propriedade”. Enquanto a empresa é considerada capaz de produzir os resultados em geral benéficos – julgando pela forma como alguns parecem desafiar esse pressuposto –, tais motivações podem ser questionadas pelos governos democraticamente eleitos. Uma área que serve como exemplo é o mapeamento do genoma humano e seu potencial para a manipulação. As grandes companhias farmacêuticas argumentam que agem, em última instância, tendo em mira o bem público, mas quem pode se apropriar da patente dos genes humanos? Eles configuram algo que pode ser “possuído”, no sentido de que são mercadorias para compra e venda no mercado e manipuladas de acordo com a capacidade de pagamento? Essa ideia está em discussão, com consequências fundamentais para todos nós. Ao mesmo tempo, os resultados desse trabalho podem ser apontados naquilo que se considera desejável, em alvos imediatos, como, por exemplo, vulnerabilizar uma doença específica. Contudo, mudanças na situação “em questão” afetam aquilo que foi deixado “em segundo plano”. Os fertilizantes artificiais usados para melhorar colheitas ilustram essa questão de maneira muito vívida. Os nitratos usados no solo podem produzir seus efeitos nominais porque multiplicam as safras. A chuva, entretanto, arrasta boa parcela dos fertilizantes para os lençóis subterrâneos de água, criando, assim, um novo e não menos sinistro problema, que exige tornar aquele manancial apropriado ao consumo. E, mais cedo ou mais tarde, irá se descobrir que os novos processos têm efeitos poluidores em si próprios, por exemplo, são saboroso pasto para algas tóxicas. Assim prossegue a luta contra o caos. Não há dúvida de que, considerando a disposição para se pensar e agir de modo diferente, há como reduzir riscos futuros. Não obstante, o caos que se espera conter e dominar no futuro será produto da específica atividade humana de construção da ordem. Ações relacionadas à resolução de problemas podem conduzir justamente à criação de novos problemas e, assim, inspirar a busca de novas soluções. Muitas vezes isso tomou a forma de atribuição da equipe encarregada de encontrar a maneira mais curta, mais barata e “mais razoável” de equacionar o problema. As perguntas e soluções mais incômodas e rigorosas são deixadas fora desse processo; as mais simples, menos custosas e aparentemente mais racionais – pelo menos de acordo com a lógica de curto prazo e de noções peculiares de custo – serão as recomendações oferecidas.

 

(Zygmunt Bauman e Tim May - APRENDENDO A PENSAR COM A SOCIOLOGIA)

publicado às 23:22


Corpo, sexualidade e gênero

por Thynus, em 24.02.14

 

 

No clima atual, um aspecto de nosso corpo que vem pedindo intensa e particular atenção, bem como demandando cuidados, é o sexo. Nossa “atribuição sexual”, como qualquer outro elemento referente ao corpo, não é qualidade determinada no nascimento. Vivemos no período do que Anthony Giddens denominou “sexualidade plástica”. “Ser masculino” ou “ser feminino” é uma questão de arte que precisa ser aprendida, praticada e constantemente aperfeiçoada. Além disso, nenhuma das duas circunstâncias é autoevidente, amarrando-nos ao longo de nossas vidas, e nenhuma das duas oferece parâmetro claramente definido de comportamento.
No que diz respeito à identidade sexual, o corpo – sejam quais forem seus traços biológicos herdados – aparece como um conjunto de possibilidades. Há opções a escolher em termos de identidade sexual, com abertura para a experimentação, permitindo, assim, que algo seja retirado e substituído por outro algo. A original e aparente fixidez da “atribuição sexual” por todo o tempo não é uma sentença do destino. Nossa sexualidade, como outros aspectos de nosso corpo, é tarefa a ser desempenhada. É fenômeno complexo que inclui não apenas relações e práticas sexuais, mas também linguagem, discurso, indumentária e estilo. Em outras palavras, examinar como a sexualidade é mantida, e não simplesmente dada.
A sexualidade não é considerada produtiva, nos termos de uma “essência”. Isso implica um questionamento do que é conhecido como abordagem “essencialista” da sexualidade. O sociólogo britânico Jeffrey Weeks definiu esse quadro no sentido de procurar explicar “as propriedades de uma realidade complexa por referência a uma suposta verdade interior ou a uma essência”. O fato de a sexualidade não ser puramente “natural”, mas também um fenômeno cultural, não é, entretanto, novidade de nosso tempo. Os seres humanos sempre nasceram com órgãos genitais de macho ou de fêmea e características corporais secundárias de macho ou fêmea. Mas, em todas as épocas, os hábitos e os costumes culturalmente modelados, ensinados e aprendidos definiram o significado de ser “masculino” ou “feminino”. Não obstante, o fato de “masculinidade” e “feminilidade” serem construções humanas, não naturais e, como tais, abertas à mudança, foi suprimido na maior parte da história da humanidade.
Nessa revelação histórica, a cultura surgiu na máscara da natureza, e as invenções culturais foram consideradas no mesmo nível que as “leis naturais”. Homens foram feitos para ser homens; mulheres, para ser mulheres, e ponto final. Nada restara à vontade e à habilidade humanas senão obedecer e viver de acordo com a “verdadeira” natureza de cada um. Afinal, o que a natureza decidiu, nenhum homem (e em particular nenhuma mulher) pode alterar! Quem falou em nome da natureza raramente foi contestado – embora tenha havido exceções, elas em geral foram silenciadas na história. Em 1694, por exemplo, Mary Astell escreveu A Serious Proposal to the Ladies, em que argumentava não estarem as diferenças entre os sexos baseadas em ideias não examinadas de “natureza”, mas no poder que os homens mantêm sobre mulheres na sociedade.
Em grande parte da história da humanidade, distinções hereditárias em corpos humanos foram empregadas como materiais de construção para sustentar e reproduzir hierarquias sociais de poder. A prática persiste em relação à categoria “raça”, sempre que a cor da pele é definida como sinal de superioridade ou inferioridade e usada para explicar e justificar desigualdades sociais. O princípio se aplica às diferenças sexuais. Nelas, encontramos distinções biológicas dos sexos conformando a base para a desigualdade de gênero. “Gênero” é categoria cultural que envolve a totalidade das normas às quais os membros das duas categorias sexuais são obrigados a se conformar em suas performances de masculinidade e de feminilidade. O gênero classifica, divide e separa por meio da estipulação das atividades sociais consideradas apropriadas ou impróprias para cada categoria.
Com base em tal história, as mulheres costumam ser excluídas das áreas da vida social reservadas aos homens, ou nas quais barreiras bloqueiam o caminho de sua participação, como, por exemplo, na política ou nos negócios. Ao mesmo tempo, aquelas atividades fundamentais à sociedade, como reprodução, tarefas domésticas e criação de filhos, foram colocadas à parte, como domínio exclusivamente feminino, e, de modo compatível, desvalorizadas. Essa não é uma divisão de trabalho dada simplesmente por funções reprodutivas diferenciadas. Ela sustenta relações de poder que tendem a favorecer os homens.
Por exemplo, dentro das organizações, como lembra a socióloga italiana Silvia Gherardi, a posição de subordinação decorrente do fato de ser membro do segundo sexo é reforçada nos rituais em torno da gerência do corpo. Isso pode ser constatado quando o chefe deixa o escritório para uma reunião, acompanhado por sua secretária, que segue alguns passos atrás.
O movimento feminista desafiou as desigualdades sociais baseadas em características sexuais do corpo. Sua longa campanha trouxe resultados, mas mudanças na legislação não são capazes de conquistar a igualdade. O máximo que podem fazer é reabrir para a negociação aqueles casos previamente considerados “não problemáticos”. Não há nenhum limite sexualmente estabelecido a que as mulheres ou os homens devam confinar suas aspirações de vida e reivindicações em termos de posição social, mas a questão de saber qual deles finalmente se realiza costuma ser deixada para a engenhosidade e a persistência individuais, sendo os efeitos de responsabilidade dos indivíduos envolvidos.
Não está totalmente claro o que os efeitos de um deslocamento de atitudes sexuais representa para o quadro individual de mente e sentimentos. Alguns observadores, por exemplo o sexólogo alemão Volkmar Sigusch, expressaram sua preocupação nos seguintes termos:

As sombras moldadas por sentimentos de ansiedade, aversão, vergonha e culpa tornaram-se tão grandes e obscuras que muitas mulheres, e, consequentemente, também muitos homens, não enxergaram mais nenhum raio de luz. Os sentimentos de estagnação, alegria, ternura e conforto aparentemente foram condenados ao sufocamento em... pesada nuvem carregada de ódio, raiva, inveja, amargura, vingança, medo e susto.3

Se essas circunstâncias predominam, então a “realização do potencial sexual do corpo” torna-se tarefa mais difícil e transforma o sexo, e a maior parte das ligações humanas com ele, em outra fonte de insegurança e medo, ao contrário de seu potencial para maiores segurança e satisfação.

(Zygmunt Bauman e Tim May - APRENDENDO A PENSAR COM A SOCIOLOGIA)

publicado às 23:45

 

 

 

Um homem mau é um egoísta no mais alto grau: afirma a sua própria vontade de viver e nega a presença dessa vontade nos outros, destruindo a existência destes, caso se atravessem no seu caminho. Uma pessoa realmente perversa vai além do egoísmo, retirando prazer do sofrimento dos outros, não apenas como meio para os seus fins mas como um fim em si mesmo. Mas, embora o homem perverso veja um grande abismo entre a sua pessoa e os outros, conserva uma consciência vaga de que a sua própria vontade é apenas a aparência fenomenal da vontade única que está activa em todos. «Vê vagamente que ele, o homem mau, é ele mesmo a totalidade desta vontade; que por conseguinte não é apenas o que inflige sofrimento, mas também o que sofre». É esta a origem dos padecimentos do remorso.
Entre o homem mau e o homem bom existe um carácter intermédio: o homem justo. Ao invés do homem mau, o justo não encara a individualidade como um muro absoluto de separação entre ele e os outros; pretende reconhecer a vontade de viver nos outros ao mesmo nível que a sua, a ponto de se abster de agredir os outros seres humanos, seus irmãos. Quando se penetra na barreira da individualidade a um nível mais elevado do que este, alcançamos a benevolência, o fazer bem, o amor pela humanidade. Assim, é típico do homem bom fazer uma distinção menor que a habitual entre si e os outros. «É tão pouco provável que ele deixe que outros morram de fome enquanto ele tiver o bastante para si e para dar, como é improvável que qualquer pessoa passe fome um dia para, no seguinte, ter mais do que pode desfrutar.»
O homem bom perde a ilusão da individuação : reconhece-se a si mesmo, à sua vontade, em todos os seres e, portanto, também no sofredor. Mas a bondade levá-lo-á um passo além da benevolência.

Se dá tanta atenção ao sofrimento alheio como ao seu, e portanto é não só benevolente no mais alto grau mas está mesmo pronto a sacrificar a sua pr ópria individualidade sempre que tal sacrifício salvar algumas pessoas, segue-se claramente que um tal homem, que reconhece em todos os seres o seu mais íntimo e verdadeiro eu, deve também considerar o sofrimento infinito de todos os seres que sofrem como o seu próprio sofrimento, e carregar sobre si a dor de todo o mundo.

Isto levá-lo-á além da virtude, em direcção ao ascetismo; ele terá tanto horror a este mundo miserável que já não será suficiente amar os outros como a si mesmo e abandonar os seus prazeres quando eles dificultam os prazeres alheios. Fará tudo o que puder para repudiar a natureza do mundo enquanto expressa no seu próprio corpo, adoptando a castidade, a pobreza, a abstinência e a autopunição, recebendo de bom grado toda a injúria, ignomínia e insulto a ele dirigidos pelos outros. Assim, quebrará a vontade, que reconhece e abomina como fonte da existência sofredora de si mesmo e do mundo; e, quando a morte chega, ele acolhê-la-á como uma libertação. Um ascetismo deste tipo não é um ideal vão: pode ser aprendido pelo sofrimento, e foi exibido na vida por muitos santos cristãos, hindus e budistas.
Schopenhauer aceita que a vida de muitos santos estava cheia das mais absurdas superstições e pensa que os sistemas religiosos são a veste mística das verdades que são inatingíveis pelas pessoas sem instrução. Mas, afirma Schopenhauer, «há tão pouca necessidade de um santo ser um filósofo como de um filósofo ser um santo»; e é esta, sem dúvida, a resposta que ele daria às muitas pessoas que observaram que a sua própria vida foi muito diferente do ideal ascético que descreveu. «É estranho exigir a um moralista que ele não ensine outras virtudes além da que possui.»

(Anthony Kenny - História Concisa da Filosofia Ocidental)

publicado às 01:56


O dilema de Êutifron

por Thynus, em 21.02.14

 

 

Êutifron é o nome de um diálogo de Platão que conta a história do personagem de mesmo nome. A história começa com Sócrates contando ao protagonista que estava sendo processado por corromper a juventude através da invenção de novos deuses e da negação da existência dos antigos. Não poderia haver melhor pano de fundo para criticar a moral lastreada nos deuses.
Êutifron então lhe conta que um de seus empregados havia cometido um assassinato, e por isso seu pai o acorrentou enquanto ia a Atenas perguntar a um adivinho o que fazer com o criminoso. Mas sem comida ou cuidados, o assassino morreu. E Êutifron estava processando seu próprio pai pela morte do assassino. Sua família alega que o homem que processa o próprio pai é "ímpio". "O que mostra quão pouco eles eles sabem o que pensam os deuses sobre piedade e impiedade", diz Êutifron.
Sócrates então pergunta se Êutifron estava tão certo assim sobre as matérias religiosas e as coisas pias e ímpias a ponto de ter certeza do que estava fazendo: afinal, a impiedade poderia mesmo ser a de processar o próprio pai. A discussão então gira a respeito da origem dos mandamentos divinos -- ou seja, da própria moralidade. O que, afinal, faz uma ação ser pia ou ímpia? Êutifron responde que piedade é fazer o que agrada aos deuses, e impiedade é fazer o que lhes desagrada.
Mas Sócrates insiste, perguntando se "o pio ou sagrado é amado pelos deuses porque é sagrado, ou é sagrado porque é amado pelos deuses". E este é o xis da questão. Utilizando a terminologia moderna, o que Sócrates pergunta é: uma ação é boa porque os deuses assim o determinam, ou os deuses determinam essa ação porque ela é boa? Em outras palavras, os deuses simplesmente reconhecem um padrão pré-existente do que é bom e do que é mau, e então o adotam, ou são os próprios deuses que criam esse padrão por um fiat?
Se os deuses criam o padrão de bondade ao seu bel prazer, então eles poderiam, se assim quisessem, determinar que o estupro e a tortura são atos de bondade. No entanto, se eles não querem ou não podem fazê-lo é porque existe um padrão de bondade que é externo, anterior e independente dos deuses. E ambas as alternativas são devastadoras para a proposta de moral baseada em mandamentos divinos.
Se os padrões morais emanam dos deuses, então nada impede que amanhã, quando acordarmos, o estupro tenha subitamente se tornado um ato perfeitamente moral, devido a um inexplicável comando divino. Se os religiosos admitirem que isso é possível, são eles que nos devem explicações sobre seus padrões morais, e não o contrário. Que moral é essa que poderia admitir absolutamente qualquer coisa? No caso de a moral emanar de um deus, há um problema adicional: seria uma afirmação sem sentido dizer que esse deus é bom, já que é ele próprio quem define o que é bom e o que não é. Ele estaria na mesma situação de um ditador que "define" que matar opositores é bom, então os mata e depois é louvado por ser bom.
Por outro lado, se afirmarem que uma mudança nos padrões morais por vontade divina seria impossível, os teístas ficam presos à segunda alternativa, de que os deuses apenas reconhecem o que é bom. Nesse caso, não há necessidade de deuses para haver moralidade e padrões morais, e o papel das divindades na moral é o de meros apontadores, que dizem: "vejam, eu percebi que aquilo ali é moral." Em outras palavras, a moral não se baseia nos deuses ou sua vontade. Portanto, não há sentido algum nas propostas de sistemas morais baseados na religião, e menos ainda nas críticas à alegada amoralidade dos ateus.

Críticas à moral das religiões abraâmicas
Religiões abraâmicas são aquelas ligadas à tradição iniciada por Abraão: judaísmo, cristianismo e islamismo. Cristianismo e islã, juntos, respondem por metade das cabeças do planeta, enquanto são judeus cerca de um em cada trezentos indivíduos. A importância histórica e demográfica das religiões abraâmicas justifica que lhes seja dada atenção especial em qualquer análise sobre a religião.
Apesar das particularidades dos sistemas morais do cristianismo, judaísmo e islamismo, eles têm diversas características comuns que podem ser analisados em conjunto. A crítica central que se faz a esses sistemas é o fato de que a motivação para suas injunções morais está largamente ou totalmente desconectada do sofrimento, da felicidade e da liberdade das formas de vida que deveriam proteger. Em termos mais simples: a moral religiosa serve para agradar esse suposto deus, e por isso não tem obrigação nenhuma de acomodar os interesses dos mortais, sua busca por realização e sua aversão à dor.

(ATEA)

Bibliografia
Eutifron

publicado às 18:08


Deus, rival do homem?

por Thynus, em 20.02.14

A palavra fé vem do latim fides, donde deriva também fiel, fidelidade, confiar, fiador, confiança, confidência. Crer vem de credere, donde deriva também credo, crença, crente, acreditar, credor, crédito. Até etimologicamente, ter fé não significa, portanto, em primeiro lugar aceitar um conjunto de afirmações doutrinais ou dogmas. A fé é, antes de tudo, a entrega confiada a Deus, Fonte originária de tudo quanto existe. Entregar-se-lhe confiadamente como sentido último de toda a realidade e da existência própria. Como um homem se entrega confiada e amorosamente a uma mulher, como um amigo confia num amigo. Mas cá está a pergunta inevitável: Deus terá crédito, a ponto de se poder realmente acreditar nele, sem ilusões? Quem quiser reflectir sobre a fé religiosa deverá meditar na relação amorosa humana, no que ela implica de confiança, de decisão racional e de crédito. Teria crédito um Deus em relação ao qual se pudesse dizer, como escreveu Ernst Bloch, que o homem pode e deve ser melhor que o seu Deus? Com este critério, é necessário, por exemplo, recusar o Deus que exigiu a Abraão o sacrifício do próprio filho. Segundo Kant, à pretensa voz divina que ordenava sacrificar Isaac, Abraão deveria ter respondido: "Que eu não devo matar o meu bom filho é absolutamente certo; mas que tu, que me apareces, sejas Deus, disso não estou certo, nem posso estar, mesmo que essa voz ressoasse desde o céu (visível)". Como é inadmissível um Deus que castigasse a humanidade inteira por causa de um pecado dos primeiros pais. Quem pode acreditar num tirano, num Deus mesquinho e sádico? Frequentemente, foi um Deus indecente e intolerável que os ateus justamente recusaram. Segundo Nietzsche, o Deus que objectiva o homem "tinha de morrer, porque via com olhos que viam tudo... (...) A sua piedade desconhecia o pudor: ele metia-se nos meus recantos mais sórdidos". A religião, que tem de ser, pela sua própria natureza, o espaço da nobreza humana e da sua dignificação, da liberdade e da libertação, da fraternidade sem limites, da beleza e alegria feliz, do perguntar simultaneamente humilde e ousado, foi frequentemente o lugar da mesquinhez reles, da indignidade, da exclusão, do opróbrio, do mau gosto, da superstição ridícula. No Decâmeron, de Bocaccio, um frade enumera algumas das relíquias que encontrou: uma unha de um querubim, alguns raios da estrela que apareceu aos Reis Magos, uma garrafa com o suor de S. Miguel quando combateu com o Diabo... Hoje, continuam as hóstias que sangram, os segredos, os corpos incorruptos... Pregações infantis, infantilizantes e totalitárias, sem apelo ao debate esclarecido, ao diálgo crítico e a decisões adultas, contribuíram para o presente "vale tudo" do niilismo moral e para que, para tomar as grandes decisões da sua vida, apenas 1% dos franceses tenha em conta as posições da Igreja. Feuerbach e os "mestres da suspeita" viram-se na necessidade de negar Deus, porque pensaram que Deus era um vampiro que se alimentava do sangue, dos direitos e da dignidade do homem. Sartre dizia que mesmo que Deus existisse era necessário negá-lo, para afirmar a liberdade humana, pois Deus e a liberdade do homem são incompatíveis. Impõe-se, porém, reconhecer que tudo isto não passou de um enorme equívoco. De facto, o Deus cristão não é um rival do homem, mas um companheiro. E a própria ideia de liberdade tem a sua raiz essencial na Bíblia.

 

(Anselmo Borges - Janelas do (In)Visível)

publicado às 17:43


O Deus de Baruch Espinosa

por Thynus, em 19.02.14

Para Baruch Espinosa a origem do Cosmos é o próprio Deus que por sua vez é a única Substancia da Natureza, posto que a mesma natureza é tudo que existe, encarcerando os milagres na infâmia do charlatanismo. Segue-se, portanto uma forma de racionalismo teológico materialista, forte influencia nos círculos de teologia liberal.
Já para outros incluindo eu mesmo, Deus é o transcendente porque Ele não está em um lugar, Ele é o que está além do espaço tempo.
Aqui poderíamos perguntar:
“Deus habita o mundo não existente (o além do mundo criado)?”
Ora, Ele é o todo.
Assim como eu estou no meu corpo, também sou meu corpo, desta forma Deus é, e está em si mesmo.
Dito isto, admitimos que Ele não surgiu de um lugar, que não fosse Ele próprio. Neste caso não teremos problemas para conceber sua grandeza e Eternidade.
Deus em seu Ex Nihilo (Criação a partir do nada) põe no homem o paradoxo da vida, a saber, a eternidade em seu coração. O homem como sendo uma junção de partículas deve admitir, portanto que a matéria foi feita para colisão.
É como num liquidificador que bate a fruta o leite e o açúcar, para gerar uma nova combinação de substancias (aqui a substancia não se vincula ao sentido amplo q Espinosa lhe atribui), a que chamamos de suco ou vitamina. Neste caso o corpo sabe que a matéria quando colide provoca o acidente. Assim chegamos a conclusão que o acidente, o impacto é normal e totalmente natural no mundo da matéria. Agora mesmo acabei de prensar meu dedo na janela. Isso dói muito, a dor incita minha consciência de ser, que tal situação não é justa, embora isso aconteça todo o tempo com objetos e coisas inanimadas.
Toda matéria invariavelmente irá se colidir.
O Colisor de Hádrons serve-nos aqui como uma grande alegoria. Ele é o  maior acelerador de partículas com capacidade energética existente no mundo. O LHC da organização CERN  fica na fronteira franco-suiça, próximo a Genebra. Através dele fazem-se pesquisas para descobrirmos mais de nossa origem subatômica.
Mas quanto a matéria, o paradoxo se encontra na estrutura da consciência humana que a habita. Como disse agora pouco, conforme Salomão, Deus pôs a eternidade no coração dos homens, posto que este mesmo é criado do Eterno. Neste ponto admitimos que para a consciência, tanto a morte como os acidentes não são coisas naturais, uma vez que sua natureza é outra, advinda diretamente do Eterno e não meramente do Ex nihilo pelo Eterno. Assim ela busca organizar-se e andar prudentemente para evitar a dança de colisões do Cosmo, quando esta por sua vez ameace tal matéria.
A consciência anseia a progressão de si mesma.
Ora, não existe consciência que não queira progredir ou que deseje a morte!
Se desejar morrer é porque crê num lugar de transcendência, do contrário padece do desejo por suicídio que nada mais é do que uma patologia. No entanto o próprio suicida desejaria viver se fosse livre de seu tormento, isso digo tanto no que se refere ao psiquismo quanto ao pedido de eutanásia, uma vez que considere seu corpo totalmente inapto para continuar existindo.
Dessa forma fica claro que o paradoxo se encontra justamente na consciência que deseja permanecer e da matéria que inevitavelmente procura colidir. O impacto pode causar a morte do organismo, interrompendo assim a capacidade cognitiva. Aqui fica fácil de entender o porque do corpo glorificado de Jesus ter o poder de ultrapassar paredes.
A consciência, portanto deseja um lugar que lhe é necessário, a saber, um corpo que lhe permita prosseguir. Somente o hipócrita ou o tolo poderiam dizer que a interrupção de sua consciência é algo lícito! Mas eles fazem assim para defender uma ideologia que lhes parece boa na contingência em que vivem. Fazem, portanto por pura conveniência, assumindo seu imediatismo num ânimo dobre.
Diante da morte não existe pessoa que em sã consciência não sinta o pesar na alma.
Neste caso talvez possamos reconhecer que o monismo de Espinosa e o Deus de Nietzsche são de certa forma a mesma coisa.
Você pode até perguntar: “Mas Nietzsche não era ateu”?
Sim, sem dúvida, no entanto ele mesmo disse que se houvesse um Deus verdadeiro este invariavelmente participaria da dança do Cosmos, de colisões, impactos e busca pela sobrevivência. Ora, este é o Deus de Espinosa que está em tudo e em todos, onde as coisas convergem.
Espinosa não acreditava na criação Ex nihilo =Criação a partir do nada. Ele acreditava na criação: Ex Deo= Criação advinda de Deus. Assim ele não admitia que o tudo tivesse surgido do nada porque o nada, logicamente nada cria. Dada essa implicação teríamos que aceitar que Deus é igual a natureza, porque a própria natureza surge dele mesmo. Dessa forma Deus como ente auto causado gera o todo que hoje existe.
Porém, a criação: EX NIHILO de origem judaica se dá pela criação de um Deus que transcende sua matéria. Portanto o mundo vem do nada, no que se refere a sua substancia, logo Deus obviamente transcende a própria substancia impedindo q venhamos a sacraliza-la ou despreza-la completamente, como é peculiar ao panteísmo.

Einstein quando indagado por um Rabino acerca de sua visão a respeito de Deus disse o seguinte:
“Eu creio no Deus de Espinosa, que se revela na harmonia de tudo que existe, não num Deus que se preocupa com o destino e ações humanas”.
Assim Albert Einstein admitia acreditar num Universo estático, sem expansão. Relutou em reconhecer posteriormente as evidências do Big Bang e a dinâmica do Universo. No entanto até mesmo Stephem Hawking um físico contemporâneo que de fato não é teísta perguntou de maneira respeitosa dizendo: “Quem acendeu as equações e detonou a grande explosão”?
Para mais informações sobre o Universo de Einstein veja: 
http://www.deducoeslogicas.com/relatividade/einstein.html
É óbvio demais, o Big Bang implica em que o Universo teve um início, ora isso é aparentemente antagônico a visão de Espinosa e corrobora com o Ex nihilo da visão ortodoxa monoteísta.
No mais as teorias correm para alcançar status no mundo da física contemporânea, mediante evidências que possam substituir o chamado Deus das lacunas, o Deus teísta. Porém como conhecer leis que geram leis distintas, poderíamos dizer que também existem leis auto causadas?
Até o presente momento a natureza é reconhecidamente um produto e o Universo dinâmico como um relógio de corda.

(Sophia com graça e philos na veia)

publicado às 19:33


O partido da liberdade - Espinosa

por Thynus, em 19.02.14

 

"Pela decisão dos anjos e julgamento dos santos, excomungamos, expulsamos, execramos e maldizemos Baruch de Espinosa... Maldito seja de dia e maldito seja de noite; maldito seja quando se deita e maldito seja quando se levanta; maldito seja quando sai, maldito seja quando regressa...
Ordenamos que ninguém mantenha com ele comunicação oral ou escrita, que ninguém lhe preste favor algum, que ninguém permaneça com ele sob o mesmo teto ou a menos de quatro jardas, que ninguém leia algo escrito ou transcrito por ele."

Essas palavras fazem parte do texto de excomunhão de Espinosa, promulgada pela comunidade judaica de Amsterdam a 27 de julho de 1656. Compreender-lhe o significado mais profundo exige que se saiba o que Espinosa pensou e exprimiu, a que situação concreta esse pensamento respondia e quais suas conseqüência s; como se formou e como se desenvolveu.

 

O partido da liberdade
A exclusão da comunidade judaica foi seguida por outras transformações na vida de Espinosa. Como por essa época as finanças da família não iam bem, os irmãos e cunhados viram na excomunhão um bom motivo para deserdá-lo e afastá-lo dos negócios familiares. Espinosa não se abalou e procurou uma ocupação que resolvesse o problema da subsistência. Pondo em prática uma regra de vida dos antigos sábios judeus, aprendeu a polir lentes para lunetas. Saiu-se tão bem no ofício que a clientela aumentou rapidamente, fornecendo-lhe o suficiente para viver.
A mais importante das conseqüências, contudo, foi sua integração na vida cultural holandesa, no momento em que os Países-Baixos vivia m seu século de ouro. O novo Estado holandês fundava-se na liberdade burguesa, entendida como liberdade de empresa e liberdade de consciência. Valorizava-se a atividade econômica e promovia -se a tolerância religiosa, pois as barreiras confessionais apresentavam-se como empecilho para o intercâmbio comercial. A Igreja Romana, com seus tribunais, sua fiscalização, sua intolerância, aparecia aos burgueses da Holanda como manifestação de sua dependência em relação a um poder estrangeiro e contrário a seus interesses vitais. A alta burguesia adotou então o calvinismo em sua forma liberal, também chamado evangélico ou libertino e que se opunha ao calvinismo ortodoxo. Os libertinos defendia m a tolerância em matéria de religião, afirmavam a supremacia do poder civil sobre a autoridade religiosa e declaravam que esta não tinha direito de legislar em assuntos de fé e de moral. Opunham-se, assim, aos ortodoxos, partidários da dominação do Estado pela Igreja e que condenavam o desenvolvimento econômico como contrário à Bíblia. O calvinismo ortodoxo foi, em geral, adotado por todas as classes e camadas sociais prejudicadas com o desenvolvimento da economia mercante e com a nascente indústria. Ortodoxos eram, assim, os camponeses pobres, artesãos, marinheiros, operários portuários e a nobreza, constituindo todos a clientela da Casa de Orange.
O conflito entre as duas tendência s opostas explodiu abertamente após o tratado de Vestfália (1648). As Província s Unidas havia m participado da Guerra dos Trinta Anos, ao lado da França, contra a Espanha, e assinaram um tratado de paz em separado, o que abria as portas das colônias espanholas para o comércio holandês, satisfazendo portanto aos interesses da burguesia. A Casa de Orange, ao contrario, desejava a continuação da guerra, sem a qual sua existência não tinha sentido.
Firmada a paz, o poder passou a ser ocupado pela burguesia e pela ala calvinista libertina. Seu maior representante era Johannes de Witt, eleito Grande Pensionário em 1653, permanecendo até 1672, quando foi assassinado e a Casa de Orange retomou o poder.
Espinosa, amigo de Witt, viveu intensamente todo o conflito. Partidário de sua política e horrorizado com o crime, quis pregar nas paredes de Amsterdam um cartaz que dizia "Últimos dos Bárbaros", mas foi impedido por um amigo.
Durante esse período, Espinosa escreveu a maior parte de suas obras e sua integração na cultura holandesa se fez, assim, no momento de maior intensidade dos conflitos socioeconômicos, característicos dos Países-Baixos, e na fase de maior esplendor da vida intelectual e artística da nação.
Nem asceta nem solitário: um homem do mundo
Dentro desse panorama, após a excomunhão em 1656, Espinosa abandonou os estudos judaicos e penetrou no humanismo clássico. Aprendeu latim e um pouco de grego com Franz van den Enden, ex-jesuíta, médico, filólogo e livreiro, que em 1648 tentou a paz entre os Países-Baixos e a Espanha, em 1650 ofereceu-se a Johannes de Witt para lutar contra a Inglaterra e, em 1654, foi enforcado pelos franceses depois de participar de um complô de alta traição. Com esse mestre, Espinosa leu obras de Terêncio, Tácito, Tito Lívio, Petrônio, Virgílio, Sêneca, César, Salústio, Márcia l, Plínio, Ovídio, Cúrcio, Plauto e Cícero. Dos gregos, leu Diofanto, Aristóteles, Hipócrates, Epiteto, Lucla no, Homero e Euclides.
Na mesma época, Espinosa estuda a filosofia de Descartes, sobre a qual escreverá, em 1663, os Princípios da Filosofia Cartesiana. O peso do cartesianismo sobre Espinosa é, na verdade, o peso do novo racionalismo do século XVII; é a confiança no poder da razão tanto nos domínios da teoria, quanto na ação prática e que começou pela necessidade de elaborar as noções de método, de verdade e, a partir delas, as noções de ser e de ação.
Os calvinistas libertinos eram favoráveis ao cartesianismo. Alguns deles formaram o grupo dos colegiantes (integrantes do Collegi Prophetica), entre os quais se encontrava a maior parte dos amigos de Espinosa. Os colegiantes dedicavam-se especialmente ao estudo da Bíblia e da nova filosofia ; foram eles os primeiros a ler o manuscrito da Ética, redigida por Espinosa a partir de 1661.
Além dos amigos colegiantes, Espinosa relacionava-se com muito mais gente dos círculos culturais holandeses. Não é verdadeira, portanto, a imagem muito difundida, segundo a qual teria sido uma espécie de eremita, solitário, pobre e asceta. Nada mais distante da realidade. Entre a burguesia libertina e progressista, encontram-se amigos íntimos do filósofo. Loedwjk Meijer, Simon de Vries, Jarig Jelles, Pieter Balling, Johannes Rienwertz, Conrad von Beuning, Johannes Hudde mantêm relações com Espinosa e todos são representantes expressivos das altas esferas administrativas e científicas da Holanda. O Grande Pensionário Johannes de Witt e seu irmão Cornelius visitam-no em casa, assim como o filósofo Leibniz. A correspondência de Espinosa revela que discutiu longamente com o químico inglês Robert Boyle, a respeito da natureza do salitre. Outro correspondente foi Oldenburg, diplomata holandês na Inglaterra. As cartas revelam também que foi convidado para lecionar na Universidade de Heidelberg, mas recusou, pois o convite solicitava-lhe não ensinar teorias comprometedoras para a religião. Prova também de seu intenso relacionamento encontra-se na viagem a Utrecht, realizada em 1673, como embaixador.
Que não era um asceta e solitário, preocupado exclusivamente com a salvação de sua alma e desinteressado do mundo, prova-o melhor ainda o Tratado Teológico-Político, onde defende a separação entre Estado e Igreja, política e religião, filosofia e revelação. O Tratado preocupa-se com a violência política e nele aparece a meditação teórica articulada com as exigências objetivas, própria s da sociedade em que viveu e dos interesses da classe com a qual era solidário.
O Tratado Teológico-Político foi. escrito em 1665 e, por precaução, publicado sem o nome do autor. Além dessa obra e dos Princípios da Filosofia Cartesiana (única obra publicada com seu nome), escreveu, em 1660, o Breve Tratado, forma juvenil e preparatória da Ética, o Tratado da Correção do Intelecto, em 1661, e a Ética, sua maior obra, iniciada nesse mesmo ano e terminada em 1675. A Ética não pôde ser publicada, logo após a efervescência causada pelo Tratado Teológico-Político, por causa das acusações que pesavam sobre o autor; os teólogos o consideravam "ateu, blasfemador e elemento nocivo para a república". Em 1677, após sua morte, Meijer e Schuller enviaram a Rienwertz os manuscritos e Jelles financiou uma edição, que saiu com o título de Obras Póstumas, compreendendo a Ética, o Tratado da Correção do Intelecto, o Tratado Teológico-Político, uma Gramática Hebraica e as Cartas.
Espinosa era fisicamente muito fraco e sofreu de tuberculose, durante quase vinte anos. Na manhã de domingo, 21 de fevereiro de 1677, o amigo Meijer foi visitá-lo porque o filósofo não se sentia muito bem. Almoçaram juntos e logo depois Espinosa faleceu.

(Marilena de Souza Chauí - BARUCH DE ESPINOSA)

publicado às 19:32

 

 

A carícia constitui uma das expressões supremas da ternura sobre a qual dicorremos no artigo anterior. Por que dizemos carícia essencial? Porque queremos distingui-la da carícia como pura moção psicológica, em função de uma bemquerença fugaz e sem história . A carícia-moção não envolve o todo da pessoa. A carícia é essencial quando se transforma numa atitude, num modo-de-ser que qualifica a pessoa em sua totalidade,  na psiqué,  no pensamento, na vontade, na interioridade, nas relações. 
O órgão da carícia é, fundamentalmente, a mão: a mão que toca, a mão que afaga, a mão que estabelece relação, a mão que acalenta, a mão que traz quietude. Mas a mão é mais que a mão. É a pessoa inteira que através da mão e na mão revela um modo-de-ser carinhoso. A carícia toca o profundo do ser humano, lá onde se situa seu Centro pessoal. Para que a carícia seja verdadeiramente essencial precisamos cultivar o Eu profundo, aquela busca do mais íntimo e verdadeiro em nós e não apenas o ego superficial da consciência sempre cheia de preocupações.
A carícia que emerge do Centro confere repouso, integração e confiança. Daí o sentido do afago. Ao acariciar a criança a mãe lhe comunica a experiência mais orientadora que existe: a confiança fundamental na bondade da vida; a confiança  de que, no fundo, apesar das tantas distorções, tudo tem sentido; a confiança de que a paz  e não o pesadelo é a realidade mais verdadeira; a  confiança na acolhida  no grande Útero.
Assim como a ternura, a carícia exige total altruismo, respeito pelo outro e renúncia a qualquer outra intenção que não seja a  da experiência de querer bem   e de amar. Não é um roçar de peles, mas um investimento de carinho e de amor através da mão e da pele, pele que é o nosso eu concreto .
O afeto não existe sem a carícia, a ternura e o cuidado. Assim como a estrela precisa de uma aura para brilhar, da mesma forma o afeto necessita da carícia  para sobreviver. É a carícia da pele, do cabelo, das mãos, do rosto, dos ombros, da intimidade sexual que confere concretude ao afeto e ao amor. É a qualidade da carícia que impede o afeto de ser mentiroso, falso ou dúbio. A carícia essencial é leve como um entreabrir suave da porta. Jamais há carícia na violência de arrombar portas e janelas, quer dizer, na invasão da  intimidade da pessoa.
Disse com precisão o psiquiatra colombiano  Luis Carlos Restrepo que escreveu um belo livro  sobre “O direito à ternura”(Vozes 1998): ”A mão, órgão humano por excelência, serve tanto para acariciar como para agarrar. Mão que agarra  e mão que acaricia são duas facetas extremas das possibilidades de encontro inter-humano”
Numa reflexão cultural mais ampla, a mão que agarra corporifica o modo-de-ser dos últimos quatro séculos, da assim chamada modernidade. O eixo articulador do paradigma moderno é a vontade de agarrar tudo para possuir e dominar. Todo o Continente latinoameriano foi agarrado e praticamente dizimado pela invasão militar e religiosa dos ibéricos. E veio a Africa, a China, todo o mundo que se pôde agarrar, até a Lua.
Os modenros agarraram dominando a natureza, explorando seus bens e serviços sem qualquer consideração de  respeito de seus limites e sem dar-lhe tempo de repouso para poder se reproduzir. Hoje colhemos os frutos envenenados desta prática sem qualquer cuidado e ausente de todo sentimento de carícia para com o que vive e é vulnerável.
Agarrar é expressão do poder sobre, da manipulação, do enquadramento do outro ou das coisas  ao meu modo-de-ser. Se bem repararmos,  não ocorreu uma mundialização, respeitando as culturas em sua rica diversidade. O que ocorreu foi a ocidentalização do mundo. E na sua forma mas pedestre: uma hamburguerização do estilo de vida norteamericano imposto a todos os quadrantes do planeta.
A mão que acaricia representa a alternativa necessária: o modo-de-ser-cuidado, pois “a carícia é uma mão revestida de paciência que toca sem ferir e solta para permitir a mobilidade do ser com quem entramos em contacto”(Restrepo).     
É urgente nos dias de hoje resgatar nos seres humanos, a dimensão da carícia essencial. Ela está dentro de todos nós, embora encoberta por grossa camada de cinza de materialismo, de consumismo e de futilidades. A carícia essencial nos devolve a nossa humanidade perdida. Em seu sentido melhor  reforça também o preceito ético mais universal: tratar humanamente cada ser humano, quer dizer, com compreensão, com acolhida, com cuidado e com a carícia essencial.

Leonardo Boff é autor de O cuidado necessário, Vozes 2012.

publicado às 17:52


O Papa e o maldito sexo. 2

por Thynus, em 15.02.14

 

Num gesto sem precedentes, o Papa Francisco enviou aos católicos de todo o mundo um inquérito com 39 perguntas, para saber directamente e não já só pelos bispos o que se passa em domínios considerados tabu: novas formas de família, casais homossexuais, uniões de facto, relações pré-matrimoniais, divorciados que voltam a casar e a sua relação com os sacramentos, adopção, contracepção, uniões à experiência, educação religiosa das crianças...

 

Os resultados, que ajudarão na preparação para a Assembleia Geral Extraordinária do Sínodo dos Bispos sobre "Os desafios pastorais sobre a família no contexto da evangelização", em Outubro próximo, ainda não são totalmente conhecidos, mas nomeadamente as Conferências Episcopais da Alemanha e da Suíça já publicaram os referentes aos seus países. Em ambos os casos, bem como num inquérito realizado pela Bendixen & Amandi para a cadeia de televisão norte-americana Univisión a católicos dos cinco continentes, conclui-se que a maioria dos católicos não está de acordo com a doutrina oficial da Igreja. Concretamente nos relatórios alemão e suíço, pode ler-se a valorização do casamento católico. Textualmente, no alemão: "A ideia do casamento enquanto sacramento, que implica a fidelidade e a exclusividade do cônjuge bem como a transmissão da vida, é normalmente aceite por quem se casa na Igreja." Mas logo a seguir: "Pelo contrário, as afirmações da Igreja sobre as relações sexuais pré-matrimoniais, a homossexualidade, os divorciados recasados e o controlo da natalidade são aceites por pouquíssimos ou prevalentemente rejeitadas de forma explícita."
Não se deverá esperar um simples aval do Papa e do Sínodo ao resultado do inquérito mundial. Marcello Semeraro, secretário do G8 cardinalício que aconselha o Papa, já preveniu contra a ideia de ver as maiorias aprovadas: "O papel do Papa e dos bispos não consiste em serem notários de uma maioria." Mas é igualmente claro que algo tem de ser feito.
Como escreveu Miguel Oliveira da Silva, deve perguntar-se se, no universo sexual, que continua a ser "um imenso, incómodo e multifacetado mistério", vale tudo. É claro que não, e reconhece que "a sociedade ocidental vive um profundo e grave vazio ético em matéria de sexualidade, que a múltipla oferta de uma sexualidade por vezes devassada sem pudor na praça pública e passível de excessos não consegue minimamente preencher - ao contrário".
De qualquer modo, a Igreja precisa de reconciliar-se com o mundo e a ciência, o corpo e a sexualidade. E lá está, por exemplo, o famoso número 14 da encíclica Humanae Vitae contra a contracepção artificial. Neste domínio, o equívoco fundamental da encíclica encontra-se numa concepção de lei natural fixa, estática e centrada na biologia. Ora, por natureza o ser humano é cultural e histórico e a própria realidade é processual. A sexualidade humana não pode ser vista apenas na sua vertente biológica, pois envolve o biológico, o afectivo, a ternura, o amor, o espiritual, e é preciso superar o dualismo de fim primário (procriativo) e fim secundário (unitivo) e a argumentação moral centrada nos actos isolados. Por outro lado, não é o homem interventivo e transformador da natureza? E ainda serão naturais os métodos que têm que ver com uma descoberta e aproveitamento humanos dos períodos inférteis da mulher?
Como pedia o cardeal Carlo Martini, "é um sinal de grandeza e autoconsciência alguém confessar os seus erros e visão limitada". Assim, "o Papa talvez não retire a encíclica, mas pode escrever uma nova e ir mais longe. É legítimo o desejo de que o Magistério diga algo de positivo sobre o tema da sexualidade". "Procuramos um caminho para, de modo fiável, falar sobre o casamento, o controlo da natalidade, a procriação medicamente assistida, a homossexualidade, a contracepção."
Mas, aqui, impõe-se uma outra pergunta: enquanto se mantiver a lei do celibato obrigatório, que Martini também interrogava, não estará todo o discurso eclesiástico sobre o tema debaixo do fogo da suspeita?

(Anselmo Borges)

publicado às 17:35

As manifestações massivas de junho/julho de 2013, em grande parte pacíficas e as outras havidas neste ano de 2014 que mostraram a atuação violenta dos black blocs que, mascarados, quebram agências de bancos, vitrines de lojas e depredam edifícios públicos, atacam violentamente policiais, culminando com a morte do cinegrafista Santiago Andrade, suscitaram o tema do terrorismo.

       É importante que se entenda que o terrorismo não é um fenômeno da guerra, mas da política. O terrorismo irrompe no seio de grupos insatisfeitos com os rumos da política do país ou da economia e que já não acreditam nas instituições, nem no diálogo e muito menos em mudanças sociais significativas. Pode até ocorrer que se opõem de tal maneira ao sistema mundial e nacional vigente, o capitalismo neoliberal, que investem contra seus símbolos, danificando-os. Ilusoriamente pensam que destruindo-os atingem o coração do sistema. Esse não se muda pela violência puntual mas por um processo histórico-político, por mais prolongado que seja. Tais grupos vem carregados de ressentimento, de amargura e de raiva. Dão vasão  a este estado de ânimo através de ações destrutivas.

 

Paradigmático foi o atentado terrorista de 11 de setembro de 2001 contra os Estados Unidos. Num lapso de uma hora, os símbolos maiores da ordem capitalista no nível econômico as duas Torres Gêmeas em Nova Iorque, no nível militar o Pentágono e no nivel político a Casa Branca (o avião destinado a ela foi derrubado antes) foram diretamente golpeados.

 

A partir de então se instalou o medo em todo o país. E o medo produz fantasmas que desestabilizam as pessoas e a ordem vigente. Assim, por exemplo, um  árabe, em Nova York,  pede uma informação a um policial e este o prende, imaginando ser um terrorista. Depois se verifica ser um simples cidadão inocente. Com frequência o Governo norte-americano,  especialmente, sob o Presidente Bush, assustava a nação inteira, anunciando a iminência de atentados. Embora não tenham acontecido até agora, acabam alimentando a paranóia generalizada.             

 

Esta femenologia mostra a singularidade do terrorismo: a ocupação das mentes. Nas guerras e nas guerrilhas como na Colômbia precisa-se ocupar o espaço físico para efetivamente se impôr. Assim foi no Afeganistão e no Iraque.  No terror não. Basta ocupar as mentes e ativar o imaginário através da ameaça de novos atentados e do medo que então se internaliza nas pessoas e nas instituições.

 

 Os norte-americanos ocuparam fisicamente o Afeganistão dos talibãs e o Iraque de Saddan Hussein. Mas a Alqaeda que perpetrou os atentados, ocupou psicologicamente as mentes dos norte-americanos. Fizeram dos EUA uma nação refém do medo, do Governo ao simples cidadão.

 

A profecia do autor intelectual dos atentados de 11 de setembro, o então ainda vivo Osama Bin Laden, feita no dia  8 de outubro de 2001, infelizmente, se realizou: “Os EUA nunca mais terão segurança, nunca mais terão paz”. Ocupar as mentes das pessoas, mantê-las desestabilizadas emocionalmente, obrigá-las a desconfiar de qualquer gestou ou de pessoas estranhas, eis o que o terrorismo almeja e nisso reside sua essência.

 

       Para alcançar seu objetivo de dominação das mentes, o terrorismo segue a seguinte estratégia:

 

       (1) os atos têm de ser  espetaculares, caso contrário, não causam comoção generalizada;

 

(2) os atos, apesar de odiados, devem provocar admiração pela sagacidade empregada;

 

(3) os atos devem sugerir que foram minuciosamente preparados;

 

(4) os atos devem ser imprevistos para darem a impressão de serem incontroláveis;

 

(5) os atos devem ficar no anonimato dos autores (usar máscaras) porque quanto mais suspeitos, maior o medo;

 

(6) os atos devem provocar permanente medo;

 

(7) os atos devem distorcer a percepção da realidade: qualquer coisa diferente pode configurar o terror. Basta ver alguém das comunidades pobres da periferia, ou os rolezinhos entrando nos shoppings e já se projeta a imagem de um assaltante potencial.

 

       Formalizemos uma compreensão suscinta do terrorismo: é toda  violência espetacular, praticada com o propósito de ocupar as mentes com  medo e pavor.

 

O importante não é a violência em si,  mas seu caráter espetacular, capaz de dominar as mentes de todos.

 

       Um dos efeitos mais lamentáveis do terrorismo foi ter suscitado o Estado terrorista como os EUA. Criou-se uma legislação que fere os direitos humanos, impõe vigilância sobre toda a população, criou o organismo de segurança nacional com altas verbas para sua implantação em todo o pais, projetou a “guerra infinita” contra o terrorismo em qualquer parte do mundo com a ameaça de utilização de qualquer tipo de arma, não excluidas as armas nucleares. E organizou uma rede de espionagem eletrônica global que tudo e a todos controla.

 

       Está em debate no Ministério da Justiça, nos órgãos de segurança do Estado e no Parlamento  uma legislação visando tipificar os atos destrutivos dos black bocs de terrorismo. Sem dúvida, os atos obedecem à lógica terrorista mas não significa ainda um terrorismo articulado e organizado. Há o risco, já advertido pelo Ministro da Justiça Eduardo Cardoso, de não instaurarmos o medo na sociedade que acaba inibindo as manifestações populares, legítimas no regime democrático. O próprio povo com medo acaba se retraindo e terá dificuldade em apoiar estas manifestações legítimas.

 

Mais importante em saber quem cometeu e comete atos de terrorismo é saber o porquê se recorre a ele. Ai a importância do acompanhamento dos órgãos de informação, do diálogo aberto com todos os estratos da sociedade, especialmente, com aqueles mais penalizados pelo tipo de sociedade que temos, altamente desigual e discriminatória. Difundir mais e mais a educação e infundir confiança, amor às pessoas e cuidado de uns para com os outros como o disse, exemplarmente, a esposa do cinegrafista Sebastião Andrade  e o enfatizou recentemente a ministra Maria do Rosário da Secretaria Nacional de Direitos Humanos num encontro na OAB do Rio a propósito da Comisão da Verdade.

 

São caminhos de outro tipo de estratégia política, certamente mais eficazes que a pura e simples repressão policial que ataca os efeitos mas não atinge o coração do problema deste terrorismo ainda inicial.

 

Veja do autor, Leonardo Boff, Fundamentalismo, terrorismo, religião e paz,  Vozes,  Petrópolis 2009.

publicado às 17:34

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